53 NELSON RODRIGUES E A CATARSE DA ABJEÇÃO Francisco Maciel Silveira1 RESUMO De cunho biográfico-crítico, o ensaio percorre a vida e a ficção de Nélson Rodrigues para desaguar em seu teatro. Teatro que, erguendo a tragédia de nossa freudiana e filogênica comédia humana, explora tabus da psique coletiva e desnuda o super-ego da moralidade social em ruínas, ao buscar, aristotelicamente, a catarse... de nossa abjeção. Palavras-chave: Nelson Rodrigues. Tragédia. Expressionismo. Inconsciente Freudiano. ABSTRACT This essay goes through Nelson Rodrigues’ life and fiction in order to aim at his dramaturgy. Dramaturgy that deals with the tragedy of our freudian and phylogenetic human comedy, exploring taboos of our mind, besides undressing the superego of the rotten social morality, in order to rouse in a cathartic way our human abjection. Keywords: Nelson Rodrigues, tragedy, Expressionism, freudian unconsciousness. "Sim, a imagem que as minhas peças vendem do autor é a de um sujeito agarrado às abjeções mais tenebrosas." (Nelson Rodrigues, O reacionário - memórias e confissões) 1 Francisco Maciel Silveira é Professor Livre-Docente da Universidade de São Paulo. ARTEREVISTA, n. 3, jan./jun. 2014, p. 53-65 54 Em O reacionário - memórias e confissões, diz Nelson Rodrigues: Se eu fosse mais importante, e entrasse numa enciclopédia, gostaria que fosse mais ou menos assim: — NELSON RODRIGUES - Autor brasileiro, também conhecido por flor de obsessão, etc. etc. Assim seja. Cumpra-se-lhe a vontade do et coetera e tal biográfico-crítico. Mais ou menos assim2. 1° etc.: o da vida. Como ela foi. Nelson Rodrigues nasceu em Recife, sob o signo de Virgem, aos 23 de agosto de 1912 — o quinto filho dos catorze com que Mário Rodrigues e Maria Esther Falcão povoaram o mundo. Pernambucano de nascimento, foi, contudo, carioca de formação e informação. No estilo, na gíria, na visão da vida como ela é, na marotice da boutade em que se vislumbra a malevolência do deboche ou o humor ferino de quem vive num Rio (mais que janeiro) sempre fevereiro. Tinha quatro anos de idade, quando a família se mudou para o Rio de Janeiro, cenário quase único de seu curriculum vitae. Vida que, a exemplo de sua ficção e dramaturgia, está permeada de lances trágicos, patéticos, melodramáticos. Quase um "drama de estações"; consentâneo, aliás, com o paroxismo expressionista de situações e diálogos das peças, crônicas, contos e romances que nos legou. Em 26 de dezembro de 1929, quase foi testemunha ocular do assassinato do irmão Roberto, jovem desenhista de talento e futuro, alvejado dentro da redação de "Crítica" por uma senhora da sociedade carioca, em represália a uma reportagem que lhe vasculhara a vida conjugal. Três meses depois, o pai morria de derrame cerebral. Frio diagnóstico médico para outra causa mortis: na verdade, desgosto — Mário Rodrigues vivia a repetir, pateticamente, que a bala assassina do filho era endereçada a ele. À morte do pai, seguiu-se, no mesmo ano de 1930, o empastelamento de "Crítica"3. Peripécia trágica, a família despenhou da felicidade 2 Para tecer a biografia de Nelson Rodrigues valho-me de CASTRO, Ruy (1992). O anjo pornográfico - A vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras. 3Segundo jornal fundado por Mário Rodrigues, em novembro de 1928, após a perda do controle acionário de "A Manhã", por ele lançado em dezembro de 1925. ARTEREVISTA, n. 3, jan./jun. 2014, p. 53-65 55 burguesa de uma vida farta e confortável na Copacabana dos postais à comezinha miséria da fome que, insidiosa, corroeu os pulmões de Nelson e de