Visualiza - Dialogarts

Propaganda
Caderno Seminal Digital – Vol 1 – Nº 1 – 1. (Jan/Jun-2004). Rio de Janeiro:
Dialogarts, 2004.
ISSN 1806-9142
Irregular
1. Lingüística Aplicada– Periódicos. 2. Linguagem – Periódicos. 3. Literatura Periódicos. I. Título: Caderno Seminal Digital. II. Universidade do Estado do
Rio de Janeiro.
CONSELHO CONSULTIVO
André Valente (UERJ-FACHA)
Ângela Lopes (UniverCidade-RJ)
Carmen Lúcia Tindó (UFRJ)
EDITORA
Darcilia Simões
COMISSÃO EXECUTIVA
Flavio Garcia
Cláudio Cezar Henriques
Claudio Cezar Henriques (UERJ-UNESA)
Darcilia Simões (UERJ)
Edwiges Zaccur (UFF)
Flavio Garcia (UERJ)
Flora Simonetti Coelho (UERJ)
José Luís Jobim (UERJ-UFF)
José Carlos Barcellos (UERJ-UFF)
Luís Flavio Sieczkowski (UniverCidade-RJ)
EQUIPE DE DIAGRAMAÇÃO E REVISÃO
Carla Barreto Vasconcellos (EIC)
Renata Gonçalves da Silva (EXT)
Viviane Souza de Oliveira (EXT)
PROJETO DE CAPA
Darcilia Simões
LOGOTIPO:
Rogério Coutinho
Magnólia B. B. do Nascimento (UFF)
Maria Leny H. de Almeida (UERJ)
Maria Teresa G. Pereira (UERJ)
Milton Marques Júnior (UFPe)
Nícia Ribas d’Ávila (Paris VIII)
Sílvio Santana Júnior (UNESP)
Valderez H. G. Junqueira (UNESP)
Vilson José Leffa (UCPel-RS)
Endereço para envio de trabalhos
UERJ/IL- A/C Profa. Dra. Darcilia Simões
R. São Francisco Xavier, 524, sala 1139-F,
Maracanã, Rio de Janeiro, RJ,
CEP 20.559-900
contatos:
Publicações Dialogarts é um projeto
de Extensão da UERJ do qual participam
Instituto de Letras (Campus Maracanã) e a
Faculdade de Formação de Professores
(Campus São Gonçalo). O objetivo deste
projeto é promover a circulação da produção
acadêmica de qualidade, com vistas a facilitar
o relacionamento entre a Universidade e o
contexto sociocultural em que está inserida.
O projeto teve início em 1994 com
publicações impressas. Em 2004, inaugura as
produções digitais com vistas a recuperar a
ritmo de suas publicações e ampliar a
divulgação.
Visite nossa página:
http://www.darcilia.simoes.com
[email protected]
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
1
APRESENTAÇÃO
O Caderno Seminal é antes de tudo um forte!
Nos seus 11 anos de vida, o Caderno Seminal tem atravessado sucessivas crises.
As dificuldades socioeconômicas nacionais se refletem perversamente sobre as
Universidades, e os projetos acadêmicos vêm lutando para se manterem ativos e
atingirem seus objetivos.
Assim vem sendo a trajetória do Caderno Seminal. A despeito da demanda de
artigos de excelente qualidade e da cobrança dos lançamentos por parte do públicoleitor, a equipe de produção do Projeto Publicações Dialogarts, que produz o Caderno
Seminal, tem sofrido altos e baixos. Antes, lutava-se com a redução do número de
bolsistas; hoje, aumentado o número de bolsistas (são 3 atualmente), atravessam-se as
dificuldades de: espaço para trabalhar, máquinas, papel para impressão, gráfica em
funcionamento precário etc. Até o treinamento na editoração eletrônica é realizado pelos
docentes que lideram o projeto.
No entanto, sobrevivemos! Eis o Caderno Seminal Digital, o que supomos
resolverá não só a questão da periodicidade, mas sobretudo a divulgação em ampla
escala com o auxílio da poderosa INTERNET.
Agradecemos a todos que vêm confiando em nosso trabalho e reativamos a
chamada para apresentação de artigos, cujas normas se encontram disponíveis na última
página de cada volume.
O critério de aceitação dos trabalhos é único: QUALIDADE!
Por isso, juntem-se a nós todos os colegas professores-pesquisadores e
estudantes de pós-graduação (lato e stricto sensu) e venham distribuir democraticamente
suas descobertas.
Alvíssaras!
Junho, 2004
Os Editores
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
2
SUMÁRIO
FONOLOGIA, ESTILO E EXPRESSIVIDADE ....................................................... 4
Darcilia Simões e Aira Suzana R. Martins (UERJ_CPII) ........................................... 4
A ORTOGRAFIA NO TEXTO INFANTIL ............................................................ 20
Elizabeth Bessa de Mattos – UERJ.......................................................................... 20
O GÓTICO “MASCULINO” E A TESE DO FEMININO COMO DESTRUIÇÃO
EM A LUZ NO SUBSOLO, DE LÚCIO CARDOSO ............................................... 28
Fernando Monteiro de Barros (UERJ) ..................................................................... 28
REFLEXÕES SOBRE PROCESSAMENTO DE SENTENÇAS............................. 46
Sandra Pereira Bernardo (UERJ / PUC-Rio)............................................................ 46
CESÁRIO VERDE, FLAGRANTES DE UM POETA CINEGRAFISTA ............... 72
Regina Silva Michelli (UERJ) ................................................................................. 72
FUNÇÕES SEMÂNTICAS DOS TERMOS ESSENCIAIS DA ORAÇÃO............. 87
Manuel Ferreira da Costa (UERJ) ........................................................................... 87
A VERSATILIDADE LINGÜÍSTICA DE ALDIR BLANC ................................. 105
Lúcia Deborah Araújo (UNESA/ UERJ) ............................................................... 105
UMA VIAGEM AO ESTILO DE O BÚFALO...................................................... 120
Cláudio Artur de O Rei (UERJ-UNESA) .............................................................. 120
A FONOLOGIA NO DIA-A-DIA: SUGESTÕES DE TRABALHO PARA O
PROFESSOR........................................................................................................ 136
Claudia Moura da Rocha (UERJ) .......................................................................... 136
NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE ARTIGOS........................................... 149
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
3
FONOLOGIA, ESTILO E EXPRESSIVIDADE1
Darcilia Simões e Aira Suzana R. Martin2s (UERJ_CPII)
1) INTRODUÇÃO
A camada fonológica das línguas sempre foi objeto de estudo dos iniciados. O
usuário comum não presta atenção no material fonêmico com o qual opera, e o ensino
da língua sempre reduziu o estudo fonológico à classificação dos sons. Os estudos
superiores da língua ocupam-se da camada fônica, contudo, ainda está bastante restrito o
espaço reservado aos estudos fonológicos, uma vez que não se tem explorado
suficientemente o valor expressivo-impressivo dos sons de modo a tornar seu estudo
mais atraente. Observada a camada fônica da língua como objeto de beleza e riqueza,
seu estudo acaba por tornar-se mais produtivo. O pesquisador passa a alargar a visão do
objeto, não apenas como unidade sonora ou unidade mínima distintiva, mas como
ingrediente da produção textual, integrante do seu potencial significante e potente na
construção da semiose textual.
2) A ICONICIDADE NA CAMADA FÔNICA.
Como anunciamos no resumo, nossa abordagem pauta-se na semiótica norteamericana de Charles Sanders Peirce; e a teoria da iconicidade é por nós aplicada no
sentido de captar nos textos as marcas sígnicas, que podem conduzir o leitor à
mensagem básica lá inscrita. Nessa ótica, tomamos os fonemas da língua como signos
sonoros (verbais vocais) representáveis na escrita, cuja combinação dá origem a novos
signos sonoros mais complexos (sílabas, vocábulos, grupos de força, etc.), passíveis de
uma análise a que chamamos fonossemiótica, ou seja, uma interpretação por meio da
qual os fonemas (ou outra unidade fônica superior) sejam observados em seu potencial
icônico ou indicial.
1
Comunicação apresentada, com o título Fonologia em nova chave, no II Seminário Internacional de
Fonologia ─ PUC/RS, em 15/04/2002.
2
Aira Suzana R. Martins é doutoranda em Letras na UERJ e docente do Colégio Pedro II.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
4
Observe-se o que dizem Simões3 & Martins acerca de ícone e índice:
O ícone, ligado à primeiridade, representa formas e sentimentos, tendo, por
isso, alto poder de sugestão. Existe, nessa categoria, similaridade entre
representâmen e objeto. São exemplos de ícones as pinturas, os diagramas,
as fórmulas algébricas e as metáforas.
O índice pertence à categoria da secundidade pelo fato de estabelecer uma
relação de causalidade, temporalidade e espacialidade entre o representâmen
e o objeto. Podemos reconhecer como índices o cata-vento, um grito de
socorro, os nomes próprios, os pronomes pessoais e as metonímias.
Para esclarecer, lembramos que, na perspectiva peirceana, o signo é constituído
de três elementos (cf. Simões & Henriques4, 2002:25):
Segundo Peirce5, um signo é um signo quando há alguém que possa
interpretá-lo como signo de algo. Assim, um signo (ou representâmen), ao
criar na mente de alguém um signo equivalente ou mais elaborado (no
sentido do desenvolvimento), estará criando um interpretante, e a coisa
representada recebe a designação de objeto. É isso que forma a relação
triádica de signo.
No nível fônico, a produção de ícones e índices se faz por meio do potencial
expressivo ou impressivo resultante das escolhas fonemáticas. Em nossos estudos,
temos privilegiado o texto rosiano porque, para nós, Guimarães Rosa talvez seja o autor
que mais tem provocado o estranhamento no receptor, reação tão esperada pelo artista
do mundo contemporâneo (cf. Simões & Martins, 2001).
Em um trabalho intitulado, A construção fono-semiótica dos personagens de
“Desenredo” de Guimarães Rosa6, Simões demonstrou a virtualidade fonêmica
construída por Rosa, vejamos:
O PAPEL DAS CONSOANTES.
A primeiro personagem a aparecer é JÓ JOAQUIM que traz em seu
nome a reiteração da figura de JÓ a partir da repetição dessa sílaba. Contudo, a
3
(In SIMÕES, Darcilia & Aira Suzana R. MARTINS. “Tresaventura”: a trindade do conhecimento na
narrativa sertânica, na II Seminário Internacional sobre Guimarães Rosa, PUC-MINAS, ago-2001):
4
SIMÕES, Darcilia & Cláudio Cezar HENRIQUES, A produção de trabalhos acadêmicos. Rio de
Janeiro, 2002 – no prelo)
5
Apud FERRARA, Lucrécia D´Aléssio. A estratégia dos signos. São Paulo: Perspectiva. 1986 [fl.66]
6
Apud 1997- Revista Philologus -set-dez/97 (distribuída em mar/1998)- 67-81 ); disponível na
INTERNET www.filologia.org
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
5
metafonia presente serve de índice para as nuanças de diferenciação detectáveis
no “novo Jó”: JÓ /ó/ JOaquim /o/
Observe-se que pela própria ordem de apresentação no segmento fônico—
em primeiro lugar aparece o homógrafo /z,ó/, conforme o mito judaico que
remonta aos primórdios da História—vê-se um Jó diferente, inclusive com
prenome duplo. E esse nome apresenta uma estrutura silábica complexa,
porém, do tipo cV—livre, destravada, aberta, como era o JÓ bíblico em seu
comportamento.
A transformação do JÓ num outro se anuncia com o fechamento do timbre
da vogal posterior média; e se consolida na incorporação de mais uma sílaba
àquela. Um segmento fônico mais extenso e de estrutura fônica mais
complexa -- /kiN/-- se liga a /z,ó/ por intermédio de uma sílaba do tipo V -/a/, formando o nome composto: JÓ JOAQUIM, cuja transcrição fonológica
é a seguinte: /z,ó/ /z,o a ‘kiN/.
Essa estrutura sugere possíveis alterações
compararmos os dois jós: o bíblico e o rosiano.
de
comportamento
se
Como é possível depreender do transcrito, a autora procedeu à análise do conto a
partir dos seus personagens, e à análise destes a partir de seus nomes, ou da
configuração fonológica dos mesmos.
Nessa ótica, percebe-se uma análise semiótica – o fonema como signo – fundada
numa descrição funcionalista dos componentes fônicos dos significantes.
3) A DESCRIÇÃO FONÊMICA NUM PRISMA FUNCIONAL
Como se viu no excerto da análise de “Desenredo”, os valores fônicos são
deduzidos (ou induzidos) com base na estrutura do vocábulo e, por conseguinte, da
localização do fonema, do que resultam suas funções e valores. As funções podem ser
definidas segundo o tipo de análise em realização. Em nosso caso, buscamos funções
semióticas e estilísticas que nos permitam perscrutar os signos e tentar desvendar o
caminho percorrido pelo enunciador na construção do texto.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
6
Segundo esta ótica, a estruturação fônica da Língua Portuguesa ─ fonemas,
sílabas e acentos ─ podem ser tomados como ícones ou índices, porque se prestam a
representar a força expressional ou recurso impressivo que atuam sobre o receptor do
texto e o conduzem durante a leitura (facilitando-lhe ou dificultando-lhe a
interpretação). Por meio do levantamento das qualidades fônicas e de seus valoresfunções expressivos e impressivos, buscamos propor uma leitura para o conto Meu tio,
o Iauaretê. Focalizando, sobretudo a onomatopéia e a sugestão. Em nossa análise,
procuramos apontar metaplasmos funcionais ─ os que decorrem da participação do
fonema numa estrutura vocabular ou fraseológica ─ e os literários ─ aqueles que são
deliberadamente produzidos pelo autor do texto. Ao lado disso, procuramos apontar a
significação fonêmica no âmbito da neologia.
4) EXEMPLO
IAUARETÊ.
DE ANÁLISE FONOESTILÍSTICO-SEMIÓTICA DO CONTO
MEU
TIO O
4.1) UM RESUMO DA HISTÓRIA NARRADA POR G. ROSA
Meu tio, o Iauaretê é um longo monólogo-diálogo em que o protagonista, um
onceiro que vivia isolado nas gerais, pergunta e responde ao interrogatório que fazia a
um visitante.
O matador de onças, que se apresenta como um mestiço, filho de branco com
índia, certo dia, recebe no sítio em que estava instalado a visita, de um viajante que se
dispersara de seus companheiros. Enquanto bebe cachaça, o bugre das onças conta
como chegara àquela região. Sua função no local era acabar com as onças, mas, à
medida que se identifica com elas, começa a protegê-las, passando a rejeitar a
civilização e, com isso, ao invés de abater os animais, começa a matar homens.
Sua fala é acompanhada de um grande arrependimento por já ter, a princípio,
matado os felinos que ameaçavam a segurança dos moradores das redondezas. A partir
do momento em que percebe sua grande afinidade pelas onças, passa a tratá-las com
grande carinho; conhecendo uma a uma pelo nome. Tinha especial afeto por uma fêmea
a quem chamava Maria-Maria. Não permitia que nenhum macho se aproximasse dessa
fêmea; e a fala do personagem sugere que esse animal substituía a figura feminina em
sua vida.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
7
A leitura deste conto exige do leitor a participação ativa no processo de
significação. A construção da narração se sobrepõe à ação das personagens. A
linguagem faz com que o leitor se coloque diante do personagem que se forma e se
transforma à sua frente, assim como as cenas que compõem a narrativa.
A história, narrada numa linguagem inovadora em que se misturam neologismos,
arcaísmos, tupinismos, interjeições e onomatopéias (associadas a ruídos e rugidos)
mostra a oncificação do bugre: transformação gradativa do homem em onça.
A combinação de todos os recursos lingüísticos produz um sem-número de
efeitos responsáveis pela representação icônica das cenas na mente interpretadora do
leitor. As palavras que se narram em de Meu tio o Iauaretê se assemelham a pinceladas
de tinta que, aos poucos, formam uma paisagem diante de um espectador.
A grande inovação de Guimarães Rosa neste conto é que a construção da
narração se sobrepõe à ação dos personagens. Os personagens ou as cenas não são
descritos, eles se vão mostrando, aos poucos, cinematograficamente, ao leitor.
O título do texto é um elemento indicial da ruptura com o mundo dos homens,
representada pelo onceiro, que acaba por assumir parentesco com as onças: Meu tio o
Iauaretê (jaguaretê, iauaretê ─ onça, jaguar, do tupi yaware’te, onça verdadeira).
Por esse motivo, à medida que ia revelando, sob efeito da bebida, a verdadeira
causa da morte das pessoas, que, inicialmente era atribuída à doença, não sentia
qualquer remorso, ao contrário, justificava: Ele inda tava vivo, quando caiu lá embaixo,
quando onça Porreteira começou a comer... Bom, bonito! Eh, p’s, eh porã! Erê! Come
esse, meu tio... (fl. 849)
O mundo do personagem ─ o bugre onceiro ─ é regido pelas leis naturais; logo,
os homens seriam o alimento, o meio de sobrevivência das onças da região.
4.2) A ANÁLISE DA CAMADA FÔNICA DO CONTO
Ao desenhar verbalmente o universo sertânico, G. Rosa, usando habilmente a
palavra, modela a expressão com a propriedade de um artista plástico. Faz dos sons da
língua portuguesa a matéria-prima com que constrói cenário e personagens, dando-se o
requinte da produção sonoplástico-musical por meio da qual o leitor pode assistir às
cenas como se fora em filme ou peça teatral.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
8
Por isso, na intenção de colorir o estudo da fonologia portuguesa, deixamos o
espaço da metalinguagem teorizante para examinar o potencial sonoro de nossa língua
numa perspectiva desbravadora e lúdica.
Dizemos desbravadora por nascer de um trabalho de interpretação textual no
qual, fundados na semiótica de Peirce, tentamos levantar os valores icônicos, indiciais e
simbólicos dos fonemas e de suas combinações silábicas. Dizemos lúdica por
considerarmos o ludismo como característica dos processos investigativos, uma vez que
desafiam nossa inteligência, fazendo-nos criar estratégias de ação que nos levem à
consecução dos objetivos traçados para tal aventura.
Assim, a análise que apresentamos a seguir tem por meta entender o esquema
fônico de nossa língua por meio dos usos praticados pelo artista que, melhor que
qualquer usuário, sabe explorar o potencial dos signos.
4.3) A ONOMATOPÉIA E A SUGESTÃO.
Numa narrativa de cenas sertânicas, nada mais oportuno que a presença das
onomatopéias. Estes signos (ora ícones – quando imitativos; ora índices – quando
sugestivos) prestam-se à construção sonoplástica das cenas, dando-lhe realces de
verossimilhança e dinamizando o texto.
Chamamos de interjeições-onomatopaicas os signos imitativos ou sugestivos
que intercalam o uso lexical dicionarizado presente na fala do personagem, funcionando
não só como marcadores conversacionais, mas sobre tudo como componentes
imagéticos na construção do personagem.
O onceiro da história, com sua fala rude e, de certa forma precária, é construído
por meio de um discurso-texto estruturado em bases onomatopaicas, por meio do qual
se torna possível vê-lo a um só tempo como homem rude e homem-onça.
Vejamos:
Hã-hã. Isto não é casa...É. Havéra. Acho. Sou fazendeiro não, sou
morador... Eh, também sou morador não. Eu  toda parte. Tou aqui, quando
eu quero eu mudo. É. Aqui eu durmo. Hum. Nhem? Mecê é que tá falando.
Nhor não...Cê vai indo ou vai vindo? (fl. 825)
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
9
(...) Tá bom, dei’stá! Quero relógio nenhum não. Dei’stá. Pensei que mecê
queria ser meu amigo... Hum. Hum-hum. É Hum. Iá axi. Quero canivete
não. (...) (fl.828)
Vem calada, vem comer. Mecê carece de ter medo! Tem? Se ela urrar, eh,
mocanhemo, cê tem medo. Esturra – urra de engrossar a goela e afundar os
vazios... Urrurrú-rrrurrú... Troveja, até. Tudo treme. Bocão que cabe
muita coisa, bocão duas-bocas! Apê! (fl. 828)
Observe-se que os elementos grifados nos excertos ─ Hã-hã. Hum. Nhem
Hum. Hum-hum. Hum ─ são construídos com sons guturais, aspirados, nasalados,
palatais. Esta escolha demonstra a consciência lingüística do autor no que tange ao
potencial imitativo-sugestivo de tais qualidades sonoras na representação de um
ambiente hostil, animalizado. O som gutural ─ no português representado pelas velares
e uvulares, sobretudo as oclusivas ─ aproximam-se dos ruídos captáveis da natureza,
grunhidos animais, estalos, batidas, etc. O som aspirado ─ via de regra produzido como
uvular ─ acaba sendo uma variante gutural, talvez abrandada pela maior porção de ar
necessária à sua produção. Os sons nasalados e os palatais sugerem a sonorização
característica das cavernas, dos interiores; sons recuados e abafados. Os palatais, além
disso, geram impressões de mastigação, logo, aproximam-se dos sons primais.
Na mesma passagem tem-se a ocorrência da consoante vibrante (esturra-urra)
seguida da consoante gutural surda (engrossar/goela), culminando com a onomatopéia
que imita o rugido da onça. Finalizando, temos a presença da oclusiva dental surda
sugerindo o fungado do animal (troveja/tudo/treme), que se repete ao longo da narrativa
por meio da onomatopéia n’t, n’t, que sugere a mastigação, a degustação, ações
realizadas na boca, e a onomatopéia serve de índice do perigo de ser devorado pelas
onças: Eu xingo! Tiss n’t, n’t; ... (fl. 832): Se deixar, eu bebo até o escorropicho. N’t,
m’p, aah... (fl.834)
Como podemos ver, a onomatopéia n’t tem a variante m’p, que intensifica,
talvez, o efeito de mastigação de n’t. Pelo fato de o primeiro fonema ter mudado seu
ponto de articulação, o segundo tornou-se bilabial como o primeiro.
As interjeições que aparecem no conto contribuem para a ambientação da
história, produzindo o efeito da excitação constante na vida repleta de riscos do
personagem.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
10
(...). Onça vem. Heeé! Vem anda andando, ligeiro, cê não vê o vulto com
esses olhos de mecê. Eh, rosna, pula não. Vem só bracejando, gatinhando
rente. Pula nunca, não. Eh− ela chega nos meus pés, eu encosto a zagaia.
Erê! (fl. 832)
A imagem sugerida pelo número abundante de interjeições, onomatopéias,
vocábulos tupis vai-se intensificando ao longo do texto até imitarem a fala da onça em
que o homem se transforma diante de seu interlocutor. A grande transformação começa
a ocorrer nas últimas linhas do penúltimo parágrafo: ... Eu − Macuncozo... Faz isso não,
faz não... Nhenhenhém... Heeé!...(fl. 852)
O final da narrativa sugere que o interlocutor, para se defender, atira no onceiro
que se transformara em onça. No início do parágrafo aparecem algumas palavras
completas, compostas de vogais e fonemas consonantais vibrantes, que vão
desaparecendo e dando vez a fonemas guturais, culminando com interjeições que
sugerem o uivo da onça: Hé ... Aarrâ Cê me arrhoôu ...Remuaci ... Rêiucàanacê ...
Araaã ... Ui ...Ui ...Uh ...uh ...êeêê ... êê ... ê ... ê...(fl. 852)
4.4) METAPLASMOS FUNCIONAIS E LITERÁRIOS.
Entendemos como metaplasmos funcionais, aqueles que ocorrem nas variantes
lingüísticas e que, portanto, caracterizam falantes diferenciados. E por metaplasmos
literários, entendemos os que são construídos pelo autor, com o objetivo de dar cores
mais fortes ao texto na caracterização de certo personagem ou cena.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
11
Os metaplasmos que ocorrem no texto funcionam também como elementos
indiciais da fala sonsa do onceiro: em aspra temos a síncope da vogal e, provocando o
desaparecimento da sílaba postônica (áspera>aspra). No verbo preguntar e no adjetivo
fromoso vemos a metátese em que a mudança de posição da vogal criou o grupo
consonantal pr para perguntar e fr para formoso. O autor emprega também a forma
verbal estralar como uma variante de estalar, que sofreu o acréscimo do fonema
vibrante /r/, fenômeno denominado epêntese. Observa-se, a partir dos exemplos
apresentados, que a mudança de posição do fonema vibrante, dando origem a grupos
consonantais como pr, tr, fr contribuem para a ambientação sonoplástica das cenas
narradas, produzindo a idéia de perigo iminente, movimento brusco, ruído inesperado e
fuga. Fenômeno inverso ocorreu com a palavra percura; o grupo consonantal pr se
desfez, motivando a transformação da vogal posterior fechada em anterior
(procura>percura). Em aperceiando, que aparece com a variante apreceio, também se
observa o mesmo fenômeno, sendo, porém, mantida a vogal e. Nesse verbo, temos outra
alteração fonológica, comum em várias formas verbais presentes na narrativa: os verbos
em –iar se apresentam flexionados como verbos com terminação em –ear (vareia,
arrupeio, desarreia, principeia).
A palavra cruz, no texto, aparece também na forma curuz, exemplo de anaptixe
ou suarabácti, um tipo especial de epêntese, em que o grupo consonantal se desfez com
a intercalação da vogal alta, fechada u, fazendo surgir uma outra sílaba na palavra. O
emprego dessa forma como uma interjeição se justifica perfeitamente no contexto: Fui
indo pra lá, fui vendo: curuz! De toda banda, ladeza da chapada, tinha rastro de onça...
(fl. 850). A reação do personagem diante da cena se apresenta iconicamente ao leitor
por meio da desse vocábulo. A intercalação do u, alongando graficamente a palavra,
produziu o efeito expressivo de recriar o estado de estupefação do onceiro.
Em ridico houve a queda de uma sílaba, passando a palavra de proparoxítona a
paroxítona (ridículo>ridico). Esses metaplasmos observados são, na verdade, formas
arcaicas da língua que ainda podem ser verificadas na linguagem simples do homem
sertanejo, sendo, por isso considerados metaplasmos funcionais.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
12
Paralelamente, o autor faz criações vocabulares por meio de operações
semelhantes às que se verificam na língua em geral, produzindo um efeito bastante
interessante no texto.
Palavras como desonçar, destemece, despulo e repulo, não-dicionarizadas,
foram criadas por meio de processo que ocorre na gramática da língua, em que os
vocábulos se constróem a partir do acréscimo do prefixo –des e –re, conhecido como
prótese, servindo para caracterizar a fala do personagem. Vejamos os efeitos que
produzem na narrativa:
Hum, o couro dela é custoso pra se firmar, escorrega que nem sabão, pepego
de quiabo, destremece a torto e a direito...(fl. 834)
Pula de lado, muda o repulo no ar. (fl. 830)
Nhô Nhuão Guede me mandou ficar aqui, mor de desonçar este mundo todo.
(fl. 827)
É interessante observar a originalidade da forma desonçar, em que, inicialmente,
o substantivo onça transformou-se em verbo para receber o prefixo –des. Vemos que os
prefixos são formados por consoantes oclusivas e vibrantes, acompanhadas de vogal
fechada, compondo o cenário em que se ouvem ruídos violentos de batidas e rugidos,
que produzem a sensação de temor.
Além de produzirem todos os efeitos comentados, essas formas são
absolutamente adequadas ao texto, pelo fato de contribuírem para reforçar a idéia de
limitação vocabular do personagem, e a natureza quase telegráfica dos enunciados. Uma
palavra como desonçar é capaz de substituir uma sentença, além de ser um índice para o
leitor do caráter ingênuo do personagem, desprovido de qualquer sentimento ético ou
moral.
Outro exemplo interessante de metaplasmo é o que deu origem ao vocábulo
alprecata.Temos, registradas no dicionário (cf Ferreira, 1986), as palavras alparcata,
alpargata e alpergata. Guimarães Rosa preferiu a forma alprecata, em que se vê a
metátese, ou seja, a transposição do fonema vibrante, provocando o surgimento do
grupo consonantal –pr.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
13
Vemos, portanto, que as inovações lingüísticas introduzidas por Guimarães Rosa
podem ser observadas em vários níveis. Ele não só promove a revitalização à língua,
empregando termos do português arcaico, como também submete o léxico disponível a
mecanismos de transformação −metaplasmos− semelhantes àqueles pelos quais passou
a língua. As transformações por metaplasmos por que passam as palavras numa obra de
ficção, podem ser consideradas metaplasmos literários.
4.5) A SIGNIFICAÇÃO FONÊMICA NO ÂMBITO DA NEOLOGIA.
O fenômeno da neologia consiste na produção de novas formas lingüísticas com
o objetivo de designar seres, entes e objetos mais ajustadamente do que o que permite o
léxico até ali existente. A forma neológica, portanto, pode ocorrer, no plano
morfofonêmico, no plano mórfico, no plano semântico, etc.
O texto rosiano é um manancial de inovações lingüísticas. O autor não só cria
vocábulos novos, como também renova o significado de itens lexicais preexistentes ao
seu texto. Em Meu tio o Iauaretê, a neologia ganha uma aparência especial ao nascer de
cruzamentos lingüísticos entre formas vernáculas e formas de língua indígena
característica do sertão nacional.
Podemos destacar do texto alguns exemplos de neologismos oriundos do
cruzamento do português com a língua tupi, como, por exemplo, o vocábulo sejuçu que
aparece na passagem: Sejuçu já tão alto, olha as estrelinhas dele... Eu vou dormir não,
tá quage em hora d’eu sair por aí.. (fl. 836). Essa forma, segundo Nilce Sant’Anna
(2001), criada a partir do tupi seixu entendida como constelação, sofreu uma
sonorização da consoante palatal -x, formando um jogo de oposição de consoantes
surdas e sonoras -s/-j / ç acompanhadas de vogais que se tornam altas e fechadas ê/u/u,
sugerindo o uivo do animal que se dá na presença das estrelas.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
14
Dentre os inúmeros neologismos onomatopaicos formados a partir da língua
tupi, podemos citar a palavra ciririca, formada a partir do vocábulo tupi siriri, que
significa deslizar. Vemos que o fonema linguodental surdo /s/ é representado pelo signo
–c, que também representa o fonema oclusivo velar /k/, formador do radical do verbo
ciriricar; Debaixo da zagaia, ela escorrega, ciririca, forceja (fl. 833). A escolha do
signo –c pode ter sido, talvez, por questões de sentidos que a recorrência do grafema
pode sugerir na apresentação icônica da palavra, já que ocorre a repetição do grafema –
r. O fonema vocálico /i/, que sugere estreiteza, associado ao fonema linguodental dá
idéia de uma ação realizada com certa delicadeza para ser concluída por meio da força,
que está representada pelo fonema /k/, indicando uma ruptura com alargamento
representado pela vogal aberta a, conforme o próprio enunciado revela.
O metaplasmo também pode participar da construção neológica. Na passagem:
Vi que ela tava secando leite, vi o cinhim dos peitinhos...(fl 835), a palavra cinhim, que
pode ser associada a sino, do latim sinu ─ que significa curvatura, sinuosidade, seio (cf.
Cunha, 1998) recebe o sufixo de diminutivo –im. Nesse vocábulo, a recorrência da
vogal -i sugere a idéia de pequenez, estreiteza, delicadeza reforçada pela consoante
bilabial –m.
O ritmo, a musicalidade das construções inusitadas que aparecem na fala do
onceiro dão uma característica especial ao texto. Até mesmo o absurdo de um fato
relatado é amenizado, parecendo, muitas vezes, engraçado, graças ao tratamento
especial que a palavra recebe:
Ela põe a mão pra frente, enorme. Capim mexeu redondo, balançadinho,
devagarim, mansim: é ela. Vem por dentro. Onça mão − onça pé − onça
rabo... Vem calada, quer comer. Mecê carece de ter medo? Tem? Se ela
urrar, eh, macanhemo, cê tem medo. Esturra-urra de engrossar a goela e
afundar os vazios. Urrurru-rrrurru... Troveja, até. Tudo treme. (fl. 828)
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
15
Vemos, na segunda oração, a incidência da vogal nasal palatal fechada, em que o
autor faz uso do registro popular da língua, com o emprego do sufixo de diminutivo -im,
para efeito de rima: capim, balançadinho, devagarim, mansim; também explora o efeito
produzido pela alternância de fonemas orais e nasais, abertos e fechados: vem/dentro,
onça/mão, onça/pé, onça /rabo. Mais adiante ocorre a incidência da vogal anterior
semifechada: mecê/ter/medo.
Observa-se a preferência pelo sufixo im em detrimento de inh, como vemos em
outras passagens: pouquim, dinheirim, devagarim, oncim, jaguaraim, cinhim e muitos
outros.
A preferência por esse sufixo se justifica, no texto, pelo fato de essa forma ser
um índice da fala ingênua do homem do sertão, reforçando a dualidade que existe no
texto, em que o personagem ora vela, ora revela, ora se apresenta como um ingênuo
caipira, ora se revela astucioso matador de homens: ...Mas então agora pode me dar
canivete e dinheiro, dinheirim. Relógio quero não, tá bom, tava era brincando. Pra quê
que eu quero relógio? Não careço...(fl. 828)
Segundo Haroldo de Campos (1991), que aproxima o estilo rosiano do estilo de
Joyce, o autor mineiro consegue criar, da revolução que promove com a palavra, um
fato novo, alimentado em latências e possibilidades peculiares da nossa língua,
conseguindo, com isso, promover uma profusão de efeitos. Em Meu tio o Iauaretê, o
escritor, além de inovar, manipulando a língua a partir de todas as possibilidades que
oferece e resgatando as construções arcaicas, introduz um elemento que desempenha um
papel não apenas estilístico, mas, sobretudo, fundamental para a composição do conto,
que é o idioma tupi. Os tupinismos são os elementos indiciais que conduzem o leitor a
perceber a identidade do onceiro com os animais. Sua fala é entremeada de interjeições
e onomatopéias que revelam a estranha convivência do personagem com as onças da
região. Sua fala é um misto de português com língua tupi. As palavras desse idioma,
juntamente com as onomatopéias que lembram os ruídos próprios da onça, revelam o
outro lado do personagem.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
16
O termo nhem, que, segundo Antenor Nascentes (1966), corresponde ao verbo
falar em português, adquire inúmeras funções. O narrador inicia sua fala empregando o
termo como uma interjeição, que poderia ser substituído pelo nosso hein: ...Assopro o
fogo. Nhem? Se essa é minha,
nhem? (fl. 825) Mais adiante esse termo aparece
reduplicado com a mesma função: ...Nhenhem? Eu cacei onça, demais. Sou muito
caçador de onça...(fl. 827)
O mesmo elemento aparece no neologismo jaguanhém, que corresponderia ao
vocábulo jaguaretê (onça) aglutinado à forma nhem, que tem uma variante com a
duplicação dessa palavra: jaguanhenhém, imitando a fala da onça: ... Ela falava comigo
jaguanhenhém, jaguanhém...(fl. 846) ; Mãe lambe, lambe, fala com eles,
jaguanhenhém, alisa, toma conta.(fl. 844)
É interessante observar que o personagem faz uma espécie de “tradução” da fala
tupi ou da linguagem da onça para seu interlocutor:...Marido falava bobagem, em noite
de lua incerta ele gritava bobagem, gritava, nheengava.(fl. 831)... Nessa forma, que se
flexiona como verbo, parece que a vogal i funciona como uma desinência de pretérito
perfeito, como aparece na passagem: Miei, miei, jaguarainhém, jaguaranhinhenhém...
(fl. 839)
Observa-se na fala do onceiro uma incidência de fonemas consonantais nasais,
palatais, vibrantes e fonemas vocálicos nasais e fechados: manheceu, mecê, ‘manhã e
nhor sofreram o processo de aférese para que sobressaísse o som nasal, semelhante ao
barulho dos animais. O verbo pôr, por efeito estilístico, foi flexionado no pretérito
perfeito com uma terminação palatal: ponhei. O neologismo munhamunhã, que, de
acordo com Nilce Sant’Anna (2001), pode ter o sentido de pensar ou falar bobagem,
pode ser empregada como um nome ou verbo: Ah, munhamunhã: bobagem! Tou
falando bobagem, munhamunhando....(fl. 825) A consoante –j sofre palatalização em
nomes como Nhuão e Nhoaquim .
4.6) ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O FAZER DE G. ROSA
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
17
Sabemos que Guimarães Rosa, em toda a sua obra, deixa transparecer um certo
deslumbramento pela palavra. Ele tinha a preocupação de um artesão ao fazer a uma
verdadeira pesquisa filológica ao empregar expressões arcaicas e explorar todas as
possibilidades da língua para criar vocábulos e construções inusitadas. Essa
característica especial da obra rosiana levou o crítico Oswaldino Marques7 a defini-la
como um prosopoema (à moda de Guimarães Rosa) palavra que sugere a fusão das duas
modalidades do texto: prosa e poema. O interesse maior de G. Rosa é a expressão do
pensamento por meio da palavra exata, adequada.
No conto Meu tio o Iauaretê o autor realiza uma verdadeira inovação, na
medida em que a linguagem é responsável pela ambientação. A narrativa é entremeada
de interjeições, onomatopéias, frases truncadas e telegráficas. Isso faz com que se
produza o efeito de realidade na mente do leitor.
Esse processo de narração faz com que o leitor tenha participação na construção
do texto. Enquanto constrói o sentido na narração, tendo como referência suas
experiências, acrescenta formas e significados aos vazios deixados pelo texto.
5) CONCLUSÃO
Cremos que esta pequena análise tenha podido mostrar a importância dos estudos
fonológicos, que, combinados com a interpretação semiótico-estilística, demonstra
infinitas possibilidades de criação oferecidas pela língua, além de propiciar descobertas
prazerosas por parte do aluno. Essa nova forma de investigação considera a camada
fônica da língua um signo. Portanto, o levantamento das qualidades sonoras dos signos
verbais torna possível desvendar os valores comunicativos inscritos nos textos. Isto
porque tais qualidades servem de ícone, e mais adiante evoluem em índices que
conduzem o leitor à mensagem do texto.
Essa forma de leitura, que possibilita o diálogo que os textos podem estabelecer
com outras artes, permite uma apreensão total do texto, o que não é possível com as
formas tradicionais de investigação.
7
“Canto e plumagem das palavras”. In Ensaios escolhidos. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,1968 p.
83.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
18
Destarte, nossa proposta de uma fonologia em nova chave é a associação dos
estudos fonêmicos aos semiótico-estilísticos com vistas a envolver estudioso e objeto
num processo de trocas significantes, por meio das quais os textos tornar-se-ão objetos
comunicativos cada vez mais eficientes. Cremos que a tomada de consciência do valor
da camada fônica da língua e dos efeitos resultantes de um uso mais cerebral deste
material poder resultar num processo de produção textual mais emocionante em função
de sua eficiência comunicativo-expressiva.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CUNHA, Antônio Geraldo da. (1998). Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua
Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
MARTINS, Nilce Sant’Anna. (2001). O léxico de Guimarães Rosa. São Paulo: Edusp.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. (1986). Novo Dicionário Aurélio da Língua
Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
NASCENTES, Antenor (1966). Dicionário Etimológico Resumido. Rio de Janeiro: INL/
MEC.
ROSA, João Guimarães (1995) Desenredo, in Obras Completas. Rio de Janeiro: Editora Nova
Aguilar.
______ Meu tio o Iauaretê., in Obras Completas. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
19
A ORTOGRAFIA NO TEXTO INFANTIL
Elizabeth Bessa de Mattos – UERJ
“Eles escrevem muito mal”
“Não vai se espantar. Eles escrevem muito mal. Erram muito. A professora da
primeira série não fazia atividades de escrita espontânea com eles. Eles só escreviam as
palavras e as frases da cartilha”.
Essas foram as palavras que ouvi da professora a quem pedira alguns textos
espontâneos de seus alunos da segunda série do Ensino Fundamental, que seriam usados
como fonte de informações a respeito da escrita de crianças nessa fase escolar, já que
ela me procurara anteriormente, solicitando ajuda, preocupada em solucionar os “muitos
problemas”que, segundo ela, encontrava em seus escritos. Queria, em suma, subsídios
para programar atividades futuras a partir das quais eles pudessem aprender a escrever
“bem”.
Típica representante de profissionais de magistério com sérios problemas de
formação – concluiu seu curso em 1998, feito em colégio da rede pública estadual,
deixava transparecer em seu comentário a falta de base, deixada por seu curso de nível
médio, que lhe impedia de diagnosticar as possíveis falhas reveladas pelos educandos
no que tange à língua escrita. Assustada, não conseguia pensar em exercícios que
pudessem ajudá-los a resolver os “sérios problemas” encontrados.
A declaração da professora não me causou espanto, pois todos sabemos das
deficiências estruturais e pedagógicas pelas quais passam os cursos de formação de
magistério em nível médio, advindas da falta de investimento dos governos estaduais
num ensino de qualidade, ao longo dos tempos.
Seu discurso expressou os muitos equívocos e confusões que muitos professores
fazem quando focalizam o assunto escrever, principalmente em relação à fase em que se
desenvolve o processo de aquisição da língua escrita nos alunos das séries iniciais.
Reflete a aflição e a insegurança de quem está mais preocupado com a aparência da
escrita do que com o que estes já conquistaram nessa área de aprendizagem. Afinal,
ainda estão no início da escolarização!
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
20
O que é escrever mal? E quando não se tem boa caligrafia? Quando se cometem
erros ortográficos?
Com certeza ela não estava se referindo à análise discursiva do texto:
estruturação, coesão, coerência, argumentação, organização de idéias, escolha de
palavras – aspectos, entre outros, importantes a serem considerados na produção de um
texto escrito.
Demonstrou desconhecer a realidade lingüística de seus alunos. Não levou em
conta o que eles haviam construído. Preocupou-se muito mais com o que eles ainda não
sabem e que denomina de “erro”.
Dentre as muitas informações que a professora ignora, encontram-se as
pesquisas de Emília Ferreira e Ana Teberosky sobre a psicogênese da língua escrita que
já questionaram o conceito de erro elaborada pela concepção de ensino que não se
preocupa com as hipóteses que as crianças constroem quando estão aprendendo a
escrever.
Não considerou a bagagem de conhecimentos inscritos naqueles pequenos
textos, nem as hipóteses que as crianças constroem sobre a escrita, quando registram
palavras que nunca foram estudadas, mas que fazem parte de seu universo lingüístico
enquanto falantes de uma língua. Não sabia que os “erros” revelam uma lógica no uso
dos recursos possíveis disponibilizados pelo sistema ortográfico.
Assim, não detectar os níveis de conhecimento pelos quais os aprendizes passam
(pré - silábico, silábico – alfabético e alfabético) e que caracterizam um processo de
transformação que segue percurso semelhante ao da escrita, desde sua invenção. Esses
são conceitos que alteram certas noções, outrora preconizadas pelos que discutiam a
questão: descaracterizaram o erro, que passou a ser visto como elemento construtivo, de
acordo com o nível de aprendizagem em que o aluno se encontra.
O erro é necessário e inerente ao processo porque, na verdade, representa as
hipóteses construídas por aqueles que se apropriam dos objetos na intenção de conhecêlos.
Nossa professora sabe muito pouco sobre a escrita, seu funcionamento, e seus
diferentes usos.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
21
Ao analisar os textos dos alunos, verificamos que estes já dominam a maioria
dos aspectos referentes ao sistema de escrita fonográfico, baseado no significante, que
depende dos elementos sonoros da língua para poder ser lido numa padronização de
ordem linear: escrevem da esquerda para a direita, de cima para baixo; registram formas
maiúsculas e minúsculas, em letra cursiva – mais difícil de desenhar e ler que a letra de
forma; separam as palavras, segmentando o vocábulo fonológico; dos sinais diacríticos,
utilizam o til; dos sinais de pontuação, conhecem apenas o ponto final, demonstrando
que estão num estágio muito avançado de uso da escrita e que sabem muito mais coisas
que a professora imagina.
O que salta aos olhos em sua escrita são problemas relativos à caligrafia e ao
sistema ortográfico de nossa língua. E isso é muito mais natural aparecer na fase de
aprendizagem em que os alunos se encontram.
Todavia, não deveria ser natural a professora em questão não saber da distinção
entre os dois sistemas citados, fato que explica a demasiada preocupação com a
ortografia em detrimento da adequação daquilo que os educandos escrevem.
