O CAPITAL SOCIAL DOS RURAIS DE SANGRADOURO (ARARANGUÁ/SC) E A CONSTRUÇÃO DE NOVAS TERRITORIALIDADES EL CAPITAL SOCIAL DE RURALES EN SANGRADOURO (ARARANGUÁ/SC) Y LA CONSTRUCCIÓN DE NUEVAS TERRITOLIDADES Aline Turatti Alves [email protected] Universidade Federal de Uberlândia Instituto de Geografia Laboratório de Geografia Agrária Marcelo Cervo Chelotti [email protected] Universidade Federal de Uberlândia Instituto de Geografia Laboratório de Geografia Agrária RESUMO Sangradouro se localiza no vetor que leva ao Balneário de Araranguá/SC. Suas características tradicionais, herdadas de, pelo menos, três gerações de agricultores familiares, se revelam em suas territorialidades, pelas relações estabelecidas entre os vizinhos, com a religosidade, e com a terra. Essas pistas nos despertaram para o potencial da Comunidade, traduzido por seu capital social. Tal característica, no entanto, é pouco explorado pelas instâncias de gestão pública, que inseriram Sangradouro no planejamento turístico, por sua localização na “Rota Caminho dos Conventos”, sem diálogo com os locais. A partir dessa problemática refletimos sobre o território e as territorialidades em questão, com objetivo de elencar elementos que revelam seu capital social. Por meio de metodologia qualitativa, fizemos incursões à campo, dialogando com lideranças locais, resgatando aspectos históricos e simbólicos da Comunidade. Consideramos que há em Sangradouro elevado capital social. Palavras-chave: Território; Sangradouro; Capital Social. Resúmen Sangradouro se encuentra en el vector que lleva al Balneario de Araranguá/SC. Sus características tradicionales, heredados de al menos tres generaciones de agricultores familiares, se revelan en su territorialidad, las relaciones entre los vecinos, con religosidade, y con la tierra. Estas pistas nos despertaron al potencial de la Comunidad, traducido por su capital social. Esta característica, sin embargo, es poco explorado por los órganos de la administración pública, que entraron Sangradouro en la planificación del turismo por su ubicación en la “Rota Caminho dos Conventos”, sin diálogo con los locales. De este tema se reflexiona sobre el territorio y la territorialidad de que se trate, con el fin de enumerar los elementos que revelan su capital social. A través de una metodología cualitativa, hemos hecho incursiones en el campo, hablando con los líderes locales, rescatando los aspectos históricos y simbólicos de la Comunidad. Creemos que se encuentra un capital social alto en Sangradouro. Palabras-clave: Territorio; Sangradouro; Capital Social. INTRODUÇÃO Este trabalho é resultado de análise territorial e das territorialidades da comunidade rural Sangradouro, localizada em Araranguá-SC, Brasil. Nosso objetivo se pautou na investigação do capital social presente nessa Comunidade, motivados pela inserção de Sangradouro na “Rota Caminho dos Conventos”, um projeto turístico que se associa à outro maior, Regional, denominado “Caminho dos Cânios”. O título “Rota Caminho dos Conventos” resgata a História de Araranguá, marcada pelo caminho dos tropeiros que cruzavam o litoral, vindo do Rio Grande do Sul com destino às Minas Gerais. Assim, para se alcançar a praia do município, é necessário cruzar Sangradoro, localizada nesse vetor. Esse projeto turístico promoveu a sinalização do trajeto, algo bastante recente, realizado pela última administração municipal, ainda em exercício. Consideramos que a inserção de Sangradouro no projeto turístico municipal representa um marco na elaboração de novas territorialidades. Porém, embora a Comunidade seja afetada diretamente por essa lógica, que comunga com os processos globalizantes, é sabido que as territorialidades consolidadas negociam, constantemente, com as novas organizações. Por isso, buscou-se caracterizar Sangradouro, observando seus aspectos econômicos, políticos e culturais, e o contexto de políticas públicas que influenciaram/influenciam aquele território. Além de pesquisa teórica e observação da realidade empírica, conversas informais junto às lideranças comunitárias nos auxiliaram no sentido da aferição do capital social. Antes de analisar Sangradouro, no entanto, discutimos os conceitos e categorias que dão suporte à nossa investigação. DESENVOLVIMENTO Conceitos e categorias de apoio Comecemos, então, pelo conceito de território. E para dar início a discussão, logo refutamos o seu entendimento