considerações sobre o espaço urbano no brasil

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESPAÇO URBANO NO BRASIL
Paulo Roberto Teixeira de GODOY
Silvio Carlos BRAY
Introdução
Iniciada nos primeiros séculos da colonização portuguesa, a urbanização no Brasil
constitui-se em um processo histórico e espacial em curso. Acompanhou de modo singular a formação do território colonial e posteriormente, a do território nacional. Com uma
configuração litorânea, a urbanização integrou-se às práticas econômicas e às políticas de
conquista territorial por todo o interior do país. A ação urbanizadora do sistema colonial
português deu ao Brasil um caráter urbano antes mesmo do rural (REIS FILHO, 1968;
OLIVEIRA, 1982).
A cidade sempre esteve presente na história de diferentes sociedades. Em culturas
de base agrícola ou comercial, apresentava-se como uma mediação entre as mediações
(LEFEBVRE, 1974). Como cenário da evolução social, a cidade tornou-se sede do poder
político, da produção e do consumo assim como em fábrica de culturas.
Em Geografia Humana, J. Brunhes (1955) afirma que a cidade não passa de uma
aglomeração improdutiva e que deveria ser analisada com uma espécie de “ser natural”.
Na acepção de M. Sorre (1953, p. 253), a cidade em sua forma específica, “é um lugar de
contactos e de trocas de atividades, formas de vida, de sistemas de necessidades distintas”.
Para este autor, “as cidades traduziriam, na sua estrutura interna e na sua fisionomia, o caráter dominante da civilização que as produziu”. Considerou ainda, que a ação consciente
está na origem das cidades e que “o contato de duas regiões seria propício ao nascimento de
cidades e uma grande estrada, com suas etapas, determinaria verdadeiras linhas urbanas ”.
Nesse sentido, Sorre (1953, p. 256) conclui que “ existe uma cidade quando há coalescência de funções em uma aglomeração. Esta expressão significa que as funções chegam
a depender uma das outras, tornando-se assim independentes da atividade primária que deu
origem à aglomeração”.
Para Munford (1961, p. 16 e 494), a cidade “representa a possibilidade máxima de
humanização do ambiente natural e de naturalização da herança humana : ela dá ao primeiro uma conformação cultural e exterioriza a segunda em formas coletivas permanentes”.
Segundo este autor, a cidade é um “complexo geográfico, uma organização econômica, um
processo institucional, um teatro de ação social e um símbolo estético de unidade coletiva”.
A cidade condensou em sua materialidade, a técnica, a arte e as funções sociais, fazendo do
urbanismo e da política urbana, pares históricos na produção do espaço urbano.
Para o historiador F. Braudel (1967), em Civilsation matérelle, économie et capitalisme, a cidade apresenta-se como um produto da divisão social do trabalho e, ao mesmo
tempo, condição concreta de existência dos mercados nacionais.
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O espaço urbano, na conjugação das concepções acima, consiste no lugar de mediações, de possibilidades, de trocas e de formas de vida. Na história das conquistas territoriais,
as cidades aparecem como espaço do poder político e militar, de efetivação do processo
colonizador e de ordenação dos fluxos de mercadorias.
Inicialmente deve-se enfatizar que a colonização portuguesa no Brasil, a partir do
século XVI, mostrou que o desempenho das cidades na conquista de territórios foi de
grande importância para o sucesso do empreendimento colonizador. A fundação de vilas,
freguesias e povoados ocorria, muitas vezes, como uma técnica de apropriação territorial.
O papel específico da cidade era o de demarcar fronteiras e garantir o domínio sobre as
terras conquistadas. A sobrevivência dessas cidades dependeu menos do campo do que da
geopolítica administrativa realizada pela coroa portuguesa.
As considerações preliminares apresentadas sobre o urbano no processo de colonização do território brasileiro durante o período colonial não procurou uma re-interpretação
do processo de urbanização na de contraposição de idéias ou concepções teóricas de espaço
e de história.
A Cidade na colônia
No Brasil, a expansão da colonização portuguesa sempre foi marcada pela presença de
freguesias, patrimônios, cidades, vilas e povoados. O significado desses núcleos urbanos na
paisagem conquistada, refletia as preocupações político-administrativas com a ocupação e a
exploração do território e também, com as formas que assumiam o domínio do colonizador
sobre a natureza e o nível de desenvolvimento técnico de sua cultura.
A idéia de criação de cidades na colonização de novas áreas, constitui-se em uma
prática secular. As fronteiras econômicas, segundo Sérgio Buarque de Holanda (1963, p.