Quando transcrevemos a fala, isto é, passamos um texto de sua realização sonora
para a forma gráfica com base numa série de procedimentos convencionalizados,
passamos as palavras pronunciadas para uma formatação escrita num sistema gráfico
que segue a grafia padrão, num processo que vai do sonoro para o gramático, baseado
na correspondência letra e som, já que a escrita se realiza, no nosso caso, do ponto de
vista da sua tecnologia, por unidades alfabéticas.
E é justamente nesse ponto que o problema se coloca e as dificuldades aparecem
não só para os iniciantes da escrita, mas também para todos que escrevem uma língua
natural como o português: não existe correspondência direta entre todas as letras do
alfabeto e os sons dos significantes que pronunciamos: o sistema de escrita raramente é
fonético nas línguas naturais. Além disso, a escrita tende a ser uniforme, constante e
universal, e tem como objetivo principal permitir a leitura, enquanto a fala se caracteriza
por ser bastante diversificada no tempo e no espaço.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
22
O sistema de escrita do português utiliza vários tipos de alfabeto (letra
maiúscula, letra minúscula, letra cursiva, letra de forma) e não é totalmente alfabético:
além das letras, os sinais gráficos elementares existem outros caracteres, de natureza
ideográfica (logotipos, marcas, algarismos, sinais diacríticos, pontuação), que
contribuem para dificultar o processo de escritura.
Além disso, poucas letras têm uso propriamente alfabético, mantendo a relação
um a um entre símbolo e som. Uma letra pode corresponder somente a um segmento
fonético: bata [ bata ], ou a uma sílaba: apta [ a-pi-ta ]; várias letras podem
corresponder ao mesmo som: fixe / fique-se [ fi-ki-si ]; duas letras podem representar
um som: gu [ g ], em guerra; uma letra pode não ter som nenhum: o h, em hora [ ora ];
uma mesma letra pode representar diferentes sons: x / [ s ], [ z ] e [ ks ], em próximo,
exame e táxi, respectivamente; um som pode ser representado por diferentes letras: [ k ]
/ c e qu, em casa e queijo.
O sistema ideal seria aquele que mantivesse a correspondência de um para um,
para todas as letras e sons. Entretanto, na língua portuguesa, isso só acontece em poucos
casos.
No meio de tantas situações arbitrárias que compreendem relação biunívoca
(uma letra representa um som e vice-versa), relações múltiplas posicionais (uma letra
representa diferentes sons e um som é representado por diferentes letras) e relações de
concorrência (duas ou mais letras podem representar o mesmo som, no mesmo ambiente
fonético), os aprendizes apresentam falhas na escrita que denotam o estágio de
desenvolvimento em que se encontram, em relação à aquisição da língua escrita.
Num primeiro momento, em que estão elaborando a teoria da correspondência
entre sons e letras, podemos encontrar, no que diz respeito às letras: repetição, omissão,
troca na ordem e traço inseguro no desenho delas.
No segundo, já construíram e generalizam a hipótese da relação biunívoca,
realizando a transcrição fonética da fala.
No terceiro estágio do saber ortográfico, fazem trocas entre as letras
concorrentes, problema que será superado gradativamente e que os acompanhará pelo
resto de suas vidas.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
23
Outro fator que contribui para aumentar as dificuldades ortográficas de quem
escreve é a distância, cada vez maior, na correspondência fonema-letra, quando se dá
conta das variadas maneiras de pronunciar uma palavra. No entanto, esta apresenta
apenas uma forma de ortografia, sempre muito conservadora. O que também é natural.
Se assim não fosse, como poderíamos nos entender, com cada um escrevendo do seu
próprio jeito?
De qualquer maneira, a variação lingüística é uma realidade que faz parte da
dinâmica de toda língua viva e deve ser encarada com naturalidade por todos que
trabalham com o ensino-aprendizagem, numa atitude de respeito às variantes que não
integram o registro padrão, embora a função da escola seja promover o acesso aos
educandos a esta variante de prestígio social.
Uma possibilidade de trabalho pedagógico mais condizente aos fenômenos
variáveis da fala que interferem na correspondência som-letra seria aquela que tratasse
dos problemas clássicos decorrentes da variação lingüística, e que se repetem sempre,
sistematicamente, diacrônica (em todas as fases da evolução da língua) e
sincronicamente (em todas as produções de uma só fase). Os fenômenos são previsíveis
e controlados por fatores intra- e extralingüísticos. As marcas deixadas pelos falantes na
escrita denotam, portanto, fatores estruturais, como regras diacrônicas que atuam em
qualquer manifestação sincrônica da língua, por razões fonomorfossintáticas; ou fatores
psicossociais, índices de alta, baixa ou nenhuma escolaridade, situação sócio-econômica
ou formalidade / informalidade de uso.
Dos problemas mencionados por MOLLICA (1998), selecionamos fatos
relacionados ao dialeto carioca, pois os alunos em questão nasceram na cidade do Rio
de Janeiro:
•
não realização da vibrante pós-vocálica em final da palavras nas formas
infinitivas: mata (matar); cou pra (comprar); cicaza (se casar); faze
(fazer); enfeita (enfeitar); molha (molhar); morre (morrer); voa (voar);
•
supressão da marca de plural: não registrado;
•
monotongação - cancelamento das semivogais /y/ e /w/ nos ditongos
crescentes /ey/ e /ow/: madera (madeira);
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
24
•
assimilação /Mb/ ~ /m/ (também ~ tamém) e /Mdo/ ~ /no/ (falando ~
falano): não registrado;
•
rotacismo /l/ ~ /r/ (clube ~ crube): não registrado;
•
passagem de /r/ a Ø (problema ~ poblema): não encontrado;
•
elevação e abaixamento de pré-tônicas e de pós-tônicas: eliz (eles) e
quiria (queria), em função doe debordamento (harmonização vocálica);
•
cancelamento e inserção de semivogal: féis (fez), bale (baile); naisceu
(nasceu).
•
LEMLE (1990) acrescenta mais um tipo:
•
Passagem de /l/ a /w/ (anzol ~ anzou): não registrado.
Em função da espécie de raciocínio lingüístico dedutível dos “erros” cometidos,
SIMÕES (1997) distribui os fatos em três grupos:
•
da escrita fonética (quando tentam reproduzir na escrita a sua fala): au
(ao); quiria (queria); mata (matar); incomendou (encomendou); infeitar
(enfeitar); pitisa (pizza); feiz (fez); eliz (eles); cicaza (se casar); cisasou
(se casou); sicasarão (se casaram); asulinda (a sua linda); ciapaixonar
(se apaixonar); os cinco últimos, retratando como percebem o vocábulo
fonológico;
•
da regularização sistêmica (quando fazem analogias que demonstram
uma percepção estrutural da língua): acabarão (acabaram); ficarão
(ficaram); morarão (moraram); sairão (saíram); viverão (viveram);
tinhas pessoas (tinha as pessoas); ea (e a : reforço do padrão silábico
binário); morel (morreu: transferência de formas como anel, sol); comera
(comeram); casara (casaram); fora (foram); cepre e zenpre (sempre);
matado (matando); nacedo (nascendo); lidos (lindos); judos (juntos),
siderela / ciderela (Cinderela); pricipe / prisipe / pricipi (príncipe) – uma
das maiores dificuldades, a nasalidade é resolvida de forma sistêmica: ou
não é marcada ou é marcada por qualquer travador nasal);
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
25
•
da instabilidade gráfica (quando grafam de maneira imprecisa os
fonemas): ciderela / siderela (Cinderela); pricipe, pricepe, prisipi,
pricipi, prisipe, prinsipe; felises / felisez (felizes); moso (moço); naseu
(nasceu).
Uma aluna registrou: seipre (sempre), bou (bom), cou (com) e preseite (presente)
– escrita fonética ou regularização sistêmica? De qualquer maneira, a repetição do
mesmo fenômeno prova a lógica realizada ao pensar sobre a escrita, no momento em
que foi desafiada a escrever um texto espontâneo, numa atitude comum a todos.
A mesma aluna grafou: cou pra (comprar), revelando a hipercorreção resultante
de uma pronúncia alfabética.
Realizações de um aluno como vilho (filho), tepoi (depois) e vata (fada)
demonstram problema de fonação, apenas quanto à vibração das cordas vocais na
articulação de um mesmo par distintivo, caso de troca do /f/, surdo, pelo /v/, sonoro, e
do /d/, sonoro, pelo /t/, surdo; já gravisa (grávida) e fetizes (felizes) configuram troca de
um fonema por outro.
Considerando-se apenas a ortografia, uma convenção imposta por legislação
oficial, sujeita a ações extralingüísticas e problema menor da escrita na primeira fase de
escolaridade, será que os alunos produziram textos tão mal escritos, como supunha sua
professora?
A resposta à questão só pode ser negativa, porque eles revelaram muitos
conhecimentos do sistema lingüístico, devido sos progressos que já fizeram no percurso
da aprendizagem da língua escrita e também porque escrever de acordo com a ortografia
oficial demanda tempo de aprendizagem e muito treinamento, uma vez que é um saber
artificial que deve ser internalizado durante o processo escolar. Mesmo assim, isso não é
garantia de pleno sucesso: quem não tem dúvidas, ao longo de toda a sua vida, a
respeito da grafia correta de determinadas palavras? Quem nunca recorre ao dicionário?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAGNO, Marcos (2001). Português ou brasileiro?: um convite à pesquisa. São Paulo: Parábola.
CAGLIARI, Luiz Carlos (1997). Alfabetização e lingüística. São Paulo: Scipione.
LEMLE, Miriam (1990). Guia teórico do alfabetizador. 4a ed., São Paulo: Ática.
MARCUSCHI, Luiz Antônio (2001). Da fala para a escrita: atividades de Retextualização. São
Paulo: Cortez.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
26
MOLLICA, Maria Cecília (1998). Influência da fala na alfabetização. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro.
MORAIS, Artur Gomes (2000). Ortografia: ensinar e aprender. 4a ed., São Paulo: Ática.
SILVA, Myriam Barbosa da (1993). Leitura, ortografia e fonologia. 2a ed., São Paulo: Ática.
SIMÕES, Darcilia (1997). Estudos fonológicos: a língua portuguesa no plano dos sons e da
grafia. Rio de Janeiro: UERJ, DEPEXT.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
27
O GÓTICO “MASCULINO” E A TESE DO FEMININO
COMO DESTRUIÇÃO EM A LUZ NO SUBSOLO, DE
LÚCIO CARDOSO
Fernando Monteiro de Barros (UERJ)
Publicado em 1936 e reconhecido como o primeiro romance dentro da linha
introspectiva a partir da qual seu autor é definido pela história da literatura brasileira
(AYALA, 1986: 449), A luz no subsolo foi considerado por Mário de Andrade um
romance “estranho e assombrado” (apud CARELLI, 1996: 628), chamando a atenção da
crítica pelo seu “clima de mistério e alucinação” (ALMEIDA, 1996: 698). A luz no
subsolo é o primeiro romance de atmosfera de Lúcio Cardoso. Em um clima
fantasmagórico, ele cria personagens “extraordinários, portadores de questões cruciais”,
afirma o crítico Mario Carelli em Corcel de fogo: vida e obra de Lúcio Cardoso
(CARELLI, 1988: 166). O romance deixou Mário de Andrade desconcertado por seu
desprezo pelas questões sociais e políticas no momento histórico conturbado que foi o
final da década de 30 (CARELLI, 1988: 33). Em carta a Lúcio Cardoso, o escritor
paulista afirma que, ao lê-lo, “não sabia em que mundo estava, inteiramente despaisado”
(apud MARTINS, 1997: 12). Entretanto, apesar do traço universalista desta narrativa
que transcendia o regionalismo para apresentar a busca do sujeito do século XX por
uma “verdade” existencial, o substrato social e geográfico é inequívoco na apresentação
de um etos patriarcal mineiro arruinado após o fim da Primeira República, o que nos faz
refutar o “despaisamento” atribuído por Mário de Andrade à obra.
A trama se passa numa casa-grande senhorial e decadente, soturna, presidida
pelo casal Pedro e Madalena. Pedro despreza a mulher, que por ele sente uma atração
irremediável. Por sua vez, Bernardo, amigo de Pedro, ama Madalena em segredo. O
enredo se complica com a chegada de Emanuela, rapariga do interior que vem exercer a
função de criada e se torna vítima da cupidez de Pedro, e com a vinda da mãe deste,
Adélia, que se presta a ajudar o filho na tentativa de envenenar Madalena.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
28
A crítica norte-americana Anne Williams, em seu livro Art of darkness: a poetics
of Gothic, sustenta ser a família patriarcal a própria base do mito gótico (WILLIAMS,
1995: 87). Com efeito, tais narrativas se passam em castelos medievais e têm como
substrato social e político o etos do patriarcalismo. A autora, entretanto, propõe duas
teses para a literatura gótica, a do “Gótico masculino”, escrito por homens, como por
exemplo o romance pioneiro de Horace Walpole, e o Gótico feminino, de autoria de
uma Ann Radcliffe ou de uma Emily Brönte.
As
narrativas
góticas
em
sua
vertente
“masculina”
apresentariam
invariavelmente a queda do patriarcalismo decretada por potências do feminino,
percebidas enquanto alteridade absoluta no mundo ocidental desde Aristóteles, citado
por Anne Williams enquanto formulador de uma metafísica composta de antinomias.
No livro I de sua Metafísica, no capítulo V, o filósofo grego efetivamente cita o
paradigma atribuído aos Pitagóricos, a partir do qual a realidade consistiria de dez pares
opostos (ARISTÓTELES, 1973: 222), que são, no texto de Williams, arrolados em duas
colunas da seguinte forma (WILLIAMS, 1995: 18):
Masculino
Feminino
Finito
Infinito
Ímpar
Par
Unidade
Pluralidade
Direito
Esquerdo
Quadrado
Oblongo
Quieto
Movimentado
Retilíneo
Curvo
Luz
Escuridão
Bem
Mal
Para Anne Williams, os elementos listados na “linha do mal” estão todos
presentes na poética do Gótico (Idem: 19). As colunas “do bem” e “do mal” também
sugerem, segundo a autora, vários outros pares binários inerentes ao pensamento
ocidental (Ibidem):
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
29
Atividade
Passividade
Sol
Lua
Cultura
Natureza
Dia
Noite
Pai
Mãe
Cabeça
Coração
Inteligível
Sensível
Logos
Pathos
coluna do “feminino” agrega em si os elementos encarnadores por excelência da
alteridade em relação ao domínio do masculino racionalista ocidental. O Gótico literário
expressaria, assim, o feminino assustador e atraente ao mesmo tempo, alteridade da
inconsciência perante a Razão predominante no século XVIII (Ibidem). Os aspectos da
natureza caracteristicamente associados ao Gótico – a noite, a lua, as tempestades e toda
sorte de violência e desordem – remetem todos ao princípio do feminino indomável,
cujo maior terror de todos a ele associado é a morte (WILLIAMS, 1995: 86).
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
30
O feminino é da ordem do ctoniano e do dionisíaco. O próprio Dioniso,
representação da totalidade, encarnação do paradoxo, era muitas vezes retratado com
vestes femininas (PAGLIA, 1992: 92). O pensamento arcaico, não dicotômico, concebia
a unidade da physis, natureza que trazia em seu bojo o que se entenderia hoje por
sobrenatureza, já que o natural e o que hoje consideramos sobrenatural estavam
interligados, conforme o pensamento de Tales de Mileto, citado por Aristóteles: “todas
as coisas estão cheias de deuses” (ARISTÓTELES, 1973: 14). Segundo este
pensamento originário, as colunas apontadas por Aristóteles e citadas por Anne
Williams estariam entrelaçadas, formando a totalidade do Uno primordial, cindido pela
metafísica platônica e aristotélica, que, ao privilegiar a linha do Logos, do masculino, do
sol, do bem e do pai, teria decretado a demonização da linha matriarcal. Cumpre
lembrarmo-nos de que as primeiras religiões eram cultos da natureza, agrários,
presididos por deusas ancestrais ctonianas, grandes mães da Terra, substituídas mais
tarde por deuses patriarcais do céu, habitantes dos cumes olímpicos (BRANDÃO, 1985:
29).
Assim como vários pensadores ocidentais, tais como Nietzsche, Freud e Walter
Benjamin, Camille Paglia, outra crítica norte-americana, também vê, ao longo da
história da arte ocidental, a sobrevivência residual
da natureza em seu aspecto
daimônico, ctoniano. A Ilustração setecentista equiparava a natureza à razão e à verdade
(CANDIDO, 1981: 45), no que era entrevista apenas enquanto paisagem amena de
superfície. O Barroco e o Romantismo, ao contrário, estavam cientes da dimensão
violenta da natureza, que, segundo Paglia, “não é nenhum prado de verde promessa,
mas uma espectral câmara gótica que não deixa nascer a história” (PAGLIA, 1992:
604). A literatura gótica inglesa do século XVIII contribui para a “desintegração do
iluminismo apolíneo” (Idem: 270), no que ela, assim como seu contemporâneo francês,
o marquês de Sade, subverte os postulados bem intencionados e edificantes de
Rousseau, defensor da idéia da bondade da natureza:
A reação inglesa a Rousseau assumiu forma assimilável: o romance gótico.
Como a literatura inglesa tinha os precedentes arquetípicos de The faerie
queene e Paraíso perdido, o romantismo inglês desde o início teve uma
intensidade daimônica que o francês levou quarenta anos para adquirir. O
gótico inglês da década de 1790 equivale à alquimia e ao ocultismo
medievais de Fausto, em que Goethe trabalhava na época. As trevas e
rudezas góticas opõem-se à luz, ao contorno e ao simbolismo apolíneos do
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
31
Iluminismo. O racionalismo protestante é derrotado pelo retorno gótico ao
ritualismo e misticismo do cristianismo medieval, com seu paganismo
residual. A arte retira-se para as cavernas, castelos, masmorras, túmulos,
caixões. O gótico é um estilo de sensualidade claustrofóbica. Seus espaços
fechados são úteros daimônicos. O romance gótico é sexualmente arcaico:
retira-se para as trevas ctônicas, o reino goethiano das Mães. A mãe noite
impregna o romantismo, de Coleridge e Keats a Poe e Chopin, com seus
melancólicos noturnos. (Idem: 249)
A citação acima, de Paglia, não deixa dúvidas quanto à vinculação do Gótico
literário inglês às potências do feminino. Para Anne Williams, enquanto as narrativas
góticas de autoria feminina se organizam a partir dos recursos do terror, ou seja, de uma
ameaça imaginária e o processo pelo qual essa ameaça é dissipada, o Gótico de autoria
masculina se especializa no horror, que vem a ser a reação do sujeito diante da
violência e da catástrofe reais: a mortalha sangrenta, o cadáver putrefato (WILLIAMS,
1995: 104). E este horror das narrativas góticas “masculinas” nada mais é do que o
horror da própria natureza, feminina, encarnação mor da alteridade para o logos
ocidental (Idem: 106). O Gótico masculino percebe um mundo de crueldade, violência e
horrores sobrenaturais fundamentados no feminino (Idem: 109). Assombrada pelo
princípio feminino, a ordem simbólica patriarcal nos romances góticos estabelece o
sofrimento da mulher como retaliação, apresentando contornos de sadismo (Idem: 106)
e voyeurismo (Idem: 104), ao pretender fazer com que o leitor sinta prazer com a
vitimização das donzelas (Idem: 104). Segundo Williams, este sadismo do Gótico
masculino aproxima seus enredos dos escritos de Sade e da pornografia (Idem: 106).
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
32
O enredo gótico masculino por excelência descreve “as aventuras de uma jovem
mulher que se encontra, em uma noite escura e tempestuosa, em um castelo pertencente
a um homem poderoso e misterioso – um castelo, ela descobre, que esconde um segredo
terrível” (WILLIAMS, 1995: 110)8. Esta jovem mulher é vista simultaneamente como
vítima e como ameaça demoníaca, sendo, por conseguinte, enclausurada e molestada
(Idem: 136), encarnando o clichê gótico da “donzela perseguida” (PRAZ, 1986: 14-15).
No primeiro romance gótico da literatura inglesa, O castelo de Otranto (1764), de
Horace Walpole, a personagem Isabella encarna este papel que, na narrativa de A luz no
subsolo, é encarnado por três personagens femininas: Maria, Emanuela e Madalena.
8
Minha tradução. No original: “It describes the adventures of a young woman who finds herself on a dark
and stormy night in a castle belonging to a powerful and mysterious man – a castle, she discovers, that
hides a terrible secret.”
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
33
O prólogo do romance de Lúcio Cardoso inicia-se sob o signo da aflição
feminina: “Quase aturdida, percebia que um absurdo desfalecimento se apossava dos
seus nervos” (ALNS, p. 9). Maria, prima de Madalena, parenta pobre agregada em sua
casa, resolve partir, afligida pelo “terror” e pela “perturbação” (Ibidem) proporcionados
por Pedro, marido de Madalena e “senhor do castelo”. Indagada por Madalena sobre o
motivo de sua partida repentina, confessa ser “por causa ‘dele’” (ALNS, p. 18), que lhe
causa “medo” (ALNS, p. 20), explodindo finalmente na seguinte confissão: “Não sei,
não sei de nada! E não posso trabalhar, sinto que ‘ele’ está constantemente me
vigiando... É um olhar que atravessa as próprias paredes!” (Ibidem). Após a confissão,
Maria “ficou repetindo ‘não posso mais’ uma porção de vezes” (Ibidem), em uma
evidente teatralização do paradigma do feminino enquanto fragilidade molestada. O
clichê gótico dos olhos que espiam sorrateiramente, presente não apenas neste romance,
mas em vários outros de Lúcio Cardoso, confirma o pastiche intratextual que permeia
seus textos: Lúcio, como os escritores decadentistas (BOUÇAS, 1995: 7), é pasticheur
de si próprio. Assim, do mesmo modo, confirma a personagem Madalena: “Por trás das
capas amarelas ela se sentia espiada, vigiada, escarnecida... [...] Nada daquilo se
exprimia por qualquer manifestação exterior, mas, logo que ela se voltasse, sentiria dois
olhos implacáveis seguindo atentamente os seus movimentos” (ALNS, p. 26).
Identicamente, o mesmo ocorre com a personagem Emanuela, jovem que vai trabalhar
na casa de Pedro e Madalena e desperta a cupidez de seu patrão. A citação abaixo não
deixa dúvidas quanto à vinculação do espaço e da atmosfera da narrativa cardosiana ao
romance gótico inglês:
[Emanuela, após estar com Adélia] Agora estava só no corredor escuro. Uma
emoção estranha a assaltou. Ofegante, encostou-se à parede, sem forças para
prosseguir a caminhada. Sentia-se ameaçada por perigos invisíveis. De uns
dias para cá, perdia a tranqüilidade, julgando-se vigiada por alguém que não
conseguia ver. Emanuela vinha sustentando essa luta há longo tempo – a
cada hora, sentia esfacelar-se no seu espírito alguma coisa que a deixava
aniquilada longos momentos. Era a sensação que lhe chegava, diante da
escada escura, da casa imersa no silêncio. Tateando, continuou a caminhar,
ganhou a escada, desceu, escutando a madeira estalar sob seus pés. Na sala
encontrou uma lamparina acesa. Era verdade, pois – alguém estava
acordado, alguém vigiava – dois olhos a seguiam insistentemente da sombra.
Aproximou-se receosa e soprou a chama trêmula. No escuro, procurou o
rumo da porta com o coração aos saltos. Quando segurou o trinco, ouviu um
estalo; permaneceu quieta, até que novamente a madeira estalou. Alguém –
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
34
esse alguém que se escondera à sua aproximação – subia agora a escada.
Emanuela sentiu-se desfalecer de terror. Fazendo um esforço sobre si
mesma, rodou o trinco e mergulhou na escuridão do jardim.(ALNS, p. 149150)
Emanuela acaba sendo vítima da lubricidade de Pedro, que, byronianamente, a
ama e a destrói. O senhor da casa, uma noite, entra em seu quarto, deixando-a
“aterrorizada” (ALNS, p. 168). A moça implora “pelo amor de Deus” (ALNS, p. 170),
mas Pedro comporta-se como legítimo vilão de romance gótico, algoz da donzela:
Ele deixou escapar uma risada. Segurou-a pela cintura, enquanto a moça se
esforçava para fugir ao seu abraço. Toda a sua carne se rebelava ao contato
daquelas mãos incendiadas. Emanuela não ignorava que seria vencida, que
rolaria nos braços daquele homem a quem não amava, mas que a dominava
inteiramente, corpo e alma, pela sugestão de um sortilégio qualquer. Mas era
repugnância que sentia, uma loucura que fazia o sangue turbilhonar na sua
cabeça, enquanto dominava os nervos, cerrando os olhos como uma
condenada. (Ibidem)
Emanuela, como Maria, acaba comunicando a Madalena sua partida da casa,
pelo mesmo motivo: medo de Pedro (ALNS, p. 183). A personagem, entretanto, ganha
contornos de ambigüidade no que o prazer se mistura ao sofrimento de que foi vítima,
como atestam suas próprias palavras: “Não compreendia nada daquilo – parecia que
tinha descido um vento e eu delirava. Aquelas noites eram quentes e eu sentia o meu
sangue arder” (ALNS, p. 261). Da mesma forma, Emanuela desperta em Pedro
sentimentos ambivalentes: ele a deseja, mas ao mesmo tempo, “um ódio desmedido
subia-lhe ao peito, diante daquela pobre criatura fraca, que não possuía forças para lutar
sem pranto” (ALNS, p. 171), corroborando a visão dialética do feminino na literatura
gótica masculina, ao mesmo tempo atraente (WILLIAMS, 1995: 19) e odioso (Idem:
106).
De volta à casa de sua família, Emanuela, grávida, recebe a visita do personagem
espectral “mendigo resignado”, único elemento fantástico nesta narrativa. A citação
abaixo poderia ter saído das páginas de Horace Walpole:
Emanuela estava só. O calor parecia dar-lhe febre; lembrou-se de apagar a
lamparina e dirigiu-se vacilante para o gancho de ferro onde as mariposas
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
35
inquietas voavam. Os dedos trêmulos seguraram a candeia – neste instante,
alguém bateu na porta. Emanuela prestou atenção, admirada. Suas pupilas,
extraordinariamente dilatadas, fixavam a chama débil. Seria realmente ali?
Seu rosto impassível não denunciava nenhuma emoção. Mas devia ter se
enganado, só as mariposas se debatiam contra a luz. Entretanto a porta
rangera levemente – ela voltou-se de um salto e, pálida de terror, viu uma
longa mão, descarnada e branca, que segurava a taramela da porta. “Quem é”
– gritou. Um homem estava diante dela. Tinha entrado docemente e sorria.
Trazia um xale escuro enrolado em torno do pescoço, o que dava relevo à
sua extraordinária palidez. Um botão de metal luzia em seu colete. No ar
havia um elemento novo, pesado e ameaçador. Emanuela passou a mão pelas
têmporas, procurando afastar a visão. Uma estranha dormência paralisava
seus movimentos. (ALNS, p. 265)
Após pequeno diálogo entre Emanuela e a aparição, “o mendigo se desfigurava –
não era mais o mendigo, mas uma grande sombra que se quebrava na parede” (ALNS,
p. 268), que, mesmo imaterializado, “continuava a se insinuar” com sua “voz perversa”
a destilar um discurso da desrazão e do devir metamorfoseante: “– Emanuela, venha ver
da janela os campos de sua meninice... venha ver como tudo oscila, como tudo se
revolve nas entranhas do tempo... Há muito que sua casa desapareceu e só resta o mar...
tão perto daqui!” (Ibidem). A cena se consuma no melhor estilo das narrativas de terror,
dramática e teatralmente:
Uma rajada de vento escancarou a janela. A luz escarlate da lamparina
tremeu e apagou-se de súbito – no silêncio, ouvia-se o rangido do gancho de
ferro. Uma risada animal vibrou dentro da sala. Emanuela sentiu o mundo se
abrir aos seus pés e as coisas oscilarem sobre a sua cabeça. Sacudida pelo
vento, a janela estalava e, sentindo no rosto o hálito frio do abismo, correu e
debruçou-se sobre a escuridão com um grito amargo de vitória. (ALNS, p.
268)
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
36
O dado sobrenatural aqui da narrativa cardosiana, ao contrário dos quadros na
parede em que as figuras riem e das estátuas ambulantes de O castelo de Otranto,
parece se situar dentro da categorização que Tzvetan Todorov faz sobre o conceito de
fantástico, que, segundo ele, recai na incerteza de os acontecimentos sobrenaturais
terem realmente acontecido no âmbito diegético ou não passarem apenas de sonho ou
alucinação dos personagens (TODOROV, 1975: 30-31). A velha Emília, parenta de
Emanuela, ao sentenciar que “Emanuela jamais retornará de sua loucura” (ALNS, p.
268), torna incerto para o leitor se o personagem do mendigo resignado trata-se de um
fantasma sobrenatural ou de mera alucinação que teria acometido os personagens Pedro
e Emanuela. De qualquer forma, contribui efetivamente para a criação da atmosfera
gótica do romance. E sem contar que, tanto o sobrenatural quanto a loucura pertencem à
linha da desrazão e do feminino, dionisíaca, contrária à razão cartesiana ocidental,
apolínea. A causa da loucura de Emanuela também se inscreve na perspectiva das
potências femininas desagregadoras: “Está grávida... e foi isto que a enlouqueceu...”
(Ibidem), diagnostica mais uma vez a velha Emília, reconhecendo a correspondência
entre Eros e desrazão.
A personagem Madalena é um caso à parte. Segundo Anne Williams, o Gótico
feminino, ou seja, a narrativa gótica escrita por mulheres, apresentaria enquanto enredo
típico uma heroína desvalida que, ao chegar a um castelo presidido por um misterioso
senhor, é assombrada por ameaças imaginárias que são dissipadas pouco a pouco no
decorrer da trama, preservando sua integridade/virgindade e casando-se com o senhor
do castelo no final. “O enredo do Gótico feminino é uma versão de ‘A Bela e a Fera’”
(WILLIAMS, 1995: 145)9. Aqui o enredo trágico cede lugar à comédia, e o horror,
explícito, suaviza-se no terror, imaginário. Enquanto no Gótico masculino o feminino é
a encarnação absoluta da alteridade, no Gótico feminino, em contrapartida, o masculino
é que é visto como o outro (WILLIAMS, 1995: 141), que pode parecer monstruoso no
princípio, mas que acabará eventualmente por se transformar em um marido afetuoso
através do amor (Idem: 145).
9
“The Female Gothic plot is a version of “Beauty and the Beast”.”
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
37
A encarnação do masculino como alteridade se dará aqui no paradigma do
homem fatal, apresentado por Mario Praz no segundo capítulo de seu A carne, a morte e
o diabo na literatura romântica. Este foi um dos grandes arquétipos românticos,
identificado com Byron, a partir do decalque feito do protagonista decaído do poema
inglês do século XVII “Paraíso Perdido”, de John Milton (PRAZ, 1996: 73). Entretanto,
antes de Byron, Ann Radcliffe, em seu romance gótico The Italian, de 1797, decretara o
tom que nortearia o herói romântico byroniano a partir do personagem Schedoni, herói e
vilão ao mesmo tempo:
Vivia no convento dominicano do Espírito Santo, em Nápoles, um homem
chamado padre Schedoni; um italiano, como seu nome demonstrava, mas
cuja família era desconhecida, e a partir de algumas circunstâncias, assim
parecia que ele desejava ocultar sua origem sob um véu impenetrável. Por
qualquer que fosse o motivo, nunca o ouviram mencionar o nome de algum
parente, ou o local de seu nascimento... [...] Havia circunstâncias, entretanto,
que pareciam indicar que ele fosse um homem bem-nascido e de fortuna
arruinada; seu espírito, como às vezes se deixava divisar sob o disfarce de
sua conduta, parecia arrogante, não deixando transparecer, entretanto, as
aspirações de uma mente generosa, mas sim o orgulho sombrio de uma
mente desapontada. Algumas poucas pessoas no convento, que haviam
ficado interessadas por sua aparência, acreditavam que a peculiaridade de
seus modos, sua reserva severa e seu silêncio invencível, seus hábitos
solitários e penitências freqüentes, traduziam o efeito do infortúnio se
abatendo sobre um espírito altivo e desordenado, enquanto outros atribuíam
sua conduta como sendo conseqüência de algum crime terrível atormentando
a consciência perturbada. (RADCLIFFE, 1981: 34)10
Além disso, “a sua figura impressionava”, pois tinha “qualquer coisa de terrível
em seu aspecto: algo de sobre-humano” (apud PRAZ, 1996: 75-76). E mais:
10
“There lived in the Dominican convent of the Spirito Santo, at Naples, a man called father Schedoni; na
Italian, as his name imported, but whose family was unknown, and from some circumstances, it appeared,
that he wished to throw na impenetrable veil over his origin. For whatever reason, he was never heard to
mention a relative, or the place of his nativity... [...] There were circumstances, however, which appeared
to indicate him to be a man of birth, and of fallen fortune; his spirit, as it had sometimes looked forth from
under the disguise of his manners, seemed lofty; it shewed not, however, the aspirings of a generous
mind, but rather the gloomy pride of a disappointed one. Some few persons in the convent, who had been
interested by his appearance, believed that the peculiarity of his manners, his severe reserve and
unconquerable silence, his solitary habits and frequent penances, were the effect of misfortunes preying
upon a haughty and disordered spirit; while others conjectured them the consequence of some hideous
crime gnawing upon na awakened conscience.”
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
38
O seu capuz, também, ao fazer uma sombra sobre a lívida palidez de sua
face, aumentava seu caráter severo, e produzia um efeito nos seus grandes
olhos melancólicos, próximo do horror. Sua melancolia não era a de um
coração ferido e sensível, mas aparentemente a de uma natureza soturna e
feroz. Havia na sua fisionomia um não sei quê de extremamente singular,
difícil de definir. Trazia as marcas de muitas paixões, que pareciam ter
fixado os lineamentos que agora não mais animavam. Tédio e severidade
habituais predominavam nas linhas profundas de sua face e seus olhos eram
tão intensos que com um só olhar pareciam penetrar no coração dos homens
e ler seus pensamentos secretos: poucos podiam tolerar o exame minucioso
daqueles olhos, ou mesmo suportar vê-los uma segunda vez.
(RADCLIFFE, 1981: 35)11
Mario Praz detecta na descrição do personagem gótico de Ann Radcliffe “certos
elementos recorrentes nos homens fatais dos românticos: a origem misteriosa, que se
supõe ser elevada, os traços de paixões extintas, a suspeita de uma horrível culpa, o
hábito melancólico, a face pálida, os olhos inesquecíveis” (PRAZ, 1996: 76). Anne
Williams destaca, neste paradigma, o olhar sempre intenso e penetrante (WILLIAMS,
1995: 143), além do dado ambivalente, dual, de sua figura, no que nele se percebe a
incongruência entre interior e exterior, presente e passado, em uma natureza paradoxal e
ardilosa (Ibidem). Sua força e rudeza masculinas mascarariam uma capacidade
convencionalmente ‘feminina’ por sentimentos intensos (Idem: 143-144). Citando o
paradigma aristotélico, Williams sustenta que a dualidade do homem fatal, aliada ao seu
caráter erotizado e misterioso, definitivamente o incluiriam na “linha do mal”,
“feminina” (Idem: 144).
11
“His cowl, too, as it threw a shade over the livid paleness of his face, encreased its severe character, and
gave an effect to his large melancholy eye, which approached to horror. His was not the melancholy of a
sensible and wounded heart, but apparently that of a gloomy and ferocious disposition. There was
something in his physiognomy extremely singular, and that can not easily be defined. It bore the traces of
many passions, which seemed to have fixed the features they no longer animated. Na habitual gloom and
severity prevailed over the deep lines of his countenance; and his eyes were so piercing that they seemed
to penetrate, at a single glance, into the hearts of men, and to read their most secret thoughts; few persons
could support their scrutiny, or even endure to meet them twice.”
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
39
Em A luz no subsolo, vários traços do homem fatal podem ser vislumbrados no
personagem Pedro, a partir da ótica em que é visto por Madalena, ao se lembrar de
quando o vira pela primeira vez: “Fora então que o seu olhar caíra pela primeira vez
sobre Pedro. Estava imóvel, encostado a uma árvore e fitava-a. Ao encontrar o seu
vulto, estremecera e dissera num sussurro: “Está ali”...” (ALNS, p. 44). As descrições a
seguir guardam inegáveis semelhanças com a do herói de Ann Radcliffe, no que Pedro
também apresenta os traços de singularidade, fascínio e mistério:
Aquele alguém que se apoiava de um modo tão displicente no velho tronco
não se confundia com a massa escura e indistinta cujo vozerio enchia o ar
dourado da manhã: fixando-o melhor, percebia em torno dele um brilho
qualquer, um halo diferente, flutuando sobre sua pessoa e apartando-o da
multidão como a uma criatura eleita. [...] Continuando a reparar, chegara
entretanto à convicção de que estava realmente diante de um indivíduo
estranho, inexplicavelmente fora de seu ambiente natural. Mais tarde,
somente mais tarde, pudera compreender aquele sortilégio que o distanciava
das demais criaturas, ser destinado a permanecer à parte, dentro de uma
grandeza ou de uma miséria que não era a grandeza nem a miséria habitual
dos homens. (ALNS, p. 44-45)
[Madalena]... reconheceu subitamente o ser distanciado que estava encostado
à árvore. Estava dentro de uma atmosfera impenetrável e, nele, as sensações
se rompiam irremediavelmente. Nada resistia àquele rosto severo quase até o
mau humor, àquela decisão diabólica marcada nos olhos, nos lábios, na sua
pessoa inteira. (ALNS, p. 49)
Também Pedro possui o característico olhar intenso e penetrante: “Ele a
contemplara com aqueles olhos profundos, onde todas as coisas pareciam se perder,
olhos sem vida, sem luz, mas poderosos e cheios de mistério” (ALNS, p. 57). Madalena
percebe “seu estranho poder de dominar” (ALNS, p. 58) e o adivinha “caído como um
anjo-mau” (ALNS, p. 60). A fala de Pedro a Madalena apresenta contornos de suposta
maldição: “Lembre-se apenas de que você é uma alma pura e foi isso que me atraiu...
Naturezas como a nossa...” (ALNS, p. 62).
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
40
Madalena comporta-se como heroína de romances góticos de autoria feminina,
no que é ao mesmo tempo aterrorizada e fascinada por Pedro, deixando-se, porém,
apaixonar, casando-se com ele. Mas só até aí. A partir do casamento, Pedro torna-se um
marido indiferente e cruel, de modo que a personagem Madalena passa a se inscrever
também no arquétipo da “mulher perseguida”, enclausurada, pois, em dado momento
na narrativa “lembrava-se de que estava encerrada num quarto, separada de todos e que
ninguém poderia penetrar nesse quarto” (ALNS, p. 228), e molestada, conforme a
citação abaixo:
[Pedro] Bruscamente adiantou-se como um felino, a lamparina entre as
mãos, até o leito onde Madalena dormia. Um palor esverdeado, de chama
que se extingue, brilhava nas suas pupilas. A mulher dormia profundamente,
os cabelos palpitando no travesseiro branco. Uma onda de ódio subiu-lhe ao
peito e flamejou impiedosamente na sua consciência... Ele não podia se
livrar daquilo, era qualquer coisa mais forte do que a sua vontade, tão forte
que chegava a ter medo de ser subjugado pelas forças perversas que o
aprisionavam. Em certas noites, como aquela, sentia descer às suas entranhas
um tão grande desejo do mal, que se erguia precipitadamente, procurando
confundir no frio da noite a estranha inquietação que o envenenava.
Lembrava-se do que acontecera há alguns dias – um homem, numa casa
distante, estrangulara a mulher e enforcara o cadáver para simular que fora
suicídio. A morta ficara sozinha no casarão; ele esquecera uma porta aberta e
o vento da noite vinha balançar o corpo suspenso. Aquilo penetrava nas mais
fundas camadas do seu ser e ele sentia, como um calor se derramando, o
desejo tremendo de se libertar de alguma coisa que o subjugava. Na
claridade hesitante, sentia as suas mãos se alongarem como duas aranhas
ávidas. As têmporas latejavam; na sua cabeça gritos confusos despertavam
de jornadas distantes, e ouvia como num sonho a corda da enforcada ranger
na trave de ferro. O seu olhar descia novamente ao corpo adormecido, subia
aos olhos largos, ao nariz afilado, parecia sugar a forma suave do rosto... E
junto à pele clara, as suas mãos mais claras ainda, desconhecidas e inquietas.
Não sabia por que alimentava aquele horror pelas suas mãos... Tinha a
impressão de que viviam uma vida autônoma, que não ignoravam o seu
destino, cúmplices e criminosas. Estavam junto à garganta de Madalena e
pareciam gritar num rancor maior do que aquele que lhe transbordava no
coração. (ALNS, p. 193-194)
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
41
As narrativas góticas masculinas são obcecadas eroticamente com a transgressão
e a violação dos tabus (WILLIAMS, 1995: 172). Neste sentido concordamos com Paglia
quando diz que são a contrapartida inglesa para a obra do marquês de Sade, que se
compraz na perversão. Em A luz no subsolo o algoz sadeano não é outro senão o próprio
Pedro, que, além de assombrar sua esposa com suas mãos durante a noite,
prazerosamente acarretara a morte da menina Isabel durante a infância, jogando-a no
poço de propósito, fazendo com que pegasse uma pneumonia. Nisto a narrativa
inaugural do filão soturno da obra de Lúcio Cardoso procura o rompimento com os
valores burgueses vigentes, que poderíamos afirmar como sendo identificados com a
“linha do bem” aristotélica citada por Anne Williams. Pedro, personagem em busca do
“absoluto” e da transcendência, arrisca na maldade encontrar a ligação com o sagrado
perdido na modernidade. Afinal, a obra de Lúcio Cardoso prima pela busca de uma
“verdade” perdida, segundo atesta Maria Teresinha Martins: “... aquilo que é a
substância de sua obra: “a verdade” que revelará seu aspecto plural na estruturação e na
filosofia da vida das personagens” (MARTINS, 1997: 15). E, sobre “a visão trágica do
mundo” entrevista nos textos de Lúcio Cardoso, Maria Teresinha Martins corrobora
nossa afirmativa acima ao vinculá-la a “uma forma de o autor recapturar, de um modo
ou de outro, a unidade perdida do homem ante a massificação por que passava no século
XX” (Idem: 23).
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
42
Segundo Roland Barthes, a “clausura sadiana”, além de sua função prática de
“abrigar a luxúria das empreitadas punitivas do mundo”, manifesta também “uma
qualidade de existência, uma volúpia de ser”, havendo sempre, neste espaço composto
de “porões profundos, criptas, subterrâneos, escavações situadas na parte mais baixa dos
castelos, dos jardins, dos fossos”, um “segredo” (BARTHES, 1990: 20). Este segredo,
tanto em Sade, quanto no romance gótico inglês, como também em Lúcio Cardoso,
geralmente é de ordem sexual. Na clausura dos corredores escuros e dos cômodos
opressivos da casa-grande em que vivem, os personagens de A luz no subsolo são
atormentados por seus desejos eróticos: “Não é a carne que é má. É a impossibilidade da
carne” (ALNS, p. 206), sentencia Pedro a Bernardo. Bernardo deseja Madalena que
deseja Pedro que deseja Emanuela que não deseja ninguém, tal é a ciranda de
desencontros passionais que assolam os personagens atormentados da narrativa
cardosiana. A volúpia da transgressão que acomete Pedro está bem sintetizada na fala
do próprio personagem quando diz:
... também eu sinto isso. É um diabólico desejo de se rebaixar, de descer ao
mais fundo da ignomínia, de criar a vileza, se preciso for, contanto que se
sinta vil, que se sinta a vergonha queimar e arder e que escorra nos lábios o
gosto amargo da lama... Certas noites, percebo que alguma coisa espantosa
se passa comigo – é necessário que eu vagueie e que eu sinta inteiramente o
chamado sombrio que devora a minha alma... (ALNS, p. 210).