como mero espaço físico. O território, embora dependa de uma base física, vai muito além dela, já que depende da dinâmica relacional da sociedade, presente na produção do espaço geográfico. Assim, pode-se dizer que não é possível compreender um território, para que nele/dele se faça planos, sem se investigar a realidade sistêmica em que se insere. Para que um espaço seja considerado um território, é necessário que nele estejam presentes as espacialidades das relações de poder, traduzidas por elementos diversos, objetivos e subjetivos. Como elementos objetivos, poderíamos citar as políticas públicas, e como subjetivos, o “capital social” de determinado grupo, próximo conceito a ser trabalhado. Assim, para se interpretar um território, não se pode lançar mão de nenhum de seus aspectos, a saber, econômico, político e cultural (Saquet, 2003). O território é, a priori, marcado pela conflitualidade inerente às relações. O “campo de forças” que é o poder nele está presente em intensidades e ritmos diversos. Para Saquet (2003, p. 24): O território se dá quando se manifesta e exerce-se qualquer tipo de poder, de relações sociais. São as relações que dão o concreto ao abstrato, são as relações que consubstanciam o poder. Toda relação social, econômica, política e cultural é marcada pelo poder, porque são relações que os homens mantêm entre si nos diferentes conflitos diários. Portanto, o território é um complexo de interações simultâneas, materiais e imateriais, que se apresentam imbricadas num dado espaço geográfico, porém, sem estar isolado, se apresentando, de fato, interescalar e articulado. No mesmo sentido que Saquet, Haesbaert (2006) defende que para apreender o território é necessária uma perspectiva integradora e acrescenta às dimensões EPC – economia, política e cultura – de Saquet (2003) a dimensão espacial, dizendo que o “território só poderia ser concebido através de uma perspectiva integradora entre as diferentes dimensões sociais (e da sociedade com a própria natureza)” (Haesbaert, 2006, p. 74). Além disso pode-se afirmar que o território se apresenta no tempo e no espaço, mas apresenta tempos e espaços diversos, se em sua análise se observar a complexidade das relações que encerra. Nesse sentido, é que Haesbaert (2006) inaugura o conceito de “multiterritórios”, defendendo que num mesmo espaço possa haver a conjugação de múltiplos territórios justapostos, em que há diversidade combinada, representada pelas dimensões sociais, pelas escalas e pelas dinâmicas: Essas dinâmicas se desdobram num continuum que vai do caráter mais concreto ao mais simbólico, sem que um esteja dicotomicamente separado do outro. No caso de um indivíduo ou grupo social mais coeso, podemos dizer que eles constroem seus (multi) territórios integrando, de alguma forma, num mesmo conjunto, sua experiência cultural, econômica e política em relação ao espaço. (HAESBAERT, 2006, p. 341). Em se tratando de dinâmica socioespacial, com a intensificação do processo de globalização, um discurso em torno do fim das fronteiras, em razão de um mundo mais virtual, tecnológico, tomou força nos espaços de política e sociedade hegemônicos. Isso vai acontecer, especialmente, pós Consenso de Washington (1989), com a desregulamentação da economia. O casamento, portanto, do momento político com o estágio tecnológico, resultarão no que se pode chamar “globalização pós-moderna”. A partir dessa ideia, a difusão de um ideário intencional a serviço da economia de escala internacional, vai propagar a globalização como um processo de compressão e/ou superação espaço-temporal, mediado pela técnica, associado à construção de uma “aldeia global” homogênea. No entanto, não foi o que aconteceu. Castells (2000) diz que a “sociedade em rede” prometeu o fim das distâncias, tanto pela comunicação quanto pelo transporte. Porém, essa “desterritorialização” se tratou muito mais de uma ideologia. Embora seja fato que o desenvolvimento tecnológico tenha comprimido o espaço-tempo, não se pode dizer que esse processo seja precursor da homogeneidade espacial, já que as redes são, na realidade, seletivas: Porém, como as redes são selectivas de acordo com os seus programas específicos, e porque conseguem, simultaneamente, comunicar e não comunicar, a sociedade em rede difunde-se por todo o mundo, mas não inclui todas as pessoas. De facto, neste início de século, ela exclui a maior parte da humanidade, embora