Introdução à Astronomia Extragaláctica 2. Via Láctea: a nossa galáxia AGA 299 – IAG/USP Ronaldo E. de Souza Agosto, 2016 Na Via Láctea dispomos de dados suficientemente detalhados para compreender a sua estrutura, população estelar e evolução. É o laboratório ideal, mas eventualmente um pouco confuso, para compreender as galáxias mais distantes. Cap. 1 Cap. 3 Satélite COBE Schlegel e al Mapa da absorção galáctica Jacobus Kapteyn Via Láctea como um elipsóide Multiwavelenght Milk way Satélite Hipparcos Limite de Oort 1900 1920 1960 1940 1980 2000 Chandrasekhar Binney I. King Hubble Oort . Disco exponencial da Galáxia Chandrasekhar SDSS Dinâmica estelar Satélite ROSAT Trumpler absorção interestelar Rotação galáctica em 21cm Buraco negro supermassivo Linha do tempo Tópicos • 2.1 Uma Visão geral • 2.5 O Bojo Galáctico • 2.2 Absorção Interestelar • 2.6 A Região Nuclear • 2.3 Vizinhança Solar • 2.6 Rotação Galáctica • 2.3 Cinemática Estelar • 2.7 Problemas • 2.4 O Disco Galáctico 2.1 Uma Visão Geral A nossa galáxia é uma mistura complexa de estrelas, gás, poeira e matéria escura. É o exemplar mais detalhadamente estudado e o seu conhecimento nos fornece pistas importantes de como as estruturas das galáxias mais distantes se organizam. Um primeiro passo foi dado na década de 1920 por J. Kapteyn que resolveu refinar o modelo inicialmente proposto por Herschel. Neste modelo a Via Láctea teria uma forma de cascas elipsoidais homogêneas estando o Sol localizado próximo à região central. Para construir este modelo Kapteyn (1922, ApJ, 55, 302) realizou contagens de estrelas para cada faixa de magnitude aparente (m) e admitindo uma magnitude absoluta média (M) para as estrelas ele estimou a distância usando a relação r=10 (m-M+5)/5=k 100,2m Em consequência o número de estrelas, em uma distribuição homogênea, dividida por grupos de magnitude deveria seguir a relação N(m)=N0r3=N0100,6(m-m0) que foi cotejada com os dados empíricos existentes na época. Os fundamentos do modelo de Kapteyn foram assimilados em vários modelos posteriores mais realistas e que incorporaram o efeito da absorção interestelar ainda pouco conhecida na época. Sol , y=650 pc, x=38 pc A verdadeira extensão do efeito da absorção interestelar só começou a ser compreendida em 1930 com os trabalhos de Trumpler ao comparar a dimensão angular de aglomerados abertos de estrelas. Supondo que estes seriam basicamente idênticos entre si ele estimou geometricamente as suas distâncias relativas e mostrou que as magnitudes das estrelas dos mesmos são sistematicamente afetadas pela extinção interestelar. Em algumas direções é possível testemunhar diretamente a absorção devida a grandes nuvens espalhadas pelo meio interestelar. A análise de Trumpler (1930, PASP, 42, 214) mostrou que a estimativa fotométrica das distâncias dos aglomerados abertos era sistematicamente maior que a distância geométrica indicando o efeito crescente da absorção interestelar com a distância do objeto. medida geométrica da distância D/d=θ efeito da absorção interestelar medida fotométrica da distância não corrigida pela absorção interestelar m-M=5 Log d -5 Black Cloud B68 Atualmente a nossa compreensão da estrutura da Galáxia é muito mais completa e não se restringe apenas ao domínio óptico. No domínio de rádio, 408 Mhz, a estrutura da via Láctea está representada na figura abaixo. Nesta freqüência a maior parte da emissão provem de elétrons relativísticos se movimentando no campo magnético galáctico com velocidades próximas da velocidade da luz devido às explosões de supernovas que aceleram os elétrons através de ondas de choque. Resto da supernova Cas A (HST) Resto da supernova Vela (Chandra) Através de observações na linha de 21cm, também na faixa de radiofrequências, podemos derivar a densidade de coluna do hidrogênio neutro. Neste domínio observamos as componentes fria e morna do meio interestelar organizada em nuvens difusas com até algumas centenas de anos-luz. Em algumas destas regiões se observa a presença de regiões com formação estelar recente. Observe que o disco de hidrogênio neutro é mais delgado que a distribuição das estrelas e apresenta um efeito de torção. Região de formação estelar Cyg OB1 e Cyg OB2. Na faixa de 2,7 GHz visualizamos a emissão no contínuo rádio do gás quente ionizado e de elétrons de altas energias presentes no meio interestelar. Região da super-bolha de Cygnus indicada pela curva tracejada forte à direita. A densidade de coluna do hidrogênio molecular a partir de observações na linha do CO mostra com podemos observar as regiões mais frias e densas do meio interestelar. A maior parte do gás molecular está na forma H2, mas este é difícil de ser detectado e por isso utiliza-se como traçador as linhas do CO que é a segunda molécula mais abundante no meio interestelar. Região da nuvem molecular gigante Barnard 68. Na imagem composta no infravermelho médio e distante a partir dos dados do satélite IRAS em 12, 60 e 100 mícron a maior parte da emissão é de origem térmica devido aos grãos aquecidos pela emissão das estrelas próximas. Como a emissão no infravermelho é pouco afetada pela absorção interestelar podemos ver a estrutura interna do bojo galáctico que seria impossível de ser observado no visível. Na imagem no infravermelho próximo, 6-10 mícron, obtida pelo satélite MSX a maior parte da emissão nesta faixa de freqüência se deve à presença de complexos moleculares denominados de hidrocarbonetos policíclicos encontrados nas nuvens interestelares. Objetos imersos nestas nuvens (gigantes vermelhas, nebulosas planetárias, e estrelas massivas) produzem a aparência de manchas brilhantes que se observa nesta imagem. Nesta imagem composta no infravermelho próximo, 1,25 + 2,2 + 3,5 mícron, do instrumento DIRBE a bordo do satélite COBE a maior parte da emissão se deve a estrelas do tipo gigante K presentes no disco e no bojo da Galáxia. A absorção interestelar não afeta esta faixa tão fortemente e por isso podemos observar a forma do bojo galáctico. Esta imagem do bojo galáctico revela claramente a sua forma retangular provavelmente associada à presença de uma barra na região central da Via Láctea. Na imagem no visível (4000-6000 Ǻ) obtida a partir de levantamento fotográfico, devido à forte absorção interestelar, a emissão se deve predominantemente às estrelas relativamente próximas, a menos de 300 pc do Sol. As faixas escuras se devem à presença de nuvens de gás e poeira que podem ser mais facilmente identificadas