seu irmão Joffre. No patético pinturesco das memórias de O reacionário (Rodrigues, 1977: 45): Depois da Revolução de 30, e até 35, eu e toda minha família conhecemos uma miséria que só tem equivalente nos retirantes de Portinari. [...] Eu e meu irmão Joffre passamos fome e foi a fome que estourou nossos pulmões. Internado quatro vezes num sanatório da alpina Campos do Jordão, em São Paulo (abril de 35, fevereiro de 37, abril de 39, março de 45), sobreviveu à tuberculose. Menos generosas foram as Parcas com Joffre, a cuja agonia, num sanatório de Correias (RJ), Nelson, solidariamente também internado, assistiu (16.12.1936). As Erínias, inexoráveis e caprichosas, sempre à espreita. Em fevereiro de 1967, dia do aniversário do irmão Paulo (ou da cunhada? escleroticamente já me esquece), um dilúvio deságua sobre o Rio com fúria bíblica. Ruas a escorrer em caudal de Rio Amazonas impedem que os Rodrigues partilhem da festa natalícia. Entrementes, uma rocha desliza da encosta de um morro. Boliche de strike devastador, atinge em cheio uma casa, projetando-a de encontro ao prédio onde morava Paulo — que morreu soterrado com a mulher e os filhos. No capítulo dos amores, Nelson viveu o paradoxo de suas boutades. Se, de um lado, cria no amor eterno, a unir os amantes "para além da vida e da morte"4, de outro afirmava que "É preciso muito cinismo para que um casal chegue às bodas de prata". Em 1940, casou-se com Elza Bretanha, que lhe deu os filhos Joffre e Nelson. Vinte e três anos depois, separou-se de Elza (voltaria a reatar o matrimônio em 1977) para unir-se a Lúcia Cruz Lima, com quem teve uma filha, Daniela. Vítima das complicações de um parto prematuro, a criança estava fadada a ser cega, muda, paralítica. Os desgostos de pai não param por aqui. Em 1970, seu filho Nelson passou a viver na cladestinidade, militante do grupo guerrilheiro MR8, cujas ações armadas contestavam o regime militar, então vigente e merecedor, pelo menos aparentemente, da simpatia e adesão do pai. A prisão, a tortura e a condenação do filho em 1972 arrefeceriam o declarado entusiasmo do dramaturgo e sua boa-fé 4Na lápide da sepultura 18-340 A, quadra 43 do Cemitério São João Batista, lê-se: "Elza e Nelson. Unidos para além da vida e da morte." ARTEREVISTA, n. 3, jan./jun. 2014, p. 53-65 56 em relação à dita "dura" militar que se abateu sobre os rincões brasílicos com o nome de "Redentora"5 por dezoito anos. As páginas da vida de Nelson Rodrigues, na década de setenta, são verdadeiro tratado de patologia. Úlceras perfuradas, enfarto, aneurisma da aorta abdominal, colite ulcerativa, desidratação submetem-no a constantes internações e intervenções cirúrgicas. Tal quadro clínico pode levar-nos a supor que, além de devorado por um apetite pantagruélico, Nelson Rodrigues entornava destilarias. Diagnóstico errado. À falta de água de bica, só bebia mineral. Único banquete a que se dava ao luxo, um pálido franguinho de hospital. Como dizia em suas crônicas, tratava suas mazelas estomacais e cardíacas a pão-deló e pires de leite. Nutriu-as, com desvelo só encontrável em amas-secas negras de folhetim romântico, até a morte, ocorrida às oito horas da manhã do dia 21 de dezembro de 1980. "Idiotas da objetividade" eram para Nelson Rodrigues todos os que professavam a obviedade conselheira dos Acácios. Pois bem. Sua causa-mortis soa a corolário de um "idiota da objetividade": insuficiência cárdiorrespiratória. A autobiografia em nove atos. Ou serão dezessete? Já, machadianamente, "não me lembra". Não importa. Na extensão quilométrica de longa jornada noite