toda a humanidade seja afectada pela sua lógica, e pelas relações de poder que interagem nas redes globais da organização social. (CASTELLS, 2000, p. 17). Nesse mesmo sentido é que José Reis (2002) vai dizer que a globalização é uma metáfora, justificada pelo universo da globalização, que não passa de uma parte do universo total. E paralelo a isso vai discorrer sobre o universo-da-não-globalização: O universo-da-não-globalização é o que assenta em dois aspectos bastante diferentes entre si: a exclusão (resultante, por exemplo, da procura não revelável perante os factores da globalização, porque não é solvente ou nem sequer se manifesta) e um conjunto de práticas e iniciativas que, por assentarem numa economia moral não-sistémica e em práticas relacionais contextuais e em interações institucionais autónomas, são alheias ao mundo globalizado, apresentando-se como formas de resistência. (REIS, 2002, p. 109). Reconhece, assim, o autor, que a globalização cria, ao mesmo tempo, espaços de padronização econômico-culturais e espaços contra-hegemônicos, não sistêmicos. Por outro lado, a exclusão acompanha a globalização, na medida em que a dinâmica do capital tende a concentrar riquezas e se expandir também ao alcance de territórios economicamente desfavorecidos, numa lógica de exploração. Ainda assim, sendo Reis um otimista, defende que, apesar da lógica capitalista global de territorialização do capital hegemônico, há, em contrapartida, o universo das trajetórias inesperadas. Esse universo é aquele que, sem ser excluído ou localmente não-sistémico, é tão universal como a globalização, mas parte de contextos próprios (podemos chamar-lhes locais para lhes revelar a sua génese, e não devemos chamar-lhes «glocais» porque eles não são processos derivados de formas de hetero-regulação), e tem capacidades para criar as suas próprias trajectórias, mesmo que nem todas vinguem. (REIS, 2002, p. 109-110). Ou seja, esses grupos que Reis denomina locais não estão excluídos dos circuitos que a lógica globalizante atinge. Eles apresentam, no entanto, características particulares que os levam não à subordinação, mas à organização em torno de experiências empreendedoras. O autor, assim, valoriza a capacidade dos sujeitos de reagirem em contextos de relações que neguem o determinismo da ideia banal de globalização, construindo trajetórias próprias, autônomas. Reis sinaliza para a ideologia e ação que marcaram, por exemplo, a propalada Terceira Itália, mas também a América Latina, ainda que em proporções não comparáveis, especialmente a partir dos anos 90. No caso da América Latina, o contexto de descentralização político-administrativa pós crise do Estado de Bem Estar Social (nos países onde vigorou) marca, com a chamada onda neoliberalizante, políticas públicas voltadas para a necessidade de experiências autônomas de desenvolvimento. No Brasil, a própria Constituição de 1988 descentralizou vários aspectos da administração pública. É importante ressaltar que, por motivações distintas, naquela época, tanto as forças de direita quanto as de esquerda defendiam a desconcentração do poder e maior participação de instâncias locais. A medida que esse modelo de governança vai sendo posto em prática, porém, seus resultados passam a ser investigados por diferentes áreas acadêmicas, especialmente no sentido de provar que a descentralização maquia a intenção do Estado Mínimo de se isentar de responsabilidades públicas quanto ao investimento de recursos. Quanto à conjuntura de descentralização dos anos 90, agências multilaterais mundiais, com o desenrolar dos acontecimentos, começam a recomendar que o enfoque territorial fosse adotado nos planos de desenvolvimento, como nos mostra Ortega: Fortalecendo essa posição, agências multilaterais (BM, BID, FIDA, ILCA, FAO e CEPAL, dentre outras) aprovaram, nos últimos anos, estratégias de desenvolvimento que adotassem o enfoque territorial. Documento do Banco Mundial, por exemplo, dirigido especificamente à América Latina, recomendava a criação de novas institucionalidades (arranjos socioprodutivos locais) para o meio rural, como forma de alcançar a boa governança. (ORTEGA, 2008, p. 36). Ora, os organismos, agências e estados vão reconhecer a importância de se considerar os arranjos locais para experiências que conjuguem interesses das diferentes instâncias, apesar das hierarquias. É refletindo nisso que Putnam (2006 [1993]) inaugura uma teoria e publica, em 1993, a obra “Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna”. Em seu livro, ao avaliar a experiência italiana, vai defender que, além de boas reformas institucionais, é fundamental que haja um elevado capital social para experiências bem-sucedidas de desenvolvimento. Portanto, Putnam dá ao desenvolvimento um caráter essencialmente territorial. Mas o que seria “capital social”? Essa característica está, via de regra, presente em grupos em que há intensas relações sociais, historicamente construídas, onde a reciprocidade, a confiança e a cooperação lhes soem algo comum. Está-se falando de relações enraizadas na tradicionalidade e, portanto, de territorialidades compartilhadas. De acordo com Raffestin (1993, p.160), “Territorialidade pode ser definida como um conjunto de relações que se originam num sistema tridimensional sociedade-espaço-tempo”. Portanto, a territorialidade é resultado dessa interação entre uma certa sociedade e entre ela e seu espaço, construídas e modificadas com o decorrer do tempo, o que está no centro do conceito de capital social. Ao desenvolver esse conceito, então, Putnam desenvolveu sua tese, demonstrando, no entanto, uma visão bastante fatalista quanto ao desenvolvimento, de acordo com Ortega (2008). Aquele discorre sobre as características de um grupo com elevado capital social - no caso, da famosa Terceira Itália -, porém, não aponta saídas para aqueles em que essa habilidade para construção de projetos coletivos não esteja presente. Por outro lado, o renomado sociólogo francês Pierre Bourdieu (2007), trata do capital social como aspecto do poder simbólico, seu objeto de estudo, mais amplo que o primeiro conceito e que o abrange. Bourdieu, ao debater o poder simbólico, faz um esforço no sentido de compreender de que forma esse poder é usado a serviço da dominação política de uma classe sobre outra, para sua reprodução. Afirma, nesse sentido, que “o poder simbólico é esse poder invisível, o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (Bourdieu, 2007, p. 7-8). Ortega & Matos (2013), ao analisarem a distinção de compreensão de “capital social” em Putnam e Bourdieu, concluem que, enquanto Putnam analisa essa característica como algo essencial ao desenvolvimento endógeno, Bourdieu inaugura uma visão bem mais otimista, ao defender a possibilidade de construção de um capital social por meio da introdução de aspectos simbólicos. Contexto histórico-geográfico de Sangradouro Conforme a proposta para esse artigo, nos cabe, então, refletir sobre o território e as territorialidades de Sangradouro, Araranguá-SC, buscando analisar o capital social presente nessa comunidade rural e a relação desta característica com a inserção de Sangradouro na “Rota Caminho dos Conventos”. Para isso, é importante contextualizar essa comunidade rural no âmbito de seu território. Historicamente, o município em que se insere Sangradouro, Araranguá, foi habitado por nativos Guaranis e Xokleng e, posteriormente, pelos carijós – povos miscigenados. Os Guaranis, fazedores de cerâmica e produtores de mandioca, tiveram grandes aldeias no atual município. Oficialmente, porém, Araranguá surge no início do século XVIII, marcando o caminho dos tropeiros, com a abertura do chamado Caminho dos Conventos. Foi pelo litoral que a intensificação da presença dos lusitanos fez surgir o primeiro povoamento dessa matriz, aniquilando as populações indígenas. Assim nasceu, entre os anos de 1728 e 1730, o embrião do que viria a ser o município de Araranguá, na franja meridional da então capitania de Sant’Ana. A partir de 1748 chega a Santa Catarina grande leva de açorianos, que se instalam pelo litoral. Novas levas imigratórias chegariam posteriormente, por exemplo, com os alemães e italianos oriundos de colônias que se instalaram no Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Percebe-se, portanto, que houve uma mescla de indivíduos, importante no amálgama araranguaense. O acréscimo populacional e, consequentemente, produtivo, fez crescer a importância de Araranguá, sendo elevado à categoria de município em 1880 (Hobold, 2005). Quanto à Sangradouro, sua gênese enquanto território rural remonta à primeira metade do século passado. Com o estabelecimento das primeiras famílias colonizadoras (pós indígenas), incialmente desenvolveram atividades que garantissem sua reprodução. Tratou-se de um momento