nos mapas do infravermelho. Os mapas do infravermelho próximo e distante mostram como podemos mascarar a nossa concepção da via Láctea ao observar apenas no visível. Na imagem composta em raios-X, 0,25+0,75+1,5 keV, observada pelo satélite ROSAT a emissão se deve a ondas de choque que ocorrem no gás quente presente no meio ionterestelar. As regiões escuras se devem a falhas de amostragem no levantamento do satélite ROSAT. Chandra ROSAT Visível Na imagem dos raios-γ de altas energias (>300 MeV) observada pelo satélite EGRET observa-se uma faixa de energia em que a maior parte da emissão se deve a raios-γ gerados pela colisão de raios cósmicos com núcleos de hidrogênio nas nuvens interestelares. Esta imagem é da fonte Geminga, durante anos de origem desconhecida, e que foi finalmente identificada em 1991 pelo satélite ROSAT como uma estrela de nêutrons. Se pudéssemos nos afastar da via Láctea e vê-la de fora, observando apenas as estrelas, veríamos algo parecido com a estrutura abaixo. O bojo central um pouco alongado sugere uma estrutura barrada e o Sol está localizado próximo a um dos braços espirais do sistema. As primeiras estimativas da posição do núcleo foram feitas por Harlow Shapley em 1918. Sabe-se hoje que a nossa distância ao centro é da ordem de 10 kpc e estamos nas proximidades da faixa central do disco galáctico. Além da componente estelar acredita-se que a Via Láctea esteja situada no interior de um enorme halo de matéria escura cuja dimensão e massa total ainda é sujeita a debates. Como é possível saber que estamos próximos da faixa central do disco galáctico? 2.2 Absorção Interestelar Em linhas gerais o material disperso no meio interestelar está distribuído em três grandes domínios ou fases que convivem em um estado aproximado de equilíbrio de pressão: 1.Nuvens moleculares gigantes muito frias. 2.Meio difuso. interestelar 3. Gás coronal quente. 0,5 ano-luz 3,4 pc Vexp ~1 500 km/s 500 pc 200 pc M ~450 000 M⊙ (A) Nebulosa Barnard 68; nuvem molecular fria no limite de contração gravitacional. (B) Nebulosa da cabeça de cavalo; nuvem fria iluminada pela radiação de estrelas jovens. (C) Nebulosa do Caranguejo; resto da supernova 1054 AD. (D) Nebulosa da Tarãntula; região de formação estelar intensa na LMC. A passagem da radiação por uma camada absorvedora provoca uma redução do seu fluxo que obedece a relação dIλ = -Iλn(x)kλdx= -Iλdτλ onde dτλ=n(x)kλdx denomina-se incremento diferencial de profundidade óptica. Ao passar por uma camada de largura arbitrária o fluxo de radiação sofre uma diluição devido aos efeitos de absorção e espalhamento. O resultado é um fluxo emergente Iλ=I0λe -τλ Aplicando-se a definição de magnitude podemos transformar esta relação mλ=m0λ+Aλ onde Aλ = c kλL é conhecida como a absorção interestelar expressa em magnitudes. Desde os trabalhos de Trumpler sabe-se que Aλ ~ a + b/λ. Se os grãos responsáveis pela absorção tivessem dimensões muito maiores que o comprimento de onda da radiação deveríamos esperar uma absorção neutra, independente do comprimento de onda. Se por outro lado estes grãos tivessem dimensões moleculares então o espalhamento de Rayleigh seria dominante e a dependência deveria ser do tipo Aλ = a + b/λ4. A relação observada, sendo intermediária entre estes extremos, implica em que as partículas responsáveis pela absorção devem estar entre estes dois limites com grãos cujas dimensões são da ordem de 10-5 cm. A densidade média de massa associada com estes grãos é da ordem de 10-26 g/cm3 correspondendo a cerca de 1% da massa do gás. I V B U O modelo mais simples para descrever a absorção galáctica é que o gás, e consequentemente os grãos, estão distribuídos em uma camada relativamente estreita delineando o disco fino da Galáxia. A largura desta camada é da ordem de 150 pc. h b L=h/sen(b) Portanto ao observarmos uma fonte externa ao disco da Via Láctea a profundidade óptica correspondente deve depender da latitude galáctica (b) segundo a relação τλ=nkλ L Ou ainda, Aλ=A0λ/sen(b)= A0λ csc(b) Estima-se que a absorção interestelar integrada na direção dos polos galácticos seja da ordem de A0V~0,21 mag no visual. Observe que quando b=30º a absorção prevista deve ser da ordem de 0,42 mag e tende a aumentar cada vez mais quando nos aproximamos do plano do disco. Por este motivo é mais difícil perceber perceber a presença das galáxias externas em baixas latitudes galácticas conforme já se sabia em meados do século XIX. Uma consequência natural da absorção interestelar depender do comprimento de onda e da dimensão da camada absorvedora é que quando comparamos este efeito em duas bandas distintas, B e V por exemplo, obtemos AV = V – V0 =c k(λV) L AB = B - B0 = c k(λB) L Portanto, se considerarmos uma distribuição média do material absorvedor espalhado ao longo da linha de visada, então a absorção em magnitudes deve ser proporcional à distância da fonte. Comparando-se as absorções em duas bandas fotométricas podemos derivar o efeito do avermelhamento sobre o índice de cor E=(B-V) – (B-V)0 que é chamada de excesso de cor ou avermelhamento e podemos verificar através das relações acima que, E(B-V) = c (k(λB)-k(λV)) L E portanto AV/E(B-V) = k(λV)/(k(λB)-k(λV)) = R ~ 3,1 que é independente da dimensão da camada absorvedora. Apesar da possível dependência com a abundância química e propriedades dos grãos esta relação é muito útil e imagina-se que uma relação similar deva ser aplicável às galáxias externas. Recentemente Schlegel, Finkbeiner & Davis (1998, ApJ,500, 525) utilizaram dados dos satélites COBE/DIRBE e IRAS para realizar um mapeamento completo do avermelhamento interestelar. Na figura abaixo vemos o mapa da poeira resultante. Atualmente podemos consultar o site http://irsa.ipac.caltech.edu/applications/DUST/ e estimar diretamente a absorção na direção de qualquer galáxia utilizando este trabalho. Na figura abaixo temos o resultado da absorção interestelar na direção da galáxia NGC 3115 cujo resultado indica que AV= 0,145 mag. Como a magnitude observada deste objeto é mV=10,01 concluímos que a sua magnitude livre da absorção galáctica deva ser 9,865. Na direção do centro galáctico a extinção interestelar é elevadíssima e chega a atingir um valor máximo AV~310 mag! Porém, no entorno desta região a extinção média é da ordem de 1,5 mag. Ao desconsiderar este efeito os objetos analisados por Shapley foram considerados cerca de 1,5 mag mais brilhantes o que corresponde a um erro em distância da ordem de um fator dois. Mapa