ISSN 2238-2534 OS JOGOS PARALÍMPICOS DO RIO DE JANEIRO DE 2016, E A INCLUSÃO SOCIAL DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA RESUMO Vinicius Ramon Aguiar1 José Natanael Ferreira2 O presente artigo foi elaborado como atividade do Programa de Iniciação Científica vinculado à Faculdade de Direito da AJES-Faculdades de Ciências Contábeis e Administração do Vale do Juruena, da cidade de Juína, no Estado de Mato Grosso, e teve como objeto de estudo a relação do direito fundamental à igualdade das pessoas com deficiência às práticas desportivas e às competições próprias do desporto de alto rendimento, inclusive às competições internacionais, como os Jogos Paralímpicos, os quais, no ano de 2016, serão realizados no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro (Rio-2016), pois, além desse direito à igualdade encontrar- se inscrito no texto constitucional dentre os direitos e garantias fundamentais dos residentes no país, também se insere como importante fator de autoafirmação das pessoas com deficiência perante a sociedade, uma vez que lhes assegura melhoria na autoestima e na reabilitação física e emocional. PALAVRAS-CHAVE: Direito à igualdade. Pessoas com deficiência. Inclusão social. Jogos Paralímpicos. Rio-2016 ABSTRACT This article was elaborated as an activity of the Scientific Research Program linked to AJES Law School – College of Accounting Sciences and Business Administration of Vale do Juruena, city of Juína in Mato Grosso state, and had as study object the relation of fundamental right to the equality of disabled people regarding sports and high yielding sports competition, including international competitions as the Paralympic Games which will take place in Brazil in 2016, in Rio de Janeiro because, although this right to equality can be found in the AGUIAR Vinicius Ramon. Bacharel em Educação Física pela Faculdade de Ciências Biomédicas de CacoalFACIMED - Cacoal/RO; Acadêmico do II Termo do Curso de Bacharel em Direito AJES–Faculdades do Vale do Juruena – Juína/Mato Grosso; [email protected] 2 FERREIRA, José Natanael. Bacharel em Direito pela Universidade Paulista – UNIP – Campinas/SP; Mestre em Educação pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo — UNISAL — Americana/SP; Mestre em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP – Piracicaba/SP; Professor da AJES-Faculdades do Vale do Juruena (Juina-MT); [email protected] 1 1 ISSN 2238-2534 constitution and country’s residents fundamental guarantees, it is also represents an important self-affirmation factor for disabled people before society, once it assures them an improvement in self-esteem and physical and emotional rehabilitation. KEY WORD: Right to equality. Disabled people. Social Inclusion. Paralympic Games. Rio2016. SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Considerações sobre a evolução dos direitos fundamentais. 2.1 As denominadas “gerações dos direitos fundamentais” nos textos constitucionais. 2.2 Considerações sobre os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. 3. Os Jogos Paralímpicos do Rio de Janeiro, de 2016, e os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. 4. Considerações finais. Referências bibliográficas. Referências de sítios da rede mundial de computadores (internet) 1. INTRODUÇÃO Os esportes de alto rendimento sempre foram demasiadamente atrativos. Competições e eventos envolvendo força, habilidade, velocidade e destreza são, há muito tempo, motivo de admiração, de arquibancadas cheias e, atualmente, de grande sucesso televisivo e elevada audiência, pois se tornaram espetáculos de alcance global. Porém, as competições esportivas de alto rendimento exigem condições físico-emocionais básicas, como pleno gozo de todos os sentidos e capacidades sensoriais; excelente preparo físico-psíquico; e, além, claro, de os competidores terem a compleição físico-mental-emocional o mais próximo da perfeição para a prática de cada modalidade esportiva, e para a vivência e convivência no ambiente da alta competição, dado que até a constância e o ritmo dos treinamentos para a preparação para os grandes eventos esportivos exigem e impõem dedicação integral, desgastes, disposição, vontade, cansaços e abalos sentimentais aos seus praticantes. Não bastassem essas exigências relativas às condições físico-emocionais dos praticantes para o bom desempenho nas competições, há, também, as exigências comerciais (contratuais), pois, atualmente, os atletas de alto rendimento e as modalidades esportivas são importantes veículos de divulgação e de faturamento para as indústrias do marketing e para as do entretenimento. Essas exigências fazem com que grande parcela das pessoas não possa participar desses eventos como competidores, por não reunirem as condições mínimas para terem o desempenho desejado para 2 ISSN 2238-2534 qualificá-las como atletas de alto rendimento. Essas barreiras se tornam ainda maiores e mais intransponíveis quando se trata de pessoas com deficiências físicas ou mentais. Nas décadas iniciais do século XX, com a preocupação oferecer a prática desportiva a seus pacientes vítimas de sequelas físicas decorrentes, em regra, de traumatismos de guerra, o neurologista alemão Ludwig Guttmann3, Chefe do Centro Nacional de Traumatismo de Stoke Mandeville, Inglaterra, organizou pequenas competições entre pacientes com deficiências físicas internados em hospitais ingleses. Com o tempo, essas competições ganharam aceitação, e passaram a interessar aos pacientes e ao público (inicialmente, composto por familiares e pelas equipes médicas e, posteriormente, pelos demais membros da sociedade inglesa). Essas pequenas competições, de 1948 e 1949, em Stoke Mandeville (Inglaterra), entre pacientes hospitalares com sequelas físicas, foram o início do que, anos depois, iria se tornar o maior evento esportivo para pessoas com deficiências físicas e mentais: os Jogos Paralímpicos, cuja primeira edição aconteceu em 1960, em Roma, na Itália, com diversas modalidades esportivas tradicionais adaptadas para atletas em cadeiras de rodas. Foram cerca de quatrocentos atletas participantes dessa primeira edição dos Jogos Paralimpicos. A proposta inicial dos Jogos Paralímpicos era não somente a reintegração social em sentido estrito, mas, também, possibilitar a prática desportiva de competição por pessoas incapacitadas fisicamente, inserindo-as no mundo dos esportes para que se sentissem integradas e aptas às competições em modalidades esportivas adaptadas às suas condições. E tudo para lhes devolver a autoconfiança e a disposição para superar os obstáculos (físicos e sociais) que lhes eram impostos por suas limitações. No entanto, uma análise contemporânea do que se pode denominar “ideia dos Jogos Paralímpicos” os insere dentre os direitos fundamentais da pessoa humana, fundada no direito à igualdade. Este trabalho se propõe a analisar, não exaustivamente, a inserção social pela prática esportiva por pessoas com deficiências (físicas ou mentais), adotando, como pano de fundo, os Jogo Paralímpicos de 2016, a serem realizados na cidade do Rio de Janeiro, no Brasil. Ludwig Guttmann (1899 –1980), professor e médico neurocirurgião de origem polones.Desenvolveu, na Inglaterra, estudos e tratamentos com pessoas portadoras de sequelas físicas derivadas, principal mas não exclusivamente, de lesões de guerras. Guttmann, iniciamente, desenvolveu seus estudos, pesquisas e tratamentos no Hospital de Stoke Mandeville (Buckinghamshire). Seu objetivo médico e social era reintegrar seus pacientes à vida social do modo mais completo possível, considerando as limitações de que eram portadores. E essa reintegração envolvía a prática de esportes (como forma de terapia e de lazer, mas, também, para que houvesse a restauração da força, da coordenação e da resistências das pessoas incapacitadas. A primeira atividade entre seus pacientes e os de outro hospital, de Richmond, foi realizada em 29 de julho de 1948 (Primeiros Jogos de Stoke Mandeville). A primeira edição com participação internacional foi em 1952. Por essas suas atividades, estudos, pesquisas e envolvimento com a prática desportiva de lazer e de competição entre pessoas incapacitadas é que se considera Ludwig Guttmann o fundador os Jogos Paralímpicos. 3 3 ISSN 2238-2534 2. CONSIDERAÇÕES FUNDAMENTAIS SOBRE A EVOLUÇÃO DOS DIREITOS Por não ser o objeto central deste trabalho, não será tratada, de forma exaustina ou pormenorizada, a evolução dos direitos fundamentais. Serão, apenas, enunciados pontos dessa evolução para sua contextualização com o tema central do assunto aqui abordado. Um dos primeiros registros encontrados na história humana, e que faz referência a disposições que poderiam ser entendidas como percursoras do complexo jurídico que se houve por bem denominar como direitos fundamentais, é o Código de Hamurabi (Babilônia – século XVIII a.C.), o qual disponha sobre questões práticas do cotidiano das pessoas do reino babilônico, tratando, principalmente, de matérias administrativas, civis e penais, a exemplo da disposição sobre o direito da mulher de escolher outro marido caso o seu fosse feito prisioneiro de guerra e não tivesse como prover a família, ou a obrigação do homem de prover o sustento dos filhos mesmo que se separasse de sua mulher. Era um Código extramamente rígido, com penas que, invariavelmente, impunham a morte do culpado ("Se um construtor edificou uma casa para um Awilum, mas não reforçou seu trabalho, e a casa que construiu caiu e causou a morte do dono da casa, esse construtor será morto"), porém, também tratava da proteção de direitos individuais, a exemplo do direito de propriedade (“Se na casa de alguém aparecer um incêndio e aquele que vem apagar, lança os olhos sobre a propriedade do dono da casa, e toma a propriedade do dono da casa, ele deverá ser lançado no mesmo fogo”). Por óbvio que as civilizações então contemporâneas ou posteriores à babilônica também dispunham de normas para regularem seu corpo social, a exemplo da Torá judaica, mas o Código de Hamurabi passou à história tanto por sua rigidez (“lei de talião”) quanto por se compor na forma escrita (talhada em rocha). Não raro, nas civilizações primevas, os sacerdotes e os profetas detinham importante parcela do poder, tanto o espiritual quanto o de intervir, com suas visões e representações do sagrado, nas decisões terrenas dos governantes constituídos sob a força das guerras ou das heranças consanguíneas. Também não raro eram as manifestações e revoltas populares contra seus governantes, por se sentirem insatisfeitos com as repressões, exclusões ou excessivas tributações. As revoltas populares contra as atrocidades e injustiças cometidas pelas autoridades constituídas (chefes tribais, reis, príncipes, faraós, líderes religiosos, senhores feudais etc.) foram e são uma constante na história humana. Já no ano de 340 a.C., Aristóteles delineava as ideias de Justiça, dividindo as em geral e particular: à primeira, dizia aplicava-se com relação às leis e ao direito natural, e a segunda seria exercida pela pessoa em busca da igualdade. 