em que a produção estava intrinsicamente ligada às necessidades cotidianas das famílias envolvidas e com seu arcabouço cultural. Moradores tradicionais contam que os principais elementos de produção, como mandioca, milho, batata doce, feijão, abóbora, canade-açúcar, hortaliças e arroz, estavam ligados à reprodução daquelas famílias nos seus termos mais amplos, pois incluíam não apenas as atividades de produção, mas também as relações de produção. Pelos idos de 1980, essa realidade começa a ser alterada. Mapa 1- localização de Sangradouro Atualmente, Araranguá é um município de 303.3 km² localizado no litoral Sul de Santa Catarina, pertencente à Mesorregião Sul Catarinense e Microrregião Araranguá. Sua população total é de 61.310 habitantes, sendo considerados 51.526 a população urbana e 10.784 a população rural (IBGE, 2010). A maior parte da área do município é considerada rural, o que inclui a Comunidade de Sangradouro, onde há 88 pessoas, distribuídas em 32 propriedades1. 1 Censo por nós realizado, em janeiro de 2016. Araranguá faz parte da AMESC – Associação dos Municípios do Extremo Sul Catarinense, cuja função é exercer atividades de prestação de serviços e atuar no planejamento regional. Quanto à economia o destaque é a agricultura de base familiar, destacando-se o cultivo de arroz, mas também, tabaco, mandioca, milho, feijão, melancia, banana, maracujá e laranja (IBGE, 2014). Quanto à Sangradouro, os agricultores são proprietários de pequenos lotes de terras, em média de 4 ha, cuja dinâmica, pautada no trabalho essencialmente familiar, assume características tradicionais, apesar da implementação de certas práticas modernizantes. Porém, a agricultura não é mais a única atividade produtiva na Comunidade de Sangradouro. Desde a década de 1990 novos elementos surgem no território, modificando a dinâmica local. Até 1995 Araranguá mantinha dois balneários: Arroio do Silva e Morro dos Conventos, sendo o primeiro muito mais visitado e badalado do que o primeiro. Porém, em dezembro de 1995, Arroio do Silva se emancipa. Morro dos Conventos, então, torna-se o único Balneário de Araranguá, passando a receber, paulatinamente, investimentos municipais para incentivo do turismo. Placas de sinalização são organizadas ao longo da rodovia que leva à praia, sendo que na primeira é cunhada a denominação “Rota Caminho dos Conventos”, registrando a intenção do resgate histórico para o turismo. Considerando-se a localização de Sangradouro, no acesso ao Morro dos Conventos, logo se iniciou sua inserção nesse processo. A instalação de um complexo turístico, em 1999, marcou a introdução de uma nova ruralidade na Comunidade. Depois dele, outras pequenas atividades não agropecuárias surgiram, administradas por moradores não tradicionais – os “de fora”. Políticas públicas para o meio rural no Brasil pós 1990 Como resultado da modernização da agropecuária brasileira, a população economicamente ativa (PEA) do campo diminuiu, significativamente, até a década de 1990. Após esse período, no entanto, o êxodo rural arrefeceu, “principalmente em razão da crise econômica e da reestruturação produtiva, que esgota a absorção urbana em massa de uma força de trabalho pouco qualificada” (Ortega, (2008, p. 83). A partir de então, políticas de desenvolvimento rural se voltam para o estabelecimento de novas lógicas para o rural, incorporando a pluriatividade2. Concomitante à redução da necessidade de mão de obra, pode“A pluriatividade se estabelece como uma prática social, decorrente da busca de formas alternativas para garantir a reprodução das famílias de agricultores, um dos mecanismos de reprodução, ou mesmo de ampliação 2 se verificar o crescimento do número de famílias pluriativas, especialmente em territórios em que a agricultura familiar é predominante, como é o caso do estado de Santa Catarina. Isso revela que o espaço rural não se apresenta mais como lócus de produção da agropecuária, mas também de novas formas de vida. Pela sua história de ocupação/reocupação Santa Catarina desponta nesse cenário, chegando a se destacar no cenário nacional, tanto quanto à agricultura familiar, quanto às atividades não tradicionalmente rurais incorporadas ao cotidiano de trabalho e vida dos agricultores. Em meados da década de 1990 a efervescência dos movimentos sociais e sindicais do campo resultaria na cunha do termo “agricultor familiar”, segmento que abarcaria diversos