do centro galáctico visto pelo satélite 2MASS 2.3 O Disco na Vizinhança Solar A região local da Via Láctea contém uma enorme variedade de estrelas sendo a maioria muito semelhante ao nosso próprio Sol. Vários levantamentos de estrelas tem sido realizados nesta região sendo o SDSS (Sloan Digital Sky Survey) o mais abrangente deles com cerca de 48 milhões de estrelas. Mesmo assim a região observada representa um volume amostral relativamente modesto como se observa ao lado. Os resultados mais recentes sobre a distribuição espacial das estrelas na nossa vizinhança local da Via Láctea tem sido obtidos utilizando-se os dados do SDSS (ApJ, 673, 914). A estrutura na direção vertical do disco a pequenas alturas, para diferentes tipos espectrais, pode ser descrita por perfil exponencial simples do tipo ρd(z)=ρ0d e–h/Hf, sendo Hf ~251 pc, conhecida como a escala de altura do disco fino. A medida que nos afastamos do plano do disco percebe-se a presença de uma outra componente exponencial com escala de altura He~647 pc chamada de disco espesso. Finalmente a grandes alturas temos um halo estelar elipsoidal, ρH=ρH0 / [ (R/R0)2 + (Z/Z0)2)α sendo α~2,77. O halo estelar é achatado com Z0/R0~0,64. Acredita-se que os discos das galáxias espirais também apresentem esta estrutura de três fases. Na direção do plano do disco as estrelas seguem um perfil exponencial radial de densidade. ρd(R)= ρ0d e-R/Rd sendo o fator de escala ligeiramente diferente quando se considera as estrela de tipo mais jovem (r-i=0,700,80) e as de tipo mais velho (r-i=1,301,40). Esta mesma distribuição é obedecida quando consideramos cortes paralelos ao disco a diferentes alturas desde 200 pc até 1500 pc, mas os valores da escala de distância Rd são um pouco diferentes para o disco fino e espesso. No caso do disco fino temos Rdf~2,9 Kpc enquanto para o disco espesso temos Rde~3,9 Kpc. Observe que mesmo usando os recursos mais modernos não temos condições de conhecer a estrutura radial da Via Láctea a grandes distâncias radiais devido à forte absorção interestelar. 2.4 Cinemática Estelar Estrelas do tipo jovem com idades ~ 2-4 Ganos Estrelas do tipo tardio 80% com idades > 10 Ganos 20% com idades ~ 2-4 Ganos Subgigantes do tipo III Corte amostral devido ao limite de sensibilidade do satélite Apesar de menor a amostra mais adequada para o estudo da cinemática da vizinhança solar é aquela do satélite Hipparcos. Esta contém cerca de 15 000 objetos com informações precisas sobre a posição, distância e velocidades no entorno de 100 pc do Sol como ilustra o diagrama HR de Aumer & Binney ( 2009, MNRAS, 397,1286). Esta figura, baseada na imagem de M51 observada pelo HST, ilustra aproximadamente o efeito da dimensão relativa das amostras do SDSS e do satélite Hipparco. Observe como ainda hoje o nosso conhecimento empírico da via láctea ainda é limitado apesar do enorme avanço tecnológico. Conforme suspeitava Kant as estrelas da Galáxia não podem estar em repouso. A lei da gravitação universal impõe uma aceleração peculiar a cada objeto e o resultado final é que as estrelas são compelidas a se movimentarem estabelecendo assim um equilíbrio dinâmico. Mas como detectar e quantificar este movimento é a grande questão. A informação básica para resolver este problema está na observação tanto da velocidade radial (vr) como da velocidade transversal à linha de visada (vt) que pode ser obtida a partir do movimento próprio (μ) das estrelas. Conhecidas estas componentes podemos estimar a velocidade da estrela 2 2 1/2 (vS=(vr +vt ) ) relativa ao Sol e a direção do seu movimento através das suas coordenadas celestes. Para caracterizar completamente o movimento das estrelas é mais conveniente definir o sistema de coordenadas galáctico que se relaciona com o equatorial pelas equações: sen b = sen δPNG sen δ + cos δPNGcos δ cos(α - αPNG) cos b sen( lCP – l ) = cos δ sen(α - αPNG) cos b cos( lCP – l ) = cos δPNG sen δ - sen δPNGcosδ cos(α - αPNG) b l As constantes que definem galáctico para J2000 são: o sistema αPNG = 192,85948º Ascenção Reta do PNG δPNG = 27,12835º Declinação do PNG lCP = 122,932º Longitude gal. do PNC Por exemplo o centro galáctico l,b=0,0 tem coordenadas equatoriais α=17H45M37S e δ=28º56’11’’. Do ponto de vista do estudo da dinâmica da nossa galáxia o sistema galáctico de coordenadas nos permite definir o vetor velocidade (π, Θ, Z) de qualquer estrela através de suas componentes na direção do centro galáctico (π = -dR/dt), na direção tangencial ao disco (Θ = Rdθ/dt) e na direção do polo norte galáctico (Z = dz/dt) respectivamente. Na posição onde se encontra a Sol, conhecida como a vizinhança solar, podemos então definir as componentes de velocidades do nosso sistema local de repouso (LSR) tal que (π, Θ, Z)LSR = (0, Θ0, 0) onde Θ0 é conhecida como a velocidade circular do nosso sistema local de repouso. O LSR reflete na verdade o movimento médio das estrelas próximas do nosso sistema solar cujo centroide apresenta uma órbita circular relativa ao centro do via Láctea. Mas observe que o Sol não está em repouso em relação ao LSR apesar da sua posição coincidir instantaneamente com ele por definição! Na verdade o movimento peculiar (u, v, w) de qualquer estrela, inclusive o nosso Sol, é definido em relação ao LSR, como sendo, u = π - πLSR= π v = Θ - ΘLSR= Θ - Θ0 w = Z - ZLSR= Z Ao observarmos o conjunto das estrelas próximas podemos verificar então que o Sol se movimenta em relação ao movimento médio destas estrelas. Estas observações são de fundamental importância para compreender a dinâmica da via Láctea e os dados do satélite Hipparco indicam que Θ0~275±20 km/s e o Sol se movimenta em relação a este padrão com um vetor velocidade: u⊙=10±0,4 km/s, v⊙=5,2±0,6 km/s, w⊙=7,2±0,4 km/s. Nesta solução do movimento solar relativo ao LSR é preciso considerar que a distribuição de massa da Galáxia é axissimétrica e portanto quando observamos uma estrela próxima o LSR naquela posição é ligeiramente diferente da observada na vizinhança solar. A rotação galáctica naquele ponto (θ*) é distinta. Nesta situação podemos facilmente verificar que as componentes da velocidade desta estrela relativa ao sol serão U* = u* - uʘ = π* - πʘ V* = v* - vʘ = θ* - θʘ W* = w* - wʘ = Z* - Zʘ Se considerarmos o movimento médio das estrelas próximas ao sol concluimos, baseado na hipótese de axissimetria, que <u*> = <w*> = 0 . Portanto uʘ = -<U*> e wʘ = -<W*>. Para a velocidade peculiar do sol na direção tangencial temos vʘ = -<V*> + <v*>. Neste