HIV desafia a compreensão científica Por Daniela Klebis Apenas seis anos após a descoberta do vírus HIV (vírus da imunodeficiência humana), em 1984, teve início o primeiro teste clínico de uma vacina que protegesse a humanidade da mortal epidemia da Aids. Quase vinte anos depois, a cura continua sendo uma promessa. O desafio é um pequeno filete de material genético envolto por uma cápsula protéica, o vírus, capaz de se multiplicar e mutar constantemente, dando origem a novas variedades, que continuam desafiando os avanços científicos. A dificuldade em se chegar a uma vacina eficaz deve-se muito à propriedade do vírus de sofrer mutações e rearranjos genéticos quando se multiplica. A grande variabilidade genética do vírus, que conseqüentemente causa uma grande diversidade viral e grande variação antigênica, deixa a ciência em desvantagem na corrida pela cura da Aids. A questão é encontrar uma vacina que consiga ser eficiente contra todos os tipos existentes do HIV. Todas as versões do vírus têm genomas similares, porém distintos. O HIV é semelhante ao Vírus da Imunideficiência Símia (SIV) encontrados em primatas como os chimpanzés, daí a hipótese de que ele teria chegado aos humanos por meio do contato com esses animais. “Como no continente africano, em algumas regiões é comum o hábito de se alimentar com carne de macacos, acredita-se que, ao manipular esse tipo de carne, os homens acabaram se cortando e, a partir daí, houve a passagem do vírus para humanos”, afirma Bosco Christiano Maciel da Silva, farmacêutico e microbiologista da área de HIV/Aids da USP. A adaptação do vírus ao novo organismo teria resultado na forma que conhecemos como HIV, sendo que os diferentes grupos virais existentes hoje teriam surgido de eventos isolados da transmissão entre espécies. Os existentes na Ásia, por exemplo, se desenvolveram de forma diferente dos da África, formando subgrupos regionais ou genéticos, atualmente dispersos pelos continentes. A diversidade do HIV ainda é crescente em função de diversos processos como a mutação – erros no processo de cópia – e recombinação, que acontece quando uma pessoa é infectada com duas versões diferentes do microorganismo. Existem dois tipos de HIV, o tipo 1, mais comum, e o tipo 2, considerado como endêmico da África Ocidental e muito raro de ser encontrado fora desta região. Pelo seqüenciamento do genoma viral, pesquisadores conseguiram mapear a árvore genealógica do HIV-1. Na raiz da árvore, existem três grupos, chamados M, N e O. O grupo M é o responsável pela epidemia no mundo atual. Este grupo se divide em nove subgrupos – com denominações alfabéticas que vão da letra A até o K-, que seguem um padrão de distribuição geográfica: um subgrupo denominado Circula na África do Sul, Índia e partes da China; subgrupo A e D são freqüentes no leste africano, ao passo que um subgrupo B é comum na América do Norte e Europa ocidental. No Brasil, os subtipos mais freqüentes são o B, o F e, em menores proporções, o C. “O vírus desafia a ciência e os pesquisadores porque sua grande variabilidade genética acarreta grande diversidade viral e confere grande capacidade de escape imunológico e resistência às terapias já existentes”, resume Silva. Busca pela vacina Atualmente, 30 tipos de vacinas estão sendo testadas no mundo e o grande objetivo dos pesquisadores é encontrar uma que atue direta e eficientemente sobre uma característica comum a todos os subtipos. “Uma vacina ideal contra o HIV deverá ter as seguintes características: ser segura, de fácil administração, estável sob condições adversas de armazenamento, capaz de induzir imunidade duradoura contra uma ampla diversidade de subtipos do HIV (cepas diferentes do vírus), de baixo custo e que possa estar disponível na rede pública de saúde dos países, para que todos possam ter acesso a essa vacina”, descreve Bosco Silva. O processo de desenvolvimento da vacina engloba cinco estágios, a exemplo do que ocorre para que um medicamento saia da bancada do cientista, para a prateleira da farmácia: a pesquisa científica básica, o desenvolvimento pré-clínico, os testes clínicos com suas três fases: a licença e aprovação do medicamento e, finalmente, sua fabricação e distribuição. Até hoje, a vacina para combater a Aids não ultrapassou a fase III dos testes clínicos, aqueles feitos em larga escala e, de todas as vacinas candidatas, apenas três conseguiram chegar a essa etapa. “Essas vacinas candidatas falharam porque as pessoas estudadas não se tornaram ‘imunes’ à infecção pelo HIV”, aponta o pesquisador. Os testes clínicos para a descoberta da vacina anti-HIV existem desde 1987, quando a Agência de Controle de Alimentos e Medicamentos norte-americana (FDA, na sigla em inglês) aprovou o primeiro teste em humanos nos Estados Unidos – mesmo momento em que o AZT (Zidovudine), a primeira droga antiretroviral, foi lançado. Em 1998, iniciou-se o teste de fase III e, um ano depois, um país em desenvolvimento, a Tailândia, realizou os primeiros testes clínicos da vacina. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), desde 1987, já foram desenvolvidos cerca de oitenta testes clínicos no mundo com mais de 50 vacinas candidatas. Nos últimos cinco anos, o número de testes fase I em humanos dobrou, segundo a OMS. Em 2005, 13 novos testes com vacina preventiva começaram a ser feitos em nove países do mundo e dois deles conseguiram resultados positivos para entrar na fase II de testes, um estágio intermediário da avaliação clínica. No Brasil existem estudos preparatórios para a vacina anti-HIV desde 1995, mas os testes clínicos começaram em 2000. Hoje em dia, estão em andamento duas avaliações de fase II, o HVTN 204 e o HVTN 502, e três de fase I: o HVTN 050, HVTN 055 e o HVTN 063. Arthur Kalichman coordena dois desses testes no Centro de Referência e Treinamento em DSTs e Aids de São Paulo (CRT-DST/Aids), o HVTN 050, testado desde 2004 no Brasil, e o HVTN 055, que começou a ser estudado no país no final do ano passado. “Não testamos ainda se essas vacinas funcionam ou não. Estamos testando se fazem mal ao organismo humano, se os efeitos colaterais são toleráveis”. No final do estudo, será verificado se os produtos são seguros e se despertam imunidade contra os pedaços específicos do gene do HIV. Se aprovados, os testes seguem para a fase II. As vacinas de HIV testadas são produzidas a partir de pequenos pedaços do vírus, os imunogenes. Uma vez aplicados, esses imunogenes são reconhecidos pelo sistema imunológico, que cria, assim, defesas contra fragmentos do HIV. “Ninguém usa o vírus inteiro. Em seu lugar utilizam um vetor, que tem potencial de despertar o sistema imunológico, como é feito na vacina para a varíola. Funciona pela exposição de um pedaço do gene do vírus imunizado, no caso, o HIV, enxertado no DNA de outro vírus, inofensivo. É como se mostrássemos a fotografia do inimigo para o sistema imunológico aprender a reconhecê-lo”, explica Kalichman. Há ainda outros obstáculos que a busca pela vacina enfrenta, como carência de voluntários para os ensaios clínicos (muitas pessoas ainda têm receio de participar dos ensaios clínicos, com medo de ocorrer infecção pelo vírus durante os testes), o longo tempo que levam os ensaios clínicos e os recursos financeiros insuficientes investidos em pesquisa científica. Investimentos na vacina De acordo com a Iniciativa Internacional de Vacina da Aids (IAVI, em inglês), os gastos globais com pesquisas para a vacina da Aids não chegam a 1% dos gastos totais com pesquisa e desenvolvimento de produtos na área da saúde. Os investimentos em 2005 chegaram próximos aos U$700 milhões, metade do que é considerado necessário para atender às necessidades. A instituição alerta ainda que enquanto mais de U$20 bilhões são gastos com tratamento, pesquisas, prevenção e cuidados em doença, apenas 3% deste valor são destinados à pesquisa e desenvolvimento da vacina. Os investimentos do setor privado, de apenas U$100 milhões no mundo todo, denunciam uma situação ainda mais crítica de falta de incentivos. Conforme aponta a IAVI, a Aids se concentrada em países pobres (95% das pessoas infectadas vivem nessas regiões), e embora estes sejam os que mais precisam da vacina, são os que menos podem pagar por ela. “O fato de determinada doença, como a Aids, se concentrar em países pobres influencia no avanço das pesquisas, uma vez que o compromisso com investimentos tão necessários começa a cair; enquanto que, por outro lado, o descaso com o tratamento, com a assistência às pessoas infectadas e com o investimento em pesquisas tende sempre, infelizmente, a aumentar”, comenta Silva. Apesar da maior concentração em países pobres, a Aids também é um problema para os países desenvolvidos. O relatório do Programa de HIV/Aids das Nações Unidas (Unaids), de 2004, alerta para o crescimento das infecções do HIV em países como os EUA e da Europa, entre os anos de 2001 e 2004. No mais, a Unaids reforça que os gastos estimados com a doença será quase o triplo da demanda atual de U$ 8 bilhões em 2008, o que dá argumentos para que a ciência intensifique as pesquisas nos próximos anos. Conquistas e tratamento Desde que o vírus foi descoberto em 1981, é possível apontar grandes avanços que a ciência fez: o seqüenciamento total do vírus, a compreensão de como o sistema imunológico humano é atacado e como ele tenta reagir e se defender contra o vírus, a descoberta dos medicamentos antiretrovirais. “Eu diria que até hoje os medicamentos antiretrovirais, conhecido como “coquetel” representam um dos maiores avanços da ciência no campo do HIV/Aids, uma vez que conseguiram diminuir os óbitos dos pacientes infectados pelo HIV em mais de 50%.”, ressalta Bosco Silva. O primeiro medicamento utilizado contra a Aids foi o AZT, em 1987. Em 1995, o Departamento de Alimentos e Drogas (FDA) abriu a nova era das terapias antiretrovirais altamente ativas (HAART), quando aprovou o primeiro inibidor de protease, o saquinavir. Um ano depois, o Brasil iniciou o programa de distribuição gratuita do remédio, configurando-se assim como o primeiro país a priorizar a saúde dos soropositivos. Pouco tempo depois, em 1997, os resultados da HAART puderam ser observados pela redução em 40% do número de mortes por Aids, em comparação ao ano anterior. Nestes 25 anos ainda não existe cura e o vírus, ironicamente uma das formas de vida mais simples, ainda desafia com sua complexidade de ação. Leia mais: - Understanding AIDS www.iavireport.org vaccines: An anthology from VAX. Disponível em - Relatório da Unaids da OMS sobre a epidemia de dezembro de 2005. www.unaids.org/epi/2005 Fonte: http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=13&id=118