grupos de pequenos produtores rurais. Notadamente em 1996, como resultado das pressões desse movimento e do Banco Mundial, é criado o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), cuja função seria prover crédito e assistência aos agora chamados agricultores familiares (Schneider, 2006). As políticas para o desenvolvimento da economia rural desse período foram inspiradas no programa europeu LEADER – Ligações Entre Ações de Desenvolvimento da Economia Rural. Esse Programa nasceu como resposta à crise europeia, em decorrência de superprodução e baixo lucro na agricultura, exclusão de algumas regiões produtoras, bem como impactos ambientais resultantes da Revolução Verde 3. Então, foi promovida uma reforma na Política Agrária Comum – PAC – prevendo que o desenvolvimento rural deveria acontecer pela geração de emprego e renda no campo e não, necessariamente, na agricultura. O Programa LEADER, inicialmente, contemplou países menos favorecidos da Europa - Portugal, Grécia e Espanha - no que se referia à incorporação de tecnologias à agricultura. Diante da conclusão de que era necessária a inclusão dessas áreas, mas também de um novo modelo, o Programa foi pensado no sentido de se construir projetos a partir dos territórios, de suas realidades e potencialidades (Ortega, 2008). Para o Brasil, como de hábito, o LEADER serviu de inspiração. Existe uma prática de incorporação de modelos europeus bastante característica neste país. Assim, pela incorporação do modelo europeu no Brasil, o PRONAF, antes aplicável apenas às atividades agropecuárias, atualmente de fontes alternativas de renda; com o alcance econômico, social e cultural da pluriatividade as famílias que residem no espaço rural, integram-se em outras atividades ocupacionais, além da agricultura". (Baumel e Basso, 2004, p. 139). 3 A chamada Revolução Verde consistiu na invenção e disseminação de novas sementes e práticas agrícolas durante a segunda metade do século XX. A utilização de sementes manipuladas (especialmente híbridas), de insumos industriais (fertilizantes e agrotóxicos) e de maquinário no campo, fizeram parte de um pacote tecnológico idealizado no pós-guerra para “solucionar” o problema da fome dos países ditos subdesenvolvidos, e ao mesmo tempo, tirar o Brasil do “atraso”. atende, também, operações não agropecuárias do rural brasileiro, com linhas de crédito específicas, por exemplo, para jovens, mulheres e projetos de agroecologia. É importante destacar que o PRONAF, especificamente o Pronaf Infraestrutura e Serviços, de 1997, representou um marco na mudança do modelo de gestão dos territórios. Para gerir os recursos do Programa foram criados os Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural e Sustentável (CMDRS). Esses Conselhos visam operacionalizar a gestão do desenvolvimento, contando com a participação social, e supervisionar os recursos públicos que foram descentralizados. A ideia é atender ao anseio das reivindicações sociais no sentido de planejar um desenvolvimento que conjugue os interesses “de baixo para cima” com os “de cima para baixo”, no que tange os poderes políticos institucionalizados e sociedade. E é nesse ponto que o “capital social” vai apresentar relevância, ao ser capaz, ou não, de elevar as condições de desenvolvimento, com auxílio de políticas públicas específicas que contemplem comunidades como Sangradouro, por exemplo. O capital social em Sangradouro Em consonância com as políticas públicas para o rural no Brasil e em Santa Catarina, o município de Araranguá, por ser sede da Associação dos Municípios do Extremo Sul Catarinense (AMESC) sedia uma série de cursos de capacitação, por meio da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (EPAGRI). A presença da Instituição, aliada, evidentemente, ao fato de haverem no município muitos agricultores, pescadores, e outros profissionais e residentes na área rural (espaço que predomina no município) faz com que haja razoável número de sujeitos envolvidos em projetos e programas que objetivam atender esse público. Araranguá, pela sua estreita relação econômica antiga e recente com as atividades rurais, mantém importantes laços culturais com o campo, traduzidos em sua maneira de viver, que podem ser observadas, inclusive, em subespaços rurais presentes no “urbano” do município: Em Araranguá, não é difícil notar a presença dos subespaços, que proporcionam uma paisagem diferenciada