caso a determinação de Vʘ requer uma análise mais detalhada da dinâmica da rotação galáctica na vizinhança solar já que θʘ≠θ*. A solução desta análise foi obtida por Oort e consiste em mapear as variações da velocidade de rotação através do modelo descrito na seção 2.6. Observe portanto que quando examinamos o movimento das estrelas próximas relativamente ao Sol parece existir um movimento médio que é simplesmente o reflexo do movimento solar no interior da via Láctea! Se o Sol não estivesse em movimento o centroide, no diagrama ao lado, deveria estar localizado em <U>=0 e <V>=0. Uma análise desta amostra de objetos observada pelo satélite Hipparco ( Mignard, 2000 ) mostra que as propriedades cinemáticas dependem da classe espectral das estrelas. Em particular a dispersão de velocidades das estrelas do tipo mais jovem é sistematicamente menor do que o observado nas estrelas de tipo espectral mais tardio. Ou seja, o sistema composto pelas estrelas está longe da situação de equipartição de energia térmica conforme observamos nos sistemas colisionais usuais em laboratório. Esta correlação decorre de que as estrelas de tipo mais jovem surgem do meio interestelar com dispersões de velocidade relativamente baixas, características dos movimentos das nuvens interestelares no interior da galáxia. Posteriormente estas estrelas são submetidas às irregularidades do potencial gravitacional galáctico e isto faz com que elas adquiram dispersões de velocidades mais elevadas através de um processo de difusão provocado pela interação gravitacional. Total Disco fino Disco espesso Halo A cinemática das estrelas do disco na vizinhança solar também pode ser observada quando consideramos amostras do SDSS a diferentes distâncias do plano. Próximo ao plano a velocidade de rotação é mais elevada. A indicação é de que existem diferentes componentes dinâmicas no disco. Do ponto de vista químico as estrelas da nossa Galáxia se dividem em pelo menos duas populações distintas. Estas podem ser aproximadamente datadas através de um indicador de composição química conhecido como o índice de metalicidade definido por [Fe/H] = Log(NFe/NH) – Log(NFe/NH)⊙ representando uma medida da abundância de Fe na atmosfera de uma estrela comparada à abundância deste elemento na atmosfera solar. Uma estrela com [Fe/H]=0 tem uma abundância solar. Observa-se que as estrelas mais pobres em metais têm [Fe/H]~-4,5 enquanto que as estrelas mais ricas têm [Fe/H]~1. Na via Láctea, e acredita-se que o mesmo ocorra em outras galáxias, observa-se que a população do disco fino é rica em metais -0,5< [Fe/H]<0,3 e constituída de estrelas relativamente jovens (população I). Até há alguns anos atrás acreditava-se que o bojo era constituído de estrelas relativamente velhas e pobres em metais (população II). Sabe-se hoje que isto não está estritamente correto. Na região do bojo a situação parece ser bem mais complexa e encontramos tanto estrelas de baixa metalicidade, e velhas, como estrelas de metalicidade relativamente elevada ( -1,0< [Fe/H]<1,0 ). Explicar este fato é um desafio para as teorias de formação da Galáxia. A segregação cinemática observada a diferentes alturas do plano pode ser percebida, de uma forma mais clara, quando separamos as amostras por metalicidade. As estrelas mais ricas em metais, mais jovens, estão mais concentradas em relação ao plano e apresentam maior rotação em relação ao centro galáctico. Ao contrário as estrelas mais pobres em metais, mais velhas, se espalham mais uniformemente a diferentes alturas do plano e apresentam menor velocidade de rotação galactocêntrica. A dispersão de velocidades destes dois grupos é também distinta. Outra componente importante da nossa Galáxia é o sistema de aglomerados globulares onde provavelmente encontramos alguns dos objetos mais velhos e de baixa abundância química. Desde o estudo pioneiro de Shapley vários outros autores abordaram este tema. Um exemplo relativamente recente é o estudo de Harris (1976, ApJ, 81,1095) em que foram examinadas as propriedades de 111 aglomerados cuja distribuição galáctica se encontra nestas figuras. A distância média deste sistema ao centro galáctico é da ordem de 7,28 Kpc, mas vários aglomerados globulares estão mais afastados. Atualmente, com o conhecimento mais preciso da absorção interestelar, é possível verificar a concordância entre o centro da distribuição dos aglomerados e a região central da Via Láctea. O trabalho de Zinn (1985, ApJ, 293, 424) demonstra claramente como aglomerados globulares de diferentes metalicidades apresentam distribuições radiais distintas. Os aglomerados pobres em metais podem ser encontrados tanto na região central como na região externa do halo. Contudo os aglomerados relativamente ricos em metais podem ser encontrados apenas na região interna do halo. Isto indica que este sistema se formou em duas etapas. Primeiro houve um colapso em escalas de 50 Kpc que formou os aglomerados pobres em metais em todo o domínio radial. Posteriormente ocorreu um segundo colapso na região interna que deu origem aos aglomerados mais ricos em metais. Observe como o comportamento da densidade volumétrica de aglomerados globulares em função da distância radial é distinto daquele observado nas estrelas do disco! A figura acima mostra claramente como os aglomerados pobres em metais estão mais espalhados e podem ser encontrados em todas as distâncias radiais enquanto os mais ricos estão mais concentrados e restritos à região central. As características apresentadas do sistema de aglomerados globulares sugerem que o seu processo de formação pode ter ocorrido em três etapas. Na primeira, quando a nuvem protogaláctica tinha uma dimensão da ordem de 60-70 Kpc, se formaram os aglomerados pobres em metais pela contração de nuvens interestelares gigantes do porte da nuvem da Tarântula na LMC. Após alguns milhões de anos a população estelar destes aglomerados evoluiu formando supernovas que injetaram material quimicamente enriquecido no meio interestelar. Na segunda etapa parte do material já enriquecido caiu em direção à região central formando uma segunda população de aglomerados globulares mais ricos em metais que os primeiros. Na terceira etapa esta segunda geração de aglomerados evoluiu enriquecendo ainda mais o gás que colapsou dando origem à nuvem que formaria posteriormente tanto o disco como o bojo central da Galáxia. Recentemente dados do levantamento SDSS (Ivezic et al 2008, ApJ, 684, 287) permitiram o