61-62), “estabelecidas no tempo e no espaço pelas fundações de cidades no Império Romano tornaram-se também as fronteiras do mundo que mais tarde ostentaria a herança da
cultura clássica”.
Na América Latina, as colonizações portuguesa e espanhola a partir do século XVI,
ocuparam e demarcaram seus territórios mediante a criação de cidades e desenvolveram,
em certa medida, economias que, necessariamente, passaram por elas.
Para Geiger (1963, p. 69),
o Brasil não escapou à característica geral da colonização européia em continentes novos, marcada pela fundação de núcleos urbanos em áreas ainda
não povoadas, como ponto de partida para a ocupação e desenvolvimento
de atividades econômicas. As localidades fundadas no Brasil podem não ter
tido, durante dezenas de anos, grande expressão, do ponto de vista de sua
população [...] Salvador, pôr exemplo, precede a expansão açucareira no
Recôncavo Baiano e mesmo se pode afirmar quanto ao Rio de Janeiro e ao
Recôncavo da Guanabara. Apoiando-se nestas cidades é que os engenhos
de açúcar se desenvolveram, inicialmente, nos seus arredores.
No século XVI, como informa Reis Filho (1968, p. 66), Portugal já realizava uma
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política urbanizadora (grifo do autor) no Brasil como “solução mais eficaz de colonização
e domínio”. O espaço urbano, como lugar de concentração de bens e pessoas, controle
político, militar e religioso e difusão do poder instituído, integrou-se de modo singular à
prática de conquista territorial, desde o período colonial.
A política urbanizadora não estava dirigida para a criação de uma economia urbana
e com base regional de influências diretas sobre uma determinada hinterlândia. Antes de
estimular, a “política urbana” portuguesa conteve-se em deter o crescimento urbano nas
colônias. Os núcleos urbanos fundados no período colonial, tiveram apenas um sentido
político de domínio territorial e escoamento de mercadorias.
Na visão do historiador Sérgio Buarque de Holanda (1963, p. 66), em outra direção
conceitual e histórica sobre o papel da cidade na colônia, argumentou que
os portugueses, esses criavam todas as dificuldades às entradas terras a
dentro, receosos que com isso despovoasse a marinha. No regimento do
primeiro governador-geral do Brasil, Tomé de Sousa, estipula-se, expressamente, que pela terra firme a dentro não vá tratar pessoa alguma sem
licença especial do governador ou provedor-mor da fazenda real [...] outra
medida que destinada a conter a povoação no litoral é a que estipulam as
cartas de doação das capitanias, segundo as quais poderão os donatários
edificar junto ao mar e dos rios navegáveis quantas vilas quiserem, por
que por dentro da terra fyrme pelo sertam as nam poderam fazer menos
espaço de seys legoas de hua a outra pera que se posam ficar ao menos
tres legoas de terra de termo a cada hua das ditas villas e ao tempo que se
fizerem as tais villas ou cada hua dellas lhe lymitaram e asynaram logo
termo pera ellas e depois nam poderam da terra que asy tiverem dado
por termo fazer mays outra villa , sem licença prévia de Sua Majestade”.
Nota-se, na citação acima, que ao referir-se ao poder atribuído aos donatários de
fundar povoamento no litoral, quando na verdade eles não tinham tal direito, ignorou o
fato de que a fundação de vilas e povoados só poderia acontecer em terras alodiais, como
colocava o antigo direito romano em relação ao Município. Por outro lado, a fundação de
povoados e sua elevação à categoria de vilas eram considerados como título de benemerência
(grifo do autor) dos governadores coloniais perante à Coroa portuguesa.
Para Reis Filho (1968, p. 84),
a política urbanizadora da Metrópole consistia em controlar mais
diretamente a fundação e o desenvolvimento das cidades e estimular,
indiretamente, a ação urbanizadora dos seus donatários [...] A política de
colonização aplicada pelos portuguêses no Brasil até meados do século
XVII é a mesma utilizada pelos holandêses durante os 30 anos de sua
colonização do Nordeste : concentrar a atenção e os recursos nos núcleos
urbanos.
No período de dominação espanhola (1580-1640), a conquista do território a partir
das cidades, iniciou-se na Paraíba (1585), Natal (1599) e São Luís do Maranhão (1612);
e com a fundação de povoados no interior, como Caeté (1634), Canutá (1635), Alcântara
(1637) e Gurupá (1639), nos atuais Estados do Maranhão e Pará (REIS FILHO, 1968).
À medida em que a cidade tornou a ação colonizadora mais eficaz e presença na
paisagem conquistada mais comum, maior foi o empenho da Coroa portuguesa em controlar
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a criação de núcleos urbanos. A cidade pode ser antes de tudo, como coloca Monbeig (1943,
p. 08), “uma forma de ato de posse do solo por um grupo humano”.