4 ISSN 2238-2534 Digo que, de um lado, há a lei particular e, do outro lado, a lei comum: a primeira varia segundo os povos e define-se em relação a estes, quer seja escrita ou não escrita; a lei comum é aquela que é segundo a natureza. Pois há uma justiça e uma injustiça, de que o homem tem, de algum modo, a intuição, e que são comuns a todos, mesmo fora de toda comunidade e de toda convenção recíproca. É o que expressamente diz a Antígona de Sófocles, quando, a despeito da proibição que lhe foi feita, declara haver procedido justamente, enterrando Polinices: era esse seu direito natural: Não é de hoje, nem de ontem, mas de todos os tempos que estas leis existem e ninguém sabe qual a origem delas4 No Império Romano, surgiram ideais disseminados por cristãos com fundamentos nas pregações de Jesus Cristo, que ressaltavam a importância de cada pessoa humana, correlacionando-a com um/o Ser Divino. Também havia imposições para se guardar ─ não trabalhar em ─ um dia por semana (preferencialmente, o domingo). As pregações dos cristãos possibilitaram o surgimento de ideias primárias que agora podem ser entendidas como direitos individuais, e que, à época, confrontavam-se com a cultura do Império: livros de Gênesis: “126: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança [...]. Depois no versículo 27. Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus os criou; homem e mulher os criou”5. Em Êxodo: “20:9-10. Trabalharás seis dias e neles farás todos os teus trabalhos, mas o sétimo dia é sábado dedicado ao Senhor, o te Deus. Nesse dia não farás trabalho algum, nem tu nem teus filhos ou filhas [...]”6. Nas pregações cristãs subentendiam-se direitos individuais básicos ditados por Deus. Os cristãos, inicialmente, foram combatidos por Roma, entretanto, séculos após a morte de Jesus Cristo, o cristianismo foi reconhecido com a religião oficial do Império Romano. Primeiramente, houve a conversão do Imperador Constantino ao cristianismo (ano 313); posteriormente, com Teodósio, em fevereiro do ano de 380, por meio do Édito de Tessalônica (De Fide Catolica; Cunctos Populos), o cristianismo foi elevado à religião oficial do Império Romano, havendo a abolição do politeísmo e a proibição dos templos e cultos pagãos. Essas decisões contribuíram para que, nos séculos seguintes, o cristianismo (a Igreja de Roma; a Igreja Católica), por seus líderes (padres, bispos e Papas) se tornasse uma das forças administrativas, religiosas, políticas e bélicas que se sobressaíram por toda a Idade Média, constituindo-se em face importante do sistema feudal que se instalou por toda a Europa Ocidental a partir da queda do Império Romano do Ocidente, em 476. Nessa época, os ensinamentos bíblicos tomaram força nas terras europeias, e a explanação sobre a igualdade entre homens, pois todos seriam ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco (tradução Pietro Nassetti) ─ São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 86. BÍBLIA DE ESTUDO: desafios de todo o homem (editor executivo Stephen Arterburn; editor geral Dean Merrill; tradução de Emirson Justino) – São Paulo: Mundo Cristão, 2012, p.5. 6 BÍBLIA DE ESTUDO, op. cit. p.97. 4 5 5 ISSN 2238-2534 “filhos de Deus”, foi uma das grandes contribuições cristãs para o sentimento-princípio da igualdade, inclusive como dogmas religiosos e como fundamentos jurídicos. Santo Agostinho (354 ─ 430) e São Tomás de Aquino (1225 —1274) doutrinaram os ensinamentos religiosos cristãos, dando-lhes racionalização e fundamentos filosóficos. Outro marco importante tomado pela doutrina como referencial na evolução dos direitos fundamentais é a Magna Carta (Magna Charta Libertatum, seu Concordiam inter regem Johannen at barones pro concessione libertatum ecclesiae et regni angliae ─ Grande Carta das liberdades, ou concórdia entre o rei João e os barões para a outorga das liberdades da Igreja e do rei Inglês), de 1215, celebrada pela Rei João Sem Terra com os seus barões, reconhecendo-lhes direitos e garantias, e se constituiu em um dos primeiros documentos limitadores dos poderes reais. Essa Carta foi, depois, desconsiderada pelo próprio Rei João, e sucessivamente desrepeitada e reescrita por seus sucessores, mas sua importância histórica é inegável. O verdadeiro divisor inglês, demarcatório da desvinculação do poder real da pretensa origem divina se deu nas décadas finais do século XVII, no bojo da Revolução Gloriosa, em que, após a deposição do Rei Jaime II, ascenderam ao trono, por vontade do Parlamento inglês, Maria e Guilherme de Orange, coroados como a Rainha Maria II e Rei Guilherme III. A Revolução Gloriosa (também denominada “revolução sem sangue”) foram eventos políticos que se sucederam entre os anos de 1688 e 1689, e que culminaram com a decisão de somente poderem ser coroados reis ingleses aqueles que professassem a fé anglicana. No mesmo contexto houve o fortalecimento do Parlamento, definindo-se, a partir de então, os contornos da monarquia parlamentarista inglesa, que serviria de modelo para outros Estados que viriam a ser constituidos no curso dos séculos XVII e XVIII. Com a aprovação do Bill of Rights pelo Parlamento inglês, em 1689, houve, de fato, o reconhecimento de direitos e garantias dos súditos ingleses perante a Coroa Real, delimitando-se os poderes dos reis em favor de liberdades individuais. O predomínio de representantes da classe burguesa no Parlamento (principalmente industriais, comerciantes) possibilitou/facilitou, nos séculos seguintes, a industrialização inglesa e o assentamento do sistema capitalista naquelas terras. A colonização de terras africanas, americanas e asiáticas, iniciada a partir do século XV por Portugal, Espanha, Inglaterra e França, possibilitou o crescimento, desenvolvimento e engrandecimento da indústria e do comércio, tanto no que diz respeito à técnica quanto ao volume. Na Inglaterra, a industrialização se fez com maior destaque. A mercantilização e a industrialização foram importantes acontecimentos na história humana, ocorridos entre os séculos XV e XVIII, possibilitando o surgimento de uma nova classe na sociedade europeia 6 ISSN 2238-2534 ocidental – a classe burguesa, formada por não-nobres, que se enriqueceram pelo trabalho na agricultura e pecuária, no comércio, na indústria e no ramo financeiro. Esses eventos colaboraram tanto para o assentamento do sistema capitalista quanto para a constituição do Estado Moderno. E a base pode-se ser considerada tanto o governo absolutista dos monarcas dessas metrópoles (de Portugal, da Espanha, da Inglaterra e da França, principalmente), quanto a exploração econômica das suas colônias em terras d’além mar. A conjugação desses fatores (ascensão econômica e social da burguesia, pelos lucros gerados na atividade econômica, interessando-a pelas decisões políticas de governo; o absolutismo dos governantes, cerceando direitos e interesses individuais; a exploração econômica das colônias pelas metrópoles europeias, impedindo seus desenvolvimentos) encontrou eco em movimentos político-filosóficos europeus (racionalismo – iluminismo) afirmatórios de direitos individuais e contestatórios da origem divina do poder de mando dos governantes e dos seus modos absolutistas de exercerem o poder de governo, e culminaram em movimentos revolucionários importantes para o reconhecimento e consolidação da noção de direitos humanos e, portanto, da noção de direitos fundamentais. Também foram importantes para o surgimento e consolidação das “constituições escritas”, documentos esses que, inicialmente, tratavam do modo como os Estados deveriam ser constituídos quanto à forma e regime de governo, ao modo de ascensão aos postos políticos de governo, a divisão dos poderes de governo, ao exercício do poder de governo e, principalmente, da relação de direitos e garantias dos indivíduos em face do poder dos governantes e do poder do próprio Estado. Dentre esses movimentos revolucionários da Idade Moderna destacam-se a guerra de independência das colônias inglesas na América do Norte, resultando na constituição formal dos Estados Unidos da América, e a Revolução Francesa, esta por simbolizar a queda dos governos absolutistas e a formalização de direitos e garantias dos indivíduos em face da atuação do Estado por meio de uma declaração de direitos de caráter universalizante. A guerra de independência das treze colônias inglesas da América do Norte (1775 a 1783) foi importante porque, com a decisão delas de se constituírem em um único Estado sob forma federal, republicana e presidencialista, com Parlamento bicameral (Senado - com representantes dos Estados federados ─ e Câmara dos Representantes – com representantes das populações dos Estados federados), o mundo conheceu, pela primeira vez, essa forma e regime de governo (Estado federal sob a forma de República, com regime presidencialista de governo), composta sob uma Constituição formal, escrita, elaborada por representantes do povo e dos Estados7, com Disponível no original inglês em <http://www.archives.gov/exhibits/charters/constitution_transcript.html>. Acesso em 31 dez 2015, às 7h00 7 7 ISSN 2238-2534 o poder de governo tripartido entre instituições estatais distintas (entre três Poderes): o Poder Legislativo, o Poder Executivo e o Poder Judiciário, consolidando a teoria de Montesquieu em “O Espírito das Leis” (De l'esprit des lois – 1748). No entanto, a importância que se dá relevo é à Declaração de Direitos (Bill of Rights8) elaborada na forma das dez primeiras emendas à Constituição Americana (e que entraram em vigor em dezembro de 1791), que, efetivamente, representavam a concretização formal dos direitos e garantias individuais em contraponto ao poder do Estado e dos governantes. A Revolução Francesa (1789-1799) possui importância histórica por representar a ruptura do sistema feudal em solo francês, mas, também, por simbolizar a queda dos governos absolutistas nos Estados contemporâneos, a consolidação do Parlamento como órgão e poder vital na forma republicana de governo (República Parlamentarista, diferentemente da República Presidencialista consolidada com a formação dos Estados Unidos da América), e, principalmente, pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1749), por ser ela a primeira Declaração de Direitos Humanos com índole universalizante9. Outro documento de vital importância para a contextualização