ao longo da cidade, pelas suas formas de trabalho e pela constituição de territorialidades, contribuindo ao repensar da própria essência do município. (ROCHA, 2004, p. 13). O continuum rural-urbano de Araranguá e muitos outros pequenos municípios brasileiros questiona, por si só, essa delimitação, tantas vezes artificial e meramente burocrática. Essas ruralidades, portanto, aliadas a própria posição do município no que se refere à administração pública, dão pistas do capital social existente, embora, haja metodologias de aplicação empírica para essa aferição, que não chegaram a ser utilizadas em Sangradouro. Putnam (2006 [1993]) diz que o capital social tem relação com o tipo e o alcance do envolvimento do sujeito com redes formais e informais da sociedade. Então, a relação de amizade entre vizinhos e as atividades comunitárias que juntos desenvolvem, até a organização em associações de bairros, Igreja, política, representam ações de interação que são potenciais criadoras de capital social. Como já dito, a reciprocidade, a confiança e a cooperação são elementos que lhes soam como algo comum. E assim compartilham dos problemas cotidianos, inclusive, daqueles que dependem das ações das políticas públicas. A maior parte dos produtores rurais de Sangradouro são enquadrados e se autodenominam agricultores familiares. Suas pequenas propriedades não permitem muito mais do que o autoconsumo, e são administradas pelo casal proprietário, aposentado, em muitos casos. Somado à campesinidade presente na cultura comunitária de Sangradouro, os empreendimentos do novo rural instalados em seu território e nas proximidades, inauguram um processo de construção de multiterritórios, que conjugam o tradicional e o moderno, em seus aspectos simbólico-cultural, econômico e territorial. Múltiplas territorialidades têm sido gestadas, inclusive, se considerarmos as relações em rede estabelecidas pelo negócio da rizicultura, atividade agrícola de maior valor mercantil desenvolvida em Sangradouro, e do turismo, ainda por serem investigadas. Para Haesbaert (2006) não existem mais territórios onde se possa verificar identidades homogêneas. As conexões revelam grande diversidade de influências, de forma que a hibridização nos territórios, quanto aos multiterritórios e quanto às multiterritorialidades, são resultado dessas combinações, que podem se originar em diversas partes do mundo. Numa visão mais tradicional, o lugar, como o território e o próprio espaço, era associado à homogeneidade, ao imobilismo e à reação, frente à multiplicidade, ao movimento e ao progresso ligados ao “tempo”. Uma consciência global do lugar, defendida por Massey, embora não possa ser vista como boa ou má em si mesma, é a evidência de que hoje não temos mais espaços fechados e identidades homogêneas e “autênticas”. Nossas vidas estão impregnadas com influências provenientes de inúmeros outros espaços e escalas. A própria “singularidade” dos lugares (e dos territórios) advém, sobretudo, de uma específica combinação de influências diversas, que podem ser provenientes das mais diversas partes do mundo. (HAESBAERT, 2006, p. 18) Assim, quando se insinua que existam multiterritórios em Sangradouro, em verdade, não se ignora que esse território sempre tenha sido um híbrido. Porém, os caminhos da modernização rural, da globalização e, mais recentemente, as novas atividades econômicas inseridas no campo, são vetores de aceleração e diversificação de territórios. No caso em questão, quando o poder público assume, com seu poder, um projeto territorial de desenvolvimento do turismo na “Rota Caminho dos Conventos”, há, visivelmente, uma aceleração das transformações materiais e imateriais na Comunidade. Há, então, um campo de forças, que é o poder, constantemente em disputa, mais ou menos explícita, por parte de agentes diversos, que se afinam e/ou se interessam pelo território. E são as territorialidades desses sujeitos, aliadas à força de seus interesses e esforços que vão determinar perdas e ganhos nos processos de territorialização. Observando a organização da Comunidade percebe-se a importância da religião (católica) no amálgama grupal. Acontecimentos como missas, velórios, festas e reuniões do “clube de mães”4 acontecem, frequentemente, no centro comunitário de Sangradouro, para onde convergem a maior parte dos moradores. Esse fato indica, de certa forma, o capital social daquele grupo. Outro