O enredo trágico do gótico masculino (WILLIAMS, 1995: 103) consuma-se na
queda do personagem que simbolicamente ocupa o lugar do senhor patriarcal, punido
por sua desmedida, a violação da Lei. Ele se destrói, ou perdendo seu reino, como
Manfred de O castelo de Otranto, ou morrendo (Ibidem), o que acontece com Pedro no
final de A luz no subsolo. Pelo fato de que os elementos que decretam sua queda são
todos relacionados na linha aristotélica do feminino (melancolia, incerteza, inação,
loucura, paixão e morte), efetivamente somos obrigados a admitir que, embora
apresentando a possibilidade de transcendência do jugo da natureza a partir da
religiosidade católica, a narrativa cardosiana em questão corrobora a tese do feminino
como agente destruidor do patriarcalismo, principal substrato das narrativas góticas
inglesas de autoria masculina, apresentando, portanto marcas desta tradição mais
profundas, além dos elementos mais óbvios do espaço e da atmosfera de terror, palavra,
aliás repetida várias vezes ao longo das páginas de A luz no subsolo.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
43
O feminino da catástrofe gótica, por sua vez, vincula-se à matriz dionisíaca da
cultura grega, com toda sua carga de indiferenciação, propiciando assim, mesmo que
desastrosamente, a quebra da individuação que enclausura os personagens. As páginas
do romance de Lúcio Cardoso, no entanto, primam pelo rigor formal no uso da norma
culta da Língua Portuguesa e pela plasticidade estetizante, o que faz com que
“verdades” ctônicas sejam apresentadas a partir de belas máscaras apolíneas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Teresa de. “Marcas do texto: Julien Green e outros”. In: CARDOSO,
Lúcio. Crônica da casa assassinada. Edição crítica coordenada por Mario Carelli.
2a.ed. Espanha: ALLCA XX; São Paulo: Scipione Cultural, 1996. (Colección
Archivos,
18).
ARISTÓTELES. “Da alma”. In: Os pré-socráticos. Trad. Wilson Regis. São Paulo:
Abril Cultural, 1973. (Col. Os pensadores, I).
______. Metafísica. Trad. Vincenzo Cocco.. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Col. Os
pensadores, IV).
AYALA, Walmir. “Lúcio Cardoso”. In: COUTINHO, Afrânio (dir.). A literatura no
Brasil. 3a ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Niterói : EDUFF, 1986. (Volume V: Era
Modernista).
BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo:
Brasiliense, 1990.
BOUÇAS, Luiz Edmundo. “Um dandy decadentista e a estufa do novo”. In: RIO, João
do. A mulher e os espelhos. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Dep.Geral
de Doc. e Inf. Cultural, Divisão de Editoração, 1995.
BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: tragédia e comédia. Petrópolis: Vozes,
1985.
CÂNDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. 1º volume (1750-1836). 6a ed.
Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.
CARDOSO, Lúcio. A luz no subsolo. 2a ed. Rio de Janeiro: Editora Expressão e
Cultura, 1971.
CARELLI, Mario. “A consumação romanesca”. In: CARDOSO, Lúcio. Crônica da
casa assassinada. Edição crítica coordenada por Mario Carelli. 2a ed. Espanha:
ALLCA XX; São Paulo: Scipione Cultural, 1996. (Colección Archivos, 18).
______. Corcel de fogo: vida e obra de Lúcio Cardoso (1912-1968). Trad. Júlio
Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.
MARTINS, Maria Teresinha. Luz e sombra em Lúcio Cardoso. Goiânia:
UCG/CEGRAF, 1997.
PAGLIA, Camille. Personas sexuais: arte e decadência de Nefertite a Emily
Dickinson. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
PRAZ, Mario. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica. Trad. Philadelpho
Menezes. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996.
______. “Introductory essay”. In: FAIRCLOUGH, Peter (editor). Three Gothic
novels. London: Penguin, 1986.
RADCLIFFE, Ann. The Italian, or, the confessional of the black penitents. Oxford:
Oxford University Press, 1981.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa
Castello. São Paulo: Perspectiva, 1975.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
44
WALPOLE, Horace. “The castle of Otranto”. In: Four Gothic novels. Oxford : Oxford
University Press, 1994.
WILLIAMS, Anne. Art of darkness: a poetics of Gothic. Chicago: The University of
Chicago Press, 1995.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
45
REFLEXÕES SOBRE PROCESSAMENTO DE
SENTENÇAS
Sandra Pereira Bernardo (UERJ / PUC-Rio)
INTRODUÇÃO
Duas grandes questões subjazem às pesquisas sobre processamento de frases:
que tipo de informação é usada pelo aparato mental processador (parser) de uma
sentença? E como essa informação é utilizada durante o processamento? Essas questões
são seminais no âmbito da Psicolingüística e das Ciências Cognitivas, porque
configuram um divisor de águas para as duas concepções básicas sobre a capacidade da
linguagem: aquela que postula a existência de módulos encapsulados responsáveis pelo
processamento da linguagem e aquela que propõe um aparato cognitivo mais interativo,
do qual o componente responsável pela capacidade da linguagem faz parte.
No que concerne ao processamento de frases, o postulado de módulos
encapsulados para processamento da linguagem pressupõe uma hierarquia e uma
serialidade para atuação do parser, inviabilizando, por exemplo, a utilização de
informação semântica no primeiro repasse do processamento de uma sentença (Frazier,
1987; Clifton & Ferreira, 1989; Clifton & Frazier, 1989, entre outros). Nesse primeiro
repasse, à medida que as palavras são acessadas, o processador as acomoda em um
construto sintático hierarquicamente determinado pela função de cada palavra.
Por outro lado, a concepção teórica que concebe uma ligação entre o aparato
mental para capacidade da linguagem e outros componentes da cognição, postula a
possibilidade de um processamento interativo, em paralelo, durante o qual o
processador utilizaria informações semânticas e pragmáticas na compreensão de uma
sentença. Tal concepção teórica subjaz aos modelos conexionistas.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
46
Entretanto, a modularidade não exclui a possibilidade de um modelo modular
paralelo em que diferentes módulos trocam informações distintas, como, por exemplo,
os processadores concebidos por Steedman & Altmann (1989) e Tanenhaus, Carlson &
Trueswell (1989), que processam informações semânticas e sintáticas simultaneamente
no primeiro repasse do parser.
Neste trabalho, pretende-se especular sobre a interferência de informação
semântica no processamento de sentença, a partir de um estudo da compreensão do
sujeito de orações reduzidas ambíguas. Orações com ambigüidade constituem uma
fonte rica de perguntas acerca do processamento de frases, colocando em xeque a
existência de um construtor de estruturas sintáticas automatizado que não leva em conta
o significado lexical durante o primeiro acesso aos constituintes frasais.
A motivação para este estudo preliminar originou-se de reflexões sobre as
seguintes frases:
(a) Pendurado no galho mais alto da árvore, o menino avistou um ninho de
marimbondos.
(b) Pendurado no galho mais alto da árvore, o pára-quedista avistou um ninho
de marimbondos.
Em situação de teste informal, foi solicitado a dois indivíduos que prestassem
atenção à enunciação de uma frase, para que em seguida fosse respondida uma pergunta
sobre a mesma. Expressa a sentença, perguntou-se quem estava pendurado no galho da
árvore. Os dois sujeitos responderam um ninho de marimbondo. A um terceiro
indivíduo foi enunciada a sentença (b), utilizando-se contextualização idêntica para
solicitação da tarefa. Feita a mesma pergunta, o falante respondeu o pára-quedista.
As respostas fornecidas pelos falantes propiciaram a postulação de problemas
específicos para este estudo. Um pára-quedista seria um candidato mais plausível a
estar pendurado na árvore do que um menino, em se tratando de (b)? Ao ter de
responder sobre a sentença expressa oralmente, teriam os sujeitos sofrido um efeito de
recência no caso de (a). Em ausência de um contexto para auxiliar a compreensão de
frases ambíguas, o que está “pré-setado” em termos de processamento do sujeito? Que
postulados teóricos estão relacionados a essas respostas? Assim, tais questões nortearão
o presente trabalho.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
47
Na segunda seção, abordam-se os pressupostos teóricos envolvidos no problema
estudado. Tratar-se-á, na terceira seção, da descrição do experimento realizado. Na
quarta seção, passar-se-á aos resultados e à discussão destes. Por último, apresentar-seão as considerações finais.
Pressupostos teóricos
O conceito de parsing foi introduzido em psicolingüística, e em disciplinas
interessadas na descrição e explicação da compreensão da linguagem, para explicar a
capacidade humana de processar sentenças, tornando psicologicamente real a postulação
de construtos mentais que acomodam hierarquicamente os constituintes frasais durante
o processamento. Assim, o parser seria o responsável pela atribuição de categorias
gramaticais e pelas relações estruturais entre os constituintes de uma sentença,
desconsiderando o significado dos mesmos.
Diante dessa conceituação, surge uma questão fundamental para as pesquisas
sobre a compreensão humana de sentenças: como se estabelecem as relações entre
parsing e interpretação, visto que esta é a responsável pela integração das informações
fornecidas pelos constituintes e suas dependências estruturais, mantendo-as em algum
nível interno de representação para retratar os eventos expressos nas sentenças.
Logo, encontram-se na literatura modelos de processador sintático, objetivando
responder a essa pergunta, que ora descrevem uma interação entre informação
semântica e parsing, ora uma independência entre as etapas de postulação dos
marcadores frasais e de atribuição de sentido à sentença. Os primeiros constituem os
modelos paralelos de processamento e, em alguns casos, se coadunam com uma visão
interativa, ou seja, uma integração forte entre a capacidade da linguagem e outras
capacidades cognitivas humanas; os últimos são seriais e se identificam com uma
concepção modular da capacidade de linguagem humana.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
48
As orações ambíguas constituem um interessante objeto de estudo porque
requerem algumas vezes informações semânticas e pragmáticas para sua compreensão,
o que coloca em xeque o encapsulamento dos módulos responsáveis pela linguagem,
suscitando perguntas acerca das preferências do parser e, em geral, apresentando
algumas limitações determinados modelos de processamento. Embora não exista um
modelo consensual, a literatura tem apresentado resultados promissores no estudo da
compreensão de sentenças, entre os quais serão resumidos, em seguida, os modelos
considerados mais relevantes para o trabalho aqui exposto.
Entre as teorias modulares seriais de processamento sintático, destaca-se a do
garden-path (FRAZIER, 1987), cujo pressuposto básico é o da escolha da primeira
análise disponível. De acordo com essa teoria (doravante TGP), também denominada
teoria do labirinto, porque o parser cai em uma espécie de beco sem saída durante o
processamento, o mecanismo processador de sentenças utiliza inicialmente apenas seus
conhecimentos gramaticais, desconsiderando informações semânticas e pragmáticas.
O princípio básico da escolha da primeira análise disponível realiza-se através de
duas estratégias de parsing:
a de Ligação Mínima (Minimal attachment, doravante MA), segundo a qual o
parser deve postular o menor número de nós, ou seja, o menor número possível de
sintagmas para acomodar as palavras que vão sendo percebidas; e
a de Fechamento Tardio (Late Closure, doravante LC), de acordo com a qual, se
for consistente com as regras da gramática, cada palavra que surge durante o input de
uma sentença deve ser ligada ao sintagma em análise.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
49
Tais estratégias, que explicariam a facilidade ou a dificuldade de compreensão de
várias configurações sentenciais, constituem refinamentos do princípio da associação à
direita, postulado por Kimball (1973: 24), para quem “símbolos terminais são
otimamente associados ao nó não-terminal mais baixo”. Segundo Frazier (1987), a
escolha da primeira análise, ou seja, realizar o MA, é um caminho “geral e
psicologicamente motivado” a ser seguido pelo parser. As sentenças abaixo expressam,
segundo Clifton Jr. & Ferreira (1989), a relevância das estratégias de MA e LC do
parsing:
(1a) Eu vi Maria.
(1b) Eu vi Maria sair
Em (1a), observa-se a interferência da estratégia de MA, que prediz a preferência
pela aposição do SN ao SV; em (1b) o parser cairia em um garden-path e reanalisaria a
sentença utilizando a estratégia de non-minimal attachment (doravante NMA).
Face a uma oração com ambigüidade, esta seria resolvida somente com base na
estrutura sintática. Rayner, Carlson & Frazier (1983) postulam a atuação de um
processador temático para guiar o parser durante a reanálise, quando ocorre gardenpath. Assim, primeiro é construído um marcador sintático, para, em seguida, serem
computadas as informações semânticas, que apoiariam a interpretação de frases como:
(2a) O espião viu o policial com o binóculo.
(2b) O espião viu o policial com o revólver.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
50
Em (2a), a análise preferida será, segundo os referidos autores, ligar com
binóculo ao verbo ver, enquanto em (2b) tal ligação acarretaria um efeito de
implausibilidade, que forçaria o parser a reanalisar a oração, guiado por um processador
temático, apondo o SP com binóculo ao SN policial. O parser procederia de forma
semelhante quanto à oração (3) Coloque a xícara sobre a mesa na pia: ao utilizar o MA,
o parser ligaria inicialmente o SP sobre a mesa diretamente ao verbo coloque, caindo
em um labirinto a partir da entrada de novo material na pia, percebido pelo processador
com base nas análises sintática e semântica, respectivamente.
A existência de estratégias de NMA é tomada por autores, como Taraban &
McClelland (1988), Altmann & Steedmann (1988) e Tanenhaus, Carlson & Trueswell
(1989), para a postular a atuação de um processador temático na primeira análise do
parser, pois, segundo autores que advogam tal procedimento para o parsing, um
processador eminentemente sintático não detectaria ambigüidades relacionadas a
labirintos semânticos como em (5) Marcaram encontro em frente ao banco.
Na concepção de Taraban & McClelland (1988), a aposição de SP a um SV, ao
invés de a um SN, relaciona-se a fatores semânticos. Os Autores fundamentam seu
argumento através do resultado de testes com leitura auto-controlada em que sentenças
como (7a) apresentam um tempo de leitura menor que (7b), a qual teria sua
processamento orientado por um MA. Segundo T. & M. (op. cit.), a preferência pela
estratégia de NMA deve-se a expectativas temáticas suscitadas pelo verbo durante a
análise inicial do processador.
(7a) Os ladrões roubaram todas pinturas no museu.
(7b) Os ladrões roubaram todas as pinturas à noite.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
51
Entre as teorias contrárias a TGP destaca-se a proposta de Altmann & Steedman
(1989), denominada Teoria Incrementacional Interativa (incremental-interactive theory,
doravante TII), que trabalha com a noção de plausibilidade, advinda de bases
referenciais e contextuais, as quais impediriam o surgimento garden-path, quando o
parser estivesse diante de dois caminhos sintáticos. Nesse sentido, a estruturação das
diversas configurações sentenciais poderia ocorrer simultaneamente; para os autores, a
compreensão só é interrompida quando há relações de referência inapropriadas, o que
ocorre na maioria das demonstrações em favor do MA.
A TII tem o princípio do apoio referencial como um de seus pressupostos
básicos. De acordo com esse princípio “a análise de um SN referencialmente baseado
será favorecida em relação a um que não é”. Para que um referente esteja
referencialmente baseado é necessário que todas as suas pressuposições referenciais
sejam satisfeitas pelo um contexto, a presença de um SN simples como o livro
pressupõe a existência de um único livro em um modelo de discurso relevante; enquanto
um SN modificado, como uma oração relativa ou sintagma preposicional – o livro que
eu comprei ou o livro na mesa, respectivamente –, pressupõem a existência de um
exemplar, dentro de conjunto de entidades, que possui certas propriedades, as quais
permitiram seu acesso durante o processamento.
O princípio do apoio referencial é um subprincípio do princípio da parcimônia
de Altmann & Steedman (1988), que favorece uma análise com menos pressuposições,
ou seja, a preferência do parser, frente a um contexto indeterminado, será pelo SN
simples.
Altmann & Steedman (1989) ressaltam os seguintes caracteres da TII:
a influência da interpretação e da referência sobre processamento sintático está
limitada a um fraco processo de avaliação do encaixe do contexto das interpretações nas
análises sintáticas produzidas autonomamente. Trata-se de um modelo modular
paralelo com processamento semântico on line, que se opõe às teorias conexionistas, as
quais postulam uma interação forte entre o componente responsável pelo processamento
da linguagem e outras capacidades cognitivas ligadas ao conhecimento de mundo;
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
52
as interpretações em questão podem ser construídas incrementalmente, mais ou
menos palavra por palavra, e analisadas como favoráveis ou não, antes dos constituintes
estarem sintaticamente completos.
O que subjaz à diferença entre um parsing serial (TGP) e um paralelo (TII) é o
tempo, ou seja, se o parser atrasa o processamento até a sentença se completar, como
ocorre com os modelos seriais, ou se as palavras vão sendo interpretadas no momento
em que são percebidas, como ocorre nos modelos paralelos, segundo o princípio da
imediaticidade de Just & Carpenter (1980, apud SINGER 1990).
Em se tratando de sentenças ambíguas, esse princípio representa uma economia
para a memória de trabalho, já que durante o input tem-se acesso às análises
disponíveis, sem a necessidade de esperar o fim da sentença. No caso da sentença (8)
João comprou flores para Suzana, em que há duas possíveis leituras – ‘as flores foram
compradas para atender a um pedido de Suzana’ e ‘as flores foram compradas para
presentear Suzana’ –, ao ouvir a preposição para, o compreendedor escolherá uma
dessas interpretações e a manterá, a menos que nova evidência em contrário seja
fornecida.
A hipótese de atraso do processamento, concepção contrária à imediaticidade,
assume as seguintes formas: (i) durante o processamento, a memória de trabalho
acumula várias palavras antes de interpretá-las (KIMBALL, 1973; MARCUS, 1980;
apud SINGER, 1990); (ii) o processamento em nível mais alto começa com o onset12 de
uma palavra, mas não pode se completar até que o compreendedor tenha acesso a outras
palavras ao longo do discurso (EHRLICH & RAYNER, 1983; RAYNER, 1977; apud
SINGER, 1990); (iii) as análises sintática e semântica procedem continuamente, porém,
quando mais interpretações são possíveis, tudo é mantido na memória até que uma
evidência decisiva seja encontrada. Uma vantagem do atraso do processamento é que
este pode prevenir o parser quanto à possibilidade de decisões incorretas.
12
Gorrell (1995) define onset como ponto de partida da ambigüidade, na sentença Ian knows Thomas is a
train, por exemplo, o onset da ambigüidade é o verbo know, porque pode selecionar um complemento
nominal ou sentencial.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
53
Pode-se interpretar, a partir de reflexões como as de Dillinger (1992), que os
diferentes parsings, atrasado ou imediato, são manifestações do mesmo fenômeno
observado em momentos diferentes no tempo, já que pesquisas vem revelando
vantagens em tarefas específicas para cada um: procedimentos imediatos estariam
relacionados ao processamento de constituintes sintáticos, enquanto os atrasados, à
identificação de referentes.
Tanenhaus, Carlson & Trueswell (1989), seguindo a corrente teórica que
concebe uma análise semântica inicial do parser, tratam da importância dos papéis
temáticos dos verbos e de como estes se relacionam com o processador.
Segundo os autores, os papéis temáticos13 são importantes porque auxiliam as
decisões do parsing, mediando as informações advindas do contexto discursivo ou
conhecimento geral. Tais papéis são parte de um fenômeno semântico ou conceitual
estreitamente associado à estrutura sintática/lexical de uma sentença; por isso, estão
intimamente relacionados à estrutura da sentença, propiciando-lhe uma forma de
representação para acesso a conceitos e significados dos elementos do discurso
mapeados pela forma sintática. Devido a essa propriedade, os papéis temáticos devem
ser extremamente úteis ao sistema de compreensão, coordenando diferentes tipos de
informação.
A informação temática, ao ser usada no processamento de sentenças para
reconhecimento de um verbo, disponibiliza as seguintes informações: a representação
semântica ou sentido do verbo; os papéis temáticos associados ao verbo; os tipos de
constituintes que podem servir como complementos de um verbo; e como os papéis e
constituintes são conectados um ao outro.
13
Papel temático é definido pelos autores como “possíveis papéis semânticos que podem ser
desempenhados por complementos subcategorizados (ou argumentos) pelos verbos” (p. 212).
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
54
Ao acessar as informações temáticas, sempre que um verbo é encontrado em um
contínuo discursivo, o sistema de compreensão não só projeta expectativas sobre o tipo
de elemento que pode figurar depois do verbo, mas também pode conferir um
significado provisório para a sentença como um todo através da atribuição de
identidades particulares aos elementos, temporariamente não especificados, que
desempenham, por exemplo, os papéis de tema e de recipiente, esperando a denotação
de sintagmas pós-verbais. O sistema de compreensão pode ainda atribuir os papéis de
tema e de recipiente a uma entidade já introduzida no discurso, ou na mesma sentença,
até que novas evidências em contrário sejam encontradas.
A
partir
dessa
hipótese
de
atuação
da
informação
temática
no
parsing, Tanenhaus, Carlson & Trueswell (1989) analisam experimentos para validar
esse procedimento em diferentes configurações sentenciais.
Os autores analisaram os experimentos de Rayner et al. (1983), com sentenças
do tipo de (2), repetido em (9), e verificaram a existência de um viés semântico na
utilização da estratégia de MA, que prediz a aposição do SP ao SV para (9a), porque
binóculos é interpretado como um coerente instrumento do verbo ver. Para (9b), essa
leitura não é possível, devido à incoerência inerente à interpretação de com o revólver
como instrumento do verbo ver.
(9a) O espião viu o policial com o binóculo, mas o policial não o viu.
(9b) O espião viu o policial com o revólver, mas o policial não o viu.
Rayner et al. (1983) utilizaram o fato de os sujeitos testados não terem repetido a
leitura de (9a), mas a de (9b), para postular a existência dois processadores: um sintático
e outro temático, este analisaria o output daquele. Em caso de os outputs não
coincidirem, o conflito seria resolvido com base nas informações do processador
temático. Nesse sentido, ao contrário do postulado pela TII, o compreendedor cairia em
garden-path.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
55
Entretanto, como reportam Tanenhaus, Carlson & Trueswell (1989), Taraban &
McClelland (1988), argumentaram contra essa interpretação, alegando que a ausência de
repetição de leitura de (9a) estava relacionada a fatores semânticos. Para corroborar a
contra-argumentação, T. & M. (op. cit.) desenvolveram testes em que o viés também
conduziria a aposição do SP ao SN e obtiveram tempos de leitura igualmente rápidos
para ambas as ligações com presença de influência da informação semântica.
Quanto ao processamento de orações relativas reduzidas em inglês, Tanenhaus,
Carlson & Trueswell (op. cit.) analisam resultados que permitem verificar a influência
do traço [+ animado] no processamento de frases como (10) The lawyer sent the memo
arrived late, em que os sujeitos testados chegam a um labirinto, porque, devido a
coincidência nas formas verbais do perfeito e do particípio passado, preferem interpretar
the lawyer como sujeito de uma oração principal.
Observa-se a tendência desse mesmo traço ser interpretado preferencialmente
como agente também em fronteiras de oração com ambigüidade, como nas sentenças
(11):
(11a) Even before the police stopped the driver was getting nervous.
(11b) Even before the truck stopped the driver was getting nervous.
que conduziram os sujeitos ao garden-path em (11a), devido ao favorecimento de um
leitura causativa quando sujeito é animado contra uma interpretação intransitiva para
sujeito inanimados.
Sentenças com dependência de relações a distância consistem em outro tipo de
configuração sintática em que, segundo Tanenhaus, Carlson & Trueswell (op. cit.), as
representações temáticas são usadas na interpretação. Nesse sentido, um sintagma
interrogativo ou relativo deve estar associado a uma categoria vazia da oração seguinte,
como nos exemplos (12):
(12a) Wich customeri did the secretary call __i about the article?
(12b) That’s de guy whoi Susanj wanted PROj to marry __i.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
56
Sob uma explicação baseada na informação temática, assume-se que o
preenchedor pode ser associado diretamente ao papel temático do verbo tão logo este
seja reconhecido. Os autores referem-se a estudos, como o de Tanenhaus, Boland,
Garnsey & Carlson (1989), que sugerem uma associação dos preenchedores de
categorias vazias a representações temáticas ao invés de sintáticas, porque o verbo torna
disponível um conjunto de papéis temáticos. Esse postulado se opõe ao de Frazier et al.
(1983), que propõem um atraso no uso de informação semântica.
Na acepção de Tanenhaus, Carlson & Trueswell (op. cit.), o significado da
estrutura temática do verbo permite que leitor e ouvinte construam rapidamente um
esquema de representação que inclua os componentes centrais da situação descrita pelo
verbo. Tal representação desempenha um importante papel, propiciando ao sistema de
compreensão o desenvolvimento de interpretações tão rápidas.
A leitura desses Autores comprova a hipótese de que a informação temática
permite desambiguação de uma sentença, na medida em que auxilia o parser a
selecionar uma entre as possibilidades morfológicas vislumbradas. O paralelismo dessa
concepção teórica não está relacionado à busca realizada por vários parsers completos
em paralelo, mas a acessos paralelos morfológicos e, mais geralmente, ao acesso
imediato e uso de informação lexical. Assim, os papéis temáticos fornecem um
mecanismo para o conhecimento geral e contexto interagirem com o processamento
sintático na resolução da ambigüidade sintática, eliminando o número de garden-paths,
freqüentemente atribuídos a estratégias de aposições sintáticas (p. 231).
Os Autores ressaltam que o processamento temático depende, pelo menos
parcialmente, do output do processamento sintático, visto que avaliar o encaixe de um
constituinte em um particular papel depende de um “parseamento” correto desse
constituinte. Os processamentos temático e sintático de fato interagem, já que a
informação sintática pode ser utilizada para evitar uma atribuição temática incorreta e
vice-versa. Portanto, há evidências de que a informação temática pode ser usada na
seleção entre duas análises sintáticas em competição, sob a hipótese de que existe um
certo grau de paralelismo (talvez lexicalmente baseado) no sistema de compreensão
(p.232).
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
57
Os modelos e hipóteses resumidos aqui encerram valiosos avanços nas pesquisas
sobre processamento sentenças. A adequação de um em detrimento de outros
dependerá do tipo de sentença produzida, visto que não há evidência categórica em
favor de um modelo. A aplicação de tais modelos na compreensão de orações reduzidas
em português com ambigüidade total será discutida adiante.
DESENHO DO EXPERIMENTO
Nesta seção, será apresentada a descrição dos testes informais realizados com
alunos de graduação de uma universidade localizada no Rio de Janeiro. Trata-se de
testes informais, porque não foi possível realizar experimentos com aparelhos capazes
de medir o tempo de processamento e a presença de releitura das sentenças. Devido à
sua natureza preliminar, esses testes informais podem apresentar falhas metodológicas.
As sentenças que compuseram o teste foram extraídas ou adaptadas de um
manual de redação (MORENO & GUEDES, 1991), com intuito de verificar se o
conceito de ambigüidade fornecido pelo manual tem uma evidência psicológica, ou seja,
se em termos de processamento essa ambigüidade é percebida. Foi testada a
compreensão de orações reduzidas de gerúndio, de particípio e de infinitivo.
Os sujeitos receberam um bloquinho com oito frases, uma em cada folha, na qual
continha uma pergunta no verso, para evitar releitura e para explorar, ao máximo,
respostas-reflexo. Nesse sentido, também solicitou-se que a tarefa fosse realizada o
mais rápido possível. A pergunta do tipo QU- foi concebida com objetivo de indagar
sobre o sujeito14 da ação expressa pelo verbo da oração reduzida. Assim, os indivíduos
liam a frase, viravam a folha e respondiam à questão: por exemplo, à sentença
Enterrado no quintal, o cachorro tentava achar o osso seguia-se a pergunta Quem
estava enterrado?. Não havia qualquer tipo de enunciado, a tarefa foi solicitada
oralmente pelo pesquisador. Foram obtidos oito testes de cada grupo de sentenças, que
podem ser verificados em anexo.
14
Toma-se por sujeito uma entidade sobre a qual é veiculada alguma informação ou condição expressa
pelo verbo, à qual pode ser atribuído papéis temáticos de agente,alvo, tema, recipiente etc.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
58
Há diferentes tipos de ambigüidade em conformidade com a presença de
referentes15 candidatos a sujeito: (i) sentenças que apresentam explicitamente dois
referentes aptos a sujeito da reduzida; (ii) aquelas que expressam um referente explícito
e um indeterminado (em terceira pessoa) como possíveis sujeitos; e (iii) sentenças que
só oferecem um provável sujeito indeterminado, em terceira pessoa.
Alguns casos de ambigüidade que podem ser questionados, porque se relacionam
à ordem em que as sentenças foram configuradas. As dúvidas surgidas na interpretação
de algumas sentenças parece corroborar a inadequação de se ensinar construção de
frases a partir de períodos descontextualizados. Entretanto, esses casos duvidosos
foram mantidos no teste como sentenças para controle, servindo de contraponto para
análise de outras ocorrências de ambigüidade.
Em seguida, expõem-se as frases e observações acerca do objetivo a ser atingido
com cada sentença, que estão arroladas conforme o valor sintático (adjetivas,
adverbiais) e o tipo de forma verbal nominal da oração reduzida.
(1a) Pendurado no galho da árvore, o menino avistou um ninho de marimbondos.
(1b) Pendurado no galho da árvore, o pára-quedista avistou um ninho de
marimbondos.
(2a) Enterrado no quintal, o cachorro tentava achar o osso.
(2b) Enterrado no quintal, o cachorro tentava achar o sapo.
(3a) Apanhado com o bolso cheio de relógios, o guarda prendeu Jerônimo.
(3b) Apanhado com o bolso cheio de relógios, Sérgio prendeu Jerônimo.
(4) O rapaz pendurado no andaime caiu.
(5) O quadro afixado na parede caiu.
(6) Vimos várias reses, descendo a serra.
15
O termo referente é utilizado para designar uma representação mental evocada por uma forma
lingüística que ativa um conjunto de conhecimentos.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
59
(7a) Por ser calouro, Machado de Assis não significava nada para Paulo
Carvalho.
(7b) Por ser calouro, Murilo Rubião não significava nada para Paulo Carvalho.
(8a) Para ser completamente dessensibilizado, o anestésico deve ser injetado sob
a pele.
(8b) Para ser completamente dessensibilizado, o anestésico deve ser injetado sob
a pele de Pedro.
(9) Para verificar os freios, a roda tem de ser removida.
(10a) Preso e jogado na prisão, o coração de sua mãe não agüentou.
(10b) Preso e jogado na prisão, o irmão de sua mãe não agüentou.
(11a) Ressentido e humilhado pelo barão, um plano de vingança começou a
surgir em sua mente.
(11b) Ressentido e humilhado, um plano de vingança começou a surgir em sua
mente.
(12) Navegando com todas as velas ao vento, a ilha foi avistada.
(13a) Depois de pôr minhoca no anzol, um peixe começou a beliscar.
(13b) Depois de instalar o som, o mestre de cerimônias iniciou a festa.
(14) Vimos várias reses, ao descer a serra.
(15) O anel foi encontrado pelo policial.
(16) Um tesouro foi resgatado pela equipe.
Busca-se, através das sentenças (1), (2), (8), (10) e (13), testar a interferência dos
traços semânticos [± humano] e [± animado] na atribuição dos argumentos do verbo,
pois a influência da informação semântica no parsing consiste na principal hipótese
deste trabalho.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
60
A sentença (3a), arrolada como ambígua no livro didático, não foi analisada
como tal neste artigo. Seria incoerente um guarda portar jóias ao prender uma pessoa, a
hipótese é que o contexto do período, devido ao papel temático do verbo prender da
oração principal, encaminha a interpretação do sujeito da adjetiva reduzida. A frase
(3b) foi elaborada para verificar, se a interpretação seria diferente da de (3a), caso a
palavra guarda não figurasse na oração principal. Acredita-se que a classificação de
ambígua dada ao período deva-se à posição da oração reduzida, a qual deveria ser
expressa após a principal, como em (4), (5) e (6), inseridas no teste como distratoras.
O conjunto de sentenças (11), do qual (11a) também foi classificada por Moreno
& Guedes (1991) como ambígua, inclui-se no mesmo problema levantado em relação à
(3), sendo que só podem apresentar sujeito em terceira pessoa.
As frases (7), com as quais se visa observar a interferência de conhecimento de
mundo na seleção para o sujeito, apresentam três tipos de referente: Machado de Assis,
considerado um escritor conhecido do publico universitário; Murilo Rubião, também
escritor, supostamente menos conhecido; e Paulo Carvalho, inventado. Espera-se que a
atribuição de calouro ao sujeito da reduzida suscite menos escolhas de Machado de
Assis como sujeito em relação aos demais.
O período (9) talvez tenha sido apontado como ambíguo no manual devido à
inversão das orações e por não haver um candidato explícito a sujeito; entretanto,
acredita-se que, sem contexto mais amplo, pode-se atribuir um agente indeterminado
para o verbo verificar, sem que haja problemas no processamento.
A sentença (12), também analisada como ambígua, apresenta três referentes
como
possíveis
sujeitos:
indeterminado,
tripulação [+ humano]
e
barco [-
animado]. Supõe-se que o verbo navegar selecione preferencialmente barco como
sujeito. Os períodos (14), (15) e (16) foram inseridos no teste como distratores.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
61
A discussão será apresentada subseqüentemente às tabelas com os resultados de
cada frase. Assim, nas tabelas abaixo podem ser verificadas as ocorrências de cada
sujeito das sentenças (1) a (3).
Sentenças
(1a) Pendurado no galho da árvore, o menino avistou um ninho de
marimbondos.
(1b) Pendurado no galho da árvore, o pára-quedista avistou um ninho
de marimbondos.
Sujeito da or. reduzida
o menino
7/8
pára-quedista
7/8
um ninho de marimbondo
1/8
um ninho de marimbondo
1/8
Sujeito da or. reduzida
Sentenças
(2a) Enterrado no quintal, o cachorro tentava achar o osso.
(2b) Enterrado no quintal, o cachorro tentava achar o sapo.
o cachorro
0/8
o cachorro
1/8
o osso
8/8
o sapo
7/8
Sujeito da or. reduzida
Sentenças
(3a) Apanhado com o bolso cheio de relógios, o guarda prendeu Jerônimo.
(3a) Apanhado com o bolso cheio de relógios, Sérgio prendeu Jerônimo.
o guarda
0/8
Sérgio
0/8
Jerônimo
8/8
Jerônimo
8/8
Nas sentenças (1), os indivíduos escolheram a primeira análise disponível ao
atribuir os marcadores sintáticos às orações, ligando primeiro o referente disponível,
nesse caso, com o traço [+ humano], à posição de sujeito da reduzida. Registrou-se,
entretanto, duas escolhas para um ninho de marimbondo, as quais representariam a
postulação de uma estrutura com um nó a menos. Tal escolha pode ser devida a um
efeito de recência para aqueles que ao responder a questão optaram pelo SN mais
recentemente armazenado na memória.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
62
Cabe ressaltar que essas sentenças foram ligeiramente modificadas em relação às
que motivaram este trabalho (cf. Introdução), quando em três sujeitos testados, também
informalmente, foram obtidas duas escolhas para um ninho de marimbondo contra o
menino, talvez em função do sintagma galho mais alto da árvore, o que teria deixado a
sentença mais longa, conduzindo a escolha do último SN plausível (efeito de recência)
ou a interpretação de que um menino não deveria estar em um galho mais alto. Devido
a essas dúvidas, decidiu-se simplificar o SP. Contudo, em razão do resultado expressivo
para o menino, caberia uma nova testagem para verificar se tal quadro seria mantido
com o SP galho mais alto da árvore.
Os resultados das sentenças (2) também apontaram para escolha que exprime
uma estrutura com menor número de nós, já que o osso foi categoricamente selecionado
em (2a) e o sapo, quase categórico, em (b), não obstante a diferença entre os traços
animado e inanimado dos potenciais sujeitos. O registro de um caso de opção por o
cachorro em relação a o sapo poderia estar ligado à implausibilidade de sapos estarem
enterrados em quintais e a possibilidade de um cachorro ter cavado um buraco grande o
suficiente para o engolir, embora em termos atribuição de marcadores sintáticos, a
opção por o cachorro represente um nó a mais na estrutura frasal.
É interessante refletir sobre a diferença entre as orações de (1) e (2), no que tange
à posição dos referentes preferidos para sujeito, pois nas sentenças (1) há uma carga de
processamento maior em razão dos SPs da árvore e de marimbondo em relação a
(2). Em se imaginando um parsing imediato, que vai construindo hipóteses à medida
que cada palavra vai sendo percebida, o primeiro candidato a sujeito da reduzida seria,
de fato, um dos escolhidos; entretanto, frente a sentenças menores, o parsing teria
construído os marcadores após o término das orações, aguardando um referente mais
plausível que cachorro. Haveria uma relação entre o uso estratégias semânticas e carga
de processamento, já que a percepção visual pode antecipar uma tarefa mais custosa
para memória de processamento em caso de sentenças longas?
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
63
Embora não tenha sido possível medir o tempo de processamento das sentenças,
é possível postular que o parsing foi construindo a análise incrementalmente e, ao
interpretar um referente como um sujeito plausível para a reduzida, fez sua escolha. No
caso de (2), a escolha preferida coincide com uma estrutura mais simples; em (1) ocorre
o oposto, o que pode revelar a criação de um esquema de representação para as
sentenças com base no contexto semântico.
Os resultados de (3), utilizadas para controle, corroboram a influência das
informações semânticas sobre o parsing, já que as duas sentenças apresentam a mesma
quantidade de marcadores sintáticos (10 nós). Tal resultado reforça também o princípio
cognitivo do parsing de Bever (1970), segundo o qual qualquer seqüência de nomeverbo-nome corresponde a ator-ação-objeto, relacionando a ordem da estrutura
superficial à informação semântica. Essa relação poderia ser um recurso tomado pelo
parsing, diante de dois possíveis temas para a oração reduzida. A questão da ordem
entre a orações principal e subordinada reduzida também seria um objeto de estudo
relevante para o processamento de sentenças, principalmente em se observando os
resultados das sentenças seguintes.
Sentenças
Sujeito da or. reduzida
Total
(4) O rapaz pendurado no andaime caiu.
o rapaz
8/8
(5) O quadro afixado na parede caiu.
o quadro
7/8
(6) Vimos várias reses, descendo a serra.
várias reses
6/8
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
64
As sentenças (4) a (6) podem ser interpretadas como evidência de que o
ordenamento das orações deve ter relevância psicológica, pois no período (6), com
ambigüidade, em que apenas dois testes apresentaram a resposta nós, observou-se um
resultado próximo ao de (4) e de (5). Tal resultado também corrobora, em termos
didáticos, a prescrição da ordem principal-subordinada em alguns contextos. Para a
oração (5), foi computado um caso de ninguém como resposta, o que pode estar
relacionado ao uso do pronome relativo quem na pergunta, porque, em outro teste, um
indivíduo corrigiu a pergunta substituindo o quem por o que, ao dar a resposta quadro
para essa frase. Esses “percalços” de experimento revelam a rapidez com que a reflexão
atua nos testes, bem como as informações temáticas.
As sentenças (7) apresentaram a seguinte seleção para sujeito da oração reduzida
de infinitivo:
Sentenças
Sujeito da or. reduzida
(7a) Por ser calouro, Machado de Assis não significava nada para Machado de Assis
Paulo Carvalho.
3/8
Paulo Carvalho
(7b) Por ser calouro, Murilo Rubião não significava nada para Paulo Murilo Rubião
Carvalho.
8/8
Paulo Carvalho
4/8
0/8
Tais períodos foram postulados para testar a interferência do conhecimento de
mundo na seleção para o sujeito da oração infinitiva (PRO), já que em termos de
estratégia processamento, nos dois casos há o mesmo número nós, assim a primeira
análise
disponível
não
seria
influenciada
por
um
menor
custo
de
processamento. Devido ao PRO ser arbitrário, mesmo que a oração reduzida estivesse
após a principal ter-se-ia a possibilidade de ligá-lo a Machado de Assis/Murilo Rubião
e Paulo Carvalho. Outro dado que comprova a arbitrariedade desse PRO é o fato de
um dos indivíduos ter selecionado ninguém como resposta à pergunta quem era
calouro. Por outro lado, esse resultado também pode revelar a suposição de que Paulo
Carvalho também é escritor, ou ainda o fato de a ambigüidade ter sido detectada.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
65
Portanto, ao não ser detectada a ambigüidade, um dos caminhos para processar
essa frase seria coindexar o PRO ao primeiro SN encontrado na cadeia sintagmática
com o traço [+ humano]; por isso, plausível. Tal estratégia pode ser evidenciada a partir
dos resultados de (7a), em que a diferença entre Machado de Assis e Paulo Carvalho é
praticamente irrelevante, e de (7b), cujo primeiro SN plausível foi selecionado
categoricamente. Por outro lado, a seleção de Paulo Carvalho, em (7a), pode ser uma
evidência da influência imediata do conhecimento de mundo no parsing, ou seja, em se
tratando de um parser imediato, as respostas de (7b) evidenciariam uma mudança de
escolha em relação a (7a), com base no conhecimento enciclopédico.
Os resultados das sentenças (8), a seguir, também se relacionam à indexação de
PRO e à interferência do traço [+ humano]:
Sentenças
Sujeito da or. reduzida
(8a) Para ser completamente dessensibilizado, o anestésico o anestésico
deve ser injetado sob a pele.
1/8
a pele
o paciente
1/8
6/8
(8b) Para ser completamente dessensibilizado, o anestésico o anestésico
deve ser injetado sob a pele de Pedro.
1/8
a pele de Pedro
ninguém
5/8
2/8
A presença de flexão em dessensibilizado na sentença (8b) deveria conduzir a
coindexação do PRO ao SN o anestésico ou a um sujeito em terceira pessoa, dada a
natureza genérica do sujeito do infinitivo, como ocorreu em (8a), para a qual foi
postulado o SN o paciente como sujeito. O resultado obtido com (8a) parece evidenciar
que se busca um referente [+ humano] para os papéis de tema ou de agente do verbo,
mesmo quando o contexto não o fornece explicitamente, mas este é autorizado através
de uma categoria vazia. Essa interpretação pode ser corroborada com os resultados de
(8b), que oferece um candidato a alvo da ação verbal com os referidos traços, não
obstante à concordância e à necessidade de acrescentar mais nós ao marcador
frasal. Com a sentença (9), em que o contexto é menos rico e envolve um tema sobre
referentes inanimados obteve-se as seguintes respostas:
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
66
Sentença
Sujeito da or. reduzida
(9) Para verificar os freios, a roda tem de ser removida. alguém
não se sabe
o mecânico não diz
não sei
3/8
3/8
Como pode ser observado, a partir dos resultados, os sujeitos que participaram
do teste não revelaram uma preferência marcante para seleção do sujeito de (9). A
pergunta que surge a partir dessas respostas é se os indivíduos que optaram por não sei,
não se sabe, não diz teriam percebido a ambigüidade ou se estão se referindo a um
sujeito genérico, permitido pelo contexto (PRO), em relação àqueles que responderam o
mecânico/alguém.
Essa sentença, incluída no teste para um confronto com processamento de
sentenças com referentes [+ humanos], foi interpretada pelo pesquisador como uma
sentença de fácil decisão sobre o sujeito da oração reduzida, dentro das opções
oferecidas pelo contexto; entretanto, houve inclusive um teste em branco sobre essa
sentença. Essa dificuldade seria advinda de seu contexto pobre? O fato é que não se
pode deixar de considerar a influência de contextos que favorecem a atuação de uma
entidade com traços [+ humano] sobre as aposições feitas pelo parser, facilitando sua
decisão.
Os resultados das sentenças (10) e (11) reforçam essa interferência sobre o
processador.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
67
Sentenças
Sentenças
Sujeito da or. ReduzidaSujeito da or. reduzida
(11a)
e humilhado
barão,deum
queagüentou.
tramou
(10a) Ressentido
Preso e jogado
na prisão, pelo
o coração
sua aquele
mãe não
plano de vingança começou a surgir em sua
mente.
2/8
(10b) Preso e jogado na prisão, o irmão de sua mãe não agüentou.
(11b) Ressentido e humilhado, um plano de uma pessoa
vingança começou a surgir em sua mente
3/8
oele
filho
alguém não mencionado
7/8
2/8
3/8
o irmão de sua mãe
eu / o sujeito
8ele
/8
3/8
2/8
As sentenças (10) podem evidenciar um processamento imediato e paralelo do
parsing, que opta por uma interpretação tão logo perceba um referente plausível para
ocupar uma posição sem argumento determinado na oração reduzida, mesmo no caso de
(10a), em que esse referente está representado por um SN mais complexo – o coração
de sua mãe –, levando o compreendedor a extrair o sujeito da reduzida do adjunto
adnominal da principal – de sua mãe.