M. Marx (1991, p. 18) informa que,
um pequeno arraial que se formasse [...] por certo dependia da necessidade
de terrenos para cada morador e sua família, para toda a comunidade. Teria
ou não acesso a essa terra? Seguramente, dependeria do reconhecimento da
sociedade organizada, por mais distante que estivessem os centros do poder.
A oficialização de núcleos urbanos perante ao poder institucional dava-se com a
edificação de uma capela que uma vez visitada por um cura, poderia promover o povoado
à categoria de vila ou de cidade. Porém, segundo M. Marx (1991, p.19), “não bastava,
contudo erguer uma ermida; não bastava construir, por melhor de fosse, uma capelinha; era
necessário oficializá-las. Não era suficiente dotar o povoado de um abrigo para o exercício
religioso em comum; era necessário sagrá-lo”.
A união entre Estado e Igreja, desempenhou papel fundamental na fundação e na
elaboração de políticas de expansão urbana. O espaço urbano passou a representar não só
o poder do Estado como o da Igreja católica. A influência exercida pela organização dessas
relações de poder entre Estado-Igreja sobre o urbano, representou, de acordo com M. Marx,
um fator decisivo na definição da rede urbana brasileira.
Assim, a cidade tornava-se peça fundamental do empreendimento colonizador e religioso, a sua expansão territorial implicava em maior capacidade e eficácia na exploração
de recursos naturais. Somente no território paulista, nas antigas províncias de São Vicente
e Santo Amaro, foram fundadas, entre 1610 a 1693, nove vilas : Mogi das Cruzes (1611);
Santana de Parnaíba (1625); Taubaté (1645); Jacareí (1653); Jundiaí (1655); Guaratinguetá
(1657); Itu (1657); Sorocaba (1661); e Iguape (1693) e no oeste do Paraná, havia o núcleo
de Guaíra, que fora destruído em 1627, durante o conflito entre jesuítas e bandeirantes
(REIS FILHO, 1968).
Ianni (1988, p. 36) destacou em seu estudo sobre a cidade de Itu que
no início do século XVII, a fundação de povoados no interior paulista
forneceu apoio de ligação “na vasta rede de rios, trilhas e caminhos (ou
sítios, arraiais, freguesias, povoados, vilas e cidades) que se criaram com
a expansão do povoamento do planalto paulista, das regiões de Minas
Gerais, Goiás, Mato Grosso, Paraná e de todo o sul do país.
Em relação a importância das estradas, Azevedo (1957, p. 151) argumentou que, “os
caminhos coloniais constituíram a espinha dorsal da rede urbana brasileira”.
No início do século XVIII, o Brasil contava com uma rede urbana de sessenta e cinco
vilas e oito cidades. Notou-se que somente no século XVIII, foram fundadas 118 vilas no
Estado de São Paulo. As principais eram : Pindamonhangaba (1705); São José dos Campos
(1767); Mogi Mirim (1769); Lorena (1788); Campinas (1797) e Bragança Paulista (1797).
No mesmo período, foram fundadas no Centro Oeste brasileiro Cuiabá (1727), Vila Bela
(1752), Cáceres (1778) e Poconé (1780) (AZEVEDO, 1957).
A distribuição espacial dessa rede urbana e sua estrutura interna revelaram o sentido exploratório da colonização e a posição política da Metrópole portuguesa em relação a
Colônia. Deve-se ponderar que o número de cidades e vilas citados corresponde aos dados
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oficiais, ou seja, considera-se apenas os que foram oficializados e sacramentados.
O controle do Estado e da Igreja na fundação e expansão de núcleos urbanos, na
organização e escoamento de mercadorias e a voracidade que caracterizou a exploração
dos recursos naturais da colônia, influenciou diretamente a ordenação do espaço interno
das cidades.
Em relação a estrutura interna das cidades, Holanda (1963, p. 62) argumentou que
ao comparar as colonizações espanhola e portuguesa na América Latina,
o próprio traçado dos centros urbanos na América Espanhola denuncia o
esforço determinado de vencer e retificar a fantasia caprichosa da paisagem agreste [...] As ruas não se deixam modelar pela sinuosidade e pelas
asperezas do solo;
de acordo com Aymord (1985, p. 138), seria uma espécie de “vitória da ordem sobre a
sombra, em uma cidade ideal estabelecida sob o signo do espírito”.