histórica dos direitos humanos foi a Declaração Universal dos Direitos do Homem, elaborada pela Organização das Nações Unidas – ONU, em 194810, como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universal e efetiva, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.11 A Declaração de 1948, da ONU, é importante porque não se tratou de um documento de um corpo social ou de um Estado, mas, sim, fruto da vontade de uma miríades de países que a elaboraram e a entronizaram em seus direitos internos como referencial a ser atingido. Segundo texto na página virtual das Nações Unidas no Brasil na rede mundial de computadores (internet), a Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH foi elaborada por Disponível no original inglês em <http://www.archives.gov/exhibits/charters/bill_of_rights_transcript.html>. Acesso em 31 dez 2015, às 7h05 9 Disponível no original francês em >http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/laconstitution/la-constitution-du-4-octobre-1958/declaration-des-droits-de-l-homme-et-du-citoyen-de1789.5076.html>. Acesso em 31 de 2015, às 7h22 10 Disponível em <http://www.un.org/fr/documents/udhr/>. Acesso em 31 dez 2015, às 7h50 11 PROCLAMAÇÃO da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, pela Organização das Nações Unidas – ONU. Disponível em <http://www.dudh.org.br/wp-content/uploads/2014/12/dudh.pdf>. Acesso em 31 dez 2015, às 7h55 8 8 ISSN 2238-2534 representantes de diferentes origens jurídicas e culturais de todas as regiões do mundo, [...] foi proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, em 10 de Dezembro de 1948, através da Resolução 217 A (III) da Assembleia Geral como uma norma comum a ser alcançada por todos os povos e nações. Ela estabelece, pela primeira vez, a proteção universal dos direitos humanos12. Por óbvio que esses eventos e documentos não são os únicos na história da consolidação e evolução dos direitos fundamentais da pessoa humana, mas, dada à natureza deste trabalho, são os que devem ser mais ressaltados. O importante é entender que, por derivação direta ou indireta desses eventos e documentos é que as Constituições dos Estados que se formaram a partir do século XVIII passaram a constar em seus textos direitos e garantias em favor de seus cidadãos, limitando, nos parâmetros dos seus respectivos direitos positivos, a atuação de governantes e do próprio Estado, submetendo, a todos, ao que se convencionou chamar de “o império da lei” : a lei vale para todos; todos são iguais perante a lei; ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude de lei; ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens senão após o trânsito do devido processo legal. Nascia, nos anos finais do século XVIII, com a institucionalização do poder, o Estado Moderno, também nominado Estado de Direito ou, ainda, Estado Constitucional, contrapondo-se às anteriores formações de governo assentadas nas pessoas ou nos grupos que exerciam o poder nas sociedades pré-capitalistas. 2.1 As denominadas “gerações dos direitos fundamentais” nos textos constitucionais Neste trabalho, serão tratados, como sinônimos, os termos direitos fundamentais e direitos humanos, entendendo-os como sendo o complexo jurídico, doutrinário e jurisprudencial de proteção das pessoas em face do poder do Estado e das condutas arbitrárias dos governantes. Deve-se entendê-los como o complexo de princípios e normas jurídicas que, expostos em textos constitucionais, garantem direitos, interesses e liberdades às pessoas, em contraponto aos poderes também reconhecidos ao Estado e àqueles que ocupam postos de mando e de governo nas instituições estatais. Direitos e garantias fundamentais são, assim, prerrogativas constitucionais das pessoas que, em tese, são invioláveis e servem de escudo jurídico contra os desmandos dos Poderes do Estado e das autoridades governamentais13. Disponível em < https://nacoesunidas.org/docs/>. Acesso em 31 de 2015, às 20h25 Sobre a nominação “gerações de direitos”, Sérgio Resende de Barros preleciona: “Tendo por referência o direito nacional das nações culturalmente integradas no "mundo ocidental", nas duas últimas décadas muito se tem falado em "gerações de direitos". Pioneiro dessa expressão foi Karel Vasak, na aula inaugural que proferiu em 1979 no Instituto Internacional dos Direitos Humanos, em Estrasburgo, sob o título "Pour les droits de l’homme de la troisième génération: les droits de solidarieté" (=Pelos direitos do homem da terceira geração: os direitos de solidariedade). Aí nasceu a idéia de que os direitos do homem chegam a uma terceira geração: os direitos de solidariedade. Na época, Vasak era Diretor da Divisão de Direitos do Homem e da Paz da UNESCO. Dada a sua 12 13 9 ISSN 2238-2534 A expressão gerações de direito foi utilizada de forma despretensiosa, e analogicamente ao lema revolucionário francês de 1789, por Karel Vasak em uma palestra sua em 1979, no Instituto Internacional dos Direitos Humanos, em Estrasburg14. Dali ganhou ares academicistas e fundamentos jurídico-doutrinários, consolidando-se como o modo mais eficiente e prático de se explicar a evolução dos direitos e garantias fundamentais insertos nos textos constitucionais já a partir dos anos da segunda década do século XX (com a Constituição Mexicana de 1917, e com a Constituição da República de Weimar, de 1919). Tomando-se esse referencial histórico original, fala-se em três gerações de direitos: a) direitos de primeira geração ou direitos de liberdade (Liberté)= corresponderiam aos direitos individuais propriamente ditos, por representarem, naquele momento histórico o ideal burguês da luta pelas liberdades de expressão, de manifestação, de opções políticas, de propriedade, de livre iniciativa; b) direitos de segunda geração ou direitos de igualdade (Egalité)= correspondem aos direitos econômicos, sociais e culturais insertos nos textos constitucionais a partir do final do século XIX, como forma de combater a exploração das classes sociais menos favorecidas por atos de governo e pelo empresariado; c ) direitos de terceira geração ou direitos de fraternidade ou de solidariedade (Fraternité)= que se referem a direitos não pessoais e não de sociedades nacionais específicas, mas, sim, de direitos cujos bens protegidos interessam a todos os seres que habitam o planeta: meio-ambiente ecologicamente equilibrado; exploração sustentável dos posição institucional, como também o "charme" francês da divisão que fez, alinhando os direitos humanos com o lema da Revolução de 1789, sua palestra teve enorme repercussão na França. Tornou-se uma especiaria do didatismo francês. A França serviu e ensinou ao mundo ocidental o modismo de dividir os direitos humanos em "gerações de direitos". Originalmente, ainda presa à conferência que a lançou, a divisão consoou com o tríplice brado – liberdade, igualdade, fraternidade – que ressoou na ordem política em 1789, na voz de uma ideologia nãointervencionista na ordem econômica e social, mas reclusamente individualista. Daí, a primeira geração: direitos individuais, buscando a liberdade individual. Obviamente, quando a voz dessa ideologia liberal foi abafada pelos trovões da Questão Social, desencadeada pelo capitalismo selvagem nos meados do século 19, logo secundados pelos brados que incitavam o dirigismo cultural e o intervencionismo econômico do Estado na ordem social, sobreveio uma segunda geração: direitos econômicos, sociais e culturais, buscando a igualdade social. Na seqüencia, para ir de direitos de igualdade social a direitos de fraternidade social, o passo foi curto. Foi provocado pelas hecatombes e holocaustos da primeira metade e teorizado por Karel Vasak na segunda metade do século 20. Surgiram os direitos de solidariedade no âmbito do direito internacional. Suas primeiras manifestações emergiram em documentos da ONU e da UNESCO. Essa origem próxima se explica em função do quadro político que lhes deu causa imediata. Foi um quadro de emergência e aguçamento dos problemas relativos à ordem global, não simplesmente internacional, mas realmente supranacional. Especial relevância teve a conscientização de que o mundo está partido em nações desenvolvidas e subdesenvolvidas, bem como o reconhecimento de que é necessário o respeito à qualidade de vida e, para esse fim, é imprescindível a solidariedade entre os humanos. (...) Em seguida à teorização pioneira de Karel Vasak, logo vieram as divergências teóricas entre aqueles que – afoitos em dar a sua contribuição – desdobraram mais gerações: quatro, cinco... Mas, haverá tantas gerações de direitos? Sem dúvida alguma, do processo de comunicação entre as nações que sucedeu à Segunda Guerra Mundial, o passo para uma pretensão de solidariedade transnacional é curto. Mas se passou a uma terceira geração de direitos, sucessivos aos direitos individuais e aos direitos sociais? Sucederam-se os direitos em gerações? Ou as gerações de direitos são antes invenção teórica que fato histórico?” — Disponível em <http://www.srbarros.com.br/pt/tresgeracoes-de-direitos.cont>. Acesso em 31 dez 2015, às 10h30 14 GUERRA, Sidney. Direitos Humanos: curso elementar. — São Paulo : Saraiva, 2013, p. 55 a 64 10 ISSN 2238-2534 recursos naturais; diminuição dos índices de poluição atmosférica; uso de medicamentos para finalidades terapêuticas e não com finalidade precípua de lucros dos conglomerados da indústria farmacêutica, por exemplo. Seguindo na esteira de Karel Vasak – e da aceitação e sucesso de sua expressão “gerações de direitos” ─, doutrinadores há que já falam em direitos de quarta, quinta e sexta gerações, tomando por referência, por exemplo, o progresso tecnológico e a globalização econômica, bens e valores que transcendem o carater pessoal ou nacional. Tem- se Paulo Bonavides como exemplo de doutrinador que assim entende, pois, em seu livro Curso de Direito Constitucional, afirma que “os direitos da quarta geração compendiam o futuro da cidadania e o porvir da liberdade de todos os povos”, e, como direitos de quinta geração, assevera que o “direito à paz, um direito fundamental de nova dimensão [...] a guerra é um crime e a paz um direito”15. A respeito, afirma Sidney Guerra: A partir do estudo desenvolvido por Vasak, referida classificação ganha força, encampada pela doutrina e pela jurisprudência para a identificação dos direitos humanos por gerações ou dimensões. Com base nessa formulação podem ser apresentados os direitos humanos de primeira, segunda e terceira gerações. Deve-se advertir, entretanto, que tal classficação vem sendo complementada, por alguns, com os direitos de quarta e até de quinta geração16. Pedro Lenza, em seu Direito Constitucional Esquematizado, relaciona documentos que informa serem importantes para a configuração dos direitos humanos de primeira geração: a Magna Carta de 1215; a Paz de Westfália, de 1648; o Habeas Corpus Act, de 1769; o Bill of Rigths, de 1688, e as Declarações de Direito americana (1776) e francesa (1789)17. A própósito, Paulo Bonavides faz uma importante citação no que diz respeito à nomenclatura utilizada para se referir a esse aglomerado de direitos que se denomina ora direitos humanos, ora direitos fundamentais. Diz ele que as expressões direitos humanos, direitos do homem e direitos fundamentais são usadas de forma acerbada pelos doutrinadores jurídicos. Diante dessas nomenclaturas usadas indiferentemente, ele explica que para se chegar ao denominador comum com relação ao significado dessas expressões, deve-se recorrer ao direito vigente, o qual irá mostrar como tais se qualificam18. Sobre a segunda geração de direitos fundamentais, afirma Paulo Bonavides: Os direitos de segunda geração merecem um exame mais amplo. Dominam o século XX do mesmo modo como os direitos da primeira geração dominaram o século passado. São os direitos sociais, culturais e econômicos, bem como os BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 28ª ed. — São Paulo : Malheiros, 2013, p. 578 a 613 GUERRA, op.cit. p. 58 17 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. – 19 ed. – São Paulo: Saraiva, 2015 p.1143. 