Pode-se estabelecer para os casos de orações reduzidas antepostas à principal um
processamento similar ao que é utilizado no “parseamento” de sentenças com
dependências de longa distância, incluindo-se as reduzidas de particípio ou
gerúndio. Nesse contexto, o processamento ocorreria como se a oração reduzida tivesse
deixado uma lacuna a ser preenchida à medida que as informações da oração principal
fossem sendo percebidas, considerando as possibilidades de indexação do
referente-sujeito para essa lacuna. Como os resultados vêm revelando, essa indexação é
influenciada por fatores semânticos na seleção de sujeitos em contextos ambíguos.
Os resultados de (11), que demonstram uma tendência a postular um executor da
trama, serviriam como evidência de uma busca por informações semânticas plausíveis,
para representação de um esquema capaz de auxiliar o sistema de compreensão, pois os
sujeitos testados procuraram, através de várias formas, expressar essa representação
esquemática, a despeito de um contexto mais pobre que o de (10).
Seguem-se, abaixo os resultados das sentenças (12) e (13):
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
68
Sentenças
Sentenças
Sujeito da or.Sujeito
Reduzida
da or. Reduzida
(13a)
Depois de com
pôr todas
minhoca
no anzol,
uma peixe
/ o pescador
não sei / não se
(12) Navegando
as velas
ao vento,
ilha foi Alguém
avistada.
o barco / o naviooculto
ele //indefinido
começou a beliscar.
sabe / não diz
4/8
2/8
7 / 16
9 / 16
(13b) Depois de instalar o som, o mestre de cerimônias o mestre de cerimônias
iniciou a festa.
13 / 16
o instalador
2 / 16
Os resultados da sentença (12) consistem em uma espécie de controle para a
tendência de se postular um sujeito com traço [+ humano] sempre que o contexto
temático o permite. Observe-se que, apesar da presença do verbo navegar, o qual pode
selecionar uma entidade [- humana] para executor da ação, nesse caso, explicitamente
expresso na frase, aventou-se em um teste a tripulação como sujeito. Houve, ainda, um
caso de escolha de todas as velas, opção que pode estar relacionada à necessidade desse
processador apor o referente mais próximo ao verbo como sujeito, ou ao fato de em uma
leitura rápida, o aluno não ter entendido a sentença. Os casos de não sei, não se sabe
etc. podem representar a percepção da ambigüidade ou a postulação de um sujeito
indeterminado, não nomeado.
As sentenças (13), que figuraram cada uma em dois testes, consubstanciam mais
uma evidência em favor de uma influência do contexto temático e da tendência em se
atribuir a situação expressa a uma entidade personificada. Em (13b), cujo contexto
favoreceria a seleção desse tipo de entidade, essa preferência foi corroborada, pois,
mesmo aos sujeitos indeterminados imputou-se tal traço. Registrou-se um teste com a
resposta “sujeito em terceira pessoa (?)”, que talvez esteja expressando uma percepção
da ambigüidade, embora em nenhum teste tenha-se verificado respostas com duas
possibilidades.
A sentença (14) Vimos várias reses, ao descer a serra, usada para controle das
sentenças reduzidas teve o PRO categoricamente indexado a um pro. Ao se confrontar
o processamento dessa sentença com o de (6) Vimos várias reses, descendo a serra, que
teve seis respostas para várias reses como sujeito da reduzida, pode-se questionar sobre
uma possível diferença entre o parsing de orações reduzidas de gerúndio e de infinitivo;
e sobre uma possível distinção relacionada a presença de preposição.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
69
As sentenças (15) e (16), abaixo, colocadas no teste como distratoras
apresentaram resultados praticamente categóricos, a exceção de uma resposta ninguém
para (16), devido à pergunta ter sido iniciada pelo pronome interrogativo quem.
(15) O anel foi encontrado pelo policial.
(16) Um tesouro foi resgatado pela equipe.
Para avaliar satisfatoriamente as tendências apontadas pelos testes, seria
necessário utilizar experimentos de leitura autocontrolada, a fim de verificar o tempo de
processamento de sentenças, aliado a uma checagem da presença de releitura. Mesmo,
em se tratando de testes informais, considera-se que há alguns ajustes a serem feitos, no
sentido de controlar efeitos inesperados que favoreçam a reflexão sobre as respostas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não obstante a natureza preliminar e as possíveis falhas metodológicas, as
sentenças testadas revelaram questões interessantes sobre o processamento de orações
reduzidas em língua portuguesa, e, acima de tudo, demonstram que há muito a ser feito
nessa área de compreensão sentencial.
Acredita-se que tenha sido possível observar a relação entre parsing e
informação semântica. Quanto à indagação sobre como essa informação é utilizada,
considera-se prematura qualquer tipo de posicionamento nesse sentido.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALTMANN, Garry (1989). “Parsing and interpretation: an introduction.” In: Language and
cognitive processes, 4. Lawrence Erlbaum/VSP Publications.
BEVER, T.G. (1970). “The cognitive basis for linguisitc structure.” In: HEYES, J.R. (ed.).
Cognition and the development of language. New York: John Wiley.
CLIFTON, Charles Jr., FERREIRA, Fernanda (1989). “Ambiguity in context.” In: Language
and cognitive processes, 4. Lawrence Erlbaum/VSP Publications.
DILLINGER, Mike (1992). “Parsing sintático.” In: Boletim da ABRALIN no 13, p. 3042.FODORª,
J.D.
(1978).
“Parsing
strategies
and
constraints
on
transformations.” Linguistic Inquiry, 9, 427-473.
FRAZIER, L. (1987). “Sentence processing.” In: COLTHEART, M. (ed.). Attention and
performance XII. Hilldale-NJ: Lawrence Erlbaum Associates Inc.
_____, CLIFTON, C & RANDALL, J. (1983). “Filling gaps: decision principles and structure
in sentence comprehension.” Cognition, 13, 187-222.
GORRELL,
Paul
(1995).
“Syntax
and
parsing.”Cambridge:
Cambridge
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
University
70
Press.KIMBALL, J. (1973). “Seven principles of surface structure parsing in natural
language.”Cognition, 2, 15-47.
MORENO, Claúdio & GUEDES, Paulo Coimbra (1991). Curso básico de redação. São Paulo:
Ática.
PASSOS, Claiz & PASSOS, Maria Emiliana (1990). Princípios de uma gramática modular.
São Paulo: Contexto.
RAYNER, K.; CARLSON, M. & FRAZIER, L. (1983). “The interaction of syntax and
semantics during sentence processing.”Journal of verbal learning and verbal behavior, 22,
358-374.
SINGER, Murray (1990). “Syntax and parsing processes.”In: Psychology of Language: an
introduction to sentence and discourse processes. Lawrence Erlbaum Publishers.
STEEDMANN, Mark & ALTMANN, Garry (1989). “Ambiguity in context: a reply.”In:
Language and cognitive processes, 4. Lawrence Erlbaum/VSP Publications.
TANENHAUS, Michael K., CARLSON, Greg & TRUESWELL, John C. (1989). “The role of
thematic structures in interpretation and parsing.”In:Language and cognitive processes, 4.
Lawrence Erlbaum/VSP Publications.
TANENHAUS, M.K.; BOLAND, J.; GARNSEY, S. M. & CARLSON, G.N. (1989). “Lexical
structure in parsing long-distance dependencies.” Journal of Psycholinguisitc Research v.
18, n. 1.
TARABAN, R. & McCLELLAND, J. L. (1988). “Constituint attachment and thematic role
assignment in sentence processing: influences of content-based expectations.”Journal of
memory and language, 27, p. 597-632.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
71
CESÁRIO VERDE, FLAGRANTES DE UM POETA
CINEGRAFISTA
Regina Silva Michelli (UERJ)
(...) ó Cesário Verde, ó Mestre,
Ó do "Sentimento de um ocidental"!
FERNANDO PESSOA, Álvaro de Campos.
“Dois Excertos de Odes” (Fins de Duas Odes,
Naturalmente).
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.
FERNANDO PESSOA, Alberto Caeiro. Poema III, “O
Guardador de Rebanhos”.
Cesário Verde (1855-1886) insere-se, cronologicamente, no período do realismo
português. As características de sua poesia projetam-no, entretanto, como poeta antecipador do
modernismo e, por isso, incompreendido em sua época. O realismo de Antero de Quental
configura-se através de uma poesia intelectualizada, caracterizando as dificuldades de a “nova
idéia” sustentar-se em meio aos ataques românticos, conclamando à luta, à ação social. António
José Saraiva e Óscar Lopes asseguram que “Cesário Verde é o único poeta do grupo tido como
realista que consegue romper, de facto, com a herança romântica”, renovando completamente a
estilística tradicional da poesia portuguesa (1996, p.926).
Cesário derrama-se poeticamente entre o campo, mostrando o trabalho com as uvas e a
dificuldade de exportação, em meio a um quadro familiar (Nós), e a cidade, o “bulício”
característico de Lisboa. Em O Sentimento dum Ocidental, focaliza o entardecer, os
trabalhadores saindo das construções e oficinas, às seis horas da tarde (Ave Marias), enquanto o
eu-lírico vaga por ruas e becos da cidade. Diferente do cavaleiro medieval, que buscava
cumprir sua “demanda”, o eu-lírico parece deambular sem um objetivo claro, voltado apenas
para a visão da realidade, para as emoções que ela lhe provoca e o registro dessas observações
sob a forma de poesia.
Como afirma Massaud Moisés, Cesário Verde fez poesia fixando os aspectos da
realidade considerados até então a-poéticos, lançando sua atenção sobre “o prosaico diário,
inclusive nos seus aspectos julgados repelentes, grotescos ou ridículos” (1974, p.216). Sua
poesia flagra a vida que pulsa nas pequenas coisas, registrando o corriqueiro, o banal, o
cotidiano: a (teórica) visão de uma vendedora de hortaliças, quando se dirige para o trabalho, é
suficiente para provocar-lhe o ensejo de escrever (Num Bairro Moderno), da mesma forma que
a simplicidade de um “pic-nic” no campo é motivo para a pintura impressionista – “Pinto
quadro por letras, por sinais” (Nós) – de uma “aquarela” em que realça a beleza feminina (De
Tarde).
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
72
Sua linguagem é simples e coloquial, com vocabulário variado, expressando o dia-a-dia.
Cesário Verde rebela-se contra o estilo requintado das estéticas clássicas, assumindo uma
postura lingüística totalmente contrária aos padrões considerados ideais: “Acabou com a
exigência de que as palavras viessem em traje de gala para poder figurar nas festas das letras”
(PIRES,1966, p.135). Impossível admitir na poesia dessa época a presença de peixes podres
gerando infecções (ainda que pareçam ressoar nos versos cesarianos as palavras com que
Camões aborda o escorbuto n’ Os Lusíadas). A frase cesariana é curta, incisiva como um bisturi
rasgando o verso: “Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.”(Contrariedades).
A poesia e o fazer poético – a metapoesia – revelam-se preocupações de Cesário Verde,
o que vai se consubstancializar efetivamente no modernismo. Em Contrariedades, Cesário
desvela a sua condição de poeta (“Nas letras eu conheço um campo de manobras”), reflete sobre
a forma (“apuro-me em lançar originais e exatos,/ Os meus alexandrinos...”, o que lhe granjeou
a característica de parnasiano), afiançando sua preferência pela poesia (“não há questão que
mais me contrarie/ Do que escrever em prosa.”): “De comum, entre Cesário Verde e os
modernos, avulta a inquirição sobre as articulações do discurso, isto é, textos que se dobram
sobre si mesmos fazendo da produção textual o objeto de indagação” (SILVEIRA, 1995a,
p.299).
A poesia cesariana assinala uma tensão entre o “fora” e o “dentro” do poeta: “Ao invés
de retratar o objeto exterior, o poeta identifica-o com o seu mundo interior. A realidade objetiva
funde-se, portanto, à realidade subjetiva, o que o afasta dos cânones realistas, onde predomina a
“fotografia do real” (MOISÉS,1974, p.216). José Régio alerta para o fato de que a realidade é
apenas um ponto de partida para o verdadeiro poeta, definindo a magnificência da obra de
Cesário através da “luta amorosa entre um mundo exterior que poderosamente se impõe e um
mundo interior que ao mesmo tempo assimila esse outro e lhe rege” (PIRES, 1966, p.140). A
multiplicidade de planos e visões aparece em muitos de seus poemas:
os acontecimentos e os temas surgem e desenvolvem-se em múltiplas direções, por
vezes paralelas, por vezes divergentes, distanciando-se, reaproximando-se,
entrecruzando-se para ao cabo se entrelaçarem ou interpenetrarem, vindo a constituir
um conjunto poético harmonioso e completo. É o seu processo inédito das
intercessões e entrecruzamentos de planos, panoramas, evocações e sentidos, na
visão das coisas, o que caracteriza a quebra cesariana da unidade do assunto,
ressalvada pela interpenetração dos temas e harmonia final do contexto. (MELO,
1967, p.15)
Em Contrariedades, observa-se o movimento de mergulhar em seu interior, conturbado
pelas “contrariedades” do viver e pelas dificuldades do reconhecimento de seu valor pela crítica,
e o vislumbrar “ali defronte” alguém em pior situação: a tísica, às voltas com o seu trabalho
braçal, também ela abandonada, “devendo a conta à botica”.
A poética cesariana adquire contornos que a aproximam do impressionismo. Tal
característica já se observa nesse registro da impressão que a realidade provoca em seu espírito,
com a interferência da subjetividade na captação da realidade visível, afastando o poeta dos
cânones realistas. Segundo o professor Afrânio Coutinho, o objeto é apresentado pelas
sensações e emoções que desperta na alma do artista, num dado momento, através dos
sentimentos – em vez das coisas, as sensações das coisas (1997, p.325). A razão cede passo às
sensações. Assim, “Uma cena é retratada por uma visão primeira, resultante de uma imagem
que dentro dela se avultou e cuja impressão repentina e dominante passa a envolvê-la”
(PIRES,1966, p.121). Sua arte é feita de impressões imediatas, de pinceladas, de sugestões
diversas, compondo quadros de um autêntico pintor impressionista. O efeito produzido (as
sensações) tem mais valor, artisticamente, que o próprio agente causador (“E fere a vista, com
brancuras quentes,/ A larga rua macadamizada.”, Num Bairro Moderno).
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
73
Há o domínio do momento, do fragmentário, do instável, do móvel, do subjetivo, sobre
a continuidade e a permanência, pois a realidade é um processo em curso, um vir-a-ser. Cesário
percebe o real, o momento, sem contornos definidos, dando a idéia de fugacidade. É um artista
de instantâneos, de impressões rápidas e fugidias, captando o movimento (daí o uso de
gerúndios) e a sua sensação diante do espaço.
A valorização da cor, dos efeitos tonais e da atmosfera revela a influência da pintura:
“Foi quando tu, descendo do burrico,/ Foste colher, sem imposturas tolas,/ A um granzoal azul
de grão-de-bico/ Um ramalhete rubro de papoulas.” (De Tarde).
A técnica impressionista empregada é o “pontilhismo”. Segundo Afrânio Coutinho, o
pontilhismo define-se como a “pintura com palavras, captando a realidade não em estado de
repouso, mas nas impressões e no conhecimento afetivo de aspectos e partes do real” (1997,
p.326). Acrescenta ainda:
Arte de cunho pictórico, o Impressionismo literário acompanha a técnica dominante
na pintura com o “pontilhismo”, o “divisionismo”, acumulando sensações isoladas,
detalhes, para a captação de um mundo de aparências efêmeras, que o leitor
apreende, depois sintetizando, somando os aspectos parciais. O impressionista
“inventa” paisagens, que parecem mais autênticas do que a realidade.
(COUTINHO,1997, p.327-328).
Pode-se afirmar que esta técnica, em Cesário, corresponde à multiplicidade de planos de
sua câmera cinematográfica, que registra o deslocamento de seus olhos, sensações, sentimentos,
trazendo para sua poesia um movimento, fruto da quebra de unidade temática, confirmada ainda
por suas frases curtas, isoladas, fragmentárias.
A própria sintaxe esquemática, oposta à sintaxe estruturada em que se abandonam a
ordem lógica, as ligações conjuntivas coordenantes e subordinantes, é já característica do
impressionismo. O modo imperfeito, que visa a dar ao leitor a impressão de que assiste ou
testemunha os fatos descritos, bem como o emprego das formas perifrásticas, do gerúndio e do
infinitivo regido por preposição (por expressarem o aspecto durativo da ação, como já foi
apontado) são largamente encontrados nos poemas de Cesário.
O poema O Sentimento dum Ocidental já evoca, a partir do próprio título, a presença de
um sujeito que mostra, aqui, o seu sentimento de cansaço e de angústia, profunda melancolia a
lhe corroer a alma. Apresenta a realidade como ela é, através de imagens que chocaram as
“sensibilidades” daquela época e que valeram ao poeta a recomendação de Ramalho Ortigão
para que fosse mais Cesário e menos Verde. O texto divide-se em quatro partes, focalizando a
caminhada solitária do eu-lírico pela cidade de Lisboa, desde o entardecer (Ave-Marias) até a
completa escuridão (Horas Mortas), entretecendo espaço e tempo com reflexões e sentimentos:
Na história da poesia da cidade os poemas típicos de Cesário são algo inteiramente
novo, pelo amor juvenil e constante à realidade concreta, vista com olhos de artista
plástico, transposta em séries de instantâneos claros, exactos, flagrantes. (...) Em
“Cristalizações”, “Num Bairro Moderno”, “O Sentimento dum Ocidental”
descobrimos a figura integral de Lisboa. (PRADO COELHO, 1961, p.219)
Analisando a primeira parte, observa-se na primeira estrofe que os elementos exteriores
– cujas idéias são retomadas ao longo do poema – convergem para o interior: “as sombras, o
bulício, o Tejo, a maresia/ Despertam-me um desejo absurdo de sofrer”. Sensações visuais,
auditivas e olfativas interagem com os sentimentos do eu-lírico.
A segunda estrofe focaliza as sombras, mostrando o fechamento, a soturnidade de um
espaço asfixiante, como se as nuvens pressionassem o homem restringindo-o à terra. Configurase um cenário em que a cidade adquire características londrinas, aproximação explicável pelo
aspecto nebuloso e melancólico com que o eu-lírico percebe Lisboa.
A terceira estrofe descreve a agitação de uma forma impressionista. Ilumina
inicialmente o espaço exterior, observando a noção de perspectiva própria da pintura, com “os
carros d’aluguer, ao fundo”. O foco converge depois para o interior do poeta, que reflete o
descompasso de Portugal em relação aos outros países: sinaliza a felicidade dos que “ganham”
mundo – o que se pode contrapor ao “desejo absurdo de sofrer” dos que permanecem –,
enumerando várias cidades que lhe “ocorrem” sem que da série, em gradação, faça parte Lisboa.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
74
A próxima estrofe exemplifica cabalmente o impressionismo. À abertura, o emprego do
verbo “Semelham-se” assinala a ligação com esta estética, pois semanticamente acusa uma
comparação que evidencia um olhar individualizador, ao aproximar elementos díspares. Da
mesma forma, as construções em andamento, comparadas a gaiolas, evidenciam o
aprisionamento de que se ressente o ser humano nesse espaço escurecido, asfixiado pelas
sombras. Os dois últimos versos, marcados por sensações auditivas (“ao cair das badaladas”),
cinestésicas (“saltam de viga em viga”) e visuais (os carpinteiros, animalizados, parecem
morcegos, não só pela movimentação, como pela escuridão da noite), mostram um flagrante em
que a realidade (carpinteiros, última palavra da estrofe) perde sua primazia para as sensações
despertadas no poeta e que, por isso, lhe são anteriores sintagmaticamente.
Homem imerso no seu tempo, Cesário percebe o cotidiano das pessoas simples do povo,
como os calafates em sua rusticidade, caracterizando as ações humanas através de verbos no
presente. Tal qual um cinegrafista (e não um fotógrafo), a câmara do poeta registra o momento,
o fragmentário, a cena em seu dinamismo. O exterior, entretanto, atua sobre o interior e eis
Cesário embrenhando-se também pelos “becos” da alma (abandonando as “nossas ruas”), “a
cismar” em sua errância pelos cais de hoje e de ontem. O que “evoca” é a grandiosidade
passada, que não encontra reflexo nesse “monótono” presente, restando apenas as “sombras” a
asfixiar a existência. Ontem, crônicas navais, baixéis e soberbas naus, heróis, aventuras,
conquistas e a literatura salva – Os Lusíadas –, ainda que à custa de muitas lutas. Hoje, “o
sentimento dum ocidental” desencantado, carros d’aluguer, botes e couraçado inglês,
carpinteiros, calafates e varinas, trabalho em que o homem é animalizado e a literatura
destruída, epopéia morta no fundo da gaveta (Contrariedades). Os trabalhadores estão secos,
sem sangue, sem vida, enfadados, arengando, mostrando o conformismo de uma época em que
não há o que fazer e, quando alguém o faz, é sem vitalidade. O pessimismo presente ratifica-se
através de advérbios que projetam a negação no tempo e de um verbo que assinala “o
movimento do presente, indo em direção ao futuro” (SILVEIRA,1995, p.18): “não verei
jamais”. Poucas saídas parecem se oferecer a esse homem, configurando-se antes como fugas ou
amargas reflexões: de um lado, o mundo, através da via férrea; de outro, o passado, pela via da
memória. A movimentação que ele está captando também se passa em seu interior: os bulícios
que hoje apresentam um mundo sem grandes horizontes foram outrora positivos, numa clara
crítica à época e ao espaço presentes pela exaltação do passado. Sobre a mudança do tempo
verbal, devido ao emprego do futuro no verso “Singram soberbas naus que eu não verei
jamais!”, o professor Jorge Fernandes da Silveira assegura que a mudança é também uma
“estratégia de fazer com que um modo de estar no presente resulte em passagem para o futuro.
Ao invés de reduzir a evocação do passado ao saudosismo ou ao fatalismo, o poeta adianta uma
das mais inovadoras proposições de interlocução com o passado: minimizar no presente a
monumentalização do passado (SILVEIRA,1995, p.18). No dizer do Professor José Carlos
Barcellos, “Cesário Verde está muito preocupado com a decadência do Portugal do séc. XIX,
em que lhe coube viver. Melhor dizendo, incomoda-o o contraste entre a grandeza passada,
consignada fundamentalmente no texto de Camões, e a miséria presente, que parece obstruir
qualquer possibilidade de futuro”(1996, p.29-30).
Próximas cenas, o retorno ao bulício da realidade exterior atenua a angústia e o
“incômodo” interiores. Deslocando a sua câmara pelo que vê em torno, registra, em períodos
curtos, impressões auditivas (o “tinir de louças e talheres”, “arengam dois dentistas”), visuais
(“Um trôpego arlequim braceja numas andas”, “Os querubins do lar flutuam nas varandas”, “Às
portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas”) e cinestésicas (“Vazam-se os arsenais e as oficinas”,
comparando as pessoas a líquidos, em um tom pejorativo, uma vez que não assinala qualquer
alegria nessa captação). Visualiza-se a imagem cotidiana da classe humilde dos trabalhadores
em seu movimento diário.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
75
Chega-se, por fim, aos últimos elementos enumerados na primeira estrofe: o Tejo, a
maresia. Acumulam-se sensações visual e tátil na percepção do rio, que reluz, viscoso: “Nas
suas viagens em círculos pelas ruas de Lisboa, Cesário acaba sempre por chegar à beira dum rio
fechado: o Tejo. Corajosamente, no limite da cidade, é ele o primeiro poeta português a sujar a
via da glória nacional” (SILVEIRA,1995, p.7). A figura das varinas é também mostrada de
forma impressionista: o poeta apresenta de início a comparação com um “cardume negro”
(entrecruzam-se, provavelmente, o elemento que elas portam em suas canastras, o peixe, com a
cor de suas roupas de mulheres viúvas, pilastras da casa), seguindo-se a configuração heróica,
mas masculinizada, dessas mulheres (“hercúleas”, “troncos varonis” como “pilastras”); elas
trazem, no entanto, o traço da alegria na galhofa que caracteriza muitas vezes o alarido
feminino. Se o presente é marcado pelo aspecto durativo do gerúndio, em uma ação que
semanticamente acentua a força dessas mulheres, “Correndo com firmeza”, o futuro se lhes
configura trágico na percepção do poeta: “embalam nas canastras/ Os filhos que depois
naufragam nas tormentas”, reproduzindo-se no filho a história do pai, num determinismo
característico do período: “Nas rimas das varinas, um sábio deslocamento de actantes é um
valor forte na questão, agora inexorável, de nomear quem é sujeito nessa história de “varões
valerosos” outrora assinalados, e hoje desempregados. (...) Com toda a certeza, as varinas de
troncos varonis representam uma vontade outra de pôr em movimento a questão do ingresso de
Portugal na modernidade.”(SILVEIRA,1995, p. 8-9).
A última estrofe ratifica o desalento e o abandono das varinas, sem nada a se interpor
entre elas e o chão áspero da realidade, sem nada a lhes proteger os pés: “Descalças!”. O último
verso resume a miséria daquele contexto social, vulnerável às epidemias que se espalhariam por
Lisboa (“Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre/ E o Cólera também andaram na
cidade”, Nós).
José Carlos Barcellos atenta para o fato de que “Cesário parece vislumbrar uma
possibilidade de recuperação da grandeza perdida, na reconstrução de um novo futuro por parte
das camadas populares” (1996, p.30). Curioso, no entanto, é observar as marcas que trazem as
configurações das personagens focalizadas. Os carpinteiros são comparados a morcegos; os
calafates, aos magotes, aparecem “enfarruscados, secos; os lojistas enfadam-se e dois dentistas
arengam, discurso provavelmente vazio de maior significação, enquanto que através de um
“trôpego arlequim” metaforicamente denunciam-se os esforços de equilíbrio de um povo que
mal caminha pelas próprias pernas, alçado a uma altura maior pelas “andas” (pernas de pau) que
utiliza. Restam as crianças e as mulheres. As primeiras representam uma certa neutralidade e
isenção face aos problemas vigentes, talvez devido à ingenuidade característica da faixa etária:
são “querubins” flutuando ainda distantes desse contexto social, mas potencialmente capazes de
uma ação futura (como o pequerrucho regando a trepadeira, no poema Num Bairro Moderno).
Sobre as mulheres incide também o olhar diferente de Cesário, impregnado mesmo de carinho.
As varinas trazem a marca da galhofa (tal como a tísica de Contrariedades, que canta) e da
alegria, apesar da dor reinante. Contrapondo-se ao “arlequim” e ao eu-lírico, que erra pelos cais,
correm com firmeza. São pilastras a sustentar a própria vida, sofrimento e graça conjugados:
Ave Marias!
Cesário Verde reflete sobre a sociedade de seu tempo e valoriza o cotidiano como forma
de chamar a atenção aos menos favorecidos, percebendo-se em seus poemas uma acentuada
solidariedade para com os humildes, os sofredores, os marginais da vida. Tal se observa Num
Bairro Moderno. O poema evidencia, logo de início, as diferenças sociais: de um lado, a
abundância presente nas casas apalaçadas, com jardins e porcelanas, pequerruchos regando
trepadeiras, o sossego aconchegante de uma “vida fácil”; de outro, a escassez, presente na
fragilidade de uma rapariga “magra”, com roupas rotas e “digestão desconhecida” (fome),
obrigada a apregoar suas couves e hortaliças arrumadas em um gigo extremamente pesado para
uma pessoa “pequenina”, com “bracinhos brancos”, “sem quadris”. Nas casas apalaçadas, a
infância é preservada e registrada poeticamente: “Um pequerrucho rega a trepadeira/ Duma
janela azul; e, com o ralo/ Do regador, parece que joeira/ Ou que borrifa estrelas; e a poeira/
Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.”
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
76
Como em um filme, o poeta focaliza a vendedora numa escada, sendo atendida por um
criado que se sente investido da autoridade própria dos donos da casa, reproduzindo o mesmo
discurso de poder dos que oprimem os menos favorecidos como ele: “Se te convém, despacha;
não converses./ Eu não dou mais”. A desigualdade é reforçada pelo posicionamento espacial: a
rapariga deve estar embaixo, ao pé da escada, enquanto o criado dirige-se a ela do “patamar”,
atirando-lhe a moeda em paga do que comprara. Cesário desloca para o “cobre” adjetivos que
caracterizam a rudeza do criado, enquanto os vegetais são humanizados, provável ponto de
partida para a transfiguração que vão sofrer ao longo do poema (“um cobre lívido, oxidado,/
Que vem bater nas faces duns alperces”).
As hortaliças e legumes na cesta marcam a presença do campo – “um retalho de horta” –
na cidade, na “larga rua macadamizada”. Os vegetais são assimilados à vida citadina, adquirindo
forma humana segundo critérios plásticos (“por anatomia”, “Achava os tons e as formas”). O
processo evidencia tanto o psiquismo do eu-lírico, quanto o fazer poético. O eu-lírico é tomado
de um insight – “Subitamente – que visão de artista!” – e lança a hipótese da transformação,
invocando a ajuda do sol, “o intenso colorista”, o que o aproxima do impressionismo.Volta-se
para o real, captado através de diferentes sensações, inclusive sinestésicas (“Bóiam aromas”),
como se necessitasse de tempo para as idéias amadurecerem. “Aos bocados”, vai efetivando a
“recomposição” do real, sua transfiguração em linguagem poética.
A figura criada apresenta traços femininos, com belas proporções carnais, seios, cabelos
em tranças, colos, ventre, carnes tentadoras. A sensualidade transpira nas entrelinhas do texto. A
fala da rapariga, que pede ajuda ao eu-lírico para levantar a cesta, parece interromper o fluxo de
seus pensamentos. A realidade irrompe retardando e modificando o processo de transformação,
que se opera no espaço do eu-lírico.
O olhar do poeta novamente “deambula” pelo espaço exterior, reorganizando suas
imagens internas. Tendo experimentado o peso do gigo, ele completa a transfiguração dos
vegetais, realçando agora a masculinidade da figura, que passa a conduzir a rapariga: “E, como
as grossas pernas dum gigante,/ Sem tronco, mas atléticas, inteiras,/ Carregam sobre o pobre
caminhante,/ Sobre a verdura rústica, abundante,/ Duas frugais abóboras carneiras.”.
O poeta apresenta-se como um alguém que porta uma filmadora, registrando realidades.
De longe, em plano amplo, focaliza o bairro moderno, às dez horas da manhã, situando-se logo
em seguida de forma avaliativa (judicativa) nesse contexto. Oferece um close da rapariga,
mostrando sua atuação com o criado e a fala deste. Troca a visão do exterior pela “visão de
artista” que interfere na captação da realidade. Escolhendo as imagens externas, mostra a
movimentação de pessoas pela rua – a cidade acorda e toma seu café. O poeta corta a visão
exterior e realiza seu projeto: fixando sua câmara na cesta, promove a transformação dos
vegetais, no que é interrompido pela fala da rapariga. Como um narrador que se desdobra em
personagem, direciona o foco para a sua aproximação da moça, que agora é tratada “sem
desprezo”. Depois, seguindo “para o lado oposto”, como indicação cênica que perspectiva a
distância necessária para retornar à transfiguração, o poeta desliza sua câmara pelo espaço
circundante, até centrar o foco na cesta, completando a imagem criada.
A figura feminina de classes menos favorecidas – representada na tísica de
Contrariedade, nas varinas de O Sentimento dum Ocidental e na rapariga do gigo – conjuga
tristeza e alegria, como se do ponto de vista do poeta essas figuras mal tivessem consciência da
vida miserável a que estão condenadas. Cesário Verde, como elas, não faz apologia de reformas
e ações sociais, como se “alienado” fosse; entretanto, denuncia com eloqüente precisão as
desigualdades e as injustiças que apresenta em seus textos – “Que mundo! Coitadinha!” –,
sentindo-se atingido por essa “desgraça alegre que me incita”, provavelmente a escrever.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
77
Cesário Verde é ainda inovador ao criar “em toda mensagem lírica portuguesa a poesiareportagem, que iria florescer nos campos modernos” (PIRES,1966, p.142). O poeta mostra as
transformações ocorridas em Lisboa, com as novas “edificações somente emadeiradas” e seu
surto das novas classes, a burguesia e o operariado, expondo condições de vida contrastantes.
Desastre é um poema que ilustra essa característica cesariana: relata o acidente envolvendo “um
rapaz servente de pedreiro” que “Caíra dum andaime e dera com o peito,/ Pesada e secamente,
em cima duns tapumes.”: “No primeiro verso, o servente de pedreiro, que caíra, está já às portas
da morte. Esta abertura surpreendente, sem preparação descritiva, serve não só para comunicar
o insolite quotidien, mas também, paradoxalmente, para sugerir a normalidade relativa dum
desastre que prescinde de explicação prévia” (LAIDLAR,1986, p.51). O texto caracteriza a
vítima, o “desastre” e a reação dos transeuntes, através de uma visão cinematográfica que
quebra com a linearidade da “história narrada”, da reportagem. As diferenças sociais avultam.
O “garoto” é descrito como “enjeitado”, “Não conhecera os pais, nem aprendera a ler”.
Trabalhava excessivamente “para não morrer/ De bagas de suor tinha uma vida cheia”; desde os
seis anos de idade vendia jornais, “criança escrava”. Seu salário – “oito vinténs ou menos” –
provavelmente mal dava para sopas, como a tísica, o que justifica a fraqueza de seu “corpinho”,
o “fato remendado e sujo da caliça”. Conseguiu suportar “a doença, as privações cruéis”, mas
sucumbe por fim. Estonteado e fraco, sente-se atraído pelo mar – “que abismo!” – e pelo sol –
“que labareda!” –, indicando a liberdade, o calor e a energia vital de que carece para sobreviver:
“rolou nas atrações da queda”.
O início do texto mostra-o numa maca, a caminho do hospital. Sua trajetória é costurada
pelos comentários das pessoas: o sofrimento contrasta de início com o silêncio indiferente de
dândis e cocotes, passageiros e cocheiros; ao silêncio ou ignorância, pela morte, sobrepõe-se o
descaso social. Na figura de “um bom poeta”, que ri e se embebeda, Cesário critica o interesse
de quem vê no acidente um “episódio”, uma “cena tão faceta”, esvaziada de seu conteúdo
trágico. Somente um preto e “a gente da província” (e a natureza, representada pela brisa)
condoem-se da sorte do rapaz. As pessoas da cidade mostram a corrosão dos sentimentos
humanos: “Esta expressão da anonímia citadina e da alienação dos indivíduos uns dos outros é
característica social que não se manifesta nos versos “realistas” dos poetas contemporâneos de
Cesário” (LAIDLAR,1986, p.52).
A aristocracia se faz representar pelo “fidalgote” (cujo diminutivo acentua o tom
pejorativo) acompanhado não de senhoras, mas de “duas prostitutas”; a soberba desse homem –
já condenado no Auto da Barca do Inferno – aflora em sua indignação com os murmurinhos
sobre o acidente, como se “um servente de pedreiro” representasse absolutamente nada no
contexto social.
A crítica cesariana recai também sobre o poder político. Um democrata comenta as
intenções de um ministro prostituído por seu egoísmo, envolvido em manobras eleitoreiras ou
amorosas: "Aonde irás, ministro!/ Comprar um eleitor? Adormecer num seio?". O eu-lírico
manifesta-se no poema ao insinuar a culpa dos poderosos na desgraça dos humildes, suspeitando
que aquele homem “– Conservador que esmaga o povo com impostos –/ Mandava arremessar que gozo! estar solteiro! –/ Os filhos naturais à roda dos expostos...”. A ironia realça o absurdo
da situação, sobre a qual “Deite-se um grande véu...”. O clero aparece compactuando com esse
poder, evidenciando uma atitude que beira à adulação, rejeitada por Cesário no poema
Contrariedades: “E um padre que ali vai tirou-lhe o solidéu.”
O tempo atravessa o texto: há referências ao sol e à sesta, momento em que se dá a
queda; quando o enterro acontece, “anoitecia”, como se o sol pudesse se apartar desse mundo,
reforçando a escuridão, as trevas. A solidão e o desamparo desse “desgraçado” em vida se
reduplicam na morte, reafirmando a miséria humana: é enterrado “sem o adeus dos rudes
camaradas:/ Isto porque o patrão negou-lhes a licença,” pretextando atraso nas obras. Ao
“soletrar a narração do fato”, que aparece num local insignificante de algum jornal, o patrão
demonstra o seu parco letramento, a sua ignorância sobre letras e ternura humana. Irritado,
macula a própria verdade de uma morte em que lhe cabe uma grande parcela de culpa:
“Morreu!? Pois não caísse! Alguma bebedeira!”.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
78
Se o herói se configura pelo feito que ultrapassa a medida humana, aqui é a dor que se
mostra imensa, ultrapassando a condição humana de suportá-la: “As lutas, afinal,/ Deixavam
repousar essa criança escrava,”. A sociedade é caracterizada pela corrupção, pela
insensibilidade, pelo materialismo; a honra reside no plano do rapaz, aparecendo como advérbio
de modo ao modificar o verbo que caracteriza sua morte: “Findara honradamente.” Diferente de
Sísifo, o rapaz não consegue empurrar todo dia sua pedra para o andaime de uma obra que,
longe de dignificar o ser, antes o avilta. Prometeu sem correntes físicas, sucumbe à vertigem da
queda imposta aos pequenos, não pelos deuses, mas pela ganância desumana do próprio homem.
Segundo Leyla Perrone-Moisés,
Em poemas como "Num bairro moderno", "Cristalizações" e, sobretudo, "O
sentimento de um Ocidental", o poeta revela uma notável intuição (mais do que uma
consciência) dos desacertos sociais e das dores advindas do "progresso". Mas
descobre, ao mesmo tempo, as possibilidades de exploração poética dessa nova
realidade desconcertada e desconcertante. Com uma ousadia de que nem ele mesmo
parecia se dar conta (já que esperava o reconhecimento de seu meio), Cesário
enveredou por um caminho que só os modernistas do século seguinte poderiam
reconhecer como fértil: a poesia que capta a estranheza oculta na banalidade e a
música latente na coloquialidade. (...) A novidade de Cesário, no ambiente português
de seu tempo, não podia ser reconhecida. Por isso, ele tinha razão em dizer numa
carta: «literariamente parece que Cesário Verde não existe».19 Nesse sentido, ele foi
um "astro sem atmosfera". Seu relógio poético estava adiantado. Embora o não
reconhecimento de seus pares magoasse o poeta, ele não fez qualquer concessão
para ser melhor recebido. Como ele, os poetas do século XX aceitarão a perda da
aura e praticarão uma poesia da realidade cotidiana, assumindo a tarefa de dar
dignidade poética a uma matéria despoetizada.
A modernidade de Cesário Verde, portanto, é hoje inquestionável, rompendo com toda
uma tradição normatizadora que asfixia um poeta de sua estirpe. Um dos primeiros a consagrar
sua importância foi Fernando Pessoa. Segundo o professor Jorge Fernandes da Silveira, “No
seu modo diferente de estar na linguagem, de escrever Portugal, Cesário Verde vê o outro, a si
mesmo e o outro de si mesmo. Só isto já lhe garante o título de pioneiro do modernismo
português quase seu contemporâneo,”(SILVEIRA,1995, p.11), afirmando ainda que “Cesário rise para dentro, sabe-se, pós-modernamente, um homem português.” (SILVEIRA,1995, p. 23).
Os flagrantes filtrados por olhar de poeta fazem de Cesário Verde um exímio observador
da realidade humana de sua época. Sua visão transfigura-se em poesia para todos os tempos.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
79
O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL
A
Guerra
Junqueiro
I
AVE-MARIAS
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.
Batem os carros d’ aluguer, ao fundo,
Levando à via férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revistas exposições, países:
Madri, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!
Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.
Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão de ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.
E evoco, então, as crônicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!
E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.
Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!
Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras.
Correndo com firmeza, assomam as varinas.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
80
Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.
Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!
Porto, Portugal a Camões, publicação extraordinária do
Jornal de Viagens, 10 de junho de 1880.
(Extraído de SILVEIRA, 1995, p.
116-117)
NUM BAIRRO MODERNO
A Manuel Ribeiro
Dez horas da manhã; os transparentes
Matizam uma casa apalaçada;
Pelos jardins estancam-se os nascentes,
E fere a vista, com brancuras quentes,
A larga rua macadamizada.
Rez-de-chaussée repousam sossegados,
Abriram-se, nalguns, as persianas,
E dum ou doutro, em quartos estucados,
Ou entre a rama dos papéis pintados,
Reluzem, num almoço, as porcelanas.
Como é saudável ter o seu conchego,
E a sua vida fácil! Eu descia,
Sem muita pressa, para o meu emprego,
Aonde agora quase sempre chego
Com as tonturas duma apoplexia.
E rota, pequenina, azafamada,
Notei de costas uma rapariga,
Que no xadrez marmóreo duma escada,
Como um retalho de horta aglomerada,
Pousara, ajoelhando, a sua giga.
E eu, apesar do sol, examinei-a:
Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos;
E abre-se-lhe o algodão azul da meia,
Se ela se curva, esguedelhada, feia,
E pendurando os seus bracinhos brancos.
Do patamar responde-lhe um criado:
“Se te convém, despacha; não converses.
Eu não dou mais”. E muito descansado,
Atira um cobre lívido, oxidado,
Que vem bater nas faces duns alperces.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
81
Subitamente – que visão de artista! –
Se eu transformasse os simples vegetais,
À luz do sol, o intenso colorista,
Num ser humano que se mova e exista
Cheio de belas proporções carnais?!
Bóiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz às costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha
Toca, frenética, de vez em quando.
E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo orgânico, aos bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injetados.
As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças dum cabelo que se ajeite;
E os nabos – ossos nus, da cor do leite,
E os cachos de uvas – os rosários de olhos.
Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como dalguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que me lembrou um ventre.
E, como um feto, enfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vívida, escarlate,
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.
O sol dourava o céu. E a regateira,
Como vendera a sua fresca alface
E dera o ramo de hortelã que cheira,
Voltando-se, gritou-me, prazenteira:
“Não passa mais ninguém!... Se me ajudasse?!...”
Eu acerquei-me dela, sem desprezo;
E, pelas duas asas a quebrar,
Nós levantamos todo aquele peso
Que ao chão da pedra resistia preso,
Com um enorme esforço muscular.
“Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!”
E recebi, naquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam dum excesso de virtude
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
82
Ou duma digestão desconhecida.
E enquanto sigo para o lado oposto,
E ao longe rodam umas carruagens,
A pobre afasta-se, ao calor de Agosto,
Descolorida nas maçãs do rosto,
E sem quadris na saia de ramagens.
Um pequerrucho rega a trepadeira
Duma janela azul; e, com o ralo
Do regador, parece que joeira
Ou que borrifa estrelas; e a poeira
Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.
Chegam do gigo emanações sadias,
Oiço um canário – que infantil chilrada! –
Lidam ménages entre as gelosias,
E o sol estende, pelas frontarias,
Seus raios de laranja destilada.
E pitoresca e audaz, na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
Duma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.
E, como as grossas pernas dum gigante,
Sem tronco, mas atléticas, inteiras,
Carregam sobre o pobre caminhante,
Sobre a verdura rústica, abundante,
Duas frugais abóboras carneiras.
Lisboa, Verão de1877 – Lisboa, brinde aos
assinantes do Diário de Notícias (1877).
(Extraído de SILVEIRA, 1995, p. 96-99)
DESASTRE
Ele ia numa maca, em ânsias, contrafeito,
Soltando fundos ais e trêmulos queixumes;
Caíra dum andaime e dera com o peito,
Pesada e secamente, em cima duns tapumes.
A brisa que balouça as árvores das praças,
Como uma mãe erguia ao leito os cortinados,
E dentro eu divisei o ungido das desgraças,
Trazendo em sangue negro os membros ensopados.
Um preto, que sustinha o peso dum varal,
Chorava ao murmurar-lhe: "Homem não desfaleça!"
E um lenço esfarrapado em volta da cabeça,
Talvez lhe aumentasse a febre cerebral.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
83
Flanavam pelo Aterro os dândis e as cocottes,
Corriam char-à-bancs cheios de passageiros
E ouviam-se canções e estalos de chicotes,
Junto à maré, no Tejo, e as pragas dos cocheiros.
Viam-se os quarteirões da Baixa: um bom poeta,
A rir e a conversar numa cervejaria,
Gritava para alguns:"Que cena tão faceta!