metafórica adentro, soa algo à O'Neill a autobiografia teatral, que planejava e nunca escreveu. Imagino-a trazendo, na agonia do epílogo — Mourning becomes Nelson? —, um coro trágico de "idiotas da objetividade". Cena final mais ou menos assim: Enquanto a luz cai em resistência, apagando, ao fundo, o indefectível retrato de Nelson com o eterno cigarro à boca, o coro dos "idiotas da objetividade" berraria, com a plenitude operística de seus pulmões salubérrimos, uma máxima antitabagista. Catastrófica, mas edificante como uma construtora. Bem de acordo com o moralismo paroxístico de sua ficção. 2° etc.: o das crônicas, folhetins, contos e novelas de TV. 5"Redentora talvez em homenagem ao nosso turístico Cristo Redentor, braços abertos sobre a baía da Guanabara em abraço de político populista e demagógico. Ao cabo (dos fuzis?), o epíteto "Redentora" não passa de nossa carnavalização tupiniquim de um Prometheu às avessas: que roubou a chama da Liberdade, que nos agrilhoou ao Cáucaso bilioso de titânica repressão, sob o comando das águias brasonais do Pentágono. Prometheu, enfim, que não cumpriu. Para desgosto de nosso ditado (e sabedoria?) popular." (Do livro Crônica do Imemorial Absurdo, ainda inédito, de Samir Savon, a páginas tantas.) ARTEREVISTA, n. 3, jan./jun. 2014, p. 53-65 57 De seu ingresso, aos treze anos, como repórter policial do jornal "A Manhã", às páginas de "O Globo" na década de setenta, contam-se cinquenta e cinco anos enfurnado nas redações de vários diários e revistas. Nelas, além de cumprir as tarefas jornalísticas que lhe eram destinadas, desovou sua obra ficcional ( nove romances, mais de uma centena de contos), além de crônicas. No que toca às crônicas destaco as enfeixadas nos volumes Memórias de Nelson Rodrigues (1967), O óbvio ululante (1968), A cabra vadia (1970), O reacionário (1977). São páginas quase autobiográficas, graças ao forte teor confessional e memorialístico. Aí não se lêem apenas lances patéticos e dolorosos de sua vida civil. Com despudor de strip-teaser desnuda suas frustrações, obsessões, as "santas humilhações hereditárias" que, segundo ele, cada um de nós carrega ao longo da vida. Formado no jornalismo das décadas de 20 e 30, quando cada redator era um aspirante a Flaubert ou Zola, Nelson considerava-se, e era, um estilista. Foi nas crônicas que exercitou o estilo bombástico em que cada frase é uma manchete altissonante ou uma boutade a mexer com os interditos tabus da convencional moralidade burguesa. Out-door de suas obsessões, promoveu-as em achados metafóricos e frases de efeito. Perpetrou páginas e páginas ferindo, literalmente, as mesmas teclas: Sou um colunista que se repete com um límpido impudor. Não tenho o menor escrúpulo em usar duzentas, trezentas vezes a mesma metáfora. Eis o que me pergunto: — por que não insistir na metáfora bem sucedida? [...] Aprendi que as coisas ditas uma vez e só uma vez morrem inéditas.(Rodrigues, 1977: 298) Mais que o título de um dos volumes, a cabra vadia metaforiza o estilo ao correr das teclas usado nas crônicas. Freudianamente proustiano (ou será proustianamente freudiano?), Nelson retouça vagabundamente o assunto tratado ao sabor de associações que, aparentemente digressivas, emergem do inconsciente, deflagradas por um fato, um nome, um objeto — evocadores, por sua vez, de um temps perdu em que jaz quase sempre uma experiência traumática que precisa vir à tona do consciente para ser exorcismada. ARTEREVISTA, n. 3, jan./jun. 2014, p. 53-65 58 A imaginação de Nelson Rodrigues formou-se à luz incandescente de folhetinistas do