18 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito Constitucional. 28º ed. ─ São Paulo : Malheiros, 2013, p.334. 15 16 11 ISSN 2238-2534 direitos coletivos ou de coletividade, introduzido no constitucionalismo das distintas formas de Estado social, depois que germinaram por obra da ideologia e da reflexão antiliberal do século XX. Nasceram abraçados ao princípio da igualdade, do qual não se podem separar, pois fazê-lo equivaleria desmembrálos da razão de ser que os ampara e estimula.19 Pedro Lenza, dizendo que esses direitos sociais, culturais e econômicos almejados pelos trabalhadores no âmbito coletivo direcionam ao direito de igualdade, menciona a Constituição do México de 1917, a Constituição de Weimar de 1919 (conhecida como a constituição da primeira republica alemã), o Tratado de Versalhes, de 1919, e, no Brasil, a Constituição de 1934 (lembrando que nos textos das anteriores Constituições brasileiras também já havia previsões que se anteriores também havia alguma previsão)20. A denominada terceira geração de direitos fundamentais, correlacionada ao lema francês da fraternidade (fraternité; solidariedade), derivou da preocupação com bens coletivos e difusos que se entendeu deviam ser protegidos não como direitos individuais ou de grupos sociais certos, mas, sim, como direitos de todos, das presentes e das futuras gerações, por serem finitos e não renováveis, ou por afetarem comunidades de indivíduos em quantidades não passíveis de serem identificadas ou definidas, e ou também por não se circunscreverem a determinadas regiões geográficas ou a jurisdições políticas certas. A preservação ambiental, a limitação das liberdades corporativas, a proteção do consumidor são exemplos dessa geração de direitos que iniciou sua materialização em textos constitucionais nas décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial (1945)21. A razão subjacente a tais direitos reflete a solidariedade e a fraternidade entre as pessoas, e o dever institucional dos Estados em promovê-las. 2.2 Considerações sobre os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade É importante que se entenda que o processo histórico de construção dos direitos humanos como ideário de respeito à pessoa pela sua simples condição de ser humano foi longo e realizado sob lutas políticas, religiosas e ideológicas, em que os interesses das pessoas contrapunham-se aos interesses e às forças dos grupos políticos dominantes. O reconhecimento, BONAVIDES, op. cit., p.334. LENZA, op. cit., p.1143. 21 Na Constituição brasileira de 1998, os direitos de terceira geração encontram-se definidos em várias de suas passagens (“Art. 5º [...] XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor; [...] Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações...”). 19 20 12 ISSN 2238-2534 em textos constitucionais, dos direitos humanos como direitos fundamentais da pessoa humana foi um constante construir, em que antagonismos foram sendo superados no próprio processo de civilização. Nesse sentido é o entendimento de Flávia Piovesan: Sempre se mostrou intensa a polêmica sobre o fundamento e a natureza dos direitos humanos — se são direitos naturais e inatos, direitos políticos, direitos históricos ou, ainda, direitos que derivam de determinado sistema moral. Esse questionamento ainda permanece intenso no pensamento contemporâneo. Defende este estudo a historicidade dos direitos humanos, na medida em que estes não são um dado, maus um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução. Enquanto reivindicações morais, os direitos humanos são fruto de um espaço simbólico de luta e ação social, na busca por dignidade humana, o que compõe um construído axiológico emancipatório. Como leciona Norberto Bobbio, os direitos humanos nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares (quando cada Constituição incorpora Declarações de Direitos) para finalmente encontrar a plena realização como direitos positivos universais [...]22 Mencionando Carl Schimitt, Paulo Bonavides cita dois critérios para a caracterização dos direitos fundamentais: Pelo primeiro, podem ser designados por direitos fundamentais todo os direitos ou garantias nomeadores e especificados no instrumento constitucional. Pelo segundo, tão formal quanto o primeiro, os direitos fundamentais são aqueles direitos que receberam da Constituição um grau mais elevado de garantia ou de segurança; ou são imutáveis (unabänderliche) ou pelo menos de mudança dificultada (erschweert), a saber, direitos unicamente alteráveis mediante lei de emenda à Constituição. E prossegue: Já do ponto de vista material, os direitos fundamentais, segundo Schimitt, variam conforme a ideologia, a modalidade de Estado, a espécie de valores e princípios que a Constituição consagra. Em suma, cada Estado tem seus direitos fundamentais específicos23. Nesse complexo de direitos que se entende por fundamentais para as pessoas, garantidos em textos constitucionais como imutáveis ou com possibilidade de mudança dificultada, dois princípios cumprem serem destacados: o princípio da dignidade da pessoa humana, e o princípio da igualdade. Entretanto, já vem desde tempos imemoriais a noção de que o ser humano é importante por sua simples condição de humano. Desde os primórdios das grandes civilizações já existiam pensadores — religiosos ou de índole filosófica — que disseminavam ensinamentos nesse sentido, como bem atesta Fábio Konder Comparato: PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 12ª ed. — São Paulo : Saraiva, 2011, p. 167 e 168 23 BONAVIDES, op. cit., p. 579 22 13 ISSN 2238-2534 Numa interpretação que Tonybee considerou iluminante, Karl Jaspers sustentou que o curso inteiro da História poderia ser dividido em duas etapas, em função de uma determinada época, entre os séculos VIII e II a.C., a qual formaria, por assim dizer, o eixo histórico da humanidade. Daí a sua designação, para essa época, de período axial (Achsenzeit). [...] Foi durante o período axial da História [..], que despontou a ideia de uma igualdade essencial entre todos os homens. Mas foram necessários vinte e cinco séculos para que a primeira organização internacional a englobar a quase totalidade dos povos da Terra proclamasse, na abertura de uma Declaração Universal de Direitos Humanos, que “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos24. Nesse ínterim, dos primórdios da civilização, quando coexistiram, sem se comunicarem, grandes pensadores que se envolveram com as questões de respeito à pessoa humana, a exemplo de “Zaratustra na Pérsia, Buda na Índia, Lao-Tsé e Confúcio na China, Pitágoras na Grécia e o Dêutero-Isaías em Israel”25, até os tempos finais do século XVIII, os homens sempre se debateram em torno de ideias que o punham como ente dotado de capacidades próprias que o diferenciavam de todos os demais seres e coisas existentes no Universo conhecido. No entanto, muito embora tais sentimentos e sensações, não obstante compusessem doutrinas religiosas e filosóficas, e fossem motivos de estudos das incipientes ciências sociais, na materialidade concreta dos milênios do processo civilizatório não encontravam respeito e proteção por parte dos homens e dos grupos sociais que se sobrepunham nas estruturas de governo das sociedades de então. No processo de civilização, de amenização da exploração dos homens simples pelos homens que se situam nos escalões de mando e de comando das respectivas sociedades, alguns marcos são tomados como importantes: o próprio Cristianismo, com a concepção da origem divina do homem por obra do Criado Celeste, foi historicamente importante para fundamentar a noção de igualdade entre todos, independentemente da posição social que ocupam. Neste sentido, Lucas Daniel Souza salienta que o século XIII foi o auge dos embates entre ideologias religiosas e filosóficas sobre a importância do homem e do seu poder e capacidade de traçar seu caminho e de organizar suas próprias decisões26. Citáveis, também, os movimentos racionalistas, iluministas e positivistas dos séculos XVII a XIX que, em suas diversas nuances, trouxeram o homem para o centro do Universo, priorizando a razão, a experimentação, as ciências, e afastando o divino como condutor das ações humanas e do destino social de cada qual. Desde então, o homem passou a ser entendido como o próprio senhor das suas ações e do seu destino, e a exploração e segmentação social não mais se entendia como sendo da “vontade de Deus”, mas, sim, resultado da imposição da força pelos COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7ª ed. — São Paulo : Saraiva, 2010, p. 20 a 24 25 COMPARATO, op. cit., p. 20 26 DANIEL SOUZA, Lucas. Direitos humanos: Como tudo começou. Revista Thesis Juris. . vol.2, nº.1, Janeiro a junho — São Paulo : TherisJuris, 2013, p. 32 a 48 24 14 ISSN 2238-2534 poderosos, para a exploração dos menos aquinhoados socialmente. Nessa valoração do homem, em contraponto com a cultura anterior de predeterminação divina, muito contribuíram as obras de pensadores ocidentais como John Locke, René Descartes, David Hume, Immanuel Kant, Baruch Espinoza, Gottfried Wilhelm Leibniz, François-Marie Arouet (Voltaire), Jean- Jacques Rousseau, Benjamin Constant, Charles-Louis de Secondat (Montesquieu), Augusto Comte, John Stuart Mill, Cesare Beccaria, Hans Kelsen, Karl Marx, Friedrich Engels, dentre tantos que, cada