Reparem! Que episódio!" Ele já não gemia.
Findara honradamente. As lutas, afinal,
Deixavam repousar essa criança escrava,
E a gente da província, atônita, exclamava:
"Que providências! Deus! Lá vai para o hospital!"
Por onde o morto passa há grupos, murmurinhos;
Mornas essências vêm duma perfumaria,
E cheira a peixe frito um armazém de vinhos,
Numa travessa escura em que não entra o dia!
Um fidalgote brada a duas prostitutas:
"Que espantos! Um rapaz servente de pedreiro!"
Bisonhos, devagar, passeiam uns recrutas
E conta-se o que foi na loja dum barbeiro.
Era enjeitado, o pobre. E, para não morrer,
De bagas de suor tinha uma vida cheia;
Levava a um quarto andar cochos de cal e areia,
Não conhecera os pais, nem aprendera a ler.
Depois da sesta, um pouco estonteado e fraco,
Sentira a exalação da tarde abafadiça;
Quebravam-lhe o corpinho o fumo do tabaco
E o fato remendado e sujo da caliça.
Gastara o seu salário - oito vinténs ou menos -,
Ao longe o mar, que abismo! e o sol, que labareda!
"Os vultos, lá embaixo, oh! como são pequenos!"
E estremeceu, rolou nas atrações da queda.
O mísero a doença, as privações cruéis
Soubera repelir - ataques desumanos!
Chamavam-lhe garoto! E apenas com seis anos
Andara a apregoar diários de dez-réis.
Anoitecia então. O féretro sinistro
Cruzou com um coupé seguido dum correio,
E um democrata disse: "Aonde irás, ministro!
Comprar um eleitor? Adormecer num seio?"
E eu tive uma suspeita. Aquele cavalheiro,
- Conservador, que esmaga o povo com impostos -,
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
84
Mandava arremessar - que gozo! estar solteiro! Os filhos naturais à roda dos expostos...
Mas não, não pode ser ... Deite-se um grande véu...
De resto, a dignidade e a corrupção... que sonhos!
Todos os figurões cortejam-no risonhos
E um padre que ali vai tirou-lhe o solidéu.
E o desgraçado? Ah! Ah! Foi para a vala imensa,
Na tumba, e sem o adeus dos rudes camaradas:
Isto porque o patrão negou-lhes a licença,
O Inverno estava à porta e as obras atrasadas.
E antes, ao soletrar a narração do fato,
Vinda numa local hipócrita e ligeira,
Berrara ao empreiteiro, um tanto estupefato:
"Morreu!? Pois não caísse! Alguma bebedeira!"
Lisboa. Porto, O Porto, 30 de Outubro de
1875.
(Extraído de SILVEIRA, 1995, p. 90-92)
1.1
Referências bibliográficas
BARCELLOS, José Carlos.“Camões, Cesário, Pessoa: permanência e ruptura”. Caderno
Seminal. Rio de Janeiro: EDUERJ, ano 3, nº 3 , 1996.
COUTINHO, Afrânio (direção) A literatura no Brasil – era realista, era de
transição. v. IV, São Paulo : Global, 1997.
FERRETTI, Regina Michelli. “Glória ao sempre verde Cesário”. In: Singularidades de uma
cultura plural – XIII Encontro de Professores Universitários Brasileiros de Literatura
Portuguesa. Rio de Janeiro: UFRJ, Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação
Universitária José Bonifácio, Fundação Brasil-Portugal, 1992.
LAIDLAR, John. “Na encruzilhada: “Desastre” de Cesário Verde”. Colóquio/ Letras, nº 93.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, set.1986. Volume especial sobre Cesário Verde.
MELO, Martinho Nobre de. “Apresentação”. In: VERDE, Cesário. Cesário Verde,
poesia. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1967, Coleção Nossos Clássicos.
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1974.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Cesário Verde: um "astro sem atmosfera?" Sexto Congresso da
Associação Internacional de Lusitanistas. http://www.geocities.com/ail_br/ail.html.
PIRES, Orlando. Cesário Verde precursor e clássico. Rio de Janeiro: Imprensa Exército, 1966.
PRADO COELHO, Jacinto do. Problemática da história literária. Lisboa: Ática, 1961.
SARAIVA, António José e LOPES, Oscar. História da literatura portuguesa. 17ª ed. Porto:
Porto, 1996.
SILVEIRA, Jorge Fernandes. “Cesário – Duas ou Três Coisas”. In: VERDE, Cesário. Cesário
Verde: todos os poemas. Org. e introdução de Jorge Fernandes da Silveira. Rio de Janeiro:
Sette Letras, 1995.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
85
______. “Notas para um trabalho sobre a apreensão da realidade na poesia de Cesário Verde”.
In: Gilda Santos, Jorge Fernandes da Silveira e Teresa Cristina Cerdeira da Silva (org.)
Cleonice, clara em sua geração. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995a.
VERDE, Cesário. O Livro de Cesário Verde. Int. de António Capão. Porto: Paisagem, 1982.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
86
FUNÇÕES SEMÂNTICAS DOS TERMOS ESSENCIAIS DA
ORAÇÃO
Manuel Ferreira da Costa16 (UERJ)
INTRODUÇÃO
A idéia deste trabalho monográfico nasceu das leituras e discussões do curso Domínio
lexical e representação da experiência através de textos, ministrado pela prof.dr. Darcilia M.
Pinto Simões, curso de Doutorado, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2 º semestre
de 2002.
A partir da leitura de A gramática - história, teoria e análise, ensino, de Maria Helena
de Moura Neves, em que faz uma abordagem funcional da gramática da língua portuguesa,
pensamos em aplicar a teoria funcional da gramática ao tradicional estudo do “sujeito” como
termo essencial da oração.
TEMA E DELIMITAÇÃO
Apresentamos esta monografia com um tema específico: as relações semânticas dos
chamados termos essenciais da oração. Isto significa que analisaremos o que tradicionalmente
se conhece por sujeito e predicado Para tal, nos valeremos de uma teoria funcional da
linguagem ou ─ como também é conhecida ─ da gramática das valências.
SITUAÇÃO PROBLEMA
Já é consenso perguntar para que se ensina língua portuguesa a um falante nativo. O que
tem predominado são atividades metalingüísticas de descrição da língua como um objeto
abstraído de seu uso, fora de uma atividade discursiva.
Segundo Neves 17o que predomina nesse estudo tanto descritivo como prescritivo é uma
análise das classes de palavras e suas funções sintáticas, com o objetivo da análise pela análise.
O reconhecimento (e outras atividades meramente classificatórias ou de competência cognitiva
indicial) de classes de palavras ocupa 39,71% das atividades pedagógicas, enquanto o
reconhecimento (e outras atividades indiciais) das funções sintáticas chega a 35,85% do tempo
gasto no ensino da língua portuguesa. Os exercícios de classes de palavras e funções sintáticas
ocupam 75,56% do total.
Percebe-se que há aí uma teoria gramatical subjacente. Trata-se de uma gramática
prescritiva, com um conjunto de regras de bom uso (gramática normativa) e uma gramática
descritiva, com a apresentação das entidades de uma língua e suas funções.
Porque a gramática normativa foi tão combatida como se fosse uma forma de opressão,
os professores, pressionados pelo mercado ou pela má orientação das aulas de lingüística nos
cursos de formação, passaram a privilegiar a gramática descritiva, de base estruturalista. Ainda
venho do tempo em que nos concursos públicos se exigia o conhecimento estruturalista da
língua e que depois era repassado em sala de aula para os alunos.
16
17
O autor é doutorando em Língua portuguesa na UERJ e docente aposentado do Colégio Pedro II.
NEVES, Maria Helena de Moura. A gramática na escola.São Paulo: Contexto, 1990.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
87
Exatamente porque se privilegiam esses dois pontos de vista (além disso, aplicados de
forma estanque), não surpreende “o desprezo pela atividade essencial da reflexão e operação
sobre a linguagem”18, Na verdade, há muita atividade sobre a linguagem (operações
metalingüísticas), mas quase nada de atividades de linguagem (operações lingüísticas) e
atividades com a linguagem (operações epilingüísticas). Pouco, muito pouco, é o espaço
reservado para a reflexão sobre os procedimentos em uso, sobre os propósitos do texto, sobre os
efeitos de sentido da escolha desta ou daquela palavra, desta ou daquela construção sintática.
De modo geral, a concepção vigente é de que a língua não passa de um instrumento de
comunicação e não se levam em conta os sujeitos que a usam para interagirem e o contexto do
momento da comunicação.
Além disso, voltamos a frisar, que, de modo geral, e de forma repetida, são atividades
que privilegiam o reconhecimento, indicação, classificação, definição (operação cognitiva
indicial) desses elementos. Em verdade, tal pedagogia constitui, em vista de sua
operacionalidade, um “adestramento” sob a máscara de que se ensinam esses conteúdos para
levar o aluno à “falar e escrever melhor”, quando na verdade os professores reconhecem que o
ensino de gramática “não serve para nada”.
Diante disso, há outra atitude extrema: a abolição dos estudos de gramática na escola. A
língua portuguesa virou desaguadouro de todas as matérias, lugar de uma interdisciplinaridade
mal compreendida. Compete ao professor de português trazer material didático (jornais,
revistas, letras de música, filmes etc.) e discutir com os alunos os temas transversais que estão
na “onda”.dos meios de comunicação. O estudo de língua portuguesa perde seu objeto próprio e
os alunos até já sabem que “português não precisa estudar”. Desgraçadamente, português está se
tornando a mais interdisciplinar (!) das disciplinas. Qualquer um (penso também em qualquer
professor de outra área) dá sua opinião. Melhor: palpite. O professor Evanildo Bechara tem
levantado sua voz contra esse estado de coisas dizendo que qualquer aluno (até um estrangeiro
que tem o português como língua instrumental) tendo uma boa capacidade de interpretação, não
precisa saber português.
3) JUSTIFICATIVA
Tendo em vista este problema (conhecido como o fracasso do ensino da língua)
apontamos para a hipótese de que uma redefinição do objeto, um novo ponto de vista pode
oferecer algumas soluções. Desde já, porém, acreditamos que sejam provisórias, porque em
ciência nada é definitivo. Mas se provisórias, isto não quer dizer que não sejam mais adequadas
para o momento.
Um outro motivo que nos leva a esta monografia foi a recente experiência que tivemos
ao fazer parte da banca de seleção do concurso público para professores do Colégio Pedro II.
Colocados diante do tema “o sujeito - seus papéis temáticos ou funções semânticas”, foram
muito poucos os candidatos que conseguiram desenvolver a contento tal tema. De modo geral,
limitaram-se a um comentário superficial do “sujeito como aquele de quem se diz alguma coisa”
ou “sujeito como o ser que pratica a ação”. Mesmo criticando essas definições, a maioria passou
à tradicional classificação de sujeito simples, composto, indeterminado ou inexistente. Sem
perceberem o alcance do tema, essa grande maioria ficou rodando em torna da identificação
sintática de sujeito como elemento que concorda com o verbo. Se uma instituição tiver como
orientação pedagógica um ensino funcional da língua, o referido concurso revelou que é pouca a
mão-de-obra disponível.
Foi, sobretudo, esta experiência que nos levou a pensar esta monografia. Ao contrário
de teóricos encastelados e coroados nas suas academias, nós, trabalhando com o ensino
fundamental e médio, sentimos, na prática as dificuldades do problema. Esta monografia,
podemos dizer, “vem da grande tribulação” e esperamos que possa contribuir para aqueles que
estão nessa mesma “tribulação”.
18
NEVES, opus cit. p. 41.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
88
4) Fundamentação teórica
Para fazer esta abordagem do tema, vamos nos valer da teoria da gramática das
valências. Cumpre esclarecer que apesar de não possuirmos vasta bibliografia sobre o assunto, o
que aqui vamos expor tem muito de prática de sala de aula.
A primeira coisa a salientar é o fato de que tomamos o verbo como elemento central de
nossas análises. Isto já vem de longe, desde o ensinamento de Carone19. Segundo a lógica da
gramática tradicional o SN (sujeito - tema) teria de ser o ponto de partida, seguido do SV, como
rema, comentário desse tema. Partir-se-ia do conhecido para o desconhecido. Porém, a autora
advoga que “os conceitos lógicos de sujeito e predicados transcendem a gramática da língua,
pertencem à outra faixa de cogitações” (p.61). Devemos separar a análise lingüística da análise
lógica. Citando Tesnière20, o “verbo [é a palavra] à qual todas [as outras palavras] se prendem,
(...) constitui o ‘o nó dos nós’”. Isto dito em 1991 por Carone é confirmado, doze anos mais
tarde, por Neves21, quando nos diz que “o conceito de valência se vincula à consideração da
centralidade do verbo na análise da frase” .
Neves advoga que a proposição (o juízo) só se forma quando ao tema (um ‘ónoma’) se
acrescenta um rema (um verbo). Essa teoria bipartida é antiga. Vem de Aristóteles, que definia
uma proposição (juízo) como a relação entre dois termos: um ónoma (nome) e um rhêma
(verbo), o que originou a famosa estrutura lógica conhecida como S é P (sujeito / predicado). Na
posição de predicado ficariam os termos universais, de maior extensão. Foi esse ponto de vista
que gerou todo o estudo tradicional de uma teoria gramatical.
Diferente de Aristóteles temos os estóicos. Segundo estes, não se bipartem os termos (S
é P). Não temos uma lógica de termos, mas do predicado, entendido este como um
acontecimento, um dizível (lékton). Este “dizível” pode ser esclarecido pela diferença que, mais
tarde, se fez entre o “referente” e a “referência”. O primeiro é o que está fora da língua. O
segundo é o modo de dizer o primeiro. No dizível “a mãe lava roupa”, há uma transformação
corporal no plano dos referentes, mas no plano do “lékton” temos transformações incorporais.
Sendo planos diferentes, os nós do dizível são diferentes do mundo dos objetos.
No plano do dizível forma-se, segundo Tesnière, um pequeno drama (ação verbal) em
que o verbo figura como o “enredo” e dele participam personagens num determinado cenário ou
circunstâncias.
Assim como no mundo dos corporais os objetos estabelecem relações entre eles, no
mundo dos incorporais, da ação verbal, as palavras também formam um tecido de relações em
que o verbo é, numa linguagem bíblica, a ‘pedra angular’ ou, o ‘nó dos nós’. Em termos de
análise lingüística chama-se essa ‘pedra angular’ de predicador, o hierarquizante de nível
superior. Os ‘personagens’ são denominados de actantes, obrigatórios ou facultativos
(circunscritantes).
Segundo Charaudeau22,entende-se por actante “um ser, humano ou não, relacionado com
uma ação e dentro da qual desempenha um certo papel em função de sua relação com o
processo acional e outros actantes”. Mas o autor é um pouco confuso, porque na p.381, diz
expressamente que “não se confundirá actante e ser”. O último é um elemento extralingüístico,
enquanto que o primeiro se define e não existe senão na relação com um predicador.
Dessa forma, o actante relaciona-se com o processo e com outros actantes. Além disso,
para entendê-lo é preciso levar em conta seu papel e a qualificação (os traços semânticos) do
elemento que o exerce.
19
CARONE, Flávia de Barros. Morfossintaxe. São Paulo: Ática, 1991 (Fundamentos)
TESNIÈRE, Lucien. Eléments de syntaxe structurare. Paris:
Klincksiek, 1969, p. 14-15.
21
NEVES, Maria Helena de Moura. A gramática- história, teoria e análise, ensino. São Paulo: Unesp,
2002
22
CHARAUDEAU, P. Grammaire du sens et de l’expression.. Paris: Hachette Livre, 1992, p.380-381
20
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
89
O número de actantes ou argumentos obrigatórios (constituintes indispensáveis) que um
verbo pode reger constitui, segundo Tesnière, a sua valência. Os argumentos de um verbo são
em número limitado, enquanto os circunstantes são em número ilimitado. Estes não são
determinados pela valência do verbo. São os chamados, tradicionalmente, de adjuntos
adverbiais.
Segundo os autores da teoria, um verbo apresenta no máximo três valências
(predicadores). Porém se considerarmos que Ǿ também é uma valência, podemos dizer
que, na verdade, são quatro. Assim, há verbos de valência Ǿ, (avalentes) de valência 1,
(monovalentes) de valência 2 (bivalentes) e de valência 3 (trivalentes).
De acordo com Neves (2002: 105), “semanticamente, o primeiro actante realiza a ação,
o segundo a completa e é por ela afetado, e o terceiro recebe algo em proveito ou prejuízo”. O
modalizador, semanticamente, já está apontando para os papéis semânticos dos termos da
oração (sujeito, CD e CI).
Embora se possa fazer uma separação entre actantes (argumentos) como elementos
obrigatórios e circunscritantes como elementos facultativos, porque há circunscritantes também
obrigatórios (verdadeiros complementos integrantes), de qualquer forma, a teoria tem a grande
vantagem de equiparar o sujeito aos demais complementos e de considerar a frase não como
uma construção linear de termos justapostos, mas hierarquizados, isto é, “amarrados” a um
verbo predicador.
Não desconhecemos que além do verbo, os nomes e os adjetivos dos chamados verbos
de “ligação” ou “estativos” também podem ser predicadores.
Mas, como prática geral, a partir do verbo há casas vazias que são preenchidas com
argumentos. Na nossa prática didática temos mostrado essa hierarquia de funções por meio de
uma visualização da construção da frase. Antes dessa visualização, aplicamos sinais
matemáticos (chaves, colchetes e parênteses) para que os alunos percebam os nós sintagmáticos
entre as palavras. O verbo vem sempre entre chaves. Logicamente que iniciamos com
proposições simples até chegar às mais complexas
(1) IMAGINAÇÃO DÁ FORMA A PRESÉPIO
(Globo Baixada,22, dez.02, p. 23)
A primeira operação é separar os termos por meio dos sinais matemáticos:
[Imaginação] {dá} [forma] a [presépio]]
Como se percebe, o verbo representa o predicador entre chaves e três actantes
(argumentos), sendo que o último é regido por preposição.
Após este primeiro passo, fazemos uma espécie de árvore das hierarquias
dá
imaginação
forma
a
presépio
(2) COMÉRCIO FUNCIONA EM HORÁRIO ESPECIAL
(idem, p. 13)
[Comércio] {funciona} [em (horário) especial]
funciona
comércio
em
horário
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
90
especial
Percebe-se, no enunciado, o predicador verbal com dois argumentos (sujeito e um
adjunto adverbial). Esse último, devido à situação comunicativa, não parece assim tão
facultativo. De modo que se não o podemos chamar de “complemento relativo”, é, pelo menos
um complemento ou um adjunto verbal. Observe-se, também que o termo horário serve como
predicador do termo especial, argumento de horário. É a situação comunicativa que determina
o preenchimento das casas vazias. A situação comunicativa (o contexto, a perspectiva
determinada pelas necessidades e intenções comunicativas) determina a quantidade e a
qualidade dos argumentos.
É possível, nesse nível, já trabalhar as preposições como “elementos transpositores” de
classes de palavras. Assim, o conjunto [(horário) especial] passa a funcionar como uma locução
adverbial, tendo como núcleo o termo superior.
(3) DRAGAGEM DE RIOS, CANAIS E VALÕES FAZ PARTE DO PLANO
DE EMERGÊNCIAS. (idem, p.3)
A esta altura, já se focalizou a conjunção (soma) de elementos. Como só se podem
somar elementos do mesmo valor, então eles pertencem a um mesmo conjunto. Como já se
dispõe da conjunção como conector, é, relativamente, fácil para o aluno fazer o agrupamento
dos conjuntos.f
[(dragagem) de rios +canais + valões] {faz} [(parte) do ((plano)) de emergências]
Numa visualização teríamos:
Faz
Dragagem
de rios, canais, valões
parte
do
plano
de
emergências
A visualização das hierarquias mostra que o elemento superior é predicador
(subordinante) em relação ao inferior (subordinado). A esta relação de subordinante /
subordinado, os autores se valem do termo reccção (regência). Como se percebe a recção
aplica-se tanto a verbos como a nomes (ou pronomes).
Também colocamos os argumentos em duas caixas (contêineres) de modo que nos
parece mais fácil pereceber os dois actantes (supeito e CD) e suas recções.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
91
É bom que se diga que isto é apenas um recurso pedagógico para a percepção do aluno.
Compete ao professor saber fazer essa montagem. Não exigimos isso do aluno, mas se ele
souber fazê-lo, será um grande avanço na percepção da hierarquia sintagmática dos elementos
da frases.
O leitor pode questionar
que existem construções de frases muito mais complexas do que estas. É verdade. Mas a
orientação deste modelo é ir do mais simples para o mais complexo, quando são necessárias
outras operações. Para terminar, tomamos uma sentença de complexidade de nível médio,
aplicando-lhe a teoria das valências.
(4) ESQUEMA DE AMPARO A DESABRIGADOS INCLUI ALIMENTOS,
COLCHONETES E ROUPAS. (idem, p. 6).
Este enunciado, apesar de já bastante complexo, não oferece grande dificuldade para o
reconhecimento de sua hierarquização sintagmática.
[(Esquema) de ((amparo)) a desabrigados] {inclui} [alimentos] +[colchonetes] +
[roupas]
Inclui
Esquema
alimentos
colchonetes
roupas
de amparo
a desabrigados
O gráfico mostra, com clareza, que o verbo incluir possui duas valências (sujeito) e
complemento direto (CD), sendo este último formado por três elementos coordenados.
Para encerrar este assunto, convém acrescentar que além da quantidade da valência de
um predicador, há que se considerar também a qualidade. Em outras palavras: cada argumento
apresenta suas restrições semânticas em relação aos actantes regidos. Assim, por exemplo, o
verbo criticar exige que o actante sujeito tenha os semas [+humano], [+animado]. Já os actantes
que funcionam como CD podem ser [±humano], [± animado]. O verbo incluir pode ser
colocado dentro do hiperônimo ter (verbos em que há uma “relação de posse”). No caso, o
ponto de chegada de algum agente (no texto é a prefeitura de Duque de Caxias) e esse ponto
contêm, como resultado de ação, os CD alimento, colchonetes, roupas. Como se vê, estes
últimos, em decorrência da significação do verbo, não uma ação, mas muito mais resultado de
um processo, não são também “pacientes” da “ação” verbal. Tanto assim que embora seja
gramatical a transformação na voz passiva: “alimentos, colchonetes e roupas são incluídos na
estratégia de amparo a desabrigados”, talvez o mais esperado seria: “alimentos, colchonetes e
roupas estão incluídos na estratégia de amparo a desabrigados”, marcando o resultado da ação.
O aspecto verbal aqui é fundamental para a construção do sentido.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
92
Um leitor que compartilhe deste conhecimento pode alegar que isto não passa das
conhecidas “árvores” da gramática transformacional. Como já frisamos, não faz parte de nossa
prática que os alunos montem as tais árvores. Além disso, não nos interessam aqui as estruturas
superficiais e profundas, os esquemas cognitivos da linguagem humana. O objetivo é tão
somente levar o aluno a perceber a hierarquização, a tessitura dos elementos da frase. Pode-se
alegar também que ficamos no nível da frase e que, como todos sabem, a unidade de ensino é o
texto. Isto é verdade, mas quando passarmos para a análise semântica dos componentes
actanciais dos termos da oração, o leitor perceberá, de acordo com o gênero textual, que o valor
semântico de um termo advém de sua inserção no texto. Além disso, convém atentar para a
observação de Vilela23 de que já é consenso que qualquer gramática tem como objeto o
tratamento de unidades mais amplas que as frases e palavras. Mas, diz o autor, “a gramática
não poderá falar de textos, frases e grupos de palavras sem ter bem presente as ‘palavras’”.
Concluindo, podemos perceber que existe uma relação lógico-semântica entre um
predicador e seu argumento. Os papéis argumentativos preenchem, segundo Neves (2000: 111)
“os lugares lógico-conceptuais vazios que o predicado abre à sua volta”.
A idéia de uma relação lógico-semântica entre predicadores verbais e o argumento
sujeito é objeto básico desta monografia.
5) Objetivo básico e questões a investigar
Nosso objetivo é mostrar ─ ainda que analisando apenas o argumento sujeito ─ que
numa abordagem funcional da gramática não basta que o aluno saiba identificar os elementos
sintáticos da frase, mas pensar os papéis semânticos que tais elementos exercem dentro de um
texto, na construção do sentido.
Para isto, propomo-nos investigar as seguintes questões:
5.1) Uma classificação semântica dos verbos.
5.2) Os papéis temáticos do sujeito
Um estudo semântico dos verbos
Os manuais escolares costumam brindar-nos com dois tipos de verbos: verbos de ação e
verbos de ligação. Como se percebe, há aí uma mistura de critérios. Os primeiros se definem
semanticamente, enquanto os segundos apontam para um papel interno e, geralmente, são
considerados como “semanticamente esvaziados”. São também conhecidos como “portatempo”, cuja função é fazer a ligação (cópula) entre um sujeito e um predicativo (predicador
nominal ou adjetival, segundo a gramática funcional).
Um estudo mais profundo vê nessa teoria uma simplificação, porque a categoria verbo é
complexa não apenas em termos morfológicos, mas, sobretudo, semanticamente. Por isso,
vamos aprofundar nosso estudo do papel semântico dos verbos. Desde já alertamos o leitor que
são os traços semânticos do verbo que vão determinar a recção não só da quantidade, mas
também da qualidade dos actantes e circunstantes.
2. Classificação dos verbos segundo Charaudeau24
Para este autor, nenhuma definição de verbo pode ser plenamente satisfatória. Se se
define verbo como a palavra que exprime ação feita ou sofrida por um sujeito, como existência
ou estado de um sujeito, então teremos que perguntar se dormir, custar, sonhar, restar,
concernir são ações.
Se se diz que o verbo tem por papel situar no tempo as ações ou os acontecimentos,
então temos que enquadrar ontem, hoje, amanhã, logo, imediatamente, agora, depois como
verbos.
Se se admite que os verbos estabelecem uma relação de predicado (rema informativo)
em relação a outro termo, outras palavras (como os adjetivos e nomes) também desempenham
esse papel.
23
24
VILELA, Mário. Gramática de valências: teoria e aplicação.Coimbra: Almedina, 1992, p. 29
Opus cit. p. 28-35
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
93
Para este autor (p.35), os verbos são classes de palavras que, tradicionalmente,
exprimem um processo. Isto é: o processo descreve o que acontece no universo, o que se produz
no tempo e que modifica um estado de coisas.
Ainda de acordo com o autor (p.30), existem duas classes de processos:
As ações: atos ou atividades que estão sob o controle de um ser capaz de ser
responsabilizado por eles em virtude de um projeto ou intenção de ação.
Os fatos: representam igualmente atividades que modificam um estado de coisas e
implicam seres, mas não se pode atribuir a estes nenhuma responsabilidade pelo acontecimento.
O fato é o que surge, o que se produz sem a intervenção de um agente. Assim, chover, nevar,
cair são verbos de fatos.
O autor volta ao assunto nas p. 378-379, explicitando que “ação” implica que a atividade
se encontra sob a responsabilidade de um “agente” mais ou menos engajado. O “fato”
representa (...) apenas uma atividade que se produz (ou é produzida) fora da responsabilidade de
um ser-agente”. E propõe (p.379), o seguinte esquema:
processos
Ação
Atividade sob a responsabilidade e
intencionalidade de um agente [±engajado]
Fato
Atividade sem a responsabilidade nem a
intencionalidade
Isto nos permite classificar os verbos em dois tipos: verbos de ação e verbos de
acontecimentos. Assim se entende que verbos ditos auxiliares ou de ligação, como ser, parecer,
estar, continuar, ficar, permanecer, andar etc. não correspondem a processos, mas servem para
exprimir vários tipos de relação: qualificação, existência, dependência. Devido ao fato de
revelarem o aspecto dos processos em curso (exceto o verbo ser), podem ser qualificados como
“estativos”.
Classificação dos verbos segundo Costa.25·.
Esta nos fala em três blocos de verbos:
De atos e atividades: quebrar, ler. Implicam o traço [+humano], [+agente], [+dinâmico]
De processos e acontecimentos: crescer, cair. Implicam os traços: [±humano], [agente], [+dinâmico]
De estados: continuar, parecer. Implicam os traços [+durativo], [-agente], [-dinâmico]. É
esta autora que coloca os verbos de “ligação” entre os verbos “estativos”.
Este estudo dos traços verbais já nos leva a uma primeira conclusão: as categorias de
Agente e Paciente só existem com verbos que exprimem atos e atividades. Assim, o sujeito é
agente quando se trata de verbos de ação ou de atividade. Do mesmo modo se pode falar em CD
(complemento direto) como paciente quando o termo tiver os traços [+vivente], [+ humano]
relacionados com verbos que exprimem atos ou atividades.
Assim, em:
O garoto quebrou a planta.
O garoto abriu a porta com a chave..
A chave abriu a porta.
A porta abriu.
A chuva derrubou a árvore.
As plantas morrem com o calor.
O calor mata as plantas.
25
COSTA, Sônia Bastos Borba. O aspecto em português. São Paulo: Contexto, 1990, p.14-15
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
94
A noite está fria.
A noite esfriou.
Esfriou.
Só em (1) podemos atribuir ao sujeito o papel de Agente e ao CD, o de Paciente, mas em
sentido lato, porque lhe falta o sema [+humano]. Em (2) o sujeito é Agente, mas o CD não é
paciente, mas resultado do ato. Em (3), o sujeito tem o papel de Instrumento, enquanto que o
CD é o Resultado do acontecimento. Em (4) o sujeito é o Resultado do acontecimento. Em (5) o
sujeito é a Causa do acontecimento, enquanto o CD é o Conseqüente. Em (6), o sujeito é o
Conseqüente de um processo cuja Causa é o calor. Em (7) o sujeito desempenha o papel
semântico de Causa, enquanto o CD, o de Conseqüente. Em (8) o papel do sujeito parece ser
muito mais o de Referente de um estado. Já em (9) o sujeito não é Agente, nem Paciente. Sem
outro nome, parece-nos mais o tema ou, como diziam os gregos, o suporte do rema. Pode ser
também interpretado o ser afetado (transformado) pelo processo (ou, como dizem alguns
autores, trata-se de um locativo temporal). Em (10) o verbo indica um processo e não tem
valência, porque é semanticamente pleno. Desse modo, não apresenta casa vazia para ser
preenchida.
Charaudeau26 classifica “agente” e “paciente” como “actantes de base”. Segundo esse
autor, entende-se por “agente” um “actante humano que é o iniciador-responsável pela ação
que efetua, voluntariamente ou não”. O “agente” é sempre humano. Isto significa dizer que lhe
é atribuída uma intenção (um projeto de fazer) mesmo que às vezes seja descrito como agindo
involuntariamente (p.381). Quanto aos animais ou a outro ser se atribui o traço [+humano], estes
também podem ser considerados agentes. Desta forma, “sujeito” e “agente” só coincidem
quando o actante que efetua a ação é humano (p.382).
Mais difícil é a explicação para o actante “paciente”. Segundo Charaudeau, trata-se de
“actante não humano ou humano que representa o termo ou o suporte da ação: ou que a
padece ou é, pelo menos afetado por ela” (p.383). A seguir faz a diferença entre “paciente”
humano e não humano:
“O actante não-humano representa o ponto de impacto de uma ação, de modo que seu
estado inicial se encontra modificado. Recebe os efeitos de uma ação, sem um estado de alma.
Já o humano suporta de maneira positiva ou negativa a ação. Encontra-se atado a um agente
humano através de uma relação de interesses humanos, relação que o afeta de maneira
negativa.”(p.383)
A nós parece-nos que o actante “paciente” constitui um hiperônimo. O melhor seria
restringi-lo a um predicador [+vivente] de um verbo de ação [que supõe um “agente
intencionado”].
Dessa forma, observemos as frases:
(1) O vento derrubou a casa.
(2) O lutador derrubou o adversário.
(3) O menino encheu o copo.
(4) O pai elogiou o filho.
(5) O pai salvou o filho.
26
Opus cit. 380-382
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
95
Se em (1) o sujeito não é humano, não temos uma ação, uma intencionalidade. Então,
não é um “agente”, mas muito mais uma “causa”. Não se pode negar que “casa” recebe o
impacto da ação. Se lhe aplicarmos a categoria de “paciente”, certamente será mais por
hiperônimo, uma vez que nos parece muito mais o “conseqüente”. Em (2), não há dúvida de que
o sujeito é “agente” e o CD, por também ser humano, é “paciente” no sentido estrito da palavra.
Em (3) temos um sujeito agente, mas o CD, opinião nossa, só é “paciente” por hiperonímia,
porque não se trata de humano. Trata-se do resultado do processo. Em (4) é difícil ver no CD a
categoria de “paciente”. Salvo melhor interpretação, está nos parecendo mais o “beneficiário”.
Por isso, se transformada na voz passiva: “O filho foi elogiado pelo pai”, não vemos no sujeito
um actante “paciente”. O mesmo se pode dizer em (5). É difícil ver no CD um actante passivo.
Para terminar esta explanação, observe-se um último exemplo:
(6) O pai deu um presente ao filho.
Observa-se que o CI é, claramente, o beneficiário da ação do agente. Se, então,
parafraseássemos, teríamos:
(7) O pai presenteou o filho.
O termo “filho” mudou de função sintática, mas não de função semântica.
Não nos estenderemos mais neste assunto, porque não é nosso objeto a análise das
funções semânticas do CD. Só o fizemos, porque com certas classes de verbos transitivos, o CD
passa a ser SU (sujeito) da voz passiva.
4) Classificação segundo Vilela
Podemos falar ainda de outras classificações de verbos, tendo em vista a quantidade e as
restrições que impõem aos actantes. Vilela27 aponta duas classes de verbos:
Verbos semanticamente motivados. Entre eles estão os verbos de ação, de estado, de
processo que impõem condições (restrições) de uso do sujeito e complemento. Neste conjunto
há verbos de natureza:
física: chover, esfriar, trovejar, etc.
fisiológica: dormir, morrer, nascer, etc.
sensorial: amar, odiar, gostar de, etc.
intelectual: decidir, planejar, etc.
Uma outra classificação pode ser a de:
verbos dinâmicos / de atividade
verbos de processo
verbos de sensações corporais
verbos de transação de eventos (vender, comprar, adquirir, etc)
verbos de momentos
verbos estativos
verbos de movimento
verbos de posse
verbos de percepções e cognições experiências.
verbos relacionais.
Isto tudo parece muito exaustivo, mas tem a vantagem funcional de fornecer:
“informações acerca da forma léxica, do número de argumentos e dos traços sintáticosemânticos dos elementos que ocupam os espaços destinados aos argumentos e as funções
semânticas realizadas pelos argumentos no conjunto frásico.(p.22)
De posse de alguns desses conceitos podemos, então, falar de predicados “estativos”,
“posicionais”, “processuais”, e “acionais”.(p.23)
Verbos pragmaticamente motivados. Neste grupo, estão os verbos que constituem atos
de fala, quando “dizer é fazer”. São os verbos performativos. Entre eles, temos:
verbos de asserção: dizer, acusa, declarar
27
Opus cit. p. 19-25
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
96
verbos de avaliação: julgar, analisar, condenar
verbos de atitude do falante: aclamar, aceitar, prometer
E outros, que não citaremos para não nos alongarmos por demais. Mesmo assim,
convém ter em mente os chamados:
verbos dicendi
verbos dandi
verbos tollendi.
Tais verbos são importantes porque exigem como
Complemento indireto (CI): a entidade a quem é “dado”, “tirado” ou “transmitido” algo,
de acordo com o significado implicado no lexema verbal. Esta entidade situa-se, normalmente,
na classe semântica (classema) [+humano]
Complemento direto (CD): a entidade “dada” e “tirada” situa-se, normalmente, na
categoria semântica (classema) [-humana]. A entidade “transmitida” situa-se na classe
semântica [+abstrato].
5) Classificação segundo Mateus et al.28
A leitura, em Mateus, sobre a predicação (p.46) nos remete ao “dizível” dos estóicos,
porque predicar “visa, fundamentalmente, descrever estados de coisas relativos a um dado
universo de referência”. Dada essa idéia básica, as autoras passam a descrever não só uma
tipologia dos estados de coisas, como também uma tipologia dos predicadores. Para nosso
propósito, tentaremos fazer um resumo desses dois tópicos.
5.1) Tipologia dos estados de coisas
Segundo as autoras, há três tipos de “estados de coisas” ou três tipos de predicadores
(p.47-51):
a) ESTADO. Quando entidades envolvidas numa descrição não sofrem qualquer
alteração ou transição durante um intervalo de tempo, a essa descrição chamamos de estado.
Como se percebe, o sema básico é o [- dinâmico].
Exemplos: João anda triste
A casa fica no alto do morro.
b) EVENTO. Quando as entidades envolvidas numa descrição sofrem uma
transformação, alteração, uma passagem de um estado para outro, esse “dizível” contém um
evento e seu sema básico é o [+dinâmico].
Exemplo: O garoto quebrou a vidraça.
O gato comeu o rato.
João ama Maria.
Os dois exemplos mostram que nos eventos há um “fazer” de natureza física ou
psíquica.
c) PROCESSO. Quando no “fazer” não há uma transformação, alteração das entidades
envolvidas, mas um evento realizado entre dois espaços de tempo. A esse “dizível” ou
“predicação” chamamos de processo e seu sema básico também é [+dinâmico]
Exemplo: As aves cantam
Os pilotos controlam a máquina.
Além dessa classificação, podemos analisar se os “actantes” dos “dizíveis” são ou não
controladores da predicação. Levando-se em conta esse traço [+controlador] ou [+intencional]
podemos classificar, respectivamente
• estados como posições.
• eventos como ações.
• processos como atividades.
5.2) Tipologia dos predicadores (52-66)
28
MATEUS, Maria Helena Mira et alii. Gramática da língua portuguesa. Coimbra: Almedina, 1983.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
97
Se, por um lado, o “lékton” determina a classe sintático - semântica do predicador, por
outro lado, este determina não só o número dos argumentos, mas também a relação semântica
que cada um deles mantém com esse predicador. E, como os outros autores da “gramática das
valências.” concluem que “o predicador é o núcleo em torno do qual se organiza uma
predicação” (p.52).
Também como mostramos acima nas nossas “árvores” os autores nos informam que
“ocorrem predicadores pertencentes a diferentes categorias sintáticas: “verbais, nominais,
adjetivais” e que tais predicadores exigem um determinado número de argumentos. Aos
argumentos obrigatórios (actantes) denominam “argumentos nucleares” do predicador. Os nãoobrigatórios são os “argumentos opcionais”. Assim, cada predicador tem seu esquema
predicativo (p.53) que determina:
a categoria sintática do predicador;
o número de lugares do predicador;
a função semântica de cada um dos argumentos. Isto é: a relação semântica que cada um
dos argumentos nucleares mantém com o predicador.
As autoras apresentam uma lista de nove funções semânticas dos argumentos que
podemos aplicar perfeitamente ao nosso objeto de investigação (o argumento sujeito). Não
vamos, aqui, nos deter na explicação e definição de cada uma dessas funções semânticas. Bastanos apenas enumerá-las e tentar aplicá-las na análise de textos. Eis, pois, uma tabela das funções
semânticas:
Paciente
Objeto
Locativo
Neutro
Experienciador
Agente
Origem
Recipiente
Posicionador
Como o estudo é bastante complexo e nos faltam maiores experiências sobre ele, vamos
nos ater aos dados acima, que podem, perfeitamente, servir de crítica para quem melhor
conhecer o assunto.
6) Conclusão
Como esta monografia tem limites de espaço e, sobretudo, de tempo, apressamo-nos em
concluir que uma proposta de classificação completa pertence ao mundo dos “impossíveis”
(Vilela, p. 26). Mas, de qualquer forma, pode-se reter que uma classificação do verbo deve levar
em conta além dos aspectos morfológicos e sintáticos, também os aspectos semânticos e
pragmáticos. E, sobretudo, convém levar em conta que “há sempre outra grandeza com a qual
o verbo é confrontado para ser classificado” (id.ib.).
Se nos detivemos na classificação dos verbos foi porque são eles que ocupam o “nó dos
nós” na gramática das valências e determinam a quantidade e a qualidade dos argumentos.
Então, por isso, a seguir, passaremos a analisar a relação verbo / actante sujeito.
Verbo e papéis semânticos do sujeito
Azeredo29 ensina que “o verbo pode atribuir diferentes papéis semânticos a seu sujeito agente, paciente, instrumento, lugar, neutro ─ em virtude tão ─ só de natureza de sua
significação. Outras vezes, porém, esses papéis são indicados pela estrutura sintática do
predicado” (p.174 § 353) [voz ativa, passiva, média ou reflexa].
29
AZEREDO, José Carlos de. Fundamentos da gramática do português. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2000, p. 173-174.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
98
No § 350, p. 173, diz que os verbos transitivos que denotam ação envolvendo um sujeito
e um objeto direto referentes a seres animados atribuem ao primeiro o papel de agente e ao
segundo, o de paciente. Mas logo no seguinte parágrafo acrescenta que um verbo transitivo de
ação que não se refira a um ser animado, o sujeito não desempenha o papel de “agente”. Cita
como exemplo: A chuva [causa] alagou a cidade [conseqüente]. A corrente do relógio
[instrumento] feriu meu pulso [resultado da ação]. O cofre [lugar continente] guardava os
documentos mais preciosos [conteúdo]. Mesmo com certos verbos transitivos de sujeito
animado, este não é agente, mas ser afetado pelo acontecimento a que a frase se refere. Por
exemplo: Pedro quebrou o braço. O sujeito, segundo Azeredo, representa o todo, enquanto o
CD, a parte.
Isto significa dizer que não se pode definir que “sujeito é o ser que pratica a ação”.
Mesmo a idéia de que seja o “ser de quem se afirma ou nega alguma coisa” fica muito vaga e
não serve. Basta ver, por exemplo, a frase de Genouvrier & Peytard30 No começo do século, os
bondes eram puxados por burros. O sujeito lógico (autor da ação) seria os “burros”. O sujeito
gramatical (o termo com quem o verbo concorda) seriam os “bondes”, mas o sujeito informativo
(o tema ─ ser de quem se diz alguma coisa) seriam tanto “os bondes”, como “começo do
século” e até mesmo “burros”.
Quanto à classificação entre sujeito simples e composto, isto são critérios sintáticos. De
modo geral são aprendidos mecanicamente sem que se remeta ao seu papel semântico no texto.
Quando se fala em sujeito indeterminado ou oração sem sujeito, aí sim, temos critérios
funcionais e podemos recorrer à gramática das valências.
Mesmo com toda essa teoria, é necessário que o analista não fique apenas no nível da
frase. O mais importante é perceber as recorrências das funções semânticas de um determinado
argumento dentro de um texto.
2) Texto e papéis semânticos do sujeito
Em primeiro lugar, cumpre esclarecer que os papéis semânticos do sujeito dependem do
gênero de texto. Um texto, por exemplo, de informação científica não terá o mesmo tipo de
sujeito de um texto argumentativo ou de um texto narrativo. Dependendo do texto, haverá uma
predominância de uma ou outra função semântica do sujeito.
Observe-se, por exemplo, o texto:
A oferta da viúva
Levantando os olhos, viu os ricos lançando ofertas no Tesouro do Templo.
Viu também uma viúva indigente que lançava duas moedinhas, e disse “De
fato, eu vos digo que esta pobre viúva lançou mais do que todos, pois todos
aqueles deram do que lhes sobrava para as ofertas. Esta, porém, na sua
penúria, ofereceu tudo o que possuía para viver”.
(Lucas, 21, 1-3).
Fazendo um levantamento dos predicadores verbais, temos:
Levantar(1 vez)
Dizer (1 vez)
Sobrar (1 vez)
Ver (duas vezes)
Dar (1 vez)
Possuir (1 vez)
Lançar (3 vezes)
Oferecer (1 vez)
Viver (1 vez)
O texto apresenta vários tipos de verbos: de movimento (levantar, lançar) de sensação
corporal (ver), verbos dandi (dar, oferecer), verbo dicendi (dizer), verbo de posse (possuir).