Sem considerar as implicações teóricas e as diferenças geográficas existentes entre
as regiões Andinas e as do litoral brasileiro, Holanda (1963) procurou enfatizar nas cidades de colonização espanhola, o rigor geométrico na ordenação do espaço urbano que as
“imunizaram” contra as forças e as assimetrias da natureza.
Em relação as cidades da colonização portuguesa, Holanda (1963, p. 75-76) as
caracterizou como espaços desorganizados e irracionais, isto é, “não é produto mental, não
chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da paisagem”.
Em relação ao traçado das cidades, Pe. Antônio Vieira dizia: não fez Deus o Céu em xadrez
de estrêlas (XAVIER PEREIRA, 1982, p. 82).
A Vila de São Paulo, como informa Xavier Pereira, significava uma paisagem de
casario estreitado no topo da colina, entrecortada pelos rios Anhangabaú e Tamanduateí,
que se mesclava às roças e criações de animais nos arrabaldes. Na descrição de Azevedo
(1957, p. 152), São Paulo se apresentava “com suas tortuosas ruas serpenteando no cabeço
da colina, estreitas num ponto, largas noutro, recortadas de casas baixas e enormes beiradas
de telhado a protegerem as paredes de taipa. Nas palavras de Morgado de Mateus, era uma
verdadeira cidade de barro”.
O espaço interno das cidades coloniais no Brasil traduzia, em primeiro lugar, o objetivo do empreendimento colonizador e, consequentemente, a função atribuída à cidade no
processo de exploração do território. Além disso, deve-se acrescentar como informa Azevedo
(1957, p. 152), que os núcleos urbanos criados pelas autoridades coloniais “obedeciam,
em suas origens, um plano regular e geométrico, se bem que adaptado às características
topográficas. Sem demora, porém, deixava-se de lado essa preocupação urbanística e a
expansão passava a se realizar de maneira espontânea”.
Além disso, vale lembrar que, segundo M. Marx (1992, p. 22), a localização do sítio
urbano não ocorreu aleatoriamente, mas obedecendo uma legislação específica criada pelo
Estado e pela Igreja. Assim, segundo o direito canônico, as Igrejas se devem fundar, e edificar em lugares decentes, e acomodados, pelo que mandamos, que havendo-se de edificar
de novo alguma igreja parochial em nosso Arcebispado, se edifique em sitio alto, e lugar
decente, livre de humidade, e desviado, quanto for possível, de lugares immundos, e sordidos.
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Na concepção de Holanda (1963), os núcleos urbanos caracterizavam-se pela pequena
concentração de casas em torno de uma igreja, geralmente localizada no alto de um espigão.
À revelia da natureza, o traçado das ruas, das quadras ou da praça central se faziam na
medida em que as casas, os edifícios públicos e a igreja eram construídas.
O costume de se destacar a igreja na paisagem, consistiu em uma tradição e uma
decisão política, estética e simbólica que, na verdade, obedeceu, segundo M. Marx (1992,
p. 23) “a uma legislação clara a ser cumprida se se quisesse a sagração, ainda que de uma
pobre capelinha [...] Em boa parte, nosso território com seu relevo ensejou a exploração
das colinas e das escarpas pelas capelas e igrejas em todo porte [...]” Com efeito, essa
legislação incidiu diretamente sobre
[...] o sistema de ruas e prédios ou, no mínimo, para as redondezas da
igreja. Se esta devia estar afastada das demais construções, e quanto isto
fosse possível, um espaço à volta se configuraria, sendo transformado,
com o passar do tempo e com a evolução do povoado [...] em determinado
logradouro. E isso foi possível quando o povoado era incipiente, pequeno e
de construções ainda esparsas. Além de uma igreja destacada pelas alturas,
pelo próprio sítio urbano, o arraial passava a contar com a sua valorização
pelo espaço livre em volta. Estava definida a ocupação de algum ponto
topograficamente privilegiado e um espaço aberto de expressão relativa.
(MARX, 1992, p. 23)
Desse modo, supõe-se que a configuração topográfica do sítio urbano, constituiu-se
em outro obstáculo de geometrização do espaço interno das cidades. Os casos de Salvador,
São Vicente, Ouro Preto e outras, são exemplos de “obediência” da estrutura urbana às
sinuosidades do terreno.
O traçado prévio, organizando a ocupação do solo urbano, surgiu, historicamente
como resposta às mudanças de funções adquiridas pela cidade na economia colonial e pela
valorização do solo urbano decorrentes da concentração populacional.
Embora a Igreja, unida ao Estado, tenha sido responsável em grande parte pela
expansão urbana, a sua distribuição espacial ao longo do litoral correspondeu, sem dúvida,
aos objetivos econômicos e geopolíticos da Coroa portuguesa. A localização das cidades e o
traçado dos caminhos que as interligavam, relacionaram-se diretamente com as necessidades
de escoamento de mercadorias e controle da exploração de recursos naturais.