estudo da distribuição de metalicidade em cerca de 2 milhões de estrelas do tipo F/G na vizinhança local. Estes dados mostram que não apenas os aglomerados globulares mas também as estrelas se dividem em pelo menos duas grandes famílias de metalicidade correspondendo ao disco e ao halo respectivamente. A distribuição de metalicidade do halo é bastante homogênea e claramente visível a grandes distância verticais. Já no caso do disco existe uma tendência das estrelas mais distantes do plano galáctico apresentarem uma metalicidade menor do que aquela presente nas estrelas próximas ao plano. Um aspecto da maior relevância na discussão anterior é que as estruturas identificadas na Galáxia se formaram a um longo tempo no passado e ainda podem ser detectadas como tendo características distintas entre si. Estas populações não misturaram muito as suas propriedades cinemáticas. Como isso é possível? Porque a interação gravitacional sendo de longo alcance não destruiu esta organização? Segundo Chandrasekhar a explicação se fundamenta no efeito dos encontros gravitacionais que podem ser entendidos a partir do problema de dois corpos em que duas estrelas se aproximam em uma órbita hiperbólica (E>0) e a deflexão orbital é dada pelo ângulo ψ sendo Qual é a ordem de grandeza das ψ 𝑮 𝒎𝟏 + 𝒎𝟐 deflexões gravitacionais típicas 𝒕𝒂𝒏 = 𝟐 𝒃𝒗𝟎 𝟐 considerando-se uma Dependendo da deflexão podemos classificar os encontros como fracos, fortes e extremos. Por definição em um encontro extremamente forte o ângulo de deflexão é da ordem de 90º. Podemos verificar pela equação acima que dada a dispersão de velocidades das estrelas na Galáxia (~20 km/s) tais encontros ocorrem quando o parâmetro de impacto (b) é da ordem de 6,64 x 1013 cm ~ 4,44 UA. Felizmente estes encontros, capazes de destruir o nosso sistema planetário, são extremamente raros dada a separação média entre as estrelas da Via Láctea. velocidade média de 20 Km/s e separações da ordem de 2,4 pc? Como esta estimativa se modifica na região central da galáxia onde a densidade de estrelas pode ser dez vezes maior? Resumidamente podemos inferir a partir dos argumentos apresentados anteriormente algumas características da componente estelar das galáxias baseando-se nos dados típicos da vizinhança solar. Densidade típica de estrelas: n ~0,1 */pc3 Separação média: s=1/n1/3 ~2,2 pc ~4,5x105 UA Velocidade quadrática média em relação ao padrão local de repouso: σv ~20 km/s Nas condições da vizinhança solar resumidas acima a deflexão média esperada é Ψ ~ 2 segundos de arco de fato muito reduzida. Estes são encontros do tipo fraco incapazes de afetar as características cinemáticas das estrelas em um único evento. Ocorre que estes são os encontros mais frequentes e a sua taxa de ocorrência é muito maior que os encontros fortes capazes de mudar drasticamente as órbitas das estrelas. Por este motivo não ocorre o colapso generalizado da distribuição estelar como imaginava Newton! Em outras palavras as constantes de movimento que determinam a órbita de uma dada estrela na Galáxia (Lz, E) se mantém praticamente inalteradas garantindo a estabilidade destas órbitas estelares. A variação de brilho superficial nas galáxias é de no máximo 10 magnitudes entre as regiões centrais e a periferia. Qual deve ser o efeito sobre a densidade local de estrelas? E sobre a separação entre elas? Visto sob um outro prisma podemos considerar que os encontros próximos entre estrelas ocorrem quando o parâmetro de impacto é da ordem de p = 4UA, de tal maneira que a deflexão angular é da ordem de 90º. Podemos então podemos concluir que tais eventos ocorrem em uma escala de livre caminho médio, λ=1/πp2n e consequentemente a escala de tempo para que ocorram estas interações deve ser t= λ/ σv Utilizando as estimativas acima concluímos que para esta classe de encontros t >> tH~1010 anos. Ou seja o gás de estrelas das galáxias é essencialmente não colisional no sentido de que apenas muito raramente ocorrem encontros capazes de alterar drasticamente a órbita das estrelas. Por este motivo as estrelas nascem com parâmetros cinemáticos que se mantém praticamente constante durante a idade do Universo. O corolário é que as estruturas cinemáticas que observamos hoje são praticamente as mesmas de quando as estrelas surgiram na Galáxia e por isso podemos perceber tão claramente a distinção entre estrelas do bojo e do disco. p λ Estime a escala de tempo de interação forte entre estrelas nas galáxias. Qual seria a densidade mínima necessária para que os encontros passem a ser importantes? Será que estas densidades são atingidas nas regiões centrais de galáxias? E nos aglomerados globulares? O fato do fluido formado pelas estrelas ser não colisional é essencial para entender a permanência das componentes formadas pelo bojo, disco e halo. Estas estruturas se comportam de forma totalmente diversa do que por exemplo a fumaça no nosso ambiente. A estrutura formada pela fumaça é transitória devido ao efeito das colisões das suas moléculas com o ar ambiente. Gradualmente a estrutura perde coerência e se dissipa. No caso das galáxias, ao contrário, o fluido é não colisional e as estruturas uma vez formadas se mantém durante longos intervalos de tempo. Os encontros distantes entre estrelas provocam apenas pequenas modificações seculares que atuam em escalas de tempo muito longas. Portanto a forma observada das galáxias deve ser explicada por processos ocorridos durante a sua formação. tcol ~ seg tcol >> 1010 anos 2.3 O Disco Galáctico A estrutura do disco da Galáxia pode ser diretamente estudada a partir das contagens de estrelas tanto na direção radial como na direção vertical. A estrutura do disco estelar da Via Láctea é relativamente complexa devido à presença dos braços espirais. Se por um momento ignorarmos as irregularidades devido a este efeito podemos observar que a densidade de estrelas no disco é muito maior nas regiões centrais do que nas regiões periféricas. Uma boa aproximação consiste em adotar a relação do assim chamado disco exponencial n(r) =n0 exp(-r/rd) Onde rd~3,5 Kpc. Considere que a densidade de estrelas da população disco na vizinhança solar é da ordem de n~0,2 */pc3 e que estamos a uma distância r~8 Kpc do centro galáctico. Qual deve ser a densidade de estrelas do tipo disco na região central da via Láctea? Como vimos anteriormente o diagrama HR do disco galáctico na vizinhança solar apresenta uma população rica em estrelas da sequência principal. Sabemos que estas