30
GENOUVRIER, Emile & PEYTARD, Jean. Lingüística e ensino de português. Coimbra: Almedina,
1973, p.133.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
99
Os verbos levantar, ver, dizer possuem o mesmo sujeito (no contexto, Jesus). Os dois
primeiros podem ser qualificados como verbos dinâmicos, de acontecimentos. Embora o sujeito
tenha os traços [+vivente], [+humano], pode-se perceber que a definição de “agente” pode ser
tomada se o considerarmos um hiperônimo. No verbo “levantar” Jesus é o sujeito afetado pelo
seu ato, e olhos é a parte, como ensina Azeredo. Quanto ao verbo “ver”, o sujeito (Jesus) é
“agente”, mas como experienciador de uma cognição, quase no papel de sujeito sentiendi.
Quanto ao verbo “dizer” (um dicendi), o sujeito “agente” é, na verde, emissor, o ponto de
partida do discurso. Neste caso, seu papel actancial poderia ser o de “origem”.
Os verbos “lançar” têm como sujeito os termos “ricos” e “uma viúva indigente”. Se o
que eles lançam (moedas) não pode ser tomado como “paciente” no sentido estrito da palavra,
pois não tem os semas [+animado], [+humano], então também não se pode dizer que os sujeitos
sejam “agente”, igualmente no sentido estrito.
Porém, há uma diferença: os ricos lançam por lançar; o gesto deles é mais uma
atividade. Então poderíamos considerá-los como “atores”, força causadora de um processo. Já a
pobre viúva, como lança o que lhe ia faltar, há nela um alto grau de intencionalidade, controle.
Por isso, ela é muito mais que a força causadora do processo e se torna “agente” de um ato
calculado, visando a um fim. Por isso mesmo, ousamos dizer que os sujeitos do verbo lançar
não têm o mesmo papel semântico.
Quanto aos verbos “dar, oferecer” têm como sujeitos não agentes, mas possuidores que
fazem transferência de algo seu. Sem outra nomenclatura, arrisco chamá-los de sujeitos
“possuidores” ou “recipientes”, conforme Mateus et al.. Porém, um leitor atento pode observar
que os ricos dão e a viúva indigente oferece. Deste modo, a relação de transferência que se
efetua não é a mesma. Esta é a razão porque dissemos acima que o “agente” do verbo “lançar”
tem conotações ou semas diferentes.
Os ricos deram o que sobrava e isto não lhes custou nada. Assim, não são em nada
agentes e pacientes. São muito mais “origem”. A viúva ofereceu não as sobras, mas tudo o que
possuía para viver. Os primeiros são doadores e retentores ou, origem do processo. Trata-se
mais de uma atividade.
A segunda, ao ofertar é um agente, mas ao ficar sem nada, torna-se paciente de seu ato.
Por ser uma doadora completa, houve nela uma transformação incorporal ou, como se diz, uma
transformação de papéis jurídicos: de possuidora passou a despossuída. Em resumo, os ricos são
sujeitos possuidores e permanecem nesse papel. Conforme Mateus et al., estamos diante de um
predicador de processo. A viúva, de possuidora passa a sujeito despossuidor. Apresenta,
portanto, dois papéis semânticos: agente e paciente. Estamos diante de um quadro de uma ação
controlada.
A seguir, vamos tomar outro gênero de texto para perceber como se comportam
semanticamente os sujeitos.
Os fungos
“Os fungos incluem diversos tipos de organismos, com forma e tamanhos
variados. Não possuem clorofila e por isso não fabricam o próprio alimento.
Dessa forma, dependem do alimento do ambiente. Não dizemos, entretanto,
que os fungos comem, mas sim que absorvem alimento do meio e depois o
utilizam como fonte de energia. Os fungos crescem em lugares úmidos como
troncos de árvores caídas e restos vegetais, estrume de animais, frutas
apodrecidas”.
(Fonte: GODWAK & MARTINS. Natureza & Vida. São Paulo: FTD, 1993,
p. 63, v. 2.)
Como fizemos anteriormente, vamos listar os verbos:
Incluir
Depender
Absorver
(Não) possuir
(Não) dizer
Utilizar
(Não) fabricar
(Não) comer
Crescem
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
100
Percebe-se, com clareza, que se trata de um texto descritivo de uma informação científica. A
não ser o verbo dizer, todos os outros têm como sujeito o termo “fungos” cuja classificação
como ser oferece dificuldades mesmo para os especialistas. Por isso, vamos tomá-los como [±
vivente], [± animado], tendo em vista os semas dos verbos predicadores.
A primeira coisa a analisar é o verbo dizer. Se está na 1ª pessoa do plural, logo a
gramática tradicional nos imporia que se trata de um sujeito determinado “nós”. E realmente, o
sujeito gramatical é “nós”. Acontece, porém, que é um “nós” não especificado, que pode ser
parafraseado como “não se diz”, claramente indeterminado. O “nós” não se refere ao sujeito da
enunciação, mas a uma voz indeterminada dos cientistas, da ciência. Uma voz não
comprometida com o que diz. Semanticamente é um sujeito indeterminado e por isso mesmo
não se pode apontar qual o responsável direto pela origem da informação.
Para o verbo incluir, o sujeito “fungos” tem o papel semântico de elemento de uma
classe. É um entre outros tipos de organismos. Podemos dizer que tem a função semântica de
recipiente.
A negação dos verbos possuir e fabricar faz dos fungos seres sem capacidade de
transferências e de serem agentes de atividade. Estão mais para receptores (parasitas). Também
não podem ser considerados como simples pacientes. Em lugar disso, podemos classificá-los
como “dependentes”.
O caráter de [±viventes], [±animados] faz deles que não comam, não fabriquem, mas
absorvam o alimento e o utilizem como fonte de energia. Em lugar de agentes ou origem de
processos, teríamos “utantes” e até “mutantes. Por isso, o texto conclui que eles “crescem”, em
virtude de um processo de mutação. Teriam, talvez, a função semântica de “neutros.?
Concluindo, podemos dizer que no primeiro texto predominam predicadores de eventos
que determinam as funções semânticas dos sujeitos: tranferenciais (origem, agente,
experienciais).
No segundo predominam predicadores de processos. No entanto, como esses sujeitos
não apresentam o traço semântico [+controlador] então não são “causativos” do processo. Por
isso, neles predomina a função semântica de origem do processo.
Ditas estas coisas, não nos alongaremos mais porque precisamos de maiores pesquisas e,
para isso, nos falta tempo. Mesmo assim, ao se tratar das funções semânticas do sujeito não se
pode deixar de fora a questão da “voz verbal”.
3) Voz verbal e papéis semânticos do sujeito
A tradição gramatical é explicita quanto aos papéis temáticos do sujeito quando se
refere à “voz verbal”. O conceito geral é que na “voz ativa” o sujeito pratica a ação; na
“passiva”, sofre e na “reflexiva” pratica e sofre.
Como já abordamos, é preciso precaução quanto a essas reduções. Só se pode dizer que
o sujeito é “agente” quando houver os semas de [+humano] [+intencionalidade], [+controle
dinâmico]. No mais, a categoria “agente” é usada como um hiperônimo. Assim, em: o pássaro
voa, não teríamos, propriamente um agente, uma voz ativa, mas um processo. Não uma ação,
mas uma atividade. Por isso, os antigos não classificariam a construção da frase como “voz
ativa”, mas “média”.
Outra coisa também que os fatos desmentem é dizer que na “voz passiva” o sujeito é
paciente. Depende dos semas do predicador, como já analisamos. Para melhor ilustrar isso, a
frase “Mulher estuprada será indenizada”, título de uma manchete da Folha de São Paulo, foi
aplicada como exercício para turmas de 7ª série. Levantou-se a questão de que apesar da forma
passiva, o sujeito “mulher” apresentava dois papéis semânticos: era “paciente” em relação ao
estupro, mas “beneficiária” em relação à indenização. Isto significa então, de acordo com
Mateus (p.321), que a noção de passiva é muito mais uma noção sintática. E há na manchete
dois predicadores, um “adjetival” e outro “verbal”.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
101
Se na voz ativa tivéssemos “mulher receberá indenização da justiça” o sujeito continua
sendo o beneficiário recipiente, enquanto o CD será o benefício e o CI será o agente ou
beneficiador. Se parafrasearmos, “Justiça dará indenização à mulher”, mudam-se os valores
sintáticos, mas permanecem os papéis semânticos.
Se isso foi uma novidade, já é consenso no ensino a diferença entre voz passiva (forma
sintática passiva) e passividade. Poucos são os professores que confundem como voz passiva
uma frase como “o garoto apanhou do pivete”, cujo processo reflexo seria “o pivete bateu no
garoto”. Os termos “garoto” e “pivete” teriam funções sintáticas diferentes (sujeito e CI), mas o
mesmo papel semântico.
Sabemos que existe outra forma sintática de passiva, mas não vamos explorar o assunto,
porque nossa intenção é, sobretudo, desmistificar que a função do sujeito da voz passiva é de
“paciente”. Como já dissemos, tudo depende do predicador.
Conclusão
Com estas observações, cremos ter atingido nossos propósitos de ver os papéis
temáticos do sujeito dentro do texto, ou como advoga Neves (2002) dentro da língua em uso.
Para concluir podemos tecer algumas considerações gerais do que se deve ter em mente
a respeito do sujeito, quando formos fazer a “ponte” entre a academia e as salas de aula.
De modo geral, não se pensa o sujeito em termos semânticos. Estamos habituados a
caracterizá-lo como o termo que está em relação de concordância com o verbo. Mas se for
levada em consideração a diversidade dos papéis semânticos do sujeito - como fizemos acima o hábito da explicação sintática (embora possa ser o ponto de partida) não esclarece a verdadeira
função do sujeito. Conforme vimos, é possível declarar que as características dos predicadores
vão selecionar os papéis semânticos dos sujeitos a eles correspondentes.
Como há diferentes predicadores, há também diferentes papéis semânticos do sujeito.
Podemos então listar os predicadores:
Predicadores identificadores: o sujeito é tem o papel de ser identificado. Exemplo:
A viúva do Evangelho era pobre
Predicadores classificadores: o sujeito é enquadrado dentro de uma classe. Exemplo: Os
fungos incluem diversas classes de organismos.
Predicadores experienciais: o sujeito tem o papel de experienciador do processo.
Exemplo: Os ricos gostam de lançar moedas ao Templo.
Predicadores transferenciais: o sujeito tem o papel de transferidor ou receptor
(benficiário) Exemplo: A viúva ofertou duas moedinhas ao Templo. E numa operação conversa,
podemos dizer que “o Templo recebeu duas moedinhas da viúva”.
Predicadores locativos: o sujeito apresenta o papel de lugar.Exemplo: O templo ficava
no centro da cidade.
Predicadores de atividade física: o sujeito tenderia a ser um “agente”, considerado como
hiperônimo. Exemplo: Lançavam ofertas ao Tesouro do Templo. Estes predicadores podem
referir-se a um movimento controlado pelo sujeito, isto é, um movimento voluntário, realizado
por um ser animado. Nesse caso, o papel semântico do sujeito será o de “agente”. Mas, como
observamos, há graus diferentes de movimento voluntário.
Em contrapartida, se o movimento realizado por um ser animado não for controlado,
voluntário, o papel semântico do sujeito será o de origem do processo. No caso dos textos
acima, pudemos perceber que os “ricos” e os “fungos” são muito mais origem do que agentes do
processo. E, concluindo, se o predicador exprimir um movimento não-controlado e realizado
por um ser não-animado, o papel semântico do sujeito será o de objeto, como por exemplo: a
moeda caiu no cofre do Templo.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
102
Ao término desta monografia, estamos nos lembrando daquela situação de perplexidade
do mestre Serafim da Silva Neto31 que ─ já em 1956 ─ constatava que se ao final de pelo menos
7 anos de estudo de língua portuguesa, “saem os alunos na mais lamentável ignorância da língua
pátria [então] é um curso absolutamente inútil. (...) Fora da linguagem comum, trivial, rasteira,
tudo para eles é um abismo” (p.189).
E verificava que de ano para ano caía o nível. Examinadas as causas, chega à conclusão
de que, depois das causas políticas e sociais, o problema está na falta de leitura. Imagina que se
um aluno lesse 1 hora que fosse por dia, no final do ano já seriam 365 horas e ao final de 7 anos,
2.555. “Hoje - lamentava-se ─ desgraçadamente, nossos jovens, em geral, não lêem coisa
nenhuma. Limitam-se a olhar histórias em quadrinhos e a soletrar as linhas que as explicam.
Sofrem, pois, de verdadeira inanição intelectual” (id.p.192).
Pobre do mestre, se ainda estivesse entre nós... Com mais amargura verificaria a política
de facilitação ou, como dizia, vantagem fácil da época, com uma clientela, queixava-se citando
Gladstone Chaves de Melo, cuja
“preocupação máxima, e quase sempre única, na aula, é descobrir e ‘gozar’ o ridículo do
professor (...) atucanar-lhe a paciência com mil diabruras e insolências, reduzi-lo à condição de
Polícia Especial, ou antes, domador de feras. Realmente, é dificílimo ensinar a uma classe onde
80 por cento dos alunos não prestam a menor atenção; olham atrevidos para o mísero” (p. 191192).
Numa visão quase que profética, constatava que se ensinava muito a gramática e pouco
a língua. Ainda não se falava numa gramática funcionalista, mas o mestre já advertia que “a
gramática estuda palavras e construções, mas esquematiza-as, enquanto a língua real, a língua
viva [grifo do autor] nos mostra essas mesmas palavras e construções intimamente entrosadas”
(id.ib.). Já proclamava que se devia ensinar a língua como um fim e a gramática como um meio.
Mas, e isto é espantoso, sábio foi também ao denunciar a campanha que se fazia contra
ela. Isso, finalizamos, “prejudicou o estudo da língua, porque, afinal, não se podem estudar
apenas textos e mais textos, sem codificação e sistematização dos fatos neles exemplificados”
(id. p. 197). Parece-nos que hoje, nós, no século XXI, voltamos à mania dos “textos e mais
textos”, de fazer das aulas de língua portuguesa uma discussão de temas transversais, numa
febre de “interdisciplinaridade” que - como ao mestre Serafim - nos assusta.
Perdemos o nosso objeto de ensino. Trazemos, para o começo deste século XXI, sua voz
(profética) quando nos diz que “muito se exagerou, nos fins do século passado e no começo
deste, o refrão de que uma língua se aprende nos textos” (id.ib.). Cuidadoso, porém, adverte e
reconhece que uma língua se aprende, sobretudo, na minuciosa e atenta leitura de textos de
todas as épocas. Não como fazemos hoje: damos aos alunos apenas textos do dia, quando muito
da semana. E os clássicos? E os textos literários?
Além disso, os textos não são para serem estudados, num trabalho de minuciosa e atenta
leitura. São apenas pretextos para serem discutidos temas transversais, inter, transdisciplinares e
outros modismos. Acabamos dando aula de história, filosofia, sociologia, geografia, ciências,
códigos de trânsito, receitas, etc. e nos esquecemos que nosso objeto é língua portuguesa.
Isto que agora denunciamos, o mestre Serafim já o fazia naquela época quando alertava
que uma língua não se aprende “somente nos textos, pois as língua, com serem expressões de
arte, possuem um arcabouço gramatical que precisa ser conhecido” (id.ib).
Concluindo, voltamos a advertir que o tema (funções semânticas do predicado e sujeito)
desta pesquisa, neste rumo de um ensino efetivo da língua viva, é apenas um primeiro estudo e,
por isso, assumimos as lacunas e as insuficiências (talvez até mesmo incoerências) que nele
houver. Mas, mesmo assim, já nos pareceu um grande passo.
31
NETO, Serafim da Silva. Introdução ao estudo da filologia portuguesa. São Paulo: Cia.
Ed.Nacional,1956.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
103
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZEREDO, José Carlos de.Fundamentos de gramática do português. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2000.
CARONE, Flávia de Barros.Morfossintasse. São Paulo: Ática, 1991 (Princípios).
CHARAUDEAU, P. Grammaire du sens et de l’expression. Paris: Hachette, 1992..
COSTA, Sônia Bastos Borba. O aspecto em português. São Paulo: Contexto, 1997.
ILARI, Rodolfo. Introdução à semântica - brincando com a gramática. São Paulo: Contexto,
200l.
______ & GERALDI, João Wanderley. Semântica.São Paulo: Ática, 1994 (Princípios)
MARQUES, Maria Helena Duarte. Iniciação à semântica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1996.
MATEUS, Maria Helena Mira et alii. Gramática da língua portuguesa. Coimbra: Almedina,
1983.
NETO, Serafim da Silva. Introdução ao estudo da filologia portuguesa. São Paulo: Cia.Ed.
Nacional, 1956.
NEVES, Maria Helena de Moura. A gramática funcional. São Paulo: Martins Fontes, 200l.
______ A gramática - história, teoria e análise, ensino. São Paulo: Unesp, 2002.
______.Gramática na escola.São Paulo: Contexto, 1990.
TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática
no 1º e 2º graus. São Paulo: Cortez, 1996.
VILELA, Mário. Gramática de valências: teoria e aplicação. Coimbra: Almedina, 1992.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
104
A VERSATILIDADE LINGÜÍSTICA DE ALDIR BLANC
Lúcia Deborah Araújo (UNESA/ UERJ)
Aldir Blanc é compositor carioca. É poeta da vida, do amor, da
cidade. É aquele que sabe como ninguém retratar o fato e o
sonho. Traduz a malícia, a graça e a malandragem. (...) Estamos
falando do Ourives do Palavreado. Estamos falando de poesia
verdadeira. Todo mundo é carioca, mas Aldir Blanc é carioca
mesmo.
Versátil - que se move facilmente; que está em movimento.
Propenso à mudança, volúvel, inconstante, mutável.
(Koogan/Houaiss s. u)
O presente trabalho tem por objetivo apresentar uma breve apreciação dos
caminhos lingüísticos percorridos pelo poeta e letrista Aldir Blanc, colocando em foco a
seleção vocabular e a especialização lexical. Procuraremos mostrar de que modo a
temática brasileira é explorada e como é feita a representação de uma visão de mundo
bastante aproximada da realidade das classes populares, especialmente ao tratar de
temas como o amor e o futebol. Numa abordagem estilístico-semântica que busca o
concurso da Semiótica, procuraremos identificar a iconicidade lexical na construção dos
campos semânticos que orientam a coesão e a coerência dos textos em análise,
verificando como se atualiza sua identidade como sujeito em seu vínculo com a
realidade essencialmente brasileira e especificamente carioca.
A escolha de Aldir Blanc se justifica exatamente por sua versatilidade. Como se
encontra no verbete, ser versátil é ser propenso à mudança, é estar em movimento. De
que forma se detecta, entretanto, qualquer movimento? Deve-se ter um referencial fixo,
em relação ao qual um objeto se mova. Sabemos que a linguagem de Aldir está em
movimento, assim como ele próprio, em sua vida, porque há elementos fixos a
denunciar uma energia cinética inquieta, a mesma que o fez abandonar a carreira de
médico psiquiatra para abraçar incondicionalmente a criação poética. Os elementos
fixos são exatamente sua identidade como brasileiro, carioca, plenamente enraizado na
zona norte do Rio (ocupada, em geral, pela classe média e por camadas populares), onde
nasceu e mora.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
105
Segundo Aldir, as vivências de infância e juventude em Vila Isabel, Estácio,
Tijuca, pontuadas sempre pela boemia e pela música, que chegava de casas vizinhas no
vento, determinariam suas opções de vida: “A Zona Norte se entranhou em mim de vez,
com seus vitrolões, seus álbuns de 78 rotações” (Blanc, 2001, p6). A vida do povo, o
trabalho, o morro, o samba, a boemia, o bar, o futebol, as crendices e as dores populares
foram-se reunindo, nas vivências do poeta, a uma riqueza intelectual vinda do gosto
pela literatura, em especial pelas obras de Oswald de Andrade, Guimarães Rosa, Jorge
Amado, Carlos Heitor Cony. Na música, canções “antigas” de Ismael Silva, Wilson
Batista e Noel Rosa estavam na lista de suas “cantorias” de bar, mas foi em Vinícius de
Moraes que constituiu sua grande referência. De modo irreverente, Blanc dimensiona o
peso de nomes da literatura universal em seu perfil de poeta: “Claro que houve também
Pound, Llorca e Maiacovsky, mas creio que a influência da sinuca foi maior”. Em
torno deste eixo, sua poesia rodopia, criativa, genética, desdobrando-se em signos de
diferentes tipos: ora mais especificamente icônicos, ora mais notadamente indiciais, ora
simbólicos.
Para melhor esclarecermos os pressupostos teóricos que sustentam esta
investigação, recuperemos os conceitos de ícone, índice e símbolo, como formulados
por Peirce (2000) em sua Semiótica:
“Um signo é um ícone, um índice ou um símbolo. Um ícone é um signo que
possuiria o caráter que o torna significante, mesmo que seu objeto não
existisse, tal como um risco feito a lápis representando uma linha
geométrica. Um índice é um signo que de repente perderia seu caráter que o
torna um signo se seu objeto fosse removido, mas que não perderia esse
caráter se não houvesse interpretante. Tal é, por exemplo, o caso de um
molde com buraco de bala como signo de um tiro, pois sem o tiro não teria
havido buraco; porém, nele existe um buraco, quer tenha alguém ou não a
capacidade de atribuí-lo a um tiro. Um símbolo é um signo que perderia o
caráter que o torna um signo se não houvesse um interpretante. Tal é o caso
de qualquer elocução de discurso que significa apenas por força de
compreender-se que possui essa significação”. (Peirce, 2000: 74)
Relembremos, igualmente, que, segundo este autor, o processo de semiose se
estrutura numa tríade, que envolve Signo/Objeto/Interpretante, cuja relação é assim
apresentada por Darcilia Simões (1999):
“Nessa tríade, o filósofo retoma um esquema aristotélico e nos mostra um
processo de inter-relações por meio das quais a consciência humana dialoga
com o exterior. Em outras palavras: o que Peirce designa como signo é aqui
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
106
tomado como um fato ou fenômeno (aquilo que sensibiliza a consciência─ a
que ele designou phaneron) que estimula a ação da consciência. Esta, por
sua vez, reage ao lampejo da idéia-mensagem e a associa a um objeto
imediato de natureza sígnica (representâmen) que processa os dados em
forma de pensamento com base no interpretante ─“tradução” do phaneron
em juízo verbal.”(Simões, 1999, p.91)
Através de levantamentos dos campos semânticos trabalhados pelo poeta em alguns de
seus textos, procuraremos surpreender a construção da semiose na relação entre elementos
essencialmente ideológicos que lhe servem de eixo e elementos lingüísticos mutáveis.
NÍVEIS DE SOFISTICAÇÃO NO TRATO LINGÜÍSTICO
Este carioca “com Vila Isabel no DNA”─ conforme nos diz Roberto Moura na
apresentação do songbook do artista ─, despeja em poemas, contos e crônicas tanto a
crueza da vida do povo como o seu lado engraçado, sem deixar de visitar os recantos da
alma humana, complexa em sua natureza. Revela-se, então, toda a versatilidade que
colocamos em foco neste trabalho ─ sua linguagem transita da expressão mais popular
aos elementos mais sofisticados.
1.1) A VOZ DO POVO
Uma das características de Blanc é fazer-se meio para a expressão popular,
usando seus temas, seu palavreado:
Veio a comadre bater no portão lá de casa
pra contar que meu cumpadre nem começou, já acaba...
Esse cara precisa de um chá de mastruço e catuaba.
Disse que faz uns seis meses
que o fuque-fuque anda ruço:
esse cara precisa de um chá
de catuaba e mastruço.
(Claudio Cartier e Aldir Blanc, “Mastruço e Catuaba” fragmento. In: Blanc, 1996)
Neste refrão de uma letra de samba, Blanc utiliza vocábulos e expressões
essencialmente populares para abordar de modo “caseiro” e bem-humorado a questão da
sexualidade. A marca da oralidade carioca está na seleção lexical: cumpadre, esse cara,
anda ruço (=está difícil). Mesmo numa relação de amizade, entre compadre e comadre,
com liberdade inclusive para falar de intimidades, cabe uma certa reserva ao se tratar de
sexo. É aí, que surge o termo popular fuque-fuque, uma espécie de onomatopéia alusiva
ao coito.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
107
O texto conta com uma cumplicidade do leitor/ouvinte para construir sentidos
através do preenchimento de lacunas discursivas como a do segundo verso,
graficamente assinalada pelas reticências.
Assim, fazendo graça de assuntos sérios, muitas vezes ainda tratados “como
tabus”, Aldir monta, ao longo de várias de suas letras, uma autêntica colagem de cenas
da vida do povo.
1.2) JOGO SEMIÓTICO
O mesmo tempo ─ o sexo ─ está presente em “Maçã Tatuada” (Blanc, 1996), já
numa abordagem diferente:
Numa esquina de Copa ficava parada,
alvejada pelas setas do vício,
e o início tinha sido divino:
um amante latino
Sua boca vermelha, a maçã tatuada
sobre o ombro (a sombra de veludo),
a pele onde um homem que é nada
pensa que é capaz de tudo. (...)
Toda vez que as pestanas castanhas batiam,
o olhar trocava mil slides:
na praia, na lambada,
com a amiga que já faleceu de Aids...
e na bolsa, quando ia ao toalette,
a gilete, o sempre-livre,
e o chiclete importado,
o velho exemplar do despertar de algum mago.. (...)
Através da seleção vocabular, Aldir Blanc define um campo semântico relativo à
atmosfera da vida de prostituição, da rua (esquina, setas do vício, boca vermelha, maçã
tatuada, sombra de veludo, pestanas castanhas). Os objetos portados pela mulher
funcionam, aqui, como signos indiciais de sua vida e atividade ─ bolsa, gilete, semprelivre, chiclete importado, exemplar do despertar de algum mago. Para Peirce, índice
seria.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
108
“um signo ou representação que se refere ao seu Objeto não tanto em virtude
de uma similaridade ou analogia qualquer com ele, nem pelo fato de estar
associado a caracteres gerais que esse objeto acontece ter, mas sim por estar
numa conexão dinâmica (espacial, inclusive) com o Objeto” (apud Santaella,
2000, p.122).
Assim, os objetos da bolsa, sendo individuais e estando dinamicamente
conectados à vida daquela prostituta, funcionam como seus índices.
A contundência deste texto, no entanto, reside na forma pela qual a noção de
tempo é trabalhada. A escolha do imperfeito dilata os processos verbais e sinaliza a
passagem do tempo (ficava, batiam, trocava); no verso “o início tinha sido divino: / um
amante latino...”, mais uma vez se sugere um razoável decurso de tempo, com a
referência ao “início”, o que é confirmado pelas alusões às lembranças da personagem:
os mil slides trocados - pedaços de sua memória -, a experiência da morte de uma
amiga. Imagens que, inter-relacionadas, significam uma história de vida muito peculiar
e lhe conferem um certo peso, uma nostalgia. Os signos utilizados representam uma
mulher vivida, experiente, sofrida e sugerem que seja uma adulta, não apenas em seu
emocional, mas também em termos de faixa etária.
A partir daí, o poeta inaugura um novo campo semântico oposto conceitualmente
ao primeiro:
Prostituta
Mulher Pura
esquina, setas do vício, boca vermelha, Jezebel, Moema, treze anos.
maçã tatuada, sombra de veludo,
pestanas castanhas,Duvivier
Reunindo alguns desses elementos em paradoxos, o poeta provoca uma releitura da
personagem e prepara o clímax do poema.
(...) o apelido que não posso esquecer:
a Jezebel da Duvivier,
saiu assassinada na manchete,
entre a greve e os motins urbanos,
chamava-se Moema, era morena,
e tinha apenas treze anos.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
109
Vejamos como ele operacionaliza isto.
Primeiro faz a revelação do nome de guerra da prostituta, “Jezebel da Duvivier”,
paradoxal em si por reunir um nome bíblico32 ao de uma rua de Copacabana, num jogo
que evoca a dicotomia entre a mulher santa e a mulher da vida, aqui reunidas numa só:
era da vida porque prostituta, era santa, por ser menina e mártir. Trabalhando ainda com
contrastes, coloca este nome como inesquecível, elevando a personagem a uma posição
de destaque, mas dissolve a notícia do assassinato da moça, “entre a greve e os motins
urbanos”.
Em seguida, revela o nome verdadeiro da garota, mostrando a sua face de moça
sob a máscara da mulher: Moema (usada, preterida pelo homem, tragada, ingênua, para
as profundezas do mar). Por fim, aponta sua idade – treze anos –, sublinhando-a com
um “apenas” e fazendo essa flagrante adolescência contrastar com todas as informações
e sugestões anteriores.
Segundo Peirce (2000), “tudo o que atrai a atenção é índice. Tudo o que nos
surpreende é índice, na medida que assinala a junção entre duas porções de
experiência”. Ao longo do texto, signos indiciais são utilizados para desenhar a
personagem e trabalhar a atenção do leitor, proporcionando-lhe uma surpresa ao final.
No entanto, a partir daí, a personagem é redimensionada e ressignificada, tornando-se,
em si, um signo simbólico que representa a questão da prostituição infantil. Nos dizeres
de Lúcia Santaella, o símbolo seria “um meio geral para o desenvolvimento de um
interpretante”. Nota-se que, calando sua fala nesse ponto, o poeta projeta o leitor em
reflexões sobre o tema, deixando-lhe a possibilidade de tomar a personagem como signo
e, vinculando-a a elementos de sua experiência particular, fazer associações entre idéias
e penetrar, assim, numa dimensão crítica. O símbolo realiza, portanto, sua função.
1.3) NEOLOGISMOS
O estilo caleidoscópico de Aldir Blanc, que salpica substantivos e deixa que o
leitor os movimente para formar novas e variadas imagens, fica nítido em “Querelas do
Brasil” (Maurício Tapajós e Aldir Blanc):
32
“Jezabel - esposa de Acab, Rei de Israel, e mãe de Atalia. Foi morta por ordem de Jeú e devorada por
cães” (s.u. Koogan/Houaiss, p. 1285).
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
110
o brazil não merece o brasil
o brazil tá matando o brasil
jereba-saci
caandrades cunhãs ariranharanha
sertõesguimarães bachianaságuas
imarionaíma ariraribóia
na aura das mãos de jobim-açu, ô,ô,ô
pererê camará tororó olerê
piriri ratatá karatê olará
jererê sarará cururu olerê
blá-blá-blá bafafá sururu olará
do brasil s.o.s. ao Brasil
Nesse poema o autor exercita um nacionalismo crítico, aliado a um manejo
vocabular, que penetra a intimidade mórfica e mesmo fonética das palavras para
produzir neologismos e registrar coloquialismos capazes de recuperar as riquezas
naturais e culturais do país, festejando nomes e obras do nosso modernismo com
recursos tão bem utilizados por esta mesma estética: “caandrades”, “sertõesguimarães”,
“bachianaságuas”, “imarionaíma” – vocábulos com segredos por desvendar.
“Caandrades” – Carlos/Andrade? Os Andrades de cá? Talvez mais desvendável seja
“sertõesguimarães”, que definitivamente funde o lugar da seca com Guimarães Rosa,
que tão bem o retratou; ou “bachianaságuas”, numa referência aos poemas musicais de
Heitor Villa-Lobos; ou, ainda, “imarionaíma”, em que autor/obra/personagem se
confundem. Coerente com sua identidade musical inclui uma homenagem a Tom Jobim,
visto como um indígena (no sentido etimológico do termo) de grandes proporções
criadoras, um compositor grande, como marca o sufixo tupi (“na aura das mãos de
jobim-açu”). Por fim, a denúncia e a crítica configuradas na oposição “brazil” / “brasil”,
apresentadas no início do poema, são substituídas por um pedido de socorro dramático
aos seus iguais: “do brasil s.o.s. ao brasil”. A opção pelo uso do substantivo comum ao
mencionar o país, deixa claro que o poeta não se refere às entidades políticas que são os
países, mas à realidade ideológica que neles se encontra.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
111
1.4) ECONOMIA VOCABULAR
O exercício crítico e a expressão ideológica marcaram e marcam o trabalho de
Blanc. Por esta característica, todo o povo o conheceu, através de letras como “O
mestre-sala dos mares” e “O bêbado e a equilibrista” (Blanc,2001). Em “O ronco da
cuíca”, mais uma vez, é lançado um olhar crítico sobre a realidade do povo e sobre as
relações de poder que regem o comportamento político-social. No plano da seleção
vocabular, todo um jogo semântico é elaborado com base em apenas alguns lexemas.
O Ronco da cuíca
(BOSCO, João e BLANC, Aldir. In: MPB4, 2000)
a fome tem que ter raiva pra interromper
a raiva é a fome de interromper
roncou, roncou
roncou de raiva a cuíca
roncou de fome
alguém mandou
mandou parar a cuíca
é coisa dos home
a raiva dá pra parar, pra interromper
a fome não dá pra interromper
a raiva e a fome é coisa dos home
a fome tem que ter raiva pra interromper
a raiva é a fome de interromper
a fome e a raiva é coisa dos home
é coisa dos home, é coisa dos home
a raiva e a fome, mexendo a cuíca
vai ter que roncar
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
112
No texto, Blanc “joga” com alguns lexemas e o faz de modo tão flagrante que
mesmo um leitor menos avisado tem condições de perceber, ao menos, a persistência
em alguns vocábulos.
Um levantamento inicial permite identificar palavras-chave deste texto:
•
raiva
fome cuíca roncar interromper home
Das palavras destacadas, três são substantivos e duas são verbos. Passando a
organizar esse conjunto de vocábulos em dois subgrupos, conforme sua classe, teremos
em um grupo, raiva, fome, cuíca e home e em outro as ações de interromper e roncar.
Como suporte para as reflexões que serão feitas, buscou-se o sentido
dicionarizado de cada vocábulo. Em cada verbete transcrito, destacaram-se, desde já,
trechos que parecem vincular-se pelo sentido ao contexto em que os lexemas aparecem.
1.4.1) OS SUBSTANTIVOS: RAIVA, FOME, CUÍCA, HOME
Blanc inaugura seu texto com a tríade que irá sustentar o restante do poema:
fome/raiva/ronco. Nos dois primeiros versos, fome e raiva aparecem em relação de
oposição – a raiva “dá pra parar, pra interromper”, já a fome “não dá pra interromper”.
Logo a seguir, os dois lexemas se aproximam quanto ao efeito por eles produzido, o
ronco, que pode ser “de raiva” ou “de fome”.
Examinando o significado dicionarizado para estes lexemas, tem-se que raiva
corresponde a “violento acesso de ira, com fúria e desespero; ânsia veemente; desejo
irresistível; grande apetite; paixão ardente; aversão, ódio” Fome, por sua vez,
corresponde a “sensação causada pela necessidade de comer; falta, míngua de
víveres; miséria, penúria; avidez, sofreguidão, desejo insaciável” (Michaelis, s.u). Vêse que ambos os vocábulos comportam os traços semânticos de ânsia, sofreguidão e
desejo. Igualmente, encontra-se neles o sema da nutrição (raiva=grande apetite;
fome=míngua de víveres).
Entre esses lexemas se estabelece uma forte imbricação, explicitada na
circularidade dos seguintes versos:
•
“a fome tem que ter raiva pra interromper”
•
“a raiva é a fome de interromper”
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
113
Assim, a fome (que “não dá pra interromper”), reunida à raiva, que traz o traço
“dá pra interromper”, assimila a possibilidade da interrupção. Tem-se, então que:
•
Fome + raiva= possibilidade de interromper
Por sua vez, a raiva é definida como “fome de interromper”, ou seja;
•
Raiva = fome + interromper
O sentido será completamente tautológico e, portanto, estéril, se exatamente os
mesmos semas participarem da construção dos sememas de raiva e de fome. Façamos
um exame destes semas, comparando-os com os que participam dos sememas cuíca e
home. Antes, porém, vejam-se os verbetes para estes dois termos:
•
cuíca (tupi Kuika) – “instrumento musical rústico, de origem africana,
feito de um barrilete ou tronco oco, com uma das bocas tapada por
uma pele bem esticada, em cujo centro há preso por dentro um bastão, o
qual, quando friccionado com a mão, produz um ronco cavo (escavado,
côncavo, cavernoso, rouco)”. (Michaelis, s.u)
•
home (corruptela de homem)- “mamífero da ordem dos primatas, único
representante vivente do gên. Homo, da espécie Homo sapiens,
caracterizado por ter cérebro volumoso, posição ereta, mãos preênseis,
inteligência dotada da faculdade de abstração e generalização, e
capacidade para produzir linguagem articulada; a espécie humana; a
humanidade; o ser humano considerado em seu aspecto morfológico, ou
como tipo representativo de determinada região geográfica ou época”
(Houaiss, 2000)
LEVANTAMENTO DOS SEMAS DAS PALAVRAS-CHAVE DO TEXTO “O RONCO DA CUÍCA”
desejo , nutrição
ânsia
dá
pra saciáve voluntári
interrompe l
o
r
Causa de Consciente Humano
ronco
Raiva
+
+
+
+
+
+
+
+
Fome
+
+
-
-
-
+
-
+
Cuíca
+
-
+
-
+
+
+
-
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
114
Retornando aos registros lexicográficos, descobre-se que raiva é definida como
“desejo irresistível, grande apetite”. Irresistível é aquilo a que não se pode fazer frente,
diante do que se está passivo. Apetite evoca a idéia de vontade, de ato voluntário. O que
depende da vontade, “dá para parar, para interromper”; o que é desejo irresistível, não.
Por isso, a fome “não dá pra interromper”, já que se caracteriza pela avidez, pela
sofreguidão, sendo um desejo insaciável, uma necessidade, afastando-se do caráter
voluntário da raiva.
A raiva, no plano do consciente, tem força irresistível, mas pode ser controlada.
A fome, no plano do orgânico, está fora de controle, não tem direção certa, não tem
vontade.
Ao dizer que a fome tem que ter raiva pra interromper, busca-se uma transição
do primeiro elemento do plano orgânico - não-consciente - para o plano do consciente,
voluntário. A raiva empresta à fome os traços +voluntário, +consciente, inaugurando
um novo sentido para o vocábulo, bem como, gerando novas possibilidades de
interromper. “A raiva é a fome de interromper” ─ a raiva, aí, ganha um aspecto de
agente, aquele que vai realizar algo.
A fome consciente pode interromper (no sentido ativo, de fazer parar). A raiva,
acrescida do traço ─ saciável da fome, ganha força para interromper. A leitura passa
então, de uma visão de raiva e de fome, como coisas interruptíveis, para agenciadores
aptos a interromper algo.
Vejamos agora, como se encaixa a cuíca neste raciocínio. A cuíca é um duto com
duas bocas, uma aberta, outra fechada; uma roncando, outra calada. É a boca a boca da
fome, da carência e também a boca do ronco, da raiva. A cuíca dá expressão tanto à
fome quanto à raiva.
No entanto, a cuíca “dá pra interromper”, ou seja, é voluntária e pode ser
interrompida por quantos consigam vetorizar sua raiva, por se sentirem incomodados
pela expressão da cuíca. Entram em cena os “home” ─ aqueles que mandam calar a
cuíca. Dentro do conhecimento partilhado da cultura brasileira, sabe-se que o elemento
home é +voluntário, +consciente e vincula-se ao exercício do poder, da imposição,
sendo capaz de “calar a cuíca”, colocando-a como paciente de sua ação.
1.4.2) Os verbos: roncar, interromper
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
115
Tanto a raiva quanto a fome têm o traço “produtor de ronco”, comum também à
cuíca, que ronca “de raiva” e “de fome”. A raiva e a fome, mexendo a cuíca, vão fazê-la
roncar, não só para expressar a dor, a necessidade, mas para protestar contra a sua
causa, quem sabe até, na tentativa de interromper a opressão. Segundo o verbete, ronca,
do latim Rhonchare, é “produzir som áspero, cavernoso e forte; estrondear, restrugir,
dizer em tom de provocação; blasonar, bravatear” e interromper do latim Interrumpere;
corresponde a “fazer cessar por algum tempo, cortar ou romper a continuidade, destruir,
extinguir, calar-se, falar de coisa diversa do que vinha dizendo, não continuar a fazer o
que estava fazendo; cortar a palavra a” (Michaelis, s.u).
Os home, com raiva, com fome de interromper uma expressão incômoda, que
grita, que “ronca” a fome, a carência, a dor de uma parcela da população; interrompem,
mandam calar a cuíca, fecham-lhe a boca, impedem-lhe o ronco, silenciam-na.
Aldir Blanc, neste jogo de substantivos e verbos, reproduz a rede que prende
uma sociedade caracterizada pela carência, pela necessidade de expressão e pelo
encontro constante com a opressão. Faz da letra do samba uma denúncia acerca das
relações sócio-políticas da sociedade brasileira, especialmente da comunidade carioca,
caracterizada pelo samba e simbolizada pela cuíca. Esta, com suas bocas, sua carência e
sua expressão, mas também com sua submissão involuntária ao poder. É o signo
simbólico de uma sociedade sob regime autoritário, mas a raiva, é esta, sim, o motor de
todas as ações desenvolvidas. A raiva empresta consciência e dá vetor à fome; a raiva
motiva a expressão da cuíca, fazendo-a roncar; a raiva dispara a ação opressora de
mandar calar, de interromper. Ela é o arquissemema do texto de Blanc, capaz de
costurar homens em dois lados, separados pelas suas ideologias, mas iguais na raiva,
numa brigam viril para definir quem, por fim, será interrompido, se a cuíca, se os home.
1.4.3) METÁFORAS: INTIMISMO E EXISTENCIALISMO
Finalmente, após vermos a face descontraída, a face crítica e a engajada de Aldir
Blanc, através de suas letras, vejamos como aparece seu lado existencial, em “Carta de
Pedra”, composição que tem música de Guinga:
CARTA DE PEDRA (Igreja da Penha)
Prezado amigo, escrevo pra esclarecer
que, mesmo antes de nascer,
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
116
meu coração se fez humano por ser suburbano
e o HIV
deu positivo porque meus irmãos
padecem de doença igual
e um degrau atrás de outro degrau
me leva de joelhos à Igreja onde Deus me diz
que o Humano me é estranho, sim,
porque é meu pai e, ai de mim,
nós nos desentendemos sempre
e é assim que se faz
canções, estradas, catedrais
que depois não visitamos mais
dão de nós o melhor testemunho,
Prezado amigo, eu vi sair do papel
A pedra e o fogo que há no céu
E tudo parecia letra de chorinho
E então também chorei...
Os meus avós e o pai são os degraus
Aonde eu piso em direção ao caos
Mas posso ver na beira goiabeiras,
Limoeiros, pés de sapoti
E a Penha volta aqui
Feito o mito de uma Ressurreição.
A hóstia é pedra – hei de ralar!
A Santa não pode cumprir o que não me crismar:
O pai que eu amo não demora,
A valsa chora e eu sei que chora
Pelas Penhas que eu vou inventar
Até que a própria Virgem
Mande eu descansar...
(Guinga & Blanc. In: Aldir Blanc- 50 anos. Rio de
Janeiro: Alma Produções Ltda., 1996)
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
117
Neste poema, em que a escrita surge como elemento capaz de esclarecer a vida,
Blanc trabalha, basicamente, com dois campos semânticos: o da pedra e o da
pacificação.
No campo de pedra, entram todas as referências ao seu sacrifício e às suas dores:
penha, pedra, degrau, hóstia, humano, caos, canções, escadas, catedrais, chorinho. No
campo da pacificação, estão: igreja, goiabeiras, limoeiros, pés de sapoti, virgem, valsa.
A negociação entre esses dois campos é feita pela crisma – sacramento da confirmação
da fé, mudança de nome. Assim, só pela transformação – escolhida pessoalmente –
poderá ele receber a autorização da virgem para descansar.
Mas note-se que as penhas inventadas são motivos para maiores escritas, maiores
construções ...o fazer do poeta não pára. Não é apenas o eu-lírico que se transmuta; as
penhas, as dores, as marcas da vida igualmente se transmutam em versos, em matéria
poética.
Aqui, Blanc trabalha com símiles e metáforas para criar um cenário que o
represente como ser humano, estranho, sofrido, mas a caminho de esclarecimento pela
poesia, numa relação religiosa com as palavras, tijolos lexicais que sustentam catedrais
de sentido – um sentido revelador.
2) A POESIA DE BLANC E A SALA DE AULA
Muitas são as letras de Blanc que podem ser discutidas e aproveitadas em sala de
aula, para deflagrar um processo perceptivo, qualificado em nossos alunos.
Descortinando junto com eles os véu que inicialmente parecem esconder o poético, é
possível inaugurar novos sentidos, colocar os discentes em atitude de parceria e de
cumplicidade com o texto.