qual conforme a leitura do mundo que viviam, enfatizaram a importância civil, social, política e humanística do homem, ressaltando, direta ou indiretamente, que todas as pessoas são iguais em direitos e deveres, e que todas são portadoras de valores próprios que as tornam dignas de respeito pela simples condição de serem pessoas humanas. De crucial importância para a prevalência desses valores, ora transmutados em princípio da dignidade da pessoa humana e princípio da igualdade, foram os movimentos revolucionários dos séculos XVII e XVIII, com relevo para as Guerras de Independência das treze colônias inglesas na América do Norte, que resultaram na formação dos Estados Unidos da América (1776), e para a Revolução Francesa, de 1789. Esses movimentos revolucionários, assentados na ideologia iluminista-contratualista de oposição ao absolutismo dos governantes dos reinos europeus, pregavam a igualdade entre todos, a liberdade de expressão e de participação dos cidadãos na formação dos governos, o direito à propriedade privada, a partição dos poderes de governo, para se evitar o autoritarismo governamental. No bojo desses movimentos revolucionários surgiram as Declarações de Direitos que objetivavam fazer com que os direitos e interesses das pessoas fossem respeitados e garantidos pelos governantes e pelos Estados (a exemplo da Declaração de Direitos da Virgínia, de 1776, das dez primeiras emendas à Constituição dos Estados Unidos – Bill of Rights, e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa, de 1789). Todas essas Declarações de Direitos objetivavam, de certo modo, a limitação do poder do Estado por meio de garantias individuais, como bem salienta Edneila Rodrigues Chaves: Essa tradição é visualizada nas Revoluções Americana e Francesa, inauguradas na modernidade. Cada uma delas traz uma forma política própria: a Revolução Francesa opta pelo Estado-nação, enquanto a Americana faz a opção pela comunidade política, isto é, a sociedade civil. Se de um lado, o Estado-nação vela a diferença, uma vez que trata do todo, de outro, a comunidade política, que se constitui de pessoas partilhando valores civis e objetivos comuns, abre espaço para a diferença. Uma característica singular da Revolução Americana era a sua capacidade associativa. A República está sustentada nas instituições nacionais. No caso americano, ela se sustentava no cidadão e na sua capacidade associativa de reivindicar, expressando-se na sua diferença. A liberdade, como princípio, 15 ISSN 2238-2534 exige capacidade de lidar com a diferença. Na Revolução Americana, o cidadão modelava as instituições; na Francesa, eram as instituições que modelavam o cidadão27. Paulo Bonavides também cita a Revolução Francesa como marco inicial na consolidação de alguns princípios ideológico do Estado moderno, dentre eles a limitação estatal através da separação dos poderes, e o reconhecimento dos direitos e garantias individuais28. A Revolução Francesa desencadeou a supressão das desigualdades entre indivíduos e grupos sociais, como a humanidade jamais experimentara até então. Na tríade famosa, foi sem dúvida a desigualdade que representou o ponto central do movimento revolucionário. A liberdade, para os homens de 1789, consistia justamente na supressão de todas as peias sociais ligadas à existência de estamentos ou corporações de ofícios. E a Fraternidade, como virtude cívica, seria o resultado necessário da abolição de todos os privilégios29. Foi a partir dos movimentos revolucionários dos séculos XVII e XVIII, então denominados Revoluções Liberais (ou, então, Revoluções Liberais Burguesas), que surgiram, juntamente com as Declarações de Direitos, as primeiras Constituições escritas, delineando as estruturas de poder e de governo dos Estados que estavam se formando com a queda das monarquias absolutistas (a exemplo da República Presidencialista, nos Estados Unidos da América, e da República Parlamentarista, na França). Essas Constituições destacaram por serem o instrumento político e jurídico de formalização e limitação do poder estatal, e o instrumento de salvaguarda dos interesses e direitos dos cidadãos em face do poder estatal. Esse garantismo político e jurídico possui sua máximo no artigo 16 da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: “A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”. Das Revoluções Burguesas resultaram a extinção dos privilégios sociais hereditários de classe, típicos da era feudal, e a valoração do Estado Democrático de Direito, com a prevalência da soberania popular, dos direitos de igualdade e liberdade (“os homens nascem e são livres e iguais em direitos”) e de propriedade (“Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir e sob condição de justa e prévia indenização”) ”, e, principalmente, da lei votada no Parlamento (atinada como a Casa do Povo) balizador de condutas individuais (“ninguém é obrigado a fazer CHAVES, Edneila Rodrigues. Modernidade, revolução e a fundação da liberdade: As revoluções americanas, francesas e alemã. Revista de História [13]; João Pessoa, jul/dez. 2005, p.54. 28 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito Constitucional. 28º ed. — São Paulo : Malheiros, 2013, p.245. 29 GUERRA, Sidney. Direitos Humanos: na ordem jurídica internacional e reflexos na ordem constitucional brasileira. 2. ed. – São Paulo: Atlas, 2014, p.128. 27 16 ISSN 2238-2534 ou deixar de fazer senão em virtude de lei”). Constituíam-se, assim, os Estados Democráticos e de Direito. O constitucionalismo firmou-se como ponto de inflexão para os Estados Democráticos e de Direito que se formaram desde os anos revolucionários, e, salvo poucas exceções, todos os países contam com uma Constituição escrita em que delineiam as suas estruturas de poder e de governo (sob as formas republicana ou monárquica, e sob os regimes presidencialista ou parlamentarista), e os direitos e garantias fundamentais de seus cidadãos. Por paradoxal que seja, até mesmo ditaduras sanguinárias adotam constituições escritas e formas republicanas e presidencialistas de governo (em regra), para dissimular o autoritarismo e o desrespeito aos direitos e garantias individuais. Nos Estados Democráticos de Direito, o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da igualdade, ao lado do princípio da legalidade, prevalecem sob todo o ordenamento jurídico estatal, porque o Estado e suas instituições possuem razão de existir fundada no respeito à pessoa do homem e aos seus direitos e interesses individuais e coletivos, dados que tais são princípios estruturantes de toda a ordem jurídica estatal. E segundo Celso Antônio Bandeira de Mello: Príncípio [...] é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo30. Sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, diz Sidney Guerra: A dignidade da pessoa humana encontra alicerces no pensamento cristão, segundo o qual, criada à imagem e semelhança de Deus, a pessoa é dotada de atributos próprios e intrínsecos, que a tornam especial e detentora de dignidade [...] Sem embargo, o reconhecimento e a proteção da dignidade da pessoa humana pelo direito resultam justamente da evolução do pensamento humano a respeito do significado desse ser humano, e a compreensão do que é ser pessoa e de quais valores são inerentes a ela acaba por influenciar ou mesmo determinar o modo pelo qual o direito reconhece e protege tal dignidade31. E complementa Fábio Konder Comparato: Ora, a dignidade não consiste apenas no fato de ser ela, diferentemente, das coisas, um ser considerado e tratado, em si mesmo, como um fim em si e nunca como um meio para a consecução de determinado resultado. Ela resulta também do fato de que, pela sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio Bandeira. Elementos de direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 230 31 GUERRA, Sidney. Direitos Humanos: curso elementar, op. cit., p. 64 a 68 30 17 ISSN 2238-2534 leis que ele próprio edita. Daí decorre, [...] que todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas. A humanidade como espécie, e cada ser humano em sua individualidade, é propriamente insubstituível: não tem equivalente, não pode ser trocado por coisa alguma32. Entende-se, assim, que a pessoa humana possui valores intrínsecos, próprios de sua condição de ser humano, os quais não podem ser aviltados nem por seus semelhantes — também pessoas humanas —, nem pelos poderes do Estado, haja vista que o Estado não possui um fim em si mesmo, mas possui por finalidade concretizar e possibilitar o conjunto das condições sociais que permitem e favorecem nos homens o desenvolvimento integral da personalidade33. Nos Estados Democráticos e de Direito hodiernos, compete às instituições estatais e aos agentes públicos oferecerem as condições (jurídicas, políticas e materiais) ótimas para que as pessoas possam desenvolver todas as suas aptidões nas circunstâncias materiais da realidade social em que vivem. O que não deve é o Estado, por suas instituições e por seus agentes, discriminar pessoas ou grupos sociais por razões subjetivas, desconectadas do princípio basilar de respeito à dignidade humana dessas pessoas e desses grupos sociais. A suavização e humanização das relações sociais é fruto da própria evolução das relações sociais, que derivou tanto das doutrinas cristãs de origem divina dos homens (todos são iguais e criados à imagem e semelhança de Deus) quanto dos movimentos revolucionários contestatórios das formas autoritárias e sanguinárias de mando por parte dos detentores do poder econômico e do poder político de mando. O ápice dessa humanização pode ser afirmada nas doutrinas cristãs e também nas Declarações de Direitos emanadas a partir dos séculos XVII (Bill of Rights, da Inglaterra, de 1689) a XX (Declaração de Direitos da Virgínia e das dez primeiras emendas à Constituição norte-americana, de 1776 a 1789; Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e Declarações dos Direitos Humanos, de 1948) que se fortaleceram como instrumentos políticos e jurídicos de valorização da dignidade da pessoa humana. Nesse processo histórico, a igualdade de todos, em direitos e liberdades, tornou-se o paradigma político e jurídico da relação Estado x cidadão, fundando-se como princípio prevalente nos textos constitucionais dos Estados Democráticos e de Direito34. COMPARATO, op. cit., p. 34 CARTA ENCÍCLICA DE JOÃO XXIII — MATER ET MAGISTRA — EVOLUÇÃO DA QUESTÃO SOCIAL À LUZ DA DOUTRINA CRISTÃ — “Dado em Roma, junto de São Pedro, aos 15 de maio do ano de 1961, terceiro do nosso Pontificado. JOÃO PP. XXIII” 34 Tratando das lutas seculares das mulheres para sua própria emancipação, Carla Bassanezi Pinsky e Joana Maria Pedro informam, sobre o princípio da igualdade