estrelas obedecem à uma relação massa-luminosidade aproximada L*/L⊙= (M/M⊙)α sendo α~4 para as estrelas mais massivas que 0,5 M⊙ e α~2,3 para as estrelas menos massivas. Acreditase, através de contagens de estrelas, que o disco da Galáxia tenha uma luminosidade total da ordem de LB~(2,5±1)x1010 L⊙ e uma massa total Md~(4,5±0.5)x1010M⊙. Portanto concluímos que a razão massaluminosidade deve estar contida na faixa f=(M/L)d ~ (1,1-3,3)M⊙/L⊙ e grosseiramente a massa típica das estrelas do disco que reproduzem esta razão massa-luminosiadde devem se situar na faixa M* =f 1/(1-α) M⊙ ~ (0,7-1,0) M⊙ . A distribuição das estrelas na direção vertical ao disco galáctico guarda uma certa semelhança com o problema do equilíbrio hidrostático do gás na atmosfera terrestre. Se substituirmos as moléculas do gás pelas estrelas do tipo espectral i, por exemplo, estas estão distribuídas com uma densidade de massa ρi no plano do disco em z=0. O movimento randômico destas estrelas tem uma amplitude quadrática média vzi ao longo da direção z. Portanto a “pressão” associada a este movimento é Pi=ρivzi2. Numa situação estacionária o mesmo número de estrelas que cruzam o plano para cima deve ser idêntico ao número de estrelas que descem cruzando para a parte inferior do plano. Neste movimento de oscilação vertical a “pressão” cinética parcial associada a este movimento deve ser equilibrada pelo “peso” por unidade de área devido à gravidade associada ao plano da galáxia (gz). Sendo δz a escala de altura desta oscilação o “peso” por unidade de área desta coluna de estrelas será ρigzδz. Portanto a condição de equilíbrio hidrostático implica em que δ(ρiVzi2) = gz ρiδz Particularmente se considerarmos um cilindro cuja base está assentada no plano do disco e com uma altura hi longa o suficiente para conter as estrelas de tipo i então temos aproximadamente que σ2zi~gzhi ou seja as estrelas com maior dispersão de velocidades devem alcançar alturas mais elevadas em relação ao plano do disco. Como vimos antes as estrelas gigantes do tipo K apresentam uma dispersão de velocidades da ordem de 17 km/s cerca de duas vezes superior à dispersão associada às estrelas do tipo A de sequência principal ( ~9 km/s). Por este motivo a escala de altura das estrelas do tipo K é cerca de quatro vezes maior. Mais precisamente podemos escrever a relação anterior na sua forma diferencial 𝟏 𝒅 ρ𝒊 𝒅𝒛 ρ𝒊𝒗𝟐𝒛𝒊 = - 𝒅Φ 𝒅𝒛 onde utilizamos o fato de que a aceleração gravitacional do disco deriva de um potencial gravitacional. Por outro lado este potencial gravitacional obedece a equação de Poisson e no caso de um disco o termo dominante no laplaciano é a derivada na direção vertical d2Φ/dz2 = dgz/dz~4πGρ onde ρ reflete a densidade de massa total e portanto 𝒅 𝟏 𝒅 ρ𝒊𝒗𝟐𝒛𝒊 𝒅𝒛 ρ𝒊 𝒅𝒛 = −𝟒π𝑮ρ A equação anterior mostra que o estudo da cinemática das estrelas do disco pode nos indicar o valor da densidade total de matéria que determina a aceleração gravitacional ortogonal ao disco galáctico. Esta densidade é conhecida na literatura como o limite de Oort e o seu valor estimado atualmente é ρ=0,18 M⊙/pc3. Por outro lado o inventário das estrelas presentes na vizinhança solar mostra que as estrelas visíveis apresentam uma contribuição em massa quase equivalente àquela presente na componente gasosa. Os remanescentes estelares por sua vez apresentam uma contribuição menor. Somando-se estas três componentes obtemos uma densidade total da ordem de 0,114 M⊙/pc3. Portanto para atingir o limite de Oort é necessário acrescentar uma quantidade de matéria escura equivalente a cerca de 0,07 M⊙/pc3, cuja principal característica neste ponto da discussão consiste em não emitir fóton, caso contrário teria sido observada. Observe que considerando uma estrela típica como tendo 1 M⊙ =2x1033g obtemos uma densidade de estrelas que corresponde a uma separação média entre elas de L=n-1/3 ~ 2,40 pc. Componente Densidade volumétrica (M⊙/pc3) Estrelas visíveis 0,044 Remanescentes estelares 0,028 Gás 0,042 Outros 0,07 Total 0,18 Considerando que a velocidade de agitação térmica entre as estrelas é da ordem de 20 Km/s quanto tempo uma estrela típica demora para percorrer uma distância equivalente à separação média entre elas. 2.4 O Bojo Galáctico O bojo da Galáxia é uma estrutura que se estende a uma distância da ordem de 1-2 Kpc na direção do polo galáctico e é melhor observada no infravermelho próximo evitando-se assim os efeitos da absorção interestelar. Ao contrário do disco que mostra uma clara estrutura exponencial o bojo galáctico tem um perfil de densidade que varia mais fortemente com a distância. A maior parte das estrelas do bojo são relativamente velhas (> 109 anos) cobrindo um intervalo de metalicidade (-1<[Fe/H]<0,5). A presença de estrelas com esta gama de metalicidade indica que a formação do bojo não pode ter ocorrido em um único episódio, como se pensava no passado. Como se vê na figura ao lado a densidade espacial de estrelas no bojo é aproximadamente descrita pela expressão n(r) = n0 (r/r0)-3.5 A luminosidade total do bojo da Galáxia é da ordem de 1,1x1010 L⊙. Comparando-se esta estimativa com aquela do disco podemos concluir que a razão entre as luminosidades do bojo e do disco é Lbojo/Ldisco~0,25. Além da diferença entre as distribuições espaciais existe uma distinção fundamental entre os movimentos estelares no bojo e no disco. No disco as estrelas apresentam órbitas seguindo um padrão de epiciclos superposto ao movimento de rotação, sem se afastarem muito da distância radial média. Já no bojo o padrão de velocidades é aproximadamente radial. Em um dado instante uma estrela pode ser encontrada, ou próxima ao centro (pericentro), ou bastante distante dele (apocentro). Esta diferenciação cinemática aponta para uma distinção entre os mecanismos que levaram à formação do bojo e do disco. Você seria capaz de imaginar um cenário de colapso da protogaláxia capaz de explicar esta diferenciação cinemática? A população estelar do bojo é muito mais difícil de ser aferida do que a do disco. Primeiro porque estamos mais distantes em uma região dominada pelo disco. E também porque ao observar na direção do bojo temos uma absorção interestelar muito forte. Felizmente em algumas regiões na direção do bojo a absorção é relativamente menor. Uma delas é a chamada Janela de Baade (l=1º, b=-3,9º ) ilustrada ao lado pelo levantamento 2MASS. A análise de Ng et al (1996, AA, 310, 771) nos dá uma ideia da complexidade estrutural encontrada nesta região como mostra o diagrama HR ao lado. Em (A) temos as estrelas da sequência principal do disco jovem projetadas na direção do bojo central. Em (B) as estrelas do disco no ramo horizontal HB. Em (C) temos um conjunto de estrelas do ramo horizontal das gigantes RHB. O grande alargamento desta região se deve às diversas metalicidades das estrelas do bojo. Em (D) temos a região RGB. A região (E) contém as estrelas de várias populações mais débeis que V=19 mag. Finalmente a região (f) marca o turn-off das estrelas do disco velho. f Os autores consideraram que o bojo contem uma mistura de populações com diferentes idades (t) e metalicidade (z): 1- Estrelas do halo, t~10-16 Ganos, z=0,004-0,005. 