Partindo de letras com vocabulário popular, seguindo para outras mais
sofisticadas, pode-se, ao mesmo tempo, desenvolver num crescendo a capacidade de ler
– não no sentido estritamente alfabético, mas na acepção mais ampla de decifrar o
mundo. Lendo a realidade através de outras palavras, de imagens originais, o aluno
cresce e enriquece seu repertório, familiariza-se com outras formas de dizer, ver e
enxergar.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
118
Num tempo em que letras de música escorregam para discursos fragmentários, é
mais que urgente, investir num trabalho que apresente qualidade poética e criativa aos
nossos alunos, mostrando que um mesmo poeta pode ser versátil e passear entre a
expressão popular e alguma erudição, sem se perder de si mesmo e sem se afastar de um
compromisso com a música brasileira de qualidade.
Referências Bibliográficas:
BLANC, Aldir (1996). 50 anos (CD). Rio de Janeiro: Alma.
__________ (2001). A poesia de Aldir Blanc: melodias e letras cifradas para guitarra, violão e
teclados. Coord. edit. Roberto Mora; prod. Luciano Alves. São Paulo: Irmãos Vitale.
KOOGAN/HOUAISS(1993). “Enciclopédia e dicionário ilustrado”. Rio de Janeiro: Ed. Delta.
HOUAISS, Antonio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa (v 1.0). Ed. Objetiva,
2001
MPB4 (2000). MPB4 VIVO – Melhores momentos. Rio de Janeiro: Cid
PEIRCE, Charles Sanders (2000). Semiótica. São Paulo: Perspectiva.
Revista Letristas Brasileiros (n º 1, 1996). Aldir Blanc e amigos.Rio de Janeiro: Alma.
SANTAELLA, Lúcia. A teoria geral dos signos: como as linguagens significam as coisas. São
Paulo: Pioneira, 2000.
SIMÕES, Darcília. “Leitura e produção de textos: subsídios semióticos”. In: Valente, A. (org.).
Aulas de português: perspectivas inovadoras. Petrópolis, RJ:Vozes, 1999.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
119
UMA VIAGEM AO ESTILO DE O BÚFALO
Cláudio Artur de O Rei (UERJ-UNESA)33
1) INTRODUÇÃO
Estilo é a linguagem que transcende do plano intelectivo para
carrear a emoção e a vontade. (Mattoso Câmara, 1988:13)
A Retórica, velha ciência da persuasão definida como uma arte do discurso eficaz (ars
bene discendi), embora tenha sido suprimida como disciplina do currículo escolar, jamais
cessou de reaparecer. Às vezes, fragmentada e camuflada, recebeu denominações diversas ao
sabor da moda: Teoria da Composição, Arte Oratória, Teoria das Figuras, Estética, Poética,
Estilística... E é exatamente com essa denominação Estilística que nosso trabalho será enfocado.
Entretanto, sabemos que a Estilística sempre fora vista como a “irmã pobre” dentre os
ramos da lingüística, tendo nesta mesma havido uma tendência que se recusava a inserir nos
seus limites o problema da expressividade individual ou mesmo coletiva.
Nossa proposta em desenvolver um trabalho em Estilística se dá pelo fato de ser ela
uma ciência bastante abrangente o que nos permite utilizar como corpus um texto literário como
o conto O Búfalo, de Clarice Lispector, e desmembrá-lo em uma análise que passa pelos níveis
gramaticais, lingüísticos e literários, visto que a Estilística não é um estudo centrado em si
mesmo, pois tal estudo nos permite “passear” por outros ramos de estudo.
O corpus será analisado conforme a proposta do livro Iniciação à Estilística, de Nilce
Sant’Anna, respondendo às perguntas por ela elaboradas as quais direcionarão o estudo
estilístico que nos propomos.
Nossa análise do conto O Búfalo tentará comentar os níveis de estruturação estilística
do texto, num percurso dedutivo, o que nos oferece um leque de diferentes caminhos para
análise, da mesma forma que sabemos da impossibilidade de esgotar aqui toda a riqueza dessa
produção textual, devido às inúmeras possibilidades ou potencialidades existentes no corpus.
Assim, partindo dos grandes núcleos significativos do conto (eixos semânticos),
tentaremos levantar, comentar e classificar palavras, expressões e estruturas nominais e orações
que participem da trama metafórica do conto. Além das estruturas das palavras, analisaremos,
também, seu aspecto fonético, a expressividade de certas vogais e consoantes de acordo com as
propostas da Fonoestilística.
Mais adiante,tomaremos os determinantes — artigos e adjetivos — como alvo de
análise com o objetivo de apontar-lhes os efeitos de sentido emergentes de sua posição nos
enunciados, isto é, os valores expressivos de certas anteposições e posposições de adjetivos e a
escolha no uso de alguns deles. Faremos, também, um levantamento do uso dos artigos
definidos e indefinidos e as implicações no uso de cada um deles ou mesmo em sua omissão.
Outro aspecto que também será abordado por nós é a questão da função poética em
prosa que se apresenta no conto e de que forma Clarice Lispector consegue subverter esses
valores poéticos mais simples em uma linguagem em prosa em prol de uma riqueza expressional
ímpar.
33
O autor é doutorando em Língua portuguesa na UERJ, é docente da Universidade Estácio de Sá e da
rede municipal de ensino.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
120
Por fim, para não frustrar o leitor de qualquer estudo estilístico, apresentaremos breve
quadro das figuras presentes no texto — sejam de substância fônica, sintática ou semântica —
seguidas de breve exemplário.
Todavia, é indiscutível que temos uma meta além da análise do conto O Búfalo: a de
mostrar que a Estilística não está presente apenas nos livros de Retórica do passado, mas que ela
é uma ciência com vezo semiótico-pragmático, constante em nosso uso diário, mesmo que por
muitos não seja vista como tal.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA
E aqui tocamos no ponto crucial: a escolha. Aí está a alma do
estilo. A língua oferece possibilidades: o sujeito elege uma e
rejeita a outra. (Chaves de Melo, 1976:23)
A Estilística é uma disciplina lingüística que se fundamenta nos fatores de
expressividade e afetividade; e seu papel é depreender todos os processos lingüísticos que
permitem a atuação da manifestação psíquica e do apelo dentro da língua intelectiva. (Mattoso,
1975: 137), e baseado nessa assertiva, ousamos dizer que a Estilística é uma espécie de
"psicologia lingüística", destarte, a moderna noção de estilo, envolvendo a compreensão do
autor e da obra, deixou de ser formal, retórica ou gramatical, para ser psicológica. Assim, a
Estilística ocupa-se, primordialmente, da função afetiva da linguagem.
Outrossim, o estilo é visto como um processo que exige conhecimento, gosto, requinte,
senso de proporção e adequação, musicalidade, ritmo, novidade, poder de surpresa e constante
reinvenção. Cremos pertencer a Sílvio Elia uma das melhores caracterizações de "estilo",
quando diz: Estilo significa o máximo de efeito expressivo que se consegue obter dentro das
possibilidades da língua. (apud: Chaves de Melo, 1976: 24).
Do ponto de vista cronológico, a Estilística é uma ciência bastante recente. Foi
inaugurada em 1902 por Charles Bally, e como bem assinalou Chaves de Melo (1976: 15) até
hoje está procurando seus direitos de cidadania, ou seu foral, no reino das disciplinas
lingüísticas. No entanto, foi efetivamente a partir da Estilística idealista de Leo Spitzer, seguida
então por Dámaso Alonso, Amado Alonso — que se distinguiam dos princípios de Bally,
Vossler e Auerbach pela modernidade — que os estudos da expressão literária começaram a
tomar impulso, dando início a uma reformulação crítica no processo literário, isto é, a velha
retórica cede lugar a uma nova retórica (Estilística), em cujas premissas já não se exige o uso de
uma "língua bonita", congelada pelas regras dos gramáticos. A língua, sendo uma expressão do
homem, evolui com o homem, com os costumes, os ideais e os usos que ela exprime. Essa nova
retórica implica a alteração conceitual de linguagem e estilo.
Infelizmente, porém, há um grande ressentimento em nossa cultura lingüística, tomada
essa palavra no sentido amplo de estudo das Letras, pela ausência de uma tradição de pesquisas
estilísticas, seja da Estilística como ciência da expressão, seja da crítica estilística que aponta
para a escrita literária.
Tal desinteresse por esse tipo de estudo ocorre devido a dois conceitos falhos. O
primeiro deles é que durante muito tempo prevaleceu entre nós as noções da antiga retórica,
confundindo a Estilística com a parte da gramática que estuda as figuras de linguagem e os
recursos poéticos. O segundo conceito falho é que os raros estudos acerca da expressão
estilística literária têm-se limitado ao círculo restrito do meio universitário, distantes, portanto,
do público maior interessado em Letras.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
121
Dessa forma, tentando contribuir para o desfazimento desses antigos conceitos, optamos
por trabalhar com um corpus literário, porém com diretrizes bastante diferentes daquelas a que
estamos acostumados ver como modelo de análise estilística. Assim sendo, dentro do vasto
campo da Estilística, optamos pela Estilística literária para a abordagem e elaboração deste
trabalho.
Não seguiremos, entretanto, uma linha de análise centrada em um único estilisticista,
trabalharemos com concepções variadas de diferentes correntes que sejam pertinentes ou que se
encaixem à proposta do trabalho. Aplicaremos modelos e conceitos de Spitzer, Vossler,
Auerbach, Amado Alonso, Guiraud, Castagnino entre outros, por serem estudiosos da Estilística
com visões diferentes, mas que se complementam em nossa proposta. Tal fato procede em
virtude da grande maleabilidade com que Clarice Lispector trabalha as palavras nesse conto;
logo, não nos podemos ater a uma única análise, ou a um único teórico.
Seguindo a definição de que Estilística literária examina como é constituída a obra
literária e considera o prazer estético que ela provoca no leitor; temos que o que interessa é a
natureza poética do texto. Traços lingüísticos, dados históricos, ideológicos, sociológicos,
psicológicos, geográficos, folclóricos etc., a visão de mundo do autor, tudo se engloba no valor
estético da obra, que está impregnado do prazer do autor de criá-la e que vai suscitar no leitor
um prazer correspondente, e tal conceituação corresponde bem ao que pretendemos fazer.
O nosso trabalho será de pesquisa bibliográfica, sendo o corpus formado por um conto
específico de Clarice Lispector cuja análise será norteada por perguntas específicas, então a
leitura proposta não poderá ser concebida como a única possível; pois não teremos tempo hábil
nem pretensão de dizer que esgotaremos todas as possibilidades do corpus.
Porém, um enfoque estilístico mais profundo pode levar-nos a conclusões finais até
então não supostas ou levantadas.
3)ANÁLISE DO CORPUS
3.1)UMA PROPOSTA DE LEITURA
Não se preocupe em entender; viver ultrapassa todo o
entendimento. (Clarice Lispector, in: A Hora da Estrela)
Após a leitura do conto O Búfalo, de Clarice Lispector, optamos por iniciar a nossa
análise pelo narrador. A história é contada em terceira pessoa por um narrador onisciente neutro,
que cede, às vezes, à personagem principal da história o direito da fala: Mas não o camelo de
estopa. “Oh Deus, quem será o meu par neste mundo?”
O tempo é marcado, no texto, por uma seqüência natural e ordenada, os fatos se
justapõem. Embora haja uma situação de tempo: Mas era Primavera, nós não conseguimos
captar no texto nenhum outro marcador temporal, isto é, nem o dia da semana, nem o mês, nem
o ano. Isto é bastante interessante, pois a temática do texto é algo que pode acontecer em
qualquer época.
Um dos tópicos que mais nos chamou a atenção foi a questão da personagem
protagonista da história, que nós sabemos apenas ser uma mulher. Ocorre uma anonímia no
conto, ou como mesmo disse o narrador: a assassina incógnita. Acreditamos que tal fenômeno
ocorra por não ser algo específico, mas passível de ocorrência a qualquer um.
A história gira em torno da frustração amorosa de uma mulher e a manifestação latente
da busca do prazer sexual: (...) deu um gemido que pareceu vir da sola dos pés. Depois outro
gemido., ou sua vida estava perdida — deu um gemido áspero e curto, o quati sobressaltou-se
(...), ou A brisa arrepiou os cabelos da nuca, ela estremeceu recusando, (...), ou ainda Gemeu
de novo, parou diante das barras de um cercado, encostou o rosto quente no enferrujado ferro
frio.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
122
A conotação sexual no conto é bastante expressiva, (...), por enquanto apenas a vontade
atormentada de ódio como desejo, a promessa do desabrochamento cruel, um tormento como de
amor, a vontade de ódio como se prometendo sagrado sangue e triunfo, a fêmea espiritualizarase na grande esperança. Percebemos que ela tem o desejo, que é a falta, é a necessidade do
outro, do par, do complemento, visto que ela está só e está à procura do objeto "a", que é o
representante do desejo, ou da "coisa", que é o impossível34. O marcador temporal Mas era
Primavera relaciona-se diretamente com essa questão, pois é o tempo do acasalamento dos
animais: O mundo de primavera, o mundo das bestas que na primavera se cristianizam em patas
que arranham mas não dói ... Interessante de se ressaltar, nessa passagem, o uso do verbo
“cristianizar” numa alusão ao conceito do crescei-vos e multiplicai-vos, ainda mais sendo de
nosso conhecimento as origens judaicas da autora do conto.
Em seu passeio ao zoológico, a personagem procura a identificação do objeto amado
nos animais, talvez por se sentir como um animal, no cio, tentando acasalar-se, e em algumas
passagens do texto, sente-se como se estivesse presa, enjaulada: "(...) rodeada pelas jaulas,
enjaulada pelas jaulas fechadas, ou (...) A jaula era sempre do lado onde ela estava: (...), ou
ainda A testa estava tão encostada às grades que por um instante lhe pareceu que ela estava
enjaulada e que um quati livre a examinava.
Em sua procura, num misto de amor e ódio, a personagem observa os animais, e
associa-os começando pelo leão, pelo rei, cujo apetite sexual faz com que consiga copular até
setenta e duas vezes por dia, sentiu o cheiro quente. Já a girafa e o camelo não lhe inspiraram
grandes sentimentos, talvez por serem ruminantes, e ficarem como ela própria "ruminando" a
vida e na vida, era uma semelhança não o confronto que ela buscava.
O hipopótamo despertou nela algo estranho, ousamos mesmo dizer algo fálico, como na
passagem O rolo roliço de carne, carne redonda e muda esperando outra carne roliça e muda.
Seu grande e primeiro confronto, no entanto, foi com os macacos. Os primatas. Os semelhantes
no mundo animal. Ao observá-los, começou a sentir o ódio pela possível identificação, mas isto
foi exatamente o fator que a repeliu, pois o que ela queria era algo mais próximo da "besta fera"
e não do homem. Se ela quisesse matar um homem, ela teria matado aquele que não a quis: “Eu
te odeio”, disse ela para um homem cujo crime único era o de não amá-la. “Eu te odeio”, disse
muito apressada. ou Eu te amo, disse ela então com ódio, para o homem cujo grande crime
impunível era o de não querê-la., é de ressaltar o uso das aspas em "Eu te odeio" e o não uso em
Eu te amo, percebemos mais uma vez a estreita relação e aproximação entre amor e ódio
conflitantes que co-habitam dentro da personagem.
Mas não o macaco, muito próximo! Há, ainda, a constatação de que o macaco era velho,
logo sua capacidade de reprodução já estaria no fim. Tal fato também pode ser aplicado ao
elefante, que lhe lembra um velho dócil; não esquecendo que o referido animal é uma raça em
extinção. Animais estes não compatíveis com seu intuito. O mesmo pensamento ocorreu com o
quati. Ele era a inocência, aquela sensação infantil de quem ainda não despertou para o amor ou
para o cio.
34
Apontamentos de aulas do curso de Literatura Portuguesa III, ministrado pela professora Nadiá Ferreira
em 1987 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
123
Em suas reflexões, a personagem vai-se deparando com conflitos psicológicos
subconscientes que lhe causam verdadeiras ansiedades neuróticas. O conflito amor e ódio não
assume uma relação antitética, mas sim uma "perfeita" sinonímia. A tênue linha que separa
amor e ódio é rota, o que os aproxima paradoxalmente, e ela tem a necessidade de amar para
odiar ou de odiar para a amar: O ódio que lhe pertencia por direito, mas que em dor ela não
alcançava? Onde aprender a odiar para não morrer de amor? ou Só sabia perdoar, que só
aprendera a ter a doçura da infelicidade, e só aprendera a amar, a amar, amar. Imaginar que
talvez nunca experimentasse o ódio de que sempre fora feito o seu perdão, fez seu coração
gemer sem pudor, ou ainda, Eu te odeio, disse implorando amor ao búfalo, já antecipando que a
culminância de seu conflito será a morte. Afinal, durante a leitura do conto o narrador vai-nos
dando pistas desse conflito: encolheu-se como uma velha assassina solitária, ou a assassina
incógnita, ou ainda, E ela desviando os olhos, escondendo dele a sua missão mortal. E é
exatamente nessa esteira de análise, que vamos notando mais pistas em relação à morte, sendo
que só temos a conclusão desse ato no desfecho da narrativa, quando descobrimos, finalmente,
porque a personagem sempre punha a mão no bolso quando via um animal, ali estava o punhal
que ela usaria para matar: Com os punhos nos bolsos do casaco, ou (...) apertando o punho no
bolso do casaco, ela mataria aqueles macacos (...), ou ainda, os punhos de novo fortificados nos
bolsos.
Inferimos, ainda, nessa questão do casaco, a ênfase dada ao adjetivo marrom, quando o
narrador descreve a personagem com o casaco: A mulher do casaco marrom, ou quieta no
casaco marrom, ou ainda, Dentro de um casaco marrom. Cremos que tal ênfase seja uma
associação à idéia de transformação da personagem, isto é, como se ela vestisse, através do
casaco, uma pele ou uma pelagem de animal, visto que ela está no zoológico à procura do seu
par, mesmo que seja entre os irracionais: “Oh, Deus, quem será meu par neste mundo?”
Percebemos que o narrador faz, no decorrer do conto, quatro alusões à fome: (...), há
dias mal comia, contraiu-se em cólica de fome, (...), fazia o possível para que não percebessem
que estava fraca e difamada, (...), Mas o céu lhe rodava o estômago vazio; (...). Associamos tais
alusões ao fato de que as fêmeas no cio mal se alimentam, pois a fome é tida como um dos
maiores afrodisíacos naturais que existe (fato constatado em qualquer país de economia
miserável).
O narrador em dois momentos distintos e opostos faz referência à palavra Igreja:
Separadas de todos no seu banco, parecia estar sentada numa Igreja. e Pálida, jogada fora de
uma Igreja, (...) Na primeira referência, vemos a aproximação do desejo do casamento (ou do
acasalamento), porém, na segunda referência, vemos que o afastamento de tal objetivo é bem
marcado, o que faz com que ela retorne à realidade, ou seja, à busca do "objeto" amado, visto
que a manifestação do desejo sexual já a está extasiando: Levantou-se do banco estonteada
como se estivesse se sacudindo de um atropelamento.
Então, após longa procura ela se depara com o búfalo, que, como ela, também estava só
em plena primavera; ocorrendo, assim, uma perfeita identificação entre eles, pois o búfalo vai
tornar-se o objeto de seu desejo. E com o encontro vem o confronto, uma soturna rivalidade que
culmina com a morte dos dois: (...), sem querer nem poder fugir, presa ao mútuo assassinato.
Presa como se sua mão se tivesse grudado para sempre ao punhal que ela mesma cravara.
Sutilmente, o narrador nos mostra isto através do adjetivo mútuo, e também a grande fixação
que a personagem tem pelos olhos. Ao analisar os macacos, ela já sugere que seria entre os
olhos do macaco que ela o mataria. Chegamos à conclusão de que é exatamente neste ponto
(local) em que ela crava o punhal, ao mesmo tempo em que o chifre do búfalo também se crava
nela, como um símbolo fálico de complementação do vazio: a realização do desejo.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
124
3.2) SUGESTÃO DE ESTUDO
3.2.1) OBSERVAR
O EMPREGO EXPRESSIVO DE PALAVRAS GRAMATICAIS. COMO A
CONJUNÇÃO MAS E O ARTIGO DEFINIDO.
A conjunção mas é empregada largamente no texto, é, inclusive, a primeira palavra do
mesmo, porém tal palavra é empregada com uma acepção diferente da que lhe é comum.
Sabemos que essa conjunção possui valor de oposição, adversidade; entretanto, no texto, ela
apresenta um caráter mais subjetivo, introspectivo, não conhecemos a idéia anterior para saber
se ocorre ou não a oposição.
Podemos, então, analisar a palavra mas em momentos distintos: como conjunção
operando como sinalizador de relações opositivas, como operador argumentativo, pois além do
caráter de oposição também direciona a linha argumentativa do discurso, e como marcador,
onde não terá uma atuação no nível sintático nem denotará relações de adversidade entre
orações, servirá como seqüenciador e organizador do discurso.
Em nossa pesquisa estatística no texto, achamos a palavra mas em vinte e quatro
passagens, as quais esquematizamos no quadro abaixo.
CLASSIFICAÇÃO
C
O
N
J
U
N
Ç
Ã
O
O
P
E
R
A
D
O
R
A
R
G
U
M
E
N
T
EXEMPLO
Aquele elefante inteiro a quem fora dado com
uma simples pata esmagar. Mas que não
esmagava
(...), o prazer percorreu suas costas até o malestar, mas não ainda o mal-estar que ela viera
buscar.
O ódio que lhe pertencia por direito, mas que em
dor ela não alcançava?
(...) o mundo das bestas que na primavera se
cristianizam em patas que arranham mas não
dói ...
A mulher talvez fosse embora mas o silêncio era
bom no cair da tarde.
Talvez não a tivesse olhado Não podia saber,
porque das trevas da cabeça ela só distinguia os
contornos. Mas de novo ele pareceu tê-la visto
ou sentido.
Sua força estava ainda presa entre as barras,
mas uma coisa incompreensível e quente (...)
Mas de costas para ela o búfalo totalmente
imóvel.
COMENTÁRIOS
A adversidade encerra também uma idéia
de restrição.35
A adversativa encerra uma idéia de
retificação.
A adversativa encerra uma idéia de
indignação.
A adversativa encerra uma idéia de
exceção
A adversativa encerra uma idéia
de compensação.
A adversativa encerra uma idéia de
insistência.
A adversativa encerra uma idéia de
restrição.
Encerra uma idéia de indignação,
pelo próprio teor do parágrafo.
“Mas isso é amor, é amor de novo.”
Chamamos a palavra mas, nessa análise,
(...) encontrar-se com o próprio ódio mas era de operador argumentativo por conduzir
uma orientação
argumentativa ao
primavera e dois leões (...)
discurso,já que notamos a possibilidade de
Mas não diante da girafa que (...)
alcance da interrogação, isto é, possibilitaMas não era no peito que ela mataria, (...)
se a articulação por sobre os limites da
Mas não sabia sequer como se fazia.
conversa, como se o narrador “dialogasse”
Mas não o camelo de estopa.
com os leitores e expusesse suas
35
Para tais conceituações indicamos conferir:
SILVA, Gustavo Adolfo Pinheiro (1999). “Um estudo do item MAS na gramática e no discurso”. In:
Caderno Seminal, Ano 5 – Nº 6. Rio de Janeiro: Publicações DIALOGARTS.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
125
A
T
I
V
O
M
A
R
C
A
D
O
R
Mas como se tivesse engolido o vácuo, o com os leitores e expusesse suas
coração surpreendido.
argumentações para justificar as intenções
Mas onde, onde encontrar o animal que lhe da personagem, ou mesmo questioná-las36.
ensinasse a ter o seu próprio ódio?
Mas pudesse tirar os sapatos, poderia evitar a
alegria de andar descalça?
Ah, disse. Mas dessa vez porque dentro dela
escorria enfim o primeiro fio de sangue negro.
Mas era primavera
Mas a girafa era uma virgem de tranças recémcortadas.
Mas era primavera, e, apertando o punho no
bolso do casaco, (...)
Mas o elefante suportava o seu próprio peso.
Mas de repente foi aquele vôo de vísceras, (...)
Mas o céu lhe rodava no estômago vazio; (...)
Não existe, ainda, um conceito sistema-tico
para a classificação marcador, todavia,
sabemos que ele funciona como um
organizador e seqüenciador de partes
maiores do discurso: as relações tópicas,
uma vez que ele organiza o discurso,
contribui para a interação dialógica e
promove a ligação entre as partes do
discurso, retomando ou iniciando o turno.
Ainda em relação à expressividade do mas, analisando as palavras de LAPA Sempre que
vemos o homem revoltar-se contra o seu destino, encontramos a conjunção mas, (1991: 201)
parece-nos haver aí uma grande relação bastante pertinente com o conto, na medida em que
sabemos que a personagem é um ser amargurado com o seu destino, daí a necessidade dela de
amar para odiar e de odiar para amar, ou como vemos no desfecho da narrativa de matar para
morrer e de morrer para matar. E, além disso, não podemos também nos furtar de admitir que
todo movimento de surpresa pressupõe um mas (Lapa, 1991: 201), como na passagem: Mas de
repente foi aquele vôo de vísceras, aquela parada de um coração que se surpreende no ar,
aquele espanto (...).
Em relação à abundância de artigos definidos no texto, cremos que esteja ligada à
questão da totalidade que o uso do referido artigo encerra. O artigo definido tem um efeito de
representação que acentua o aspecto visual e familiar com os substantivos a que se direcionam.
No texto, a personagem principal está à procura de algo que lhe falta, preencher o vazio,
por isso é usado o artigo com valor totalitário, já que a cada momento ela pode deparar-se com o
que procura.
Destarte, em relação ao uso do artigo, podemos perceber que, no conto, o emprego dos
indefinidos é bastante incomum; porém, há um emprego que é de grande importância salientar.
Percebemos que o título é O Búfalo, com o artigo definido, e durante a narrativa o emprego
continua sendo o mesmo: o búfalo, o animal específico com o qual a personagem se identificou.
Curiosamente, a última palavra do texto também é búfalo, sendo que é a única passagem em que
ele é empregado (precedido) por um artigo indefinido. Entendemos isso como o fim da
expectativa da personagem: a mulher viu o céu inteiro e um búfalo; vemos que a mulher é
específica (a personagem), e que ela também atingiu o seu objetivo: o céu (metaforicamente
indicando a morte da personagem) e que o agente causador não importa mais: um búfalo, não
mais aquele búfalo que ela escolheu para os seus propósitos. Como ele poderia ter sido qualquer
outro. O búfalo representa agora uma imprecisão, uma indeterminação, algo vago; ou, também,
a idéia de que o búfalo que ela vê no céu seja a Constelação de Touro, uma vez que,
anatomicamente, são parecidos pois pertencem à mesma classe de animais. Astrologicamente,
as pessoas sob a influência de tal constelação são determinadas em seus propósitos, o que vem a
corroborar a noção de que a personagem tenha atingido a sua meta, a sua determinação.
36
Idem.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
126
Além dessa passagem, uma outra similar ocorre com a palavra homem em duas
situações distintas:“Eu te odeio”, disse ela para um homem cujo crime único era o de não amála. “Eu te odeio”, disse muito apressada e em Eu te amo, disse ela então com ódio, para o
homem cujo grande crime impunível era o de não querê-la, vemos então que na relação
antitética entre amar e odiar, a personagem altera o uso do artigo. No que tange ao amor, é o
homem, específico, aquele quem ela ama; já em relação ao ódio, é um homem, qualquer
homem, algum homem, como se ela houvesse generalizado o ódio para toda a raça masculina,
por isso o indetermina.
Notamos que a reiteração constante do artigo marca o processo gradativo da narrativa
evitando possíveis equívocos de compreensão, devido à ambigüidade causada, em certos casos,
pela elipse do mesmo.
Porém, percebemos que na dicotomia amor/ódio presente, no texto, a palavra amor,
freqüentemente, não é precedida por artigo, e fator inverso ocorre com a palavra ódio: Mas isso
é amor, é amor de novo., ou por amor, amor, amor (...), (...) não era o ódio ainda, ou o ódio
que lhe pertencia. A omissão do artigo, neste contexto, possui uma concisão enérgica, até
mesmo, dramática, que acentua expressivamente o valor daquilo que ela não tem: amor, como
que se a ausência do artigo sugerisse a incerteza da própria existência desse sentimento.
3.2.2) EXAMINAR
OS ASPECTOS VARIADOS DO LÉXICO
EMPREGOS FIGURADOS.
—
A ADJETIVAÇÃO, OS
O emprego estilístico do adjetivo no conto é bem articulado e intencionalmente
empregado. Todos os animais citados são adjetivados; tudo a que ela se refere, olha ou pensa
vem seguido de adjetivo, como se quisesse qualificar/caracterizar ou até mesmo justificar seus
objetivos, propósitos.
Os adjetivos empregados para os animais são bastante sugestivos devido à sua carga de
significação: leões — glabra (adjetivo digno de uma "rainha"), louros, enjubado; girafa —
aérea, virgem; hipopótamo — úmido, roliço; macaco — velho; elefante — inteiro, oriental;
camelo — corcunda; quati — curioso, livre; búfalo — negro, preto, calmo, tranqüilo. Ainda
percebemos que ao ver o camelo ela sentiu ódio, um ódio seco, adjetivo que está ligado ao
campo semântico de camelo.
Quanto à posição do adjetivo, tanto aparece anteposto ao substantivo quanto posposto,
dependendo da carga afetiva depositada no adjetivo. Assim, temos: onde por puro amor
nasciam entre os trilhos ervas de um verde (...) e aspirou o pó daquele tapete velho, é de se
apreciar que, no primeiro exemplo, o adjetivo puro denota a idéia de matização afetiva,
enquanto que, no segundo exemplo, o adjetivo velho conserva o seu valor próprio, sem
impregnação de sentimentos.
A linguagem no conto é bastante figurada. O cunho metafórico é predominante na
narrativa. Há várias seqüências de imagens sutis que encobrem a rudeza da realidade.
Entretanto, além da metáfora propriamente dita, podemos reconhecer outros exemplos de
linguagem figurada. Abaixo, enumeramos algumas delas em tabela:
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
127
FIGURA
DEFINIÇÃO
Fusão de diversas impressões sensoriais na expressão lingüística;
associação de sensações: a percepção própria de um sentido
Sinestesia desencadeia reações em outros.
EXEMPLO
(...) onde só com cheiro
quente lembrava (...)
Somente o cheiro da poeira do
camelo (...)
É o enfileiramento de palavras repetidas (iguais).
A paciência, a paciência, a
Epizeuxe
paciência, só isso ela
encontrava
e só aprendera a amar, a
amar, a amar.
Paradoxo Contraste que ocorre em um mesmo determinante.
,diante daquele silencioso
pássaro sem asas.
Consiste na ligação entre duas idéias ou pensamentos que, na ,tal doce martírio em não
Oxímoro realidade, excluem-se.
saber pensar.
,nos olhos a doçura da
doença,
(...) a ter a doçura da
infelicidade,
Confronto claro entre coisas e seres, geralmente usando termos Macacos felizes como ervas
Símile
marcadores de comparação.
(...), branca como papel, fraca
como papel,
(...), viscosa como uma saliva.
FIGURA
DEFINIÇÃO
EXEMPLO
Apóstrofe
Consiste em dirigir-se o orador ou escritor, interrompendo-se em “Deus, me ensine somente a
tom patético ou pungente, a seres, pessoas ou coisas reais, fictícios odiar”.
ou ausentes.
“Oh Deus, quem será meu par
neste mundo?”
O chão onde simplesmente por
amor – amor, amor, não o
amor! –
(...) ingenuidade do quati. O
É o emprego da mesma palavra ou expressão no final de uma frase quati
Anadiplose ou verso e no início da frase ou verso seguinte.
curioso lhe fazendo uma
pergunta (...)
(...) a ter o seu próprio ódio? O
ódio que lhe (...)
Uma das variedades da Metáfora é a mudança do significado natural Enterrar a cara entre a dureza
Catacrese de uma palavra, geralmente pela defecção, no idioma, de termo das grades.
mais apropriado.
É um cruzamento de termos efetuados por meio de uma mera (...) ninguém interessado nela,
Quiasmo
repetição simétrica.
e ela não
interessada em ninguém.
Os olhos vindos de sua própria
Antítese
É uma oposição de idéias.
escuridão na
desmaiada luz da tarde.
Sobre o negror a alvura
erguida dos cornos.
Polissíndeto Repetição do mesmo conectivo no início do período, verso ou frase. (...) é grande e leve e sem
culpa (...)
Consiste no emprego de uma palavra em virtude de haver entre elas Ela mataria a nudez dos
Metonímia algum relacionamento.
macacos. (O abstrato pelo
Diácope
É a separação de palavras repetidas.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
128
Metáfora
É a comparação direta sem o uso de conectivos, uma ação mental
de associação de idéias.
Aliteração
É a repetição do mesmo som consonantal
Hipálage
Consiste em atribuir a um termo da frase qualificações pertencentes
a outro ou outros termos
Pleonasmo
Anáfora
Repetição de palavras ou de idéias que têm o mesmo sentido.
Muitas vezes, repete-se um elemento da oração ou preposição, ou
se empregam palavras que, embora desnecessárias para a perfeita
expressão do pensamento, servem para dar à elocução mais
energia, graça, força ou elegância.
concreto: nudez = órgão
sexual)
(...) reconstituiu sobre as patas
estendidas a cabeça de uma
esfinge.
O rolo roliço de carne, carne,
redonda (...)
(...) quente no enferrujado frio
do ferro.
E no silêncio do cercado, os
passos vagarosos, a poeira
seca sob os casacos secos.
Somente o cheiro de poeira do
camelo vinha de encontro ao
que ela viera: ao ódio seco (...)
Inocente, curiosa, entrando
cada vez mais fundo dentro
daqueles olhos (...)
(...) ...oh não mais esse mundo!
É a repetição da mesma palavra no início de frases, períodos ou Não mais esse perfume, não
esse arfar cansado, não mais
versos.
esse perdão (...)
Conforme já dissemos, a metáfora predomina em todo o texto, porém optamos por
apresentar apenas um ou dois exemplos de cada, por não ser o objetivo principal de nossos
estudos. Outro recurso também notado é o uso da anástrofe, que difere dos outros recursos de
inversão (hipérbato e sínquise) por antecipar o termo regido de preposição pelo termo regente.
Estilisticamente, as inversões, em geral, estão ligadas à emotividade, a uma participação direta
no campo emocional. A ênfase na antecipação de um termo atribui-lhe um cunho mais afetivo,
no caso em questão, a palavra amor: (...) — onde por puro amor nasciam entre os trilhos ervas
de um verde tão tonto (...).
3.2.3) DESTACAR AS REPETIÇÕES DE FONEMAS, PALAVRAS, ESTRUTURAS SINTÁTICAS.
A repetição em todos os níveis — fônicos, lexicais e sintáticos — é um dos recursos
mais expressivos na estilística do texto. A cada passagem, este recurso vai-se tornando mais e
mais perceptível.
Há inúmeros casos de aliteração e assonância, às vezes, ocorrendo simultaneamente
como no exemplo: 0 rolo roliço de carne, carne redonda e muda esperando outra carne roliça
e muda. Constatamos que todas as palavras (exceção: muda) possuem o grafema [r], ora com
valor fonético de uma alveolar /r/ , outra, esperando, ora com fonema velar /R/, rolo, roliço,
redonda, roliça, carne. Tais fonemas remetem à idéia de aspereza, atrito, idéias estas bastante
pertinentes ao contexto; pois, sendo um hipopótamo um paquiderme, temos a sensação táctil de
que o roçar de suas carnes duras no ato sexual deve provocar vibrações auditíveis, o que vem
corroborar o uso dos fonemas vibrantes. Em relação à assonância, nesta passagem, a vogal
posterior média /o/ nos dá a noção de formas arredondadas, o que muito se pode inferir neste
contexto, pela forma grande e gorda dos hipopótamos, ou mesmo, uma alusão à forma dos
órgãos sexuais, que possuem formas, aproximadamente, redondas. Como era primavera,
podemos deduzir que a espera de outra carne, seja a vinda do(a) parceiro(a) .
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
129
Um outro exemplo interessante no que tange à questão de repetição de fonemas é a
passagem E no silêncio do cercado, os passos vagarosos, a poeira seca sob os casacos secos.,
notamos aí uma aliteração bem acentuada com a repetição do fonema oral, constritivo, fricativo,
alveolar, surdo /c/. Esse é o momento, no conto, em que a mulher encontra o búfalo num final
de tarde com a brisa mexendo nos seus cabelos, como sabemos que as constritivas, pelo seu
caráter contínuo, sugerem sons de certa duração, bem como as coisas e fenômenos que os
produzem, relacionamos que é nesse exato momento que começa a mútua observação entre o
búfalo e a mulher por isso os passos vagarosos, eles estão se estudando no silêncio do fim de
tarde. E essa idéia é reforçada, visto que a alveolar /c/ transmite a sensação táctil de suavidade,
ou mesmo, pressupõe um sopro, vento acompanhado de um silvo longo ou violento que é
determinado pela vogal sobre a qual se apóia o fonema sibilante, isto é, acompanhado de vogais
agudas a sibililação é menor, e de vogais graves já é maior.
E, por fim, temos, ainda, a aliteração (...) encostou o rosto quente no enferrujado frio do
ferro, onde vemos que a fricativa labiodental /f/ nos transmite uma sensação cinética com idéia
de fuga, escapamento, além, é claro, da sensação táctil de aspereza da vibrante velar /R/. Como
assinalamos anteriormente, a personagem protagonista do conto sempre se sente presa às jaulas,
daí urgir a vontade de escapar, de fugir. Notamos o conflito da personagem nesta passagem até
pela própria antítese entre rosto quente e frio do ferro.
Quanto à repetição de palavras, vemos que tal procedimento é enfático. Existem
palavras que são ''chaves'' neste processo: ódio, amor, olhos. São, a bem da verdade, recursos
estilísticos bastante expressivos, que podem ser vistos como marcadores isotópicos do texto,
pois demonstram a trajetória conflituosa da personagem e de que forma se direcionam ao
clímax.
Em relação às estruturas, notamos haver um grande número de construções com
seqüências nominais. Associamos isso à noção que se tem de que as categorias dos nomes são
signos de representação estática, amplamente usadas em descrições impressionistas, para causar
impacto, como se cada palavra tivesse que atingir o seu objetivo individualmente, para, então,
ter-se o efeito ''coletivo'', total.
No texto, percebemos que existe a intercalação de seqüências nominais com as
seqüências verbais. Isto é uma técnica bem comum, pois visa a aguçar a capacidade
imaginativa, fazendo-nos visualizar mais nitidamente a descrição do objeto destinado, como nas
seguintes passagens: Até o leão lambeu a testa glabra da leoa. Os dois animais louros. A mulher
desviou os olhos da jaula, (...); ou Procurou outros animais, tentava aprender com eles a odiar. O
hipopótamo, o hipopótamo úmido. O rolo roliço de carne, carne redonda e muda esperando
outra carne roliça e muda.; ou A nudez dos macacos. O mundo que não via perigo em ser nu.
Ela mataria a nudez dos macacos.; ou ainda, E agora esse silêncio também súbito. Estavam de
volta a terra. A maquinaria de novo inteiramente parada.
Contudo, notamos haver, no texto, uma certa não-estruturalização dos períodos. O texto
apresenta além das seqüências nominais, processos de parataxe e hipotaxe, sem que haja uma
predileção para qualquer um deles, embora percebamos um uso mais freqüente de períodos com
orações absolutas. Ressaltamos, então, o fato dos valores estilísticos em orações absolutas ser
caracterizado pela natureza do verbo, já que o verbo pode, teoricamente, ser o responsável,
usado pelo autor, pela determinação de toda a realidade física, psíquica ou social no desenrolar
da trama.
Dessa forma, temos que orações com predicado nominal têm valor expressivo quando
se direcionam a julgamentos de valor ou quando se veiculam imagens que constituem definições
fantasiosas, modos pessoais de interpretar a realidade: “Oh Deus, quem será meu par nesse
mundo?”, Mas a girafa era uma virgem de tranças recém-cortadas. Já em relação ao predicado
verbal, a expressividade é mais complexa, pois dependerá da transitividade verbal. Salientamos,
apenas, o fato de que os verbos intransitivos têm muito em comum com os predicados nominais,
pois ambos são voltados para o sujeito: Ficou respirando.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
130
Em sua grande maioria, as palavras repetidas possuem a mesma função sintática,
não se usando nenhuma substituição por pronomes. O que ocorre, neste caso, é a anáfora
retórica, não a anáfora lingüística.
3.2.4) RESSALTAR
PROSA.
COMO A FUNÇÃO POÉTICA É PREDOMINANTE NESTE TEXTO EM
A função poética tem por objetivo destacar os aspectos expressivos da mensagem, seja
em prosa, seja em verso, pois há muito se deixou de associar que a função prosa estaria ligada à
denotação e a função poética, à conotação.
Podemos dizer que o efeito da função poética no texto em prosa resulta da combinação
de duas estruturas: a análise da mensagem não sobrepujando a análise do código, já que o efeito
expressivo de um vocábulo não se encontra apenas na frase ou no contexto em que ele está
inserido, mas sim na totalidade significativa, no confronto com os outros vocábulos
equivalentes.
Baseados nisso, vemos que o texto apresenta muitas características poéticas, tais como:
a predominância da linguagem figurada; o uso da linguagem inusitada; o ritmo frasal; o insólito
da sintaxe; a plurisignificação; e, entre outras mais, a ênfase do significante na significação e a
ênfase na enunciação. Assim, a função poética vem ratificar as idéias já levantadas no decorrer
da análise.
No texto, percebemos que a função poética tem por objetivo "costurar" os elementos
ligados à ruptura com o enredo factual e à entrega do fluxo de consciência que são caraterísticas
bem comuns na obra de Clarice Lispector.
Destarte, notamos que a função poética, no texto, dirige sua atenção para os elementos
da mensagem efetivamente utilizados. Tal fato procede porque vemos que a função prática da
mensagem não está tão-somente na descrição, mas nas possibilidades significativas da
mensagem, tornando ela o próprio foco da atenção por si mesma, isto é, ela provoca reação no
leitor pelo que é e não por aquilo que serve.
No conto O Búfalo, percebemos que a mensagem, numa acepção totalitária, volta-se
para si mesma; passando, então, a focalizar os próprios signos, pondo em destaque a sua
integralidade de significante e significado. Afetiva, sugestiva, conotativa, reveladora de
recursos imaginativos criados pelo emissor, a função poética é metafórica e possibilita leituras e
visões diversas de uma mesma mensagem ou signo isolado, pois propicia ao leitor associações e
equivalências de idéias. E são essas reconfigurações propiciadas pelo princípio da equivalência
que fazem a mensagem voltar-se para si mesma, tornando-se multissignificativa, como tentamos
demonstrar, através de nossas diferentes análises, no decorrer desse estudo.
Podemos concluir que a função poética, seja na poesia, seja na prosa, executa, portanto,
uma ruptura das expectativas, fornecendo uma possível resposta não antecipada
automaticamente na língua, que é capaz, por isso mesmo, de atrair uma atenção especial para os
próprios signos, uma certa persistência da atenção. E a mensagem, desse modo, se autocentra,
para verificar o arranjo dos seus próprios constituintes lingüísticos.
3.3) UM BREVE PASSEIO PELA SEMIÓTICA
3.3.1) OS OBJETIVOS DA ANÁLISE
Quando Peirce, em 1867, tornou públicos seus estudos sobre o signo, deu abrangência
àquilo que, até então, numa perspectiva saussureana, era direcionado apenas ao signo verbal.
Hoje, no início do século XXI, não seria absurdo afirmar que tal estudo ainda é dominante.
Nesse sentido, a proposta de nosso trabalho é, ao contrário do muito que se tem visto,
apresentar com uma visão menos limitada as flexibilidades do signo lingüístico, desde de sua
origem na mente (ícone) até às suas várias concepções significativas (símbolo).
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
131
A proposta deste ensaio é apresentar à luz da teoria semiótica de Peirce, uma análise do
conto “O Búfalo”, de Clarice Lispector.
Para esse pesquisador, o fundamental para um estudo de signos seria a observância da
divisão dos símbolos em diversas tríades. Nesse sentido, uma vez que os textos de Clarice
Lispector, devido ao fluxo de consciência muito presente em sua obra, apresentam-se sequiosos
de estudos analíticos, optamos por levantar aqui como os conceitos peirceanos de signo se
manifestam.