como referencial do exercício da cidadania: “O Iluminismo abria perspectivas, possibilitando uma nova abordagem da arena pública (e, consequentemente, da questão da cidadania), ao afirmar ser cada indivíduo possuidor de direitos alienáveis. Em contraste com as teorias sociais mais antigas, que apresentavam a hierarquia e a desigualdade como necessárias e inevitáveis, na época das Luzes, um conjunto de suposições filosóficas afirmava a igualdade entre os indivíduos e as vantagens de reformar, aperfeiçoar a sociedade por meio da aplicação de princípios fundados mais na razão do que nos costumes”. — PINSKY, Carla 32 33 18 ISSN 2238-2534 Escrevendo sobre o direito de igualdade, José Afonso da Silva já dizia: O conceito de igualdade provocou posições extremadas. Há os que sustentam que a desigualdade é a característica do universo [...], pelo que os adeptos dessa corrente são denominados nominalistas. [...] No pólo oposto, encontram-se os idealistas, que postulam um igualitarismo absoluto entre as pessoas. Afirma-se, em verdade, uma liberdade natural ligada à hipótese do estado de natureza, em que reinava uma igualdade absoluta. [...] Uma posição dita realista, reconhece que os homens são desiguais sob múltiplos aspectos, mas também entende ser supremamente exato descrevê-los como criaturas iguais, pois, em cada um deles, o mesmo sistema de características inteligíveis proporciona, à realidade individual, aptidão para existir. Em essência, não se vê como deixar de reconhecer igualdade entre os homens35. Essa igualdade entre os homens, tratada como princípio filosófico, jurídico e político, é, justamente, uma igualdade jurídica e política, haja vista que, na realidade, os homens possuem suas desigualdades, sejam elas naturais (físicas ou intelectuais, o que explica a existência de pessoas altas, baixas, brancas, negras, com deficiências físicas ou com má formação intelectual, a exemplo das pessoas com microcefalia) ou sociais (havendo, então, os pobres, os ricos, os detentores de poder político e as pessoas que não possuem quaisquer privilégios ou posições de destaque no corpo das sociedades em que vivem). Não obstante essas desigualdades naturais e sociais, nos Estados Democráticos de Direito os homens são, juridicamente, iguais em direitos e deveres. Compete ao Estado, no cumprimento de sua finalidade precípua (a realização do bem-comum), oportunizar para que todos os cidadãos que se encontram sob sua jurisdição possam usufruir de todas as possibilidades para o desenvolvimento de suas personalidades (Carta Encíclica De João XXIII — Mater et Magistra — Evolução da Questão Social à Luz da Doutrina Cristã — “Dado em Roma, junto de São Pedro, aos 15 de maio do ano de 1961, terceiro do nosso Pontificado. João PP. XXIII”). Nesse mister, devem os Estados, por ação de seus agentes públicos com poder mando e decisão nas estruturas estatais, observarem e considerarem o conceito de igualdade proferido por Rui Barbosa, em Oração aos Moços (1921): A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo, não dar a cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem. Esta blasfêmia contra a razão e a fé, contra a civilização e a humanidade, é a filosofia da miséria, proclamada em nome dos direitos do trabalho; e, executada, não faria Bassanezi; PEDRO, Joana Maria Pedro. Igualdade e Especificidade, in História da Cidadania (PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi, org.). 3ª ed. — São Paulo : 2005, p. 266 35 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 21ª ed. — São Paulo : Malheiros, 2002, p. 211 19 ISSN 2238-2534 senão inaugurar, em vez da supremacia do trabalho, a organização da miséria. Mas, se a sociedade não pode igualar os que a natureza criou desiguais, cada um, nos limites da sua energia moral, pode reagir sobre as desigualdades nativas, pela educação, atividade e perseverança. Tal a missão do trabalho. Os Estados, ao eliminarem as discriminações sociais desarrazoadas, e ao desenvolverem ações, projetos, programas, legislação, enfim, ao concretizarem políticas públicas que, observando as desigualdades naturais e as desigualdades sociais, garantam a todas as pessoas que se encontram sob sua jurisdição o acesso aos bens públicos estarão, de modo efetivo, realizando e respeitando o princípio da igualdade e, por extensão, também ao princípio da dignidade da pessoa humana. 3. OS JOGOS PARALÍMPICOS DO RIO DE JANEIRO DE 2016, E OS PRINCÍPIOS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA IGUALDADE Os Jogos Olímpicos da Era Moderna exigem (de governos e da iniciativa privada) investimentos de bilhões de dólares para sua realização, envolvendo em seu entorno fortunas em obras de infraestrutura, em patrocínios e em tecnologia de telecomunicações para sua transmissão a tantos bilhões de pessoas no mundo. Desde sua primeira edição na Era Moderna, em 1896, em Atenas, até Londres, em 2012, os Jogos Olímpicos cresceram ao ponto de se transformarem no maior evento do planeta e único capaz de reunir delegações de mais de 200 países em uma mesma cidade. Para se ter uma ideia da força dos Jogos na atualidade, nem mesmo a Organização das Nações Unidas (ONU) consegue agregar tantas nações36. Aos atletas olímpicos vencedores, são reservados prestígio, fama e vultosos contratos de patrocínio. Ao seu turno, os Jogos Paralímpicos ainda não desfrutam da mesma repercussão econômica, política e midiática desses seus congêneres, no entanto, eles vêm, a cada tempo, ganhando maiores espaços na imprensa, na agenda dos governos, e nos orçamentos das empresas de entretenimento e de materiais esportivos, e oferecendo aos seus atletas melhores condições para que possam competir. Há pelo menos 100 anos, o esporte tem disputas entre atletas com algum tipo de deficiência física. Em 1888, Berlim, na Alemanha, já contava com clubes que promoviam a participação de surdos nos esportes. Mas foi somente depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) que as competições entre aqueles que depois seriam chamados de atletas parallímpicos ganharam força Disponível em <http://www.brasil2016.gov.br/pt-br/olimpiadas/uma-disputa-milenar>. Acesso em 27 jan 2016, às 8h45 36 20 ISSN 2238-2534 mundialmente. E com o propósito, justamente, de acolher o grande número de soldados feridos nos combates37. As Paralimpíadas, atualmente, são realizadas imediatamente após os Jogos Olímpicos e, normalmente, nas mesmas cidades-sedes destes38. São eventos esportivos distintos, que exigem, guardadas as devidas proporções, elevados investimentos na organização e realização, e que, de certo modo, objetivam resultados também distintos. As Olimpíadas (os Jogos Olímpicos da Era Moderna) possuem como fonte de inspiração primeira os Jogos Olímpicos da Antiguidade, realizadas na Grécia Antiga, em que se buscavam a perfeição física por meio de provas competitivas, porém, sempre em homenagens aos deuses gregos, especialmente a Zeus, o deus dos deuses. A cultura ocidental deve muito aos antigos gregos. O legado deixado por essa civilização ainda hoje ecoa, com influência em setores tão distintos como a medicina, a geometria, a física, a arquitetura e o teatro, entre outros. Quando o assunto é esporte olímpico, as marcas se tornam ainda mais evidentes. Se o planeta, desde o fim do século 19, celebra a cada quatro anos o maior evento esportivo da humanidade, isso só é possível porque, lá atrás, há mais de 2.500 anos, os gregos lançaram a semente das Olimpíadas. Reza a mitologia que os Jogos nasceram pelas mãos do grande Hércules, ainda na Era Antiga, por volta de 2.500 a.C., para homenagear seu pai, Zeus. Hércules teria plantado a oliveira de onde eram colhidas as folhas para emoldurar a coroa a ser usada por quem triunfasse nas competições. O termo “olímpico”, entretanto, só surgiria cerca de dois mil anos depois. Os primeiros registros históricos das Olimpíadas datam de 776 a.C., época em que os vencedores começaram a ter seus nomes registrados. Foi nesse período que o termo “Olimpíadas” surgiu, após Iftos, rei de Ilia, aliar-se ao monarca de Esparta, Licurgo, e ao rei de Pissa, Clístenes. A aliança foi selada no templo de Hera, localizado no santuário de Olímpia. Vem daí o nome “Olimpíadas”39. Os Jogos Olímpicos, desde que concebidos pelo historiador e pedagogo francês Pierre de Frédy (Barão de Barão de Coubertin - 1863 —1937) em 1894 e 1896, perderam muito de sua concepção original, para se tornarem um dos maiores eventos esportivos de todos os tempos. Ainda que envolvam disputas esportivas, envolvem, também e principalmente, interesses econômicos, político-governamentais e midiáticos que, de certo modo, os tornam mais um portentoso empreendimento empresarial do que uma disputa entre homens interessados em mostrar suas forças, destrezas, e velocidades (citius, altius, fortius, foi o lema idealizado pelo Barão de Coubertin para os Jogos Olímpicos por ele pensados). A despeito, ainda se constituem fonte de inspiração para as pessoas com deficiência espelharem-se e compreenderem que suas situações pessoais não são exclusivas, e que outros com as mesmas situações também se superaram pela prática esportiva, a ponto de se tornarem atletas. Disponível em <http://www.brasil2016.gov.br/pt-br/paraolimpiadas/historia>. Acesso em 27 jan 2016, às 8h50 Em 2016, os Jogos Olímpicos possuem como sede a cidade do Rio de Janeiro (de 5 a 21 de agosto) e os Jogos Paralímpicos também serão realizados nessa cidade, porém, no período de 7 a 18 de setembro de 2016 39 Disponível em <http://www.brasil2016.gov.br/pt-br/olimpiadas/uma-disputa-milenar>. Acesso em 27jan 2016, às 9h15 37 38 21 ISSN 2238-2534 Os Jogos Paralímpicos nasceram da concepção do médico Ludwig Guttmann. Esse neurocirurgião utilizou a prática esportiva como experimento para a reabilitação de pessoas com deficiência físicas causadas por traumatismos, especialmente, por traumatismos de guerra. Dos bons resultados obtidos com a reabilitação física e emocional de seus pacientes hospitalares com o uso de atividades desportivas, Guttmann, então, passou a utilizá-las como atividades recreacionais e, a posteriori, como atividades competitivas entre pacientes hospitalares com deficiências físicas (amputações ou paraplegias): Embora a nomenclatura “paraolímpico” possa submeter à ideia de jogos para pessoas com deficiências, em sua origem não era essa a definição dada por seus idealizadores. Como os Jogos Paralímpicos foram propostos para se realizarem nas mesmas ocasiões em que se realizavam as Olímpiadas, o prefixo “para” traz a ideia de paralelo (ao lado), referenciando-se à realização dos Jogos Paralímpicos próxima à realização dos Jogos Olímpicos40. Ainda que não possuam a mesma repercussão e glamour que os Jogos