fator interessante é que as mesmas lideranças que se ligam ao centro comunitário, se envolvem em outras instâncias de participação política, fora da comunidade, como sindicatos, por exemplo, e eventos religiosos de outras comunidades. Característica marcante nos moradores de Sangradouro é seu desinteresse pelo turismo de veraneio. Disse-me uma jovem que a filha de quatro anos se espantou ao ver a imensidão do mar na televisão. Então, ela levou a menina à praia. Essas pessoas moram há cerca de 4 Km do mar! Têm boa infraestrutura. A rodovia é asfaltada, há Unidade Básica de Saúde (UBS) no Balneário e algum comércio também. Porém, o hábito de ir à praia não faz parte de seu simbolismo. O mesmo vale para a relação com o empreendimento turístico instalado por um morador “de fora” (como costumam se referir os camponeses) na década de 1990. O Caverá, como o chamam, tem parque aquático, hotel fazenda, Centro de Tradições Gaúchas (CTG), arena de shows, restaurante, pizzaria, salão de festas e cinema para leilões. Mesmo os funcionários do complexo, por exemplo, vêm de outras localidades. Ou seja, não há inserção dos moradores tradicionais (agricultores, camponeses) nessa lógica socioeconômica. São pessoas acostumadas a trabalharem “por conta”, como dizem. Têm dificuldades de se sujeitarem à um patrão, ainda que isso lhes possa render garantias. Não faz parte do “poder simbólico” desses sujeitos, portanto, não é simples sua inserção nessas novas territorialidades. 4 O clube de mães reúne as mulheres da comunidade semanalmente, para execução de atividades artísticas manuais. A prefeitura do município acompanha, promovendo cursos de capacitação e encontros festivos. Ainda que se modernizem em muitos aspectos, especialmente no que se refere à incorporação de tecnologias, o seu modo de vida camponês é muito presente, e isso se reflete no território. De acordo com Abramovay (2003, p.14), “o território consiste numa trama de relações, de significados, de conteúdos vividos”. Na Comunidade esses conteúdos vividos se expressam, também, de forma tradicional, na relação que os camponeses mantêm com a terra, a vizinhança e a religião. Diante dos aspectos mencionados, podemos afirmar que há, em Sangradouro, um relativo capital social. No entanto, essa potencialidade não foi arregimentada pelas políticas públicas no sentido de um desenvolvimento territorial que incluísse projetos comuns. As políticas públicas que envolvem a Comunidade estão a atingir o coletivo por intermédio de algumas experiências individuais que aparecem no território, tanto de Sangradouro, como das demais comunidades que se encontram na “Rota”. Exemplo disso é a construção de dois loteamentos que foram iniciados em 2015. Se conclui, então, que a inserção de Sangradouro no marketing da “Rota Caminho dos Conventos”, não incluiu, objetivamente, os sujeitos tradicionais de Sangradouro. Estes assistem, como expectadores, a realidade das mudanças, apegados ao seu modo de vida, e sem organização em torno de projetos coletivos. CONSIDERAÇÕES FINAIS As políticas públicas que vem marcando a descentralização pós anos 90, especialmente as inspiradas no Programa LEADER, não incluíram Sangradouro no sentido de um desenvolvimento endógeno. A comunidade foi inserida num projeto urbano-rural de inserção como rota para a praia, onde alguns serviços de atendimento ao turista surgem, aos poucos. Sangradouro não é vista pelo poder público como uma comunidade com potencial para trabalhar com o turismo, diretamente, graças às suas características tradicionais ligadas à agricultura familiar e, talvez, pela sazonalidade do turismo de veraneio que há no Sul. Por isso, assistem à chegada das mudanças, de certa forma, sem muitos embates. Seu poder se expressa em sua resistência e não incorporação às novidades ocupacionais. A posse da terra (o que gera conforto) e a ausência do incentivo do Estado pesam na conjugação de interesses em torno de reivindicações de caráter comum por parte dos locais. Porém, verificamos que há emergência de um diálogo que aproxime a instância governamental com a Comunidade, considerando que esta apresenta capital social para desenvolvimento endógeno. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAMOVAY, Ricardo. O futuro das regiões rurais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand-Brasil, 2007. CASTELLS, Manuel. 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