século XIX6. Compreensível que enverede pela ficção explorando técnicas e recursos do gênero. Com exceção de O casamento (l966), os outros romances saíram originalmente como folhetins. Sob o pseudônimo de Suzana Flag conheceu o sucesso popular com Meu destino é pecar (1944), Escravas do amor (1944), Minha vida (1946), Núpcias de fogo (saído em 1948 nas páginas de "O Jornal"), O homem proibido (1951), A mentira (nas páginas de "Flan", 1953). Como Myrna, publicou no "Diário da Noite", em 1949, A mulher que amou demais. Sob o próprio nome, além do já citado O casamento, escreveu Asfalto selvagem (dois vols., 1960). Os pseudônimos femininos, o sex appeal dos títulos — a prometer a inconfidência de intimidades de alcova e a sugerir furores uterinos — atearam as zonas erógenas de inconscientes castrados e reprimidos pelo superego da moralidade burguesa. Escritos no afogadilho das redações, ao correr das teclas, desenfreada a imaginação, os romances constituem a parte menos importante de sua ficção. Já os contos — também escritos para colunas de jornais na década de cinquenta, destacando-se os reunidos em A vida como ela é... (1961, dois vols.) e Elas gostam de apanhar (1974) — desempenham importante papel em seu universo ficcional. Serviram de laboratório para o ciclo das "tragédias cariocas". Ensaiam situações e cenas em takes cinematográficos (que se mostravam adequados às "estações" expressionistas de sua dramaturgia), testam a viabilidade e o rendimento dramáticos de assuntos, apuram o diálogo cada vez mais inspirado no linguajar carioca. As novelas que escreveu para a televisão — A morta sem espelho (1963), Sonho de amor (1964), O desconhecido (1964) — atendiam a interesses comerciais do canal que as veiculava: aumentar a audiência com o chamariz de um autor já então considerado "maldito" ─ e, pior, "tarado". 6 "Em criança, só li folhetim. E ainda hoje, tanto tempo depois, ainda preservo a nostalgia dos Sue, dos Perez Scrich, do Dumas pai, dos Ponson du Terrail." (Rodrigues, 1970: 154) ARTEREVISTA, n. 3, jan./jun. 2014, p. 53-65 59 3° etc.: o do papel de Vestido de noiva. A rigor, a dramaturgia de Nelson Rodrigues inicia em 1943 e já com uma obra-prima, Vestido de noiva, cujo papel foi fundamental para o teatro brasileiro. Na década de 40, o Modernismo brasileiro, iniciado em 1922, ainda não chegara aos palcos. A revolucionária incursão de Oswald de Andrade pelo teatro com O homem e o cavalo, O rei da vela e A morta, nos anos 30, confinada à edição em livro, ficou sem eco. O teatro de revista saracoteava com plumas, paetês e pernas de fora, garantindo o sucesso de bilheterias. Afora a encenação de alguns clássicos nacionais e estrangeiros, as companhias teatrais, então em atividade no Rio de Janeiro, satisfaziam o gosto pouco cultivado das plateias com o boulevard e o melodrama. É num tal decor que surge para o espanto da crítica e do público Vestido de noiva. Estreada em 28 de dezembro de 1943, com cenários de Santa Rosa e direção de Ziembinski, a peça haveria de constituir-se em marco da encenação e dramaturgia nacionais. A crítica foi unânime em ressaltar a originalidade e o cunho revolucionário da mise-en-scène e do texto. Concebida em três planos — realidade, memória, alucinação —, a fatura expressionista da peça revolucionava a narrativa e o espaço cênicos, propondo dificuldades que só poderiam ser resolvidas por uma cenografia e uma direção cuja competência raiasse ao virtuosismo. Nelson invadia a cena com uma peça de cuja originalidade tinha plena consciência, conforme se lê à página 337 de O reacionário: como todos os meus textos dramáticos, [Vestido de noiva ]é uma meditação sobre o amor e sobre a morte. Mas tem uma técnica especialíssima de ações simultâneas, em tempos diferentes. E, além disso, há no seu desdobramento, na sua estrutura, o rigor formal de um soneto antigo. Com Vestido de noiva e um atraso de 21 anos, o Modernismo brasileiro finalmente chegava aos palcos. Pelo talento desbordante de um autor que dizia ser até aqueles anos 40 absolutamente ignorante em termos de dramaturgia: Eis a verdade: — até a estréia de Vestido de noiva, eu não lera nada de teatro, nada. Ou por outra: lera, certa vez, como já disse, Maria Cachucha, de Joracy Camargo. Sempre, fui desde garoto, um leitor voracíssimo de romances. Eu me considerava romancista e só o romance me fascinava. Não queria ler, nem ver teatro. Depois de A mulher sem pecado é que passei a assumir a pose de quem conhece todos os poetas dramáticos passados, ARTEREVISTA, n. 3, jan./jun. 2014, p. 53-65 60 presentes e futuros. Na verdade, sempre achei um tédio sufocante qualquer texto teatral. Só depois de Vestido de noiva é que me iniciei em alguns autores obrigatórios, inclusive Shakespeare (Rodrigues, 1977: 337). A declaração, bem ao gosto nelsonrodriguesiano, pode parecer surpreendente. Ainda mais se considerarmos que Vestido de noiva, segunda experiência dramatúrgica de quem aborrecia o teatro, vinha fecundar o palco brasileiro com a força genesíaca de obra-prima. Façanha perpetrada por um teatrólogo então incipiente e que se lançara à aventura cênica, anos antes (A mulher sem pecado, 1941), com o mero intuito de escrever chanchadas para faturar um dinheirinho extra. 4 ° etc.: o da obstetrícia (expressionista) do inconsciente freudiano. Sua dramaturgia enfeixa dezessete peças. Sábato Magaldi, organizador e prefaciador do Teatro Completo de Nelson Rodrigues (Magaldi, 1993) alinha-as em: • "peças míticas" — Álbum de família (1946), Anjo negro (1947), Senhora dos afogados (1947), Dorotéia (1949) ; • "tragédias cariocas" — A falecida (1953), Perdoa-me por me traíres (1957), Os sete gatinhos (1958), Boca de ouro (1959), Beijo no asfalto (1960), Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária (1962), Toda nudez será castigada (1965), A serpente (1978); • "peças psicológicas" — A mulher sem pecado (1941), Vestido de noiva (1943), Valsa n° 6 (1951), Viúva porém honesta (1957), Anti-Nelson Rodrigues (1973). Hélio Pellegrino, quem primeiro chamou a atenção para o substrato filogeneticamente freudiano da dramaturgia de Nelson Rodrigues, como que desconsidera (por despiciendas?) as peças que Magaldi classificou de "psicológicas", considerando apenas as vertentes — intercambiáveis — “mítica” e das "tragédias cariocas", que ele rotula de "ciclo balzaqueano".7 7 "Como Balzac, Nelson Rodrigues sabe agora que, no ambiente provinciano, nos pequenos meios afogados pela rotina, no subúrbio — que é a província do dramaturgo — se escondem as mais intensas paixões humanas. A partir de "A falecida" passamos a assistir, na obra de Nelson Rodrigues, ao desfile dramático dos mesmos temas que fazem a pletora de sua fase mítica, mas já com outra conotação, com outra estrutura, com outra linguagem. ARTEREVISTA, n. 3, jan./jun. 2014, p. 53-65 61 Noutro arranjo didático talvez pudéssemos vislumbrar quatro momentos na trajetória dramatúrgica de Nelson Rodrigues. A fase inicial ─ com A mulher sem pecado (194l), Vestido de noiva (1943) e Álbum de família (1946) ─ sinaliza os rumos futuros: aí estão os germens do "ciclo mítico", com Álbum de família, e das "tragédias