Olímpicos, os Jogos Paralímpicos também já atingiram um patamar que os tornaram fenômenos de alcance mundial, exigindo vultosos investimentos para suas realizações. Esse fenômeno pode ser constatado no fato de que, desde 1976 , acontecem os Jogos Paralímpicos de Inverno, também com adaptações de modalidades esportivas para as pessoas com deficiência: Os Jogos Paralímpicos são considerados um dos significativos acontecimentos do mundo esportivo atual, com um grande número de países participantes. Mais que um evento esportivo, os Jogos contribuem para a manutenção e a evolução dos níveis de acessibilidade social desejáveis para as pessoas com deficiência41 Mesmo que os Jogos Paralímpicos sejam, agora, eventos esportivos de índole mercadológica e empresarial, com reflexos em interesses políticos governamentais, é importante tê-los e tomá-los como uma agenda para a revitalização da dignidade das pessoas com necessidades, para que elas possam entronizar em suas percepções a ideia real de que suas situações particulares não as tornam menores como pessoas e nem detentoras de direitos inferiores às demais pessoas. São, e devem ser assim percebidas, cidadãs do Estado. E essa “A palavra “paraolímpico” deriva da preposição grega “para”, que significa “ao lado, paralelo” e da palavra “olímpico”, numa referência à ocorrência paralela entre os Jogos Olímpicos e Paralímpicos desde 1960. A palavra “paraolímpico” era originalmente uma combinação de paraplégico e olímpico, entretanto, com a inclusão de outros grupos de pessoas com deficiência, e a união das associações ao movimento olímpico, ela tomou outra conotação” — MARQUES, R.F.R. et al. Esporte olímpico e paraolímpico: coincidências, divergências e 40 especificidades numa perspectiva contemporânea. — São Paulo : Revista Brasileira de Educação Física, Vol. 23, nº 4 (out ,/ de ), 2009, p. 365 a 377 LOPES FILHO, B.J.P.; FROSI, T.O.; MAZO, J.Z. Jogos paraolímpicos de Pequim em 2008: Reconstruindo a participação das atletas brasileiras.— São Paulo Revista Didática Sistêmica, Volume 12, (2010, p.65 41 22 ISSN 2238-2534 concepção é importante ao se deparar com uma notável realidade: o crescente número de pessoas com algum tipo de necessidade especial, física ou mental, que se predispõe a praticar atividades físicas como fator não somente de inserção social, mas, sim, como fórmula para se revigorarem física e emocionalmente. Mais de um bilhão de pessoas em todo o mundo convivem com alguma forma de deficiência, dentre os quais cerca de 200 milhões experimentam dificuldades funcionais consideráveis. Nos próximos anos, a deficiência será uma preocupação ainda maior porque sua incidência tem aumentado. Isto se deve ao envelhecimento das populações e ao risco maior de deficiência na população de mais idade, bem como ao aumento global de doenças crônicas tais como diabetes, doenças cardiovasculares, câncer e distúrbios mentais.42 Nesse ponto confluem o dever dos Estados de oferecerem tratamento o mais igualitário aos seus cidadãos, e a concretização dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. A prática desportiva, quando oferecida como política pública, constitui-se em importante fator para revitalização da autoestima das pessoas com deficiência, por pô-las em paridade com todas as demais pessoas. Trata-se, assim, de fórmula de inclusão social que traz consigo políticas não meramente assistencialistas, mas, sim, de valorização dos méritos pessoais (esforço, vontade, técnica, constância, prática etc.), possíveis a quaisquer pessoais. Por óbvio que as modalidades esportivas devem ser adaptadas para serem praticadas por pessoas com deficiêcia, assim como essas pessoas devem competir com pessoas que se encontrem em situações assemelhadas. Não obstante existam atletas com deficiências que possuem resultados compatíveis com os dos demais atletas não possuidores de necessidades especiais, eles não devem competir diretamente entre si, razão pela qual se fazem mais importantes a realização de eventos para os paratletas. Trata-se, assim, da aplicação efetiva da máxima de Rui Barbosa: “regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam.” O Brasil conquistou o direito de sediar os Jogos Olímpicos e os Jogos Paralímpicos de 2016 na cidade do Rio de Janeiro (Jogos Rio 2016). Não adentrando à sistemática de concorrência e de eleição das cidades-sedes, e abstraindo-se de quaisquer condutas irregulares relativas à escolha do Rio de Janeiro como cidade-sede e relativas à realização de obras de infraestrutura e de mobilidade urbana, passíveis de serem investigadas e punidas na forma da legislação de regência, deve-se ressaltar se que, embora seja a cidade do Rio de Janeiro a sede Organização Mundial da Saúde. Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF). São Paulo; 2003. 42 23 ISSN 2238-2534 de ambos os Jogos, o Estado brasileiro está diretamente envolvido na sua realização, haja visa que, além de oferecer garantias (políticas, jurídicas e econômicas) aos Comitês Internacionais responsáveis pela realização dos Jogos, muitos dos investimentos e do regramento necessário para a concretização da infraestrutura necessária são de competência do Governo Federal. O Estado brasileiro, ao direcionar recursos (em sentido lato) à realização dos Jogos Paralímpicos de 2016 está, de modo bastante direto, realizando, in concreto, as emanações do ordenamento constitucional, quanto ao oferecimento de condições materiais para a prática desportiva por pessoas com necessidades especiais. No tocante ao desporto, a Constituição Federal ora vigente, promulgada em 5 de outubro de 1988 (CF/88), assevera, em seu artigo 217, ser dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observando-se, dentre outras disposições, o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não- profissional e o incentivo, por parte do Poder Público, do lazer, como forma de promoção social. Embora a Constituição Federal faça menção ao tratamento diferenciado para desporto profissional e o não-profissional (artigo 217, III), essa disposição deve ser interpretada com a que prevê o incentivo ao lazer (aqui incluídas as práticas desportivas não profissionais) como fator de promoção social (artigo 217, § 3º) — referenciando-se, inclusive, ao oferecimento de oportunidades de práticas desportivas às pessoas com deficiência. Mesmo tomando-se os Jogos Rio 2016 como um evento de desporto profissional, eles são o referencial tanto para que o Estado brasileiro, por meio de suas instituições e agentes públicos, possa desenvolver ações, projetos e programas de incentivo à prática desportiva direcionados às pessoas com necessidades especiais (como medida terapêutica como opções de lazer e, até mesmo, de profissionalização daquelas pessoas que demonstrarem aptidão para as competições esportivas), quanto para as próprias pessoas com deficiência, que poderão perceber que suas situações pessoais não as impede de se integrarem à comunidade como cidadãos ativos, e desenvolverem atividades rotineiras possíveis às suas condições. No Brasil, o oferecimento, pelo Poder Público, de oportunidades para a prática desportiva (terapêutica, recreativa ou profissional) às pessoas com deficiência não se encontra situada apenas no âmbito dos princípios constitucionais, eis que também se trata de comando legal positivado, dado que, com a Lei Federal nº 13.146, de 6 de julho de 2015, denominada Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), o Estado brasileiro compromete-se em assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania, garantindo a dignidade a elas ao longo de toda a vida (artigos 1º e 24 ISSN 2238-2534 10). De se esclarecer que, para os efeitos da Lei Federal nº 13.146/2015, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas (artigo 2º). E determina, ainda: Art. 4o Toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação. § 1o Considera-se discriminação em razão da deficiência toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas. § 2o A pessoa com deficiência não está obrigada à fruição de benefícios decorrentes de ação afirmativa. Art. 5o A pessoa com deficiência será protegida de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, tortura, crueldade, opressão e tratamento desumano ou degradante. A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência ainda define o direito das pessoas com deficiência à prática desportiva voluntária, e impõe ao Poder Público o dever de promover a participação da pessoa com deficiência em atividades esportivas e recreativas, em igualdade de condições com as demais pessoas (artigos 42 e 43). Tem-se, então, que o zelo com as pessoas com deficiência é dever institucional e legal do Estado brasileiro. Deve-se compreender que o acesso facilitado à prática desportiva e às competições desportivas significa, para as pessoas com deficiência, grande avanço em relação à saúde. Nesse sentido, Vinicius Denardin Cardoso (2011)19, argumenta sobre esse benefício: A prática de atividades desportivas para pessoas com deficiências, além de proporcionar todos os benefícios para seu bem estar e qualidade de vida, também é a oportunidade de testar seus limites e potencialidades, prevenir as enfermidades secundárias à sua deficiência e promover a integração social e a reabilitação da pessoa com deficiência43. A prática do desporto significa igualdade de acesso a métodos alternativos de reabilitação física e mental às pessoas com deficiência, além de fazer com que se relacionem com outras pessoas que se encontram em situação assemelhadas às suas, conforme bem dispõe Renato Francisco Rodrigues Marques: “Por um lado, favorecem sua inclusão social através de CARDOSO, V.D. A reabilitação de pessoas com deficiência através do desporto adaptado. Rev. Bras. Ciênc. Esporte, Florianópolis, v. 33, n. 2, p. 529-539, abr./jun. 2011. 