2- Estrelas do bojo, t~ 13-16 Ganos, z=0,004-0,06. 3- Estrelas do disco velho, t~10-16 Ganos, z=0,003-0,008. 4Estrelas do disco intermediário, t~4,5-7 Ganos, z=0,008-0,015. 5- Estrelas do disco jovem, t~2-5 Ganos, z=0,015-0,020. Cada uma destas populações teve o seu diagrama HR sintetizado e no final comparado com as observações. Nas figuras ao lado temos representado as contribuições atribuídas ao disco projetada na linha de observação do bojo. Disco muito Jovem Disco intermediário Disco Jovem Disco velho Halo HB AGB K0-K5 III MS Disco espesso RGB Acima mostramos a população que pertence ao bojo e que contem objetos das várias fases evolutivas. O círculo verde indica as estrelas do tipo KIII que mesmo em menor número têm uma contribuição dominante para a luminosidade do bojo. 2.5 Região Nuclear Nos últimos anos tivemos acesso observacional mais preciso a detalhes da região nuclear da Galáxia existindo fortes argumentos para se acreditar que ali existe um buraco negro supermassivo à semelhança do que ocorre em outras galáxias. Há vários anos existia a suspeita sobre a presença deste buraco negro massivo no centro da via Láctea. Mas só muito recentemente é que a observação direta dos movimentos orbitais de estrelas próximas revelaram que a massa deste objeto é da ordem de MBH~2,6x106 M⊙. Estime a velocidade circular média de uma estrela localizada a 2 diasluz do BH da nossa Galáxia. Qual deve ser o período orbital desta estrela? Este é um tema de muito interesse já que inúmeras outras galáxias mostram evidências de buracos negros massivos em seus núcleos. Na verdade acredita-se que a massa dos maiores buracos negros em galáxias externas possa atingir cerca de 109 M⊙. Acreditase que no curso da sua evolução as galáxias passaram por uma fase em que os seus buracos negros centrais capturavam uma vasta quantidade de gás e emitiam uma enorme quantidade de energia que observamos hoje como sendo os objetos chamados de quasares. 2.6 Rotação Galáctica Como suspeitava Kant o disco da Via Láctea está em rotação. O grande problema, no entanto, consiste em demonstrar e quantificar este fato através das observações. Como vimos anteriormente as estrelas próximas apresentam relativamente ao Sol uma velocidade, vS , com componente radial, vr , e componente transversal à linha de visada, vt. Estas duas componentes da velocidade relativa decorrem da diferença entre a velocidade de rotação do LSR, Θ0, e na posição da estrela, Θ(R), conforme ilustra a figura abaixo. A partir da figura anterior podemos verificar que, Vr=Θ(R) cos α - Θ0 sen l Vt=Θ(R) sen α - Θ0 cos l A cada distância radial R podemos definir uma velocidade angular local tal que Ω(R) =Θ(R)/R E portanto as duas relações anteriores podem ser reescritas como Vr=ΩR cos α - Ω0R0sen l Vt=ΩR sen α - Ω0R0cos l Através do arranjo geométrico da figura anterior podemos inferir as relações R cos α = R0sen l R sen α = R0cos l - d E substituindo nas relações anteriores obtemos Vr = (Ω-Ω0)R0sen l Vt = (Ω-Ω0)R0cos l - Ωd Estas relações podem ser invertidas e nos permitem obter as estimativas da velocidade angular de rotação, Ω(R), para cada camada radial na vizinhança solar. Nos anos de 1950 o astrônomo Jaan Oort apresentou uma relação aproximada que nos permite entender fisicamente o comportamento da rotação galáctica na vizinhança solar. O ponto de partida consiste em desenvolver a velocidade angular de rotação em uma série de Taylor Ω(R) = Ω0+(dΩ/dR)0 (R-R0) + ... Como Ω=Θ/R esta relação pode ser reescrita como Ω-Ω0~1/R0 [(dΘ/dR)0-Θ0/R0] (R-R0)+ ... Desta forma as relações anteriores podem ser reescritas na forma vr~ [ (dΘ/dR)0 - Θ0/R0] (R-R0) sen l vt~ [ (dΘ/dR)0 - Θ0/R0] (R-R0) cos l –Ω0d Pela figura do arranjo geométrico inicial podemos concluir ainda que R0 =d cosl +R cosβ ~d cosl + R Podemos definir agora as duas constantes de Oort A=-1/2[(dΘ/dR)0-Θ0/R0] B=-1/2[(dΘ/dR)0+Θ0/R0] Utilizando estas definições obtemos finalmente vr~Ad sen 2l vt~Ad cos 2l + Bd Que nos indicam como obter as constantes A e B a partir dos dados cinemáticos de estrelas próximas. Conhecendo-se A e B podemos finalmente estimar a velocidade local de rotação e a derivada do campo de velocidade Ω0=A-B (dΘ/dR)0= -(A+B) Os valores mais recentes indicam que A=(14,4 ± 1,2) km/s/kpc B=( -12 ± 2,8) km/s/kpc E em consequência a velocidade angular de rotação na vizinhança solar deve ser Ω0 =26,4 km/s/kpc Correspondendo, para uma distância ao centro galáctico R0=(8,5±1.1)kpc à velocidade de rotação Θ0=224,4 km/s Nas regiões mais afastadas do Sol, mas dentro do círculo solar, é possível determinar a curva de rotação através de observações espectroscópicas na linha 21cm do hidrogênio neutro. Estas nuvens podem ser observadas em regiões relativamente distantes ao longo de uma dada longitude galáctica, l. Ademais podemos perceber que a velocidade relativa (verde) destas nuvens decorre da diferença entre a projeção da velocidade da nuvem (azul) e Vmax do próprio movimento solar ao longo da linha de visada. Ao examinar o espectro na região de 21cm, ilustrado ao lado, verifica-se que a velocidade radial, vr é máxima no ponto c, a uma distância Rmin=R0senl do centro galáctico. Estas são as observações mais precisas da curva de rotação galáctica. Na figura ao lado temos um mapa do hidrogênio neutro obtido através de observações na linha de 21cm. Apesar de estar distribuído em todo o disco galáctico podemos observar a clara presença de uma estrutura de nuvens que possibilita a obtenção dos dados cinemáticos da nossa galáxia (Oort et al, 1958, MNRAS, 118, 379). Os resultados desses estudos mostram que o disco da via Láctea apresenta de fato um movimento coordenado de rotação que pode ser facilmente detectado. Próximo da região solar observa-se que em média o sistema local de repouso se