cariocas", com Vestido de noiva 8. De 1947 (Anjo negro) a 1951 (Valsa n° 6) — passando por Senhora dos afogados (1947) e Dorotéia (1949) —, Nelson trabalha arquétipos filogênicos de forte teor freudiano: os instintos do Amor e Morte, o mito do Pai Primordial e os complexos de Édipo e Electra com seu séquito de incestos e parricídios. Está a amadurecer aqui o substrato freudianamente mítico de suas tragédias cariocas. A falecida (1953) inaugura o ciclo das "tragédias cariocas", findo em 1965, com Toda nudez será castigada. Nesse período, ao longo de Perdoa-me por me traíres (1957), Os sete gatinhos (1958), Boca de ouro (1959), O beijo no asfalto (1960), Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária (1962), os arquétipos da "psique coletiva" freudiana temporalizamse, geografizam-se e coloquializam-se nos subúrbios cariocas da classe média baixa. Eloquente silêncio de oito anos passados, em relação a Toda Nudez será castigada, a peça Anti-Nelson Rodrigues, de 1973, não obstante o título e o final feliz a sugerirem a negação e abandono da escatologia trágica, de fato assinala o esgotamento de sua dramaturgia — comprovável na falta de fôlego do ato único de sua última peça, A serpente (1978), um recuo nostálgico à atmosfera dos contos perpetrados na década de cinquenta para a série de A vida como ela é. Mesmo nesse outro arranjo didático que lhes ofereci de quatro momentos, a buscar um outro ângulo, sucumbo ao peso filogenético da razão do psiquiatra Hélio Pellegrino, que reduziu a dramaturgia nelson-rodriguesiana a duas vertentes freudianamente intercambiáveis a “mítica” e a das “tragédias cariocas”. Em ambas, as personagens vivem o paroxismo de dramas e situações-limite conducentes à destruição do semelhante e/ou ao próprio aniquilamento. Amor e ódio, nascimento e morte, gênese e apocalipse continuam a ser os temas que obsedam". (Pellegrino, 1966: 12) 8 Escrita em 1943, Nelson a considerava sua primeira "tragédia carioca". ARTEREVISTA, n. 3, jan./jun. 2014, p. 53-65 62 À O'Neill, as Fúrias do Destino não habitam a imponderabilidade do etéreo: são elas os demônios interiores que emergem do tenebroso inconsciente da psicanálise freudiana. Se aceitarmos que o Expressionismo — como obstetrícia do subconsciente e do inconsciente freudianos — é, em seu paroxismo, o grotesco quase paródico da psicofisiologia do Naturalismo, a dramaturgia nelson-rodriguesiana será essencialmente expressionista. Servindo-nos uma rubrica de Boca de ouro, diríamos que suas tragédias, míticas ou cariocas, têm "essa dor dos subúrbios — dor quase cômica pelo exagero". Ou seja, dor expressionista cujo paroxismo trágico vive paredes-meias com o riso alvar da farsa. Não espanta, pois, que muitas vezes a plateia reaja ao pathos de situações com gargalhadas. 5° etc.: o do "teatro desagradável". Culminância de seu fôlego dramatúrgico, Toda nudez será castigada (1965) encerra em seu título o acendrado (e incompreendido) moralismo de um autor que foi castigado com interdições e censuras por desnudar as partes pudendas de nosso inconsciente. Explorando tabus da psique coletiva, Nelson ousou bolinar zonas erógenas que o superego da moralidade social em ruínas forceja por reprimir a cilício e jejum. Como dramaturgo, contista e folhetinista, ele soube explorar esse embate com a hipocrisia moral: o sucesso veio através do escândalo. As colunas do "tarado" e "maldito" eram devoradas, de pé, em coletivos, autocarros ou elétricos. Suas peças, quando encenadas, eram, as mais das vezes, acolhidas com a ovação apoteótica de vaias e pateadas9. De suas