Com esse intuito, dividimos esse enfoque semiótico em duas partes: a primeira é uma
proposta de leitura para melhor compreendermos as intenções do texto e direcionar, também,
nossas intenções para a segunda parte que é relacionar os conceitos semióticos de Peirce no que
tangem à imagem do búfalo conto.
Claro que nos limitaremos apenas às questões de ícone, índice e símbolo devido à
grande nomenclatura estabelecida por Peirce para análise e compreensão dos signos. Com isso,
nosso trabalho será bastante limitado deixando em aberto outras possibilidades de classificação
que existem no corpus.
Tal como Saussure, Peirce estabelece uma distinção entre as “qualidades materiais” — o
significante do signo — e seu “interpretante imediato” — o significado. Das relações entre os
dois elementos, discernem-se três variedades fundamentais de signos (que representam, segundo
sua terminologia): 1) o ícone opera pela similitude de fato entre o significante e o significado;
por exemplo, entre a representação de um animal e o animal representado: a primeira vale para
o segundo por semelhança; 2) o índice opera pela contigüidade de fato, vivida, entre significante
e significado; por exemplo: a fumaça é índice de fogo; Robinson Crusoe encontrou um índice:
seu significante eram marcas de pé, donde inferir como significado a existência de ser humano
na ilha; a aceleração do pulso como sintoma de febre é também índice, e nesse caso a semiótica
de Peirce conflui com o estudo médico sobre os sintomas de doença, chamado semiótica,
semiologia ou sintomatologia; 3) o símbolo opera pela contigüidade instituída entre significante
e significado. Essa conexão forma uma regra, através da qual exclusivamente será interpretado
o signo. O termo símbolo, semelhante utilizado por Saussure, é por este substituído, para evitar
ambigüidades, pelo de sema — termo que Peirce reserva uso inteiramente diferente.
3.3.2) APLICAÇÃO SEMIÓTICA NA LEITURA DE O BÚFALO
Seguindo a nossa proposta de trabalho, ao enforcarmos a aplicação do conceito de ícone,
índice e símbolo na análise desse conto, notamos que o búfalo (personagem da história) se
aplica às categorias dessa tríade perfeitamente.
A primeira noção que podemos inferir aí é a questão de o búfalo ser um ícone puro, pois
está vinculado à mente da personagem, e irá sair do plano do objeto mediato para o objeto
imediato, à medida que ele deixa de ser ícone puro e passa a ícone atual, pois passará do
imaginário para o real devido a uma possível associação por semelhança (como enfocamos em
nossa proposta de análise). Tornando-se, então, um signo icônico, o búfalo corresponderá a três
estágios desse signo: 1) à imagem (a visualização mental do animal); 2) ao diagrama (a mental
representação física dele); e 3) à metáfora (nesse caso representando o objeto da vingança da
personagem, pois ela fará com o búfalo o que teve vontade de fazer com quem a desprezou, o
búfalo representa, nesse momento, a solução da angústia).
No entanto, porque não representam efetivamente nada, senão formas e sentimentos
(visuais, tácteis, viscerais...), os ícones têm um alto poder de sugestão. Qualquer qualidade tem,
por isso, condições de ser um substituto de qualquer coisa que a ela se assemelhe. Daí que, no
universo das qualidades, as semelhanças se proliferaram na mente da personagem do conto,
produzindo na mente dela as mais imponderáveis comparações, por uma simples questão de
sugestão.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
132
A partir do momento em que a personagem se direciona ao búfalo, tendo-o como um
referencial real, ele deixa de ser ícone e passa a ser índice, visto que é o objeto imediato da
personagem e representa, também, uma simples possibilidade do efeito de impressão, pelo valor
qualitativo, que o búfalo está apto a produzir ao excitar os sentidos da personagem. Eis uma
razão pela qual a personagem ficou parada diante dele, a observá-lo numa pura absorção
contemplativa, pois o ícone nos dá essa capacidade de absorver possibilidades qualitativas, pois
todo índice está habitado de ícones. Estes são peculiares àqueles e também estão inerentes ao
índice (não podemos nos esquecer de que a secundindade pressupõe a primeiridade).
O búfalo é visto, neste momento, como índice porque ele é uma existência concreta e
real para a personagem. É infinitamente determinado como parte do universo a que pertencem
— a personagem e o búfalo. Desse modo, concluímos que o índice, como seu próprio nome já
diz, é um signo que como tal funciona porque indica uma outra coisa com a qual está
factualmente ligado.
Chegamos, então, ao momento em que o búfalo representará um signo de terceiridade,
isto é, será um símbolo. O símbolo não representa seu objeto em virtude do caráter de sua
qualidade (ícone), nem por manter em relação ao seu objeto uma conexão de fato (índice), mas
extrai seu poder de representação porque é portador de uma lei que por convenção ou pacto
coletivo, determina que aquele signo represente seu objeto. Ao final do conto, depois que a
personagem mata o búfalo e é morta por ele, ele assume uma função de símbolo, pois deixa de
ser específico e passa a ser genérico. No texto, isso fica bem marcado pela mudança do artigo
precedente que, durante a narrativa, era o definido e após a morte passou a ser indefinido.
O símbolo é, pois, o deslanche da remessa de signo a signo, remessa esta que só não é
para nós infinita porque o búfalo morre, e devemos nos limitar às perigosas associações de
idéias. Mas, mesmo assim, ainda o associamos à Constelação de Touro.
3.3.3) CONSIDERAÇÕES FINAIS
Realmente, ao fim do trabalho, percebemos que numa análise semiótica as
compreensões a que podemos chegar no desencadeamento das interpretações dos signos, visto
que um signo remete a um outro e este a um outro e assim indefinidamente, podem apresentar
dois tipos de conclusão: uma real e outra carregada de emotividade. Isso decorre em virtude do
fato de o signo poder ser um pensamento, uma imagem, um gesto, uma palavra ou seqüência
(como uma frase, p. ex.), e o que entendermos dele ser, também, um novo signo. Devemos,
entretanto, ter cautela para não quebrarmos os elos sígnicos que vão formando essa cadeia
significativa.
Isso significa que, por mais que a cadeia semiótica se expanda, em signos-interpretantes
gerando signos-interpretantes, o vínculo com o objeto não é nunca perdido, uma vez que o
objeto é justamente aquilo que existe e resiste na semiose ou ação do signo.
Além dessa limitação lógica nos estudos semióticos, outro fato chamou nossa atenção: o
fato das tríades. Peirce embasou todos os seus estudos semióticos sobre o signo na divisão do
mesmo em diferentes tríades, algumas mais, outras menos complexas.
Sabemos que o número três é amplamente usado na história do pensamento por vários
filósofos e estudiosos: Hegel, Freud, Marx, Kant. Inferimos nesse ponto, a questão de que o
número três, para a Cabala, representa o equilíbrio cósmico, e a noção de que tudo que está em
harmonia na natureza está regido pelo número três: três partes do dia (manhã, tarde e noite), três
partes do corpo (cabeça, tronco e membros), três partes da vida (nascimento, vida e morte /
infância, maturidade e velhice), três estados naturais (sólido, líquido e gasoso), três estações
férteis do ano (verão, outono e primavera), Santíssima Trindade em diversas religiões (no
Taoísmo, no Cristianismo e no Candomblé), e até mesmo o triângulo que é tido como o símbolo
da perfeição geométrica, daí a definição de Pitágoras de que Deus geometriza a partir do
número três.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
133
Acreditamos que o desejo e a vontade de Charles Sanders Peirce em estabelecer para os
signos critérios classificatórios em tríades se deva ao fato de se tentar achar um equilíbrio lógico
para os seus estudos, a fim de que se pudesse chegar à perfeição na compreensão dos mesmos
num processo gradativo e coerente, respeitando-se, evidentemente, a hierarquia da primeiridade,
da secundidade e da terceiridade.
CONCLUSÃO
Conforme informamos na introdução, o nosso roteiro de estudo basear-se-ia nas
sugestões para análise do conto O Búfalo, de Clarice Lispector, encontradas no Livro Iniciação
à Estilística, de Nilce Sant’Anna. Assim, procuramos seguir uma linha de raciocínio que não
fugisse às propostas iniciais, embora tenha-nos parecido bastante difícil por dois aspectos.
O primeiro deles é a grande dificuldade em tentar responder de forma satisfatória as
propostas, em virtude do grande leque de opções que elas oferecem ao iniciarmos a análise.
Contudo, procuramos desenvolvê-las de forma precisa, embora saibamos que nem todos os
aspectos pertinentes que existem no corpus foram ressaltados. Também ficamos bastante
receosos quanto à questão de falhas em nossa análise, conseqüentes de alguma imprecisão na
classificação dos dados.
O outro aspecto foi o cuidado para não nos enveredarmos por outros caminhos devido à
riqueza lingüística do texto. Receamos que tal desvio poderia conduzir a análise para caminhos
tortuosos e permeáveis às subjetividades, às vezes bastante perigosas, como em nossa proposta
de leitura do conto, e fugíssemos da proposta que nos propusemos: uma análise estilísticosemiótica.
Analisar estilística e semioticamente o conto O Búfalo foi, a um só tempo, um estudo
hercúleo e prazeroso, pois pudemos descobrir/levantar possibilidades que em nossa primeira
leitura não percebemos e contribuir para o desfazimento de que a Estilística é uma ciência
ultrapassada e não credora de maiores atenções. No entanto, a linguagem hermética de Clarice
Lispector, em muitos momentos, deixou-nos em situações delicadas de entendimento no que
tange à veracidade/viabilidade de nossas conclusões, mas a cada linha tínhamos a sensação de
estarmos descobrindo algo inusitado e que poderia ser associado a algo que fora visto
anteriormente.
Por fim, gostaríamos de salientar que tivemos um imenso prazer na elaboração desse
estudo e esperamos, também, que a expectativa decorrente da conclusão dessa análise, suscite
em nosso leitor o mesmo prazer que nos causou durante todo o caminho que trilhamos para
chegarmos até aqui. Não podemos nos esquecer também de ratificar que não foram esgotadas
todas as possibilidades interpretativas ou significativas existentes no corpus. Afinal, seria muito
pretensioso de nossa parte afirmamos que esgotaríamos todas as potencialidades lingüísticoestilístico-semióticas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALONSO, Amado (1960). Poesia espanhola. Rio de Janeiro: INL
BARROS, Diana Luz Pessoa de (1994) Teoria Semiótica do Texto. São Paulo: Ática
(Fundamentos).
BUENO, Francisco da Silveira (1964). Estilística Brasileira. São Paulo: Saraiva.
CASTAGNINO, Raúl (1971). Análise Literária. 2ª ed. São Paulo: Mestre Jou.
CHAVES DE MELO, Gladstone (1976). Ensaio de Estilística da Língua Portuguesa. 3ª ed. Rio
de Janeiro, PADRÃO.
CLEMENTE, Irmão Elvo (1959). Caminhos da Estilística. Porto Alegre: PUC-RS.
COHEN, Jean (1974). Estrutura da Linguagem Poética. São Paulo: Cultrix.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
134
COUTO, Hildo Honório (1983). Uma Introdução à Semiótica. Rio de Janeiro: Presença.
CRESSOT, Marcel (1980). O Estilo e suas Técnicas. Lisboa: Edições 70.
CUNHA, Celso Ferreira da. (1982) Gramática da Língua Portuguesa. 8ª ed. Rio de Janeiro,
FENAME.
DEELY, John (1990). Semiótica Básica. São Paulo: Ática.
ENKVIST, Nils Erik et alli (1970). Lingüística e Estilo. São Paulo: Cultrix.
GALVÃO, Jesus Bello (1982). Subconsciência e Afetividade na Língua Portuguesa. 3ª ed. Rio
de Janeiro, Ao Livro Técnico.
GRAMMONT, Maurice (1965). Traité de Phonétique. 8ª ed. Paris: Delagrave.
GUIRAUD, Pierre (1970). A Estilística. São Paulo: Mestre Jou.
LAPA, Manuel Rodrigues (l991). Estilística da Língua Portuguesa. 3ªed. São Paulo: Martins
Fontes.
LEÃO, Ângela Vaz (1960). Sôbre a Estilística de Spitzer. Belo Horizonte: UFMG.
LOPES, Edward (1987). Metáfora. Da Retórica à Semiótica.2ª ed. São Paulo: Atual.
MARQUES, Mª Helena Duarte (1997). Iniciação à Semântica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar.
MARTÍN, José Luis (1973). Crítica Estilística. Madrid: Gredos.
MARTINS, Nilce Sant'Anna (1987). Iniciação à Estilística. 2ª ed. São Paulo: T. A.Queiroz
Editora.
MATTOSO CÂMARA, Joaquim (1998). Contribuição à Estilística Portuguesa. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Ao Livro Técnico.
MONTEIRO, José Lemos (1991). A Estilística. São Paulo: Ática (Fundamentos).
MURRY, J. Middleton (1968). O Problema do Estilo. Rio de Janeiro: Acadêmica.
NOGUEIRA, Rodrigo de Sá (1938). Elementos para um Tratado de Fonética Portuguesa.
Lisboa: Imprensa Nacional.
PEIRCE, Charles Sanders (1993). Semiótica e Filosofia. 9ª ed. São Paulo: Cultrix.
RIFFATERRE, Michael (1973). Estilística Estrutural. São Paulo: Cultrix.
SANTAELLA, Lúcia (1983). O que é Semiótica. São Paulo: Brasiliense.
______(1995). Teoria Geral dos Signos. São Paulo: Ática.
SOUSA, Marcondes Rosa (1973). Elementos de Fonoestilística. 3ª ed. Fortaleza: edições
universitárias.
VILANOVA, José Brasileiro Tenório (1977) Aspectos estilísticos da língua portuguesa. Recife:
Casa da Medalha.
YLLERA, Alicia (1979). Estilística, Poética e Semiótica Literária. Coimbra: Almedina.
Dicionários:
CAMPOS, Geir (s/d). Pequeno Dicionário de Arte Poética. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda.(1996). Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2ª
ed./ 35ª impressão, São Paulo, Nova Fronteira.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
135
A FONOLOGIA NO DIA-A-DIA: SUGESTÕES DE
TRABALHO PARA O PROFESSOR37
Claudia Moura da Rocha38 (UERJ)
Quem fala uma língua sabe muito mais do que aprendeu.
Chomsky
INTRODUÇÃO
Um dos maiores desafios para os educadores de hoje é despertar o interesse de
seus alunos. Quando o assunto é língua portuguesa, não importa o grau de ensino —
Fundamental, Médio, Superior, parece que o desafio é maior ainda. Por que tantos
alunos se ressentem de ter de estudar sua própria língua? Como podem ter tanta
dificuldade e, às vezes, tanto desinteresse pelo idioma por meio do qual se comunicam,
pensam, escrevem bilhetinhos de amor, cantam, namoram, brincam?
Um dia de espantos, hoje. Conversando com uma rapariga em flor,
estudante, queixa-se ela da dificuldade da língua portuguesa, espanto-me:
—Mas como pode ser difícil uma língua em que você está falando comigo
há dez minutos com toda a facilidade?
Ela ficou espantada. (Mario Quintana apud Ramos Filho, J. et al. (1995).
Caderno de atividades em língua portuguesa. Rio de Janeiro: JOBRAN.)
Como no texto de Mario Quintana, nós, professores, também nos espantamos ao
constatar este paradoxo. O aluno, que é um falante fluente do português, se queixa por
julgar não dominá-lo. Para o estudante, a língua portuguesa ensinada na escola é algo
completamente distanciado de seu cotidiano, de sua vida, considerando sua própria
língua algo enfadonho e a gramática servindo apenas para ditar regras. Na verdade, o
aluno sabe sua língua; o que ele não domina é a norma culta, a variante culta que cabe à
escola ensinar.
37
O presente ensaio teve origem na disciplina Tópicos de Fonologia ministrada pela Profa. Dra. Darcilia
Simões no semestre 2003/1.
38
A autora é mestranda de Língua portuguesa na UERJ e docente da rede municipal de ensino.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
136
Mas, o que pode o professor de língua portuguesa fazer por seus alunos? E pelo
seu próprio ofício? Como transpor os obstáculos que impedem a apropriação, por parte
de seus alunos, da língua portuguesa?
Talvez a solução esteja em mostrar ao aprendiz que a língua portuguesa (seu
objeto de estudo) não está tão dissociada de sua vida, ao contrário, faz parte dela: é por
meio da língua que o aluno interage com o outro, comunica suas idéias, seus desejos,
obtém informações, convence seus interlocutores...
O objetivo deste trabalho é demonstrar que o professor, ao fazer um pequeno
levantamento de fatos lingüísticos que podem ser encontrados em seu dia-a-dia (em
jornais, revistas, propagandas, músicas de sucesso, programas de televisão, piadas),
pode estimular seus alunos e levá-los a um resultado mais animador em sala de aula.
Outro intento do professor deve ser o de mostrar ao aprendiz de língua
portuguesa que qualquer falante possui um grande conhecimento de sua língua materna,
a ponto de utilizá-la como matéria-prima para produzir trocadilhos, rimas, ambigüidades
em piadas, textos publicitários, editoriais, músicas, charges, entre outros exemplos de
textos cotidianos.
No presente texto, especificamente, faremos um apanhado de fenômenos (fatos)
fônicos que ocorrem em nossa linguagem cotidiana, demonstrando que não podemos
(nem devemos) pensar em língua portuguesa dissociada da realidade do falante.
1. A FONOLOGIA EM SALA DE AULA
Abordar assuntos fonológicos em sala de aula é relevante, principalmente porque
as aulas de Fonologia sempre ficam restritas à contagem de fonemas, classificação de
vogais e consoantes, estudo de encontros vocálicos e consonantais, ficando relegado a
segundo plano um enfoque mais voltado para a aplicação prática da Fonologia.
No primeiro segmento do Ensino Fundamental (1ª a 4ª série), os fatos fônicos se
resumem à contagem de sílabas (quando é feita uma mistura de critérios, e começa a
confusão entre translineação e divisão silábica), dígrafos, encontros consonantais,
ditongos, tritongos, hiatos. Não que isto não seja importante, mas o que vemos é que aí
se inicia, na cabeça do aluno, uma verdadeira “salada” terminológica, cuja
aplicabilidade este não domina.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
137
No segundo segmento do Ensino Fundamental (5ª a 8ª série), restringe-se à
contagem de fonemas, diferença entre fonema e letra, numa abordagem, por vezes,
abstrata, faltando ao aluno um contexto que o permita concretizar esses conceitos. Não
podemos esquecer que todos aqueles temas vistos no primeiro segmento são revisitados.
No Ensino Médio, retorna-se à contagem de fonemas, diferença entre fonema e
letra, enveredando pelas vogais (orais & nasais), consoantes (oclusivas, constritivas...)
Além do que foi dito anteriormente, o ensino (que vai do nível Fundamental ao
Superior) tem dado mais espaço à morfologia, sintaxe e semântica, desconhecendo que
o domínio dos fenômenos fônicos auxilia na compreensão e na produção textual.
Entretanto, a experiência — oriunda da prática obtida na produção ou
realização de cursos avançados de Tópicos de Fonologia (pós-graduação lato
e stricto sensu) e da disciplina Fonologia da língua portuguesa na graduação
— demonstra que o domínio dos fatos e fenômenos do plano fônico da
língua subsidiam o entendimento dos outros planos da descrição lingüística;
e que, uma vez compreendida a inter-relação entre os vários planos, a
compreensão dos esquemas da língua atualizados na produção de textos se
realiza de uma forma mais firme, visto ser sustentada em bases múltiplas: a
fonologia explica a morfossintaxe e abre espaços para requintes estilísticos.
E estas, morfossintaxe e estilística, por sua vez, orientam a elaboração
semântica, a produção do sentido textual. (Simões, 2003: 48)
Os exemplos aqui elencados são oriundos de jornais, revistas, propagandas,
músicas e podem ser aplicados em sala de aula, feitas, obviamente, as adaptações
necessárias à faixa etária, grau de ensino, nível de interesse, dentre outros aspectos a
serem considerados.
Nem sempre o professor consegue fazer uma ponte entre os conhecimentos
fonológicos e a realidade; nem sempre demonstra ao aluno que as assonâncias e
aliterações não estão presentes apenas nos textos literários, nos clássicos, mas também
na MPB ou num forró; nem sempre consegue apontar a paronomásia ou a homonímia
presentes nas piadas e não somente abordá-las como conhecimentos estanques e
distantes da realidade do falante. A análise da matéria fônica, por exemplo, quase
sempre fica restrita à versificação, e não é mostrada ao aluno a sua presença nos
trocadilhos, nos jogos de palavras, nas piadas, nos jingles comerciais.
2. A FONOLOGIA NO DIA-A-DIA: SUGESTÕES DE TRABALHO PARA O PROFESSOR
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
138
Passemos à análise do corpus retirado de jornais, revistas, internet, novas fontes
de textos para o professor utilizar em suas aulas. Os mais recentes livros didáticos já
vêm dando preferência a esse tipo de material.
Mulheres Apaixonadas, o título da novela das oito horas da TV Globo, tornou-se
mote para vários trocadilhos e jogos de palavras. Aparentemente um sintagma usual,
banal até, fruto de um arranjo normalíssimo da língua, mas que caiu nas graças do
público e dos humoristas.
O sintagma formado pelo núcleo (determinado) mulheres e pelo adjunto
adnominal (determinante) apaixonadas é reaproveitado em três reportagens da revista
Veja. Mulheres Desesperadas (26/02/2003) é uma reportagem sobre a estréia da novela
e sobre suas personagens femininas, as tais mulheres que estariam desesperadas pelos
galãs. Ao núcleo mulheres é acrescido um novo atributo, desesperadas, que tem um
valor semântico pejorativo em relação ao atributo original (apaixonadas).
Na segunda reportagem, Mulheres Descerebradas (19/03/2003), o assunto
principal é a qualidade dos diálogos da referida novela (segundo a matéria, “diálogos
que saem do nada e vão para lugar nenhum”). Novamente o determinante apaixonadas
é substituído; agora temos descerebradas, fazendo referência ao “papo cabeça” de
algumas personagens.
A terceira e última matéria de Veja analisada é Mulheres Exploradas
(09/04/2003), cujo tema são as empregadas domésticas da trama; é feita uma crítica ao
tratamento que lhes é dado pela novela (trabalham de 2ª a 2ª, estão sempre a postos,
entre outras “irrealidades”).
Podemos observar que, nos três títulos, ocorreu a apropriação do sintagma
original e sua posterior desconstrução. O recurso empregado foi a permanência do
vocábulo mulheres e a substituição de apaixonadas por outros vocábulos com algo em
comum: a terminação –adas. Esta opção por palavras que tenham a mesma terminação
(no plano morfológico, o sufixo derivacional –ad + a desinência de gênero –a + a
desinência de número –s; no plano fônico, a seqüência de fonemas /a/, /d/, /a/, /S/),
produz um eco, fruto de uma semelhança fônica, de uma identidade sonora e que
permite ao leitor/falante se lembrar do sintagma original. Numa frase popular: — Olha a
rima que dá!
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
139
Outras alterações nesse título foram realizadas pelo grupo Casseta & Planeta em
seu programa de televisão. A paródia da novela é intitulada Mulheres Recauchutadas,
fazendo óbvia referência às mulheres adeptas de plásticas e do uso de silicone. Em outro
momento do programa, nova sátira à novela é apresentada: Mulheres Desgovernadas,
cujos personagens principais são a governadora do Rio de Janeiro e seu marido, o exgovernador do mesmo Estado, fazendo uma alusão à situação de desgoverno em que o
Rio de Janeiro se encontra. Recentemente, foram criadas as versões Mulheres
Assassinadas, em referência à morte da personagem Fernanda, vítima de uma bala
perdida, e Mulheres Enraquetadas, em referência às raquetadas com que o marido da
personagem Raquel a agride. Notemos que o vocábulo enraquetadas evoca o nome da
personagem agredida, pela sugestão sonora (grifamos o elemento comum entre o nome
da personagem — Raquel — e o adjetivo neológico).
É importante salientar que a escolha do atributo (do adjunto adnominal) é sempre
calcada na semelhança fônica da terminação (seqüência de fonemas /a/, /d/, /a/, /S/), na
repetição desta terminação. A repetição, entre outros fenômenos do plano fônico, tem
valor expressivo:
Não há dúvida de que na matéria fônica se escondem possibilidades
expressivas. Deve-se entender como tal tudo que produza sensações
musculares e acústicas: sons articulados e suas combinações, jogos de
timbres vocálicos, melodia, intensidade, duração dos sons, repetição,
assonância e aliterações, silêncios, etc. (Martins, 2000: 26)
Não é raro encontrarmos outras construções empregando o atributo apaixonadas
e alterando, desta vez, o núcleo original mulheres:
• Convivas Apaixonados (nota da coluna Controle Remoto, do jornal O Globo,
do dia 20/05/2003, sobre a popularidade do autor da novela, Manoel Carlos);
• Mães Apaixonadas (manchete do jornal do Club Municipal, de maio de 2003,
em homenagem ao Dia das Mães; normalmente o adjetivo apaixonadas seria atribuído à
mulher, esposa ou namorada, fugindo do campo associativo de mãe, mais relacionado à
proteção, cuidados.).
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
140
Nestes casos, a escolha do vocábulo não é baseada no plano fônico. O efeito
produzido não é tão forte, nem tão significativo quanto nos exemplos onde existe a
semelhança sonora da terminação. Os novos sintagmas remetem ao original (mulheres
apaixonadas), sugerem ao ouvinte a lembrança do sintagma primitivo, mas a graça e a
sensação de inusitado, gerados pela mudança, são menores.
No entanto, em Colheres Apaixonadas, mais uma sátira dos humoristas do
Casseta & Planeta à novela (nesta versão, as personagens são colheres), novamente há a
substituição do núcleo calcada na semelhança fônica entre mulheres e colheres: palavras
que possuem igual terminação.
Outro fato que reforça a identidade/semelhança sonora entre as palavras acima é
que a vogal /o/ de colheres é realizada por muitos falantes como /u/: /kuereS/. As
vogais /o/ e /u/ se aproximam quanto ao movimento da língua que ocorre no momento
da produção dessas vogais: ambas são vogais posteriores (há em ambas um movimento
da língua para trás).
Recentemente, na internet, começaram as sátiras à novela. No site de humor
Humortadela (o próprio nome do site é um cruzamento vocabular entre humor e
mortadela, calcado na existência de uma sílaba em comum, produzindo um trocadilho),
vamos encontrar a abertura da novela sendo exibida e as várias versões do título, de
acordo com os personagens que aparecem e suas características: Mulheres Mal-Criadas
(em referência à personagem que briga com os pais e os avós), Mulheres Apadrinhadas
(alusão à irmã de dois famosos cantores sertanejos, a qual participa da novela),
Mulheres Todas Peladas (o alvo agora é a atriz que posou nua para uma revista
masculina), Mulheres Embriagadas (referindo-se à professora alcoólatra), Mulheres
Enrugadas (sátira à mulher mais velha que namora um homem mais jovem), Mulheres
Estapeadas (alusão à personagem que apanha do marido), Mulheres Que São Espadas
(as personagens citadas são lésbicas). É relevante salientar que os autores da paródia da
internet também demonstram uma preocupação em manter a identidade sonora com o
título original.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
141
Empregar palavras com finais semelhantes é um recurso muito comum na
propaganda. Este procedimento é chamado homoteleuto e é definido como “o
aparecimento de uma terminação igual em palavras próximas, sem obedecer a um
esquema regular, ocorrendo ocasionalmente numa frase ou num verso”. (MARTINS,
2000: 40)
• Abuse e use: C&A.
• Tomou Doril, a dor sumiu. (A forma ortográfica é divergente mas há
identidade sonora entre Doril /iw/ e sumiu /iw/. Esta é uma boa oportunidade para
abordar as variantes regionais, pois a identidade sonora é maior entre os falantes
cariocas, que realizam “a vocalização da lateral em posição final de sílaba e neste caso
temos um segmento com as características articulatórias de uma vogal do tipo [u] que é
transcrito [w].” (SILVA, 2002: 39)
• Todo dia uma alegria. (propaganda do Hiperfundo Bradesco)
• Mandou, chegou. (slogan do SEDEX)
Este recurso também é muito produtivo em campanhas institucionais como a
campanha de combate à fome, o Programa Fome Zero:
• O Brasil que come, ajudando o Brasil que tem fome.
Analisando charges, encontraremos a utilização de outro recurso, o de
desconstruir expressões consolidadas pelo uso (citações bíblicas, provérbios, expressões
populares) e reconstruí-las posteriormente, sempre empregando recursos fonológicos.
Em duas charges de Chico Caruso, ocorre a substituição da palavra original, que
integrava uma expressão cristalizada, por outra com a qual guarda semelhança sonora:
• Em Lulinha mete os pleitos (05/06/2003), há alusão à expressão popular meter
os peitos (ser corajoso, tomar uma atitude) e aos seios da modelo Gisele Bündchen, que
aparece na charge ao lado de José Graziano, responsável pelo Fome Zero, programa de
erradicação da fome, ao qual a modelo doou seu cachê; o vocábulo peitos é substituído
por pleitos, em referência às eleições.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
142
Em peitos e pleitos ocorre paronomásia, “figura pela qual se aproximam, na
frase, palavras que oferecem sonoridades análogas com sentidos diferentes”
(MARTINS, 2000: 45). A palavra escolhida como substituta possui semelhança com a
original no tocante à terminação, sugerindo graça pelo inusitado do trocadilho.
• Em Paz na Terra aos homens com boas amizades (02/05/2003), ocorre a
apropriação da frase bíblica Paz na terra aos homens de boa vontade (Lc 2,14) e a
alteração de vontade por amizade. A charge remete à amizade entre os senadores José
Sarney e Antônio Carlos Magalhães, justificando a escolha do vocábulo amizades, outro
exemplo de substituição de vocábulo calcada na coincidência dos sons finais.
Vejamos dois anúncios de um curso preparatório:
• Entre para o clube dos bem-empregados.
• Entre para o clube dos bem-preparados.
Feita a apropriação da expressão entrar para o clube dos desempregados,
produziu-se o clube dos bem-empregados e o clube dos bem-preparados. Este é mais
um exemplo de semelhança fônica entre o vocábulo original e o substituto.
O humor é um terreno mais que propício a essas desconstruções de frases feitas,
expressões populares, títulos de obras. Analisando a produção do grupo Casseta &
Planeta, um olhar mais atento sobre a coluna Agamenon nos fornecerá alguns bons
exemplos destas desconstruções de sintagmas cristalizados pelo uso. Em Olhai os
colírios do campo (22/06/2003), há o reaproveitamento do título de uma famosa obra da
literatura brasileira, Olhai os lírios do campo, do escritor Érico Veríssimo. A forma
gráfica lírio está contida em colírio, ou sob outro ponto de vista, colírio é formado pelo
acréscimo da sílaba [co] a lírio. O texto faz uma alusão a um colírio que causou
problemas aos seus usuários. Olhai (verbo olhar) e colírios pertencem ao mesmo campo
associativo, justificando a sua presença neste contexto e alterando o título original.
Outra vez há semelhança sonora entre a palavra original e a substituta.
Na seção Pensamento do dia, encontramos mais um exemplo:
• A seleção é a pátria de bobeira por A seleção é a pátria de chuteiras
(29/06/2003).
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
143
Neste exemplo, é a semelhança fônica que endossa a escolha de bobeira.
Chuteira/bobeira têm a terminação composta pela mesma seqüência de fonemas /e/, /y/,
/r/, /a/.
Nomes de pessoas (prenomes e sobrenomes) também são sintagmas
cristalizados. Desde que nascemos os carregamos e temos poucas chances de alterá-los,
salvo casamento ou a adoção de nomes artísticos. Os humoristas do citado grupo
Casseta & Planeta realizam um trabalho com os nomes próprios de políticos famosos: o
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso já foi chamado no programa de Fernando
Henrique Invejoso, Ficando Henrique Nervoso. Atentemos para Cardoso, o sobrenome
alterado, que possui a mesma terminação dos vocábulos substitutos (invejoso, nervoso).
Deste modo, fica mais fácil para o ouvinte lembrar o sobrenome original do presidente,
confirmando a associação entre a paródia e o parodiado.
O atual presidente Luís Inácio Lula da Silva também já foi vítima de algumas
sátiras. Na coluna Agamenon, foi chamado de:
• Luiz Inéscio Lula da Silva (11/05/2003; 15/06/2003);
• Luiz Inércio Lula da Silva (01/06/2003);
• Luiz Ignorácio Lula da Silva (06/07/2003);
• Luiz Galináceo Ejacula da Silva (06/07/2003);
• Luiz Inácio Rola da Silva (06/07/2003);
• Juiz Inácio da Silva, o Amarelula (13/07/2003).
No programa de televisão, o presidente também teve seu nome alterado:
• Luiz Entrevistácio Lula da Silva (26/08/2003);
• Luiz Anúncio Lula da Silva (26/08/2003).
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
144
Verifica-se uma preocupação em manter a estrutura do nome do presidente,
fazendo a alteração em algum ponto que seja favorável à substituição. Nos quatro
primeiros exemplos, é o segundo nome do presidente que sofre modificações: Inácio
transforma-se em Inéscio (em alusão a néscio, pessoa tola, ignorante), em Inércio
(fazendo referência à inércia, pela falta de exercícios físicos e a conseqüente obesidade
do presidente, e também a uma possível inércia política), em Ignorácio (remete à
ignorante, fazendo referência à falta de cultura acadêmica do presidente), em Galináceo
(no lugar de galinha, homem que “paquera” muito, em referência ao episódio em que o
presidente conheceu uma das dançarinas de um grupo popular. A forma galináceo existe
na língua e por isso foi mantida a grafia com –e). Em comum à maioria dos exemplos
anteriores, a opção pelo fonema inicial /i/ e pela terminação –ácio (-áceo). Há
necessidade de manter a semelhança sonora com o nome verdadeiro do presidente, para
que o leitor reconheça quem está sendo alvo da paródia. Partindo destes exemplos,
pode-se salientar para o aluno a importância de se ter um amplo vocabulário. Os
produtores destes trocadilhos com os nomes próprios possuem um amplo domínio do
léxico português para fazer tais trocas. Néscio é um exemplo de vocábulo que não é
comum na linguagem coloquial; vocábulo de uso não-corrente, e do qual se apropriaram
para criar o neologismo Inéscio.
No último exemplo, Juiz ocorre no contexto onde se esperaria Luiz. O vocábulo
inserido remeterá ao episódio dos juízes na Reforma da Previdência. Ocorre uma
substituição calcada na troca de apenas um fonema.(Mais adiante veremos outros
exemplos que podem ser aproveitados para tratar do papel distintivo do fonema.)
Outros políticos e pessoas famosas foram alvo deste tipo de paródia, sempre
mantendo a semelhança sonora com o nome original e uma relação semântica com
alguma característica do satirizado:
• Fernando Cóllon (03/08/2003);
• Rosquinha Garotinho, Rosquinha Molequinha (27/04/2003; 22/06/2003);
• Anthony Molequinho (22/06/2003) - o uso do diminutivo nos nomes do casal é
mantido, preservando a identidade sonora entre o nome verdadeiro e o fruto da
paródia.);
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
145
• Mário Jorge Lobo Gagállo (29/06/2003), em alusão ao técnico de futebol
Mário Jorge Lobo Zagallo, insinuando sua velhice (gagá);
• o vice-presidente José de Alencar virou José de Amargar (08/06/2003), devido
às suas opiniões dissonantes e às suas reclamações;
• Bill Pinton (08/06/2003) - o presidente norte-americano Bill Clinton,
conhecido por sua fama de conquistador;
• César Guggenmaier (13/07/2003) - cruzamento vocabular de Guggenheim,
nome do museu que o prefeito pretende trazer para a cidade do Rio de Janeiro, e do
sobrenome do próprio prefeito, Maia;
• Marta Chuplicy (13/07/2003) e José Gaynoíno (29/06/2003), trocadilho
sugerindo preferências sexuais.
Outro tema que pode ser abordado e melhor contextualizado através de exemplos
do dia-a-dia é o conceito de fonema. Vejamos algumas sugestões.
O título da coluna do dia 29/06/2003, A bicha vai pegar, é uma apropriação da
expressão popular o bicho vai pegar. A inserção do vocábulo bicha remete à Parada
Gay, que ocorreria no Rio de Janeiro no mesmo dia.
Bicha e bicho diferem pela alternância dos fonemas /o/ e /a/. É um bom exemplo
da função distintiva do fonema, como se pode comprovar pela seguinte definição: “Os
fonemas são unidades mínimas não-significativas, mas distintivas, ou seja, unidades que
distinguem as formas da língua”. (Simões, 2003: 24) A alteração fonológica gerou
alteração de sentido, reforçando a função primária do fonema: a distinção.
• Mamar: verba intransitiva por Amar: verbo intransitivo (11/05/2003).
Neste segundo exemplo, ocorre uma paródia do título do livro de Mário de
Andrade Amar: verbo intransitivo; os dois vocábulos mamar e amar diferem pelo
fonema nasal dental no início do vocábulo. Em verba/verbo, a alteração do fonema /o/
para /a/, gera um novo significante e, conseqüentemente, um novo significado,
reforçando o conceito de fonema como um traço distintivo das palavras.
Em mais dois anúncios publicitários podemos encontrar exemplo do papel
distintivo do fonema, sendo empregado para fortalecer o trocadilho:
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
146
• Limpol acaba com a gordura sem acabar com as mães. Desculpe, com as
mãos. (Trocadilho apoiado na troca intencional do fonema).
• Sente-se bem, sinta-se melhor ainda. (Propaganda de uma loja de cadeiras).
A questão da nasalidade pode ser abordada através do exemplo abaixo, proferido
por Silvio Pereira, Secretário de Organização do PT, e conhecido por soltar algumas
pérolas como essa:
• Desculpe por estar pegando o bode andando.(18/05/2003)
A expressão original é pegar o bonde andando. Bonde e bode são um bom
exemplo do valor distintivo da nasalidade.(cf. Câmara Jr.), pois o sentido da expressão
popular foi completamente modificado com a alteração fonológica.
3. ALGUMAS CONCLUSÕES
Após analisar atentamente o exemplário fornecido por charges, propagandas e
textos humorísticos, podemos elencar algumas conclusões:
• aparentemente, essas alterações geram o riso e a graça pelo seu despropósito.
Despropósito intencional e que demonstra um amplo domínio dos recursos expressivos
da língua portuguesa. Quem as produz (redatores de programas humorísticos,
publicitários, chargistas) possui um bom conhecimento de sua língua materna, para dela
se apropriar como matéria-prima para seus trocadilhos e jogos de palavras. Engana-se
quem pensa que essas alterações são resultado da falta de compreensão da língua; ao
contrário, elas demonstram usuários que detêm conhecimento sobre a matéria fônica da
língua, sobre seu vocabulário e sua estrutura morfossintática. O aluno perceberá que
também ele necessita conhecer sua língua para melhor utilizá-la no dia-a-dia ou mesmo
trabalhá-la artisticamente;
• ao recolher este tipo de corpus para trabalhar com os alunos, fica patente a
relação entre conhecimento e realidade, entre teoria e prática, contextualizando o
ensino;
• o ensino de língua portuguesa não é, nem precisa ser, desconectado da
atualidade. Podemos e devemos trabalhar os clássicos com os alunos, mas nada melhor
que exemplos atuais para ilustrar a teoria;
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
147
• as aulas de Fonologia não mais se resumirão à contagem de sílabas ou
identificação de encontros vocálicos, consonantais, nem tampouco à versificação (rimas,
assonâncias, aliterações). Um leque de opções se abre para o aluno e para o professor:
charges, músicas, quadrinhos, comerciais, internet, entre outros exemplos de aplicação
de fenômenos fônicos.
Ao optar por este tipo de trabalho, o professor se coaduna com as novas
tendências ou exigências educacionais. Vários estudiosos pregam um ensino
contextualizado, ancorado na realidade do aluno, sendo este o agente de construção do
seu próprio conhecimento (cf. Piaget, Freinet, Vygotsky). Ao selecionar tal sorte de
corpus para o trabalho em sala de aula, além de proporcionar um ensino mais dinâmico
e próximo da realidade de seus alunos, o professor produz seu próprio material didático,
desvinculando-se de livros didáticos que nem sempre atendem às necessidades dos seus
educandos, de tal forma que sua prática demonstre maior coerência e visão crítica de
sua própria língua.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bíblia Sagrada (1985) São Paulo: Editora Ave Maria.
CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. Estrutura da língua portuguesa. (1991) Rio de Janeiro: Vozes.
MARTINS, Nilce Sant’Anna. Introdução à estilística: a expressividade na língua portuguesa.
(2000) São Paulo: T. A. Queiroz.
MONTEIRO, José L. Morfologia Portuguesa. (1991) São Paulo: Pontes.
RAMOS FILHO, João et al. Caderno de atividades em língua portuguesa. (1995) Rio de
Janeiro: JOBRAN.
SILVA, Thaís Cristófaro. Fonética e fonologia do português: roteiro de estudos e guia de
exercícios. (2002) São Paulo: Contexto.
SIMÕES, Darcilia. Fonologia em nova chave: considerações metodológicas sobre a fala e a
escrita. (2003) Rio de Janeiro: HP Comunicação Editora.
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
148
NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE ARTIGOS
Os textos deverão ser encaminhados exclusivamente pela INTERNET (em forma
de
anexo
a
mensagem
eletrônica),
para
o
seguinte
endereço
eletrônico:
[email protected]
Os volumes não são temáticos, apesar de priorizarem as áreas: Letras,
Lingüística e Semiótica.
A língua oficial da publicação é o português.
O fluxo de recebimento de artigos e publicação é contínuo (exceto quando haja
chamadas especificando datas), ficando sujeito à quantidade de textos aprovados pelo
Conselho Editorial e às condições de produção disponibilizadas pela UERJ.
A S INSTRUÇÕES
DE DIGITAÇÃO SÃO AS SEU SEGUINTES
Digitado em Word (com aplicação de estilos do próprio editor de textos),
gravado em formato RTF; página tamanho A4, com as seguintes configurações:
margens de 3cm; cabeçalho e rodapé com 1cm; orientação do papel na posição retrato,
com o mínimo de 8 (oito) e o máximo de 25 (vinte e cinco) laudas.
Não hifenizar.
Não produzir espaços com o uso da tecla ENTER.
Não incluir figuras, gráficos e tabelas no arquivo texto. (vide item 3.3)
ESTILOS A SEREM CRIADOS E USADOS PELO AUTOR
•
Título: fonte Times New Romam 12, negrito, caixa de frase, parágrafo
simples, centralizado, sem recuos, com 0 espaço antes e 6 espaços depois,
•
Autor: fonte Times New Roman 10, parágrafo simples com alinhamento à
direita, sem recuos, com 0 espaço antes e 6 espaços depois, seguido do nome
da(s) instituição(ões) que representa;
•
Corpo do “Texto: fonte Times New Roman 12; parágrafo 1,.5, com
alinhamento justificado, recuo especial na primeira linha de 0,75cm, 3
espaços antes e 3 espaços depois;
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
149
•
Citação: fonte "Mimes New Roman 10, parágrafo simples com alinhamento
justificado, sem recuo especial na primeira linfa, com recuo de 3cm à
esquerda e 1 cm à direita, 3 espaços antes e 0 espaços depois,
•
Bibliografia: fonte Times New Roman 10, parágrafo simples com
alinhamento justificado, recuo especial de deslocamento de 0,8cm; 3 espaços
antes e 3 espaços depois,
•
Notas: apenas notas de referência direta (em estilo americano), conforme o
exemplo: (SIMÕES, 2003: 37). Não publicaremos textos com notas de
rodapé ou de fim.
CRITÉRIOS ADICIONAIS:
•
palavras ou expressões-objeto cm itálico, termos estrangeiros (inclusive
latim ou grego) sublinhados, não usar negrito;
•
evitar figuras, gráficos e tabelas;
•
quando as figuras (usar formato JPEG para WEB), tabelas e gráficos forem
indispensáveis, mandá-los em arquivos independentes e numerados. (Indicar
no texto a localização de cada figura, gráfico ou tabela).
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
150
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
151
Caderno Seminal Digital, Ano 11, nº 1, V. 1 [Jan/Jun-2004] — ISSN 1806-9142
152
Download