movimenta em torno do centro da via Láctea com uma velocidade de rotação da ordem de 220 Km/s. Analisandose os movimentos estelares a diferentes distâncias do centro constata-se que este padrão de rotação é obedecido em toda a extensão do disco indicando que esta componente deve estar em equilíbrio de rotação. O fato da velocidade de rotação se manter aproximadamente constante é uma das principais evidências em favor da presença de uma grande quantidade de matéria escura na Galáxia. Merrifield, 1992, AJ, 103, 1552 Acredita-se que a velocidade circular de rotação se mantenha constante mesmo quando nos afastamos do círculo solar. Isso é exatamente o que ocorre em várias galáxias próximas que tem sido observadas através da emissão de 21 cm do Hidrogênio neutro. No caso da nossa Galáxia a verificação direta deste fato é complicada pela nossa localização em relação ao disco que dificulta a interpretação das observações. Supondo que a velocidade circular de rotação (V) se mantenha relativamente constante obtemos através da condição de equilíbrio gravitacional para uma partícula de teste de massa m* a relação m*V2/R ~Gm*Mhalo/R2 onde Mhalo indica a massa contida no halo de matéria escura. A relação acima implica em que a massa do halo deve ser proporcional ao seu raio (R) Mhalo ~V2R/G Mas como o halo tem uma massa finita fica óbvio que o mesmo deve ter uma extensão limitada. Caracterizar as dimensões e massas deste halo de matéria escura em torno das galáxias é um dos grandes desafios atuais. 2.7 Problemas 1. A velocidade de rotação na vizinhança solar é da ordem de 220 km/s. Estime o período de rotação galáctica e quantas vezes o Sol circulou a Galáxia. Sabendo que a nossa distância ao centro é R0~8,0 kpc estime a massa interior ao raio galactocêntrico solar utilizando a lei de Kepler. 2. Mostre que a equação correta para descrever as distâncias das estrelas no modelo de Kapteyn deve ser d=10 (m-M-Aλ+5)/5 onde Aλ é a absorção interestelar. 3. A partir das imagens do satélite COBE estime a dimensão angular aproximada do bojo e use a distância ao centro galáctico para estimar a sua dimensão linear. 4. Sabendo que a densidade média em estrelas na vizinhança solar é da ordem de 0,044 M⊙/pc3 e supondo a maioria destas tem massa próxima da massa solar estime quantas estrelas devem existir na região amostrada pelo satélite Hipparcos. 5. Uma estrela típica do disco fino tem dispersão de velocidade na direção vertical da ordem de 30 km/s. A cada período de rotação galáctica quantas oscilações verticais uma estrela completa no disco? 6. O aglomerado estelar M13 tem coordenadas galácticas l=59º, b=40,9º e a sua distância é d=7 kpc. Estime a sua altura em relação ao plano da Via Láctea. A qual população estelar pertence este objeto? M13 7. A nebulosa de Orion tem coordenadas galácticas l=209,1º , b=-19,4º e a sua 8. 9. 10. 11. 12. 13. distância é 450pc. Qual a altura deste objeto em relação ao plano galactico e a qual população estelar pertence? Utilize os dados de velocidades das estrelas próximas do satélite hipparco para estimar a velocidade de escape da vizinhança solar. Com base nesta informação estime a massa da nossa Galáxia. Mostre que caso a nossa Galáxia tivesse uma curva de rotação kepleriana no círculo solar deveríamos esperar que as constantes de Oort tivessem os valores A = 3/4 Θ/R B =-1/4 Θ/R = -A/3 Com base nas medidas de A e B prove que não podemos estar nesta situação. Mostre que no caso de uma curva de rotação plana deveríamos ter A=-B. Face as estimativas de A e B você acha que esta hipótese é sustentável? No slide da próxima página apresentamos alguns dos dados da emissão em 21 cm utilizados por Shane & Bieger-Smith (1966, BAN, 18, 263) para levantar a curva de rotação interna da Galáxia. Escolha algumas direções de longitude galáctica e estime você mesmo a curva de rotação da via Láctea. Considere duas partículas de teste orbitando a cerca de 8 e 16 Kpc respectivamente. Qual deve ser a razão entre as massas a que cada uma destas órbitas responde. Quantos períodos de rotação estas estrelas completaram durante a idade da Galáxia? Qual seria a massa do halo da via Láctea supondo que o mesmo se estende até cerca da metade da distância entre nós e LMC (d~70 Kpc)? 14. Mostre que as constantes de Oort podem ser também definidas pelas expressões A= -R/2 dΩ/dR B=-1/2R d/dR(R2Ω) 15. Demonstre a equação que define o limite de Oort utilizando a equação de Gauss aplicada ao fluxo de campo gravitacional de uma massa distribuída em um disco infinitamente fino. 16. Com base na imagem da Galáxia no infravermelho próximo estime a dimensão angular do bojo galáctico. Utilize as estimativas da distância do Sol ao centro galáctico para estimar a dimensão aproximada do bojo. 17. A nuvem molecular Barnard 68 tem uma dimensão radial aproximada de 0,25 anosluz. A densidade média da nuvem pode ser deduzida a partir da observação das linhas moleculares presentes no objeto e as indicações são de que n~2,5 x105 atomos/cm3. Estime a massa deste objeto e compare com a massa solar. Como se compara a dimensão desta nuvem com a dimensão do sistema solar? 18. Uma estrela do tipo B0, cuja magnitude absoluta é MV=-4,0 é observada com uma magnitude aparente V=8,2. Qual seria a distância deste objeto se desprezarmos a absorção interestelar? Suponha agora que a absorção interestelar média na direção deste objeto seja cerca de 1mag/kpc. Qual seria a distância correta? Qual seria o erro cometido por ignorar a absorção interestelar? 19. A partir da equação de equilíbrio hidrostático da distribuição de estrelas do disco 𝒅 𝟏 𝒅 ρ𝒊𝒗𝟐𝒛𝒊 = −𝟒π𝑮ρ 𝒅𝒛 ρ𝒊 𝒅𝒛 mostre que se considerarmos que a distribuição vertical de densidade é aproximadamente constante e dominada pela matéria escura e que a dispersão de velocidades é aproximadamente constante então a distribuição de equilíbrio das estrelas de um determinado tipo espectral i é dada por 𝒛 𝟐 𝝆𝒊 = 𝝆𝒐𝒊 𝒆𝒙𝒑 − 𝒉 Sendo 𝒗𝒛𝒊 𝒉= 𝟒𝝅𝑮𝝆 𝟏/𝟐 20. Quais são as coordenadas galácticas do polo norte celeste. 21. As coordenadas equatoriais do aglomerado globular ω Centauri são 13h26m45,89s e -47º28’36,7 . Quais são as suas coordenadas galácticas? Qual é a sua altura em relação ao plano da Galáxia. Qual é a sua distância radial projetada no disco. 22. Supondo que o disco estelar da via Láctea se estenda até a região central estime qual deve ser a razão entre a densidade central e a densidade periférica a 20 kpc de distância. A que você atribui esta diferença? Cap. 2 Cap. 3