tragédias "míticas" ou "cariocas" (ao cabo, miticamente cariocas) depreendese a lição freudiana de que a sociedade funda-se na cumplicidade do feito (e fato) criminoso que precisa ser, catarticamente, purgado. Pois a moralidade, ruínas baseadas nas exigências da vida social, enraíza-se na necessidade de expiar o sentimento comum de culpa. Transpira das peças a crença (lida em Freud? intuída?) de que o inconsciente é zona erógena onde subjazem impulsões deletérias que, mal refreadas pelo tabus do superego, irrompem com força destruidora de rolo compressor. 9 "E eu posso dizer, sem nenhuma pose, que para minha sensibilidade autoral, a verdadeira apoteose é a vaia." ("Quase enforcaram o autor como um ladrão de cavalos", (Rodrigues, 1977: 149) ARTEREVISTA, n. 3, jan./jun. 2014, p. 53-65 63 Para Nelson Rodrigues, a ficção e o teatro têm função moralizante: cabe-lhes trazer à tona do consciente os desejos inconfessos, as abjeções que, incoercíveis, ameaçam romper a fina crosta da moralidade hipócrita e convencional. O palco torna-se local de martírio onde as culpas primevas, vividas pela plateia identificada à pele das personagens, devem ser catarticamente expiadas e purgadas. Dramaturgia aristotelicamente catártica a de Nelson Rodrigues. Vicariamente catártica, a mexer, freudianamente, com a "psique coletiva", com a filogenética herança arcaica da espécie no indivíduo. Ante a dicotomia "distanciamento crítico brechtiano" versus "empatia aristotélica", a dramaturgia de Nelson Rodrigues optou pelo pathos catártico10. Eliminando a piedade, visou suscitar o horror — horror à abjeção que nos solidariza no Mal, esse cancro que corrói o ser humano desde a origem. Aqui, talvez, o sentido da boutade ─ "O mineiro só é solidário no câncer". Máxima que popularizou em suas crônicas (atribuindo-a ao mineiro Otto Lara Resende, seu amigo e também escritor) e que, metástase obsessiva, foi-se infiltrando por sua obra dramatúrgica, a ponto de quase se tornar, metonimicamente, personagem principal da penúltima peça do ciclo de suas “tragédias cariocas”: Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária (1962). Sob tais pressupostos Nelson Rodrigues ergueu, segundo ele, a partir de Álbum de família, sua poética do "teatro desagradável" — teatro que deve ofender e humilhar, que deve ter a função purgativa de ser a catarse de nossa abjeção inconfessa: Morbidez? Sensacionalismo? Não. E explico: a ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz. O personagem é vil, para que não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de cada um de nós. A partir do momento em que Ana Karenina, ou Bovary, trai, muitas senhoras da vida real deixarão de fazê-lo. No Crime e castigo, Raskolnicov mata uma velha e, no mesmo instante, o ódio social que fermenta em nós estará diminuído, aplacado. Ele mata por nós. E, no teatro, que é mais plástico, direto, e de um impacto tão mais puro, esse fenômeno de transferência torna-se mais válido. Para salvar a platéia, é preciso encher o palco de assassinos, de adúlteros, de insanos e, em suma, de uma rajada de monstros. São os nossos monstros, dos quais eventualmente nos libertamos, para depois recriá-los11 10 "Brecht inventou a 'distância crítica' entre o espectador e a peça. Era uma maneira de isolar emoção. [...] Ao passo que eu, na minha infinita modéstia, queria anular qualquer distância. A platéia sofreria tanto quanto o personagem e como se fosse também personagem." (Rodrigues, 1977: 147.) 