43 25 ISSN 2238-2534 meios apropriados, por outro, possibilitam seu crescimento pessoal através da oferta de desafios e necessidade de superação”44. Tomando por referência os Jogos Paralímpicos, eles, além de proporcionarem um belo espetáculo desportivo, também possuem o condão de despertar nas pessoas que possuem algum tipo de limitação (física ou psíquica) a esperança e a vontade de praticar esportes, levando-as a acreditarem em si mesmas e em suas potencialidades. Os atletas paralímpicos demonstram superação, força de vontade e, principalmente, transmitem, de modo subliminar, a mensagem de que é possível vencer adversidades e conquistar o que se almeja. No campo do esporte adaptado de alto rendimento, parece que os benefícios ainda têm sido mais frequentes do que possíveis efeitos negativos. Uma das principais evidências é o evento da Paralimpíada. Atletas Paralímpicos se tornam exemplos a serem seguidos por seus pares portadores de deficiência que ainda se encontram em diferentes estágios de sedentarismo, de reabilitação, ou de iniciação no esporte adaptado45. O status de atleta paralímpico é almejado por aqueles que possuem alguma deficiência e que se valem do esporte como instrumento de transformação de vida. Ser reconhecido pela sua capacidade e, principalmente, superação de sua limitação física é um dos objetivos mais almejados por essas pessoas. Por isso, o clima de superação que os Jogos Paralímpicos proporcionam é de suma importância não apenas para aqueles neles competem ou para aqueles que ainda almejam a prática do desporto, mas, também, para as pessoas que se encontram em processo de reabilitação. Além disso, a busca pela prática de esporte não é apenas para demonstrar superação ou autonomia, mas, também, para se reafirmar na sociedade. Os atletas paraolímpicos, e as pessoas com deficiência que se dedicam à prática desportiva, almejam, ainda, a desconstrução do paradigma de deficientes físicos que, socialmente, os identificam. E, complementando, o atleta com deficiência pode comparar-se com aqueles demais atletas que desfrutam da plena condição física e mental. As práticas desportivas conseguem igualar os distintos atletas, como citam Melissa Rodrigues Brazuca e Elaine Mauerberg Castro: Talvez o resultado mais importante do esporte de alto rendimento para o portador de deficiência seja a construção da percepção da identidade de atleta ao invés da identidade de “pessoa deficiente.” É importante ser visto não como uma pessoa portadora de deficiência, mas como um nadador, ou um corredor, por exemplo. Para alguns atletas, o esporte, embora exponha a diversidade das habilidades—comparativamente com os atletas não deficientes—, permite a consagração de um corpo habilidoso. Por exemplo, a sensação de movimento e a percepção da habilidade na água é a mesma que as dos atletas nos esportes regulares. O atleta embora possa MARQUES, R.F.R. et al. Esporte olímpico e paraolímpico: coincidências, divergências e especificidades numa perspectiva contemporânea. Revista Brasileira de Educação Física. Vol 23, Nº 4, outubro/dezembro 2009 — São Paulo : out./dez. 2009, p.365-77. 45 BRAZUCA, M.R; CASTRO, E.M.A trajetória do atleta portador de deficiência física no esporte adaptado de rendimento. Uma revisão da literatura. Motriz Jul-Dez 2001, Vol. 7, n.2, pp. 115-123. 44 26 ISSN 2238-2534 ver a estética de seu corpo, sente que ela é imperceptível na água por conta do desempenho. Alguns atletas não se percebem com uma deficiência, e sua cadeira-de-rodas é uma ferramenta ou extensão de sua habilidade. Muitos demonstram sua competência desafiando seus pares não deficientes nos esportes integrados que utilizam a cadeira-de-rodas46. Os sentimentos experimentados pelos atletas paralímpicos são, nas devidas proporções, também experimentados pelas pessoas com deficiência que se superam na prática desportiva. Na medida de suas desigualdades, todos se igualam como pessoas, e resgatam a dignidade de que são portadores. No entanto, as pessoas com deficiência, atletas ou não, assim como as demais pessoas, também envelhecem. E, nessas novas fases de suas vidas, necessitam de amparo social e psicológico para fazerem a transição da vida ativa. Muito embora a prática desportiva e as atividades profissionais possam ser desenvolvidas por toda a vida, considerando-se apenas as características das faixas etárias e as respectivas limitações físicas decorrentes do próprio processo de envelhecimento, é, certo, sim, que, com a idade, há a natural tendência de limitação dos reflexos e das atividades cognitivas. Nesse contexto, as pessoas com deficiência, atletas ou não, ressentem-se ainda mais de amparo e assistência. No tocante à assistência social, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, atendendo disposições da Constituição Federal, assegura, em seu artigo 39, que os serviços, os programas, os projetos e os benefícios no âmbito da política pública de assistência social à pessoa com deficiência e sua família têm como objetivo a garantia da segurança de renda, da acolhida, da habilitação e da reabilitação, do desenvolvimento da autonomia e da convivência familiar e comunitária, para a promoção do acesso a direitos e da plena participação social. O acompanhamento psicológico por muitas vezes se mostra indispensável para se evitar patologias psicológicas derivadas da transição da vida economicamente ativa para a aposentadoria, com bem esclarecem Melissa Rodrigues Brazuca e Elaine Mauerberg Castro sobre os atletas que se encontram nessa transição: Após a aposentadoria do esporte, num estudo desenvolvido por Wheeler et al. (1999), atletas entrevistados relataram sinais de declínio físico. Estes sinais eram uma indicação de que a aposentadoria estava próxima. Entretanto, em termos práticos, nenhum entrevistado indicou um planejamento do período da aposentadoria. Neste estudo foram identificadas possíveis perdas com a aposentadoria, entre elas: depressão por não encontrar outras pessoas para relembrar os tempos das competições, ou simplesmente trocar experiências e dividir os problemas. A aposentadoria caracteriza o afastamento de uma dependência: o esporte47. BRAZUCA, M.R; CASTRO, E.M. A trajetória do atleta portador de deficiência física no esporte adaptado de rendimento. Uma revisão da literatura. Motriz Jul-Dez 2001, Vol. 7, n.2, pp. 115-123. 46 47 BRAZUCA, M.R; CASTRO, E.M, op. cit., p.115-123. 27 ISSN 2238-2534 Em síntese: as pessoas com deficiência, praticantes ou não de atividades desportivas, assim como todas as demais pessoas, merecerem receber do Estado brasileiro, por imposição constitucional e infraconstitucional, tratamento respeitoso que lhes assegure a dignidade, seja na fase tenra de suas vidas, quando são ativos profissional e intelectualmente, seja na fase de envelhecimento, quando às carências e necessidades pessoais se juntam as carências e necessidades afetivas. Afinal, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, constituem-se em objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (Constituição Federal de 1988, artigo 3º). 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS É certo que os homens são, por natureza ou por razões sociais, diferentes entre si. O fato concreto de que a natureza “encarrega-se” de conceber as diferenças físicas e psíquicas entre os homens, as quais, atualmente, nem todas podem ser erradicadas pela ciência (as más formações embrionárias, por exemplo), o complexo de relações sociais encarrega-se de impor a segmentação social (pobres, ricos, proprietários, não-proprietários, governantes, governados etc.) e a exclusão social de grupos de pessoas que “não possuam o padrão de normalidade” exigido (principalmente das minorias étnicas, religiosas, políticas, econômicas). No entanto, os Estados Democráticos de Direito possuem, como fundamentos de sua estrutura institucional, o respeito à dignidade e à igualdade de todas as pessoas que se encontram sob suas jurisdições. A igualdade que deve ser sempre respeitada pelas instituições estatais é a igualdade jurídica, em que não sejam permitidos privilégios e nem discriminações para determinadas classes sociais com fundamento apenas em critérios discricionários dos agentes públicos. Por sua vez, essa igualdade jurídica decorre, justamente, da dignidade humana que reveste todas as pessoas humanas por, simplesmente, serem humanos. Esses princípios (da igualdade e da dignidade humana) independem de concessão pelos Estados Democráticos e de Direito, os quais devem, simplesmente, reconhecê-los e declará-los em seus ordenamentos jurídicos, e fazê-los respeitados pela sociedade e pelas instituições e agentes estatais. Nesse contexto, ganha relevo a consideração que se deve ter para com as pessoas com deficiência, sejam físicas, sejam psíquicas, uma vez que as suas condições pessoais exigem que os Estados lhes ofereçam condições jurídicas e materiais de manterem a dignidade de que são portadores, em igualdade de condições com as demais pessoas. Dentre essas condições materiais, as possibilidades de se dedicarem às práticas desportivas se fazem importantes para 28 ISSN 2238-2534 que possam tanto recuperar, recobrar ou manter suas condições físicas, quanto a autoestima e, principalmente, para que possam sentirem-se cidadãos ativos na sociedade. Como fonte de inspiração para as pessoas com deficiência (para que percebam que tantos outros que se encontram com as mesmas limitações suas conseguem, pelo esporte, vencer barreiras sociais e se erguerem como cidadãos e como ídolos esportistas), os Jogos Paralímpicos possuem importância inconteste, pois demonstram e representam que a prática desportiva pelos portadores de deficiência não se trata apenas de opção terapêutica ou recreativa, mas, sim e também, de forma de inserção social, de superação de barreiras e de atividade profissional a ser exercida ativa e regularmente sob remuneração por contrato de trabalho como atleta ou de campanhas promocionais, ou, ainda, sob patrocínio pessoal. Abstraídas todas as possíveis e comentadas irregularidades afetas às searas administrativa, cível e penal que cercam a escolha do Rio de Janeiro como sede de Jogos Paralímpicos de 2016 e a realização das obras de infraestrutura e de mobilidade necessárias para os atletas, para o público e para a própria sociedade brasileira, é certo afirmar que o Estado brasileiro, ao patrocinar esse evento de repercussão mundial está, mesmo que indiretamente, concretizando o respeito a princípios constitucionais que o fundamentam, quais sejam, os princípios da dignidade e da igualdade das pessoas com deficiência, pois está oferecendo ao povo brasileiro a oportunidade de perceberem, tão proximamente, que eventuais limitações físicas ou psíquicas não são — e não devem ser — fontes ou causas de discriminação social. De modo reflexo, pode-se afirmar que os princípios da dignidade e da igualdade das pessoas com deficiência são elevados à máxima potência quando tais pessoas podem se ver representadas pelos atletas paraolímpicos, os quais, tanto quanto elas, cidadãs comuns, enfrentam, no cotidiano de suas vidas, as mesmas barreiras e as mesmas dificuldades sociais. Nesse aspecto, e desconsiderando quaisquer outras implicações econômicas, éticas, morais e políticas que envolvam a realização dos Jogos Paralímpicos no Rio de Janeiro em 2016, aceita-se que o Estado brasileiro acertou ao pretender sediá-los aqui. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 21º edição, malheiros editores LTDA. São Paulo 2002 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002a. 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