11 Entrevista concedida à revista "Manchete", em 15.06.1957, às vésperas da estreia de Perdoa-me por me traíres, ocorrida em 19.06.1957, no Teatro Municipal (RJ). ARTEREVISTA, n. 3, jan./jun. 2014, p. 53-65 64 Ao cabo, dramaturgia profundamente moral e moralizante em sua relação psicanalítica com a plateia: "Minhas peças são obras morais. Deveriam ser encenadas na escola primária e nos seminários". De onde provém, então, a pecha de "maldito" e "tarado"? Como se explicam tantas censuras e interdições?12 A resposta espoja-se num divã psicanalítico. Cria-se no público um mecanismo projetivo-defensivo: reação contra o que não admitimos enxergar e reconhecer dentro de nós mesmos 13. O público não suporta ver exposta a nudez erógena do seu inconsciente. Trata-se de uma nudez que precisa ser castigada, seja com garagalhadas alvares seja com vaias de indignação. Pierre-Aimé Touchard (Touchard, 1978: 32 ss.) explica-nos o teor de rejeição contido no riso. Também Freud, aquele que (segundo se diz) tudo explica, ei-lo, garantindo a reação nada simpática ou empática de nosso inconsciente. Para Nelson Rodrigues, contudo, a grandeza do ser humano está em aceitar sua miséria e abjeção. Ou seja, rever-se na nudez erógena de um inconsciente que, criminoso à Raskolnicov, merece castigo: o de reconhecer-se na miséria e abjeção e procurar transcendêlas pelo sofrimento purificador. Donde associar a ideia de martírio à sua poética do "teatro desagradável": Liguei as duas coisas: — teatro e martírio, teatro e desespero. Em fins de 1954, ao criar a Companhia Suicida de Teatro Brasileiro, Nelson Rodrigues reafirmaria o binômio teatro/sofrimento: É preciso eliminar o espectador puramente digestivo, que vale tanto ou menos que a cadeira vazia. Eliminar esse tipo de espectador ou, então, exasperá-lo como a um touro maciço e soturno. O público dilacerado fica mais sensível, mais inteligente, mais apto a receber o mistério do espetáculo. 12 Álbum de família, por exemplo, escrita em 1946, foi interditada em 17.03.1946 e só liberada em 1967. À página 255 de O Reacionário, assim Nelson Rodrigues equaciona a repulsa causada por Toda nudez será castigada: "A peça é uma cambaxirra. Não tenho culpa se o espectador resolve projetar em mim a sua própria obscenidade". Leia-se ainda: "As senhoras me diziam: — 'Eu queria que seus personagens fossem como todo mundo.' E não ocorria a ninguém que, justamente, meus personagens são como todo mundo: e daí a repulsa que provocam. Todo mundo não gosta de ver no palco suas íntimas chagas, suas inconfessadas abjeções." 13 ARTEREVISTA, n. 3, jan./jun. 2014, p. 53-65 65 Ao cabo, seja tourada ou sacrifício votivo, nas aras sagradas do teatro, expiação de culpas sob o autoflagelo do reconhecimento. Assim, alicerçado nas ruínas da moralidade burguesa, Nelson Rodrigues edificou sua obra dramatúrgica. Procurando irmanarmos numa aristotélica catarse a da abjeção: purgante das ruínas de nossa hipócrita moralidade. REFERÊNCIAS CASTRO, Ruy. O anjo pornográfico - A vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. MAGALDI, Sábato. O teatro completo de Nelson Rodrigues. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993. PELLEGRINO, Hélio. "A obra e O beijo no asfalto". In RODRIGUES, Nelson. Teatro quase completo. Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, 1966. vol. IV, 9-25 RODRIGUES, Nelson. O reacionário. Rio de Janeiro: Record, 1977. RODRIGUES, Nelson. A cabra vadia. Rio de Janeiro. Record, 1970. TOUCHARD, Pierre-Aimé. Dioniso: apologia do teatro seguido de O amador do teatro ou a regra do jogo. São Paulo: Cultrix/Editora da Universidade de São Paulo, 1978. ARTEREVISTA, n. 3, jan./jun. 2014, p. 53-65