Em relação à configuração litorânea da urbanização, Oliveira (1982, p. 37) argumentou que
[...] as cidades se constituíram segundo um padrão litorâneo não só devido
ao seu caráter exportador de produtos primários, mas também devido à
divisão social do trabalho, e isto tem a ver com a forma específica do
capital que controlava desde cima (sem entrar nela) essa economia agroexportadora. Vai ser nas cidades que se localizarão tanto os aparelhos que
fazem a ligação da produção com a circulação internacional de mercadorias quanto os aparelhos de Estado - do Estado colonial português,
em primeiro lugar, e depois do Estado brasileiro - que tem nas cidades,
evidentemente, a sua sede privilegiada.
De acordo com Reis Filho (1968, p. 38), a cidade se estabeleceu em decorrência do
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processo de urbanização e não ao contrário. Isso porque, como bem argumentou Oliveira
(1982, p. 37),
estamos acostumados a entender que o fenômeno da urbanização na sociedade e na economia brasileira é um fenômeno que se deflagra apenas a
partir da industrialização [...] O que nos tem levado a desprezar, de certa
forma, a formação urbana dentro das condições da economia exportadora.
Assim, a rede urbana que se formou nos primeiros séculos de colonização, constituiuse em um conjunto de respostas às solicitações deste processo de urbanização e conquista
territorial.
De acordo com Oliveira (1982, p. 38), “o urbano no Brasil é historicamente fundado
numa contradição singular : enquanto o locus da produção era rural, agrário, o locus do
controle foi urbano”. Considerou-se que o movimento de acumulação primitiva do capitalismo mercantil teve sua sede de controle na cidade porque tratava-se de uma economia
com uma função específica dentro do sistema internacional de acumulação. Fundada para
exportação, a cidade nasce no Brasil antes mesmo do campo.
A política de exploração realizada pela Coroa portuguesa no Brasil, não excluiu a
idéia de criação de cidades como forma de domínio territorial e pontos de escoamento de
mercadorias. A articulação entre elas, caracterizou a rede urbana e o modo como o processo
de colonização se desenvolveu.
A colonização portuguesa no Brasil não caracterizou-se como um movimento demográfico. Na verdade, como argumenta Novaes (1997, p. 20),
a colonização moderna não foi um fenômeno essencialmente demográfico,
mas por certo tinha uma dimensão demográfica muito importante. Não foi
essencialmente demográfico no sentido de que o movimento colonizador
não foi impulsionado por pressões demográficas [...]. A colonização do
Novo Mundo articula-se de maneira direta aos processos correlatos de
formação dos Estados e de expansão do comércio que marcam a abertura
da modernidade européia.
Na dimensão política, decorreu um permanente esforço metropolitano no sentido
de expandir o território da dominação colonial para além das possibilidades de exploração
econômica. Isso devido, segundo Novaes (1997, p.22), ao fato de
os Estados modernos em gestação na Europa estão se formando uns contra
os outros, de aí essa furiosa competição para garantir espaços na exploração colonial. No caso português, esse processo é levado ao limite, e é
o que explica a enorme desproporção entre a pequenez da Metrópole e a
imensidão da Colônia. E é também de aí que resulta a enorme dispersão
e rarefação das populações coloniais.
Em relação ao rompimento da concentração do povoamento na faixa litorânea ocorreu parcial e momentaneamente na fase da mineração, quando a ocasião da descoberta de
ouro e diamantes gerou um importante movimento migratório entre as regiões litorâneas
(São Paulo e Rio de Janeiro) e as regiões de Minas Gerais e sul de Goiás. De acordo com
Deffontaines (1944, p. 143), “a colonização mineira se apresentou essencialmente sob a
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forma de uma civilização urbana”.
A vida urbana da colônia foi vista como um prolongamento e uma complementação
da metrópole e, ao mesmo tempo, a sua negação e o seu avesso. A população da colônia
na perspectiva metropolitana era equivalente à da metrópole, porém a metrópole era uma
região de emigração, e a colônia uma região de imigração (NOVAES, 1997, p.20).
A forte concentração econômica e política em São Paulo e no Rio de Janeiro a partir
principalmente de meados do século XIX, associada às formas de controle sobre a distribuição de terras, foram fatores internos que contribuíram para o fortalecimento da economia
litorânea. Para Azevedo (1957, p. 114), a obra de urbanização conseguiu libertar-se da orla
atlântica, em conseqüência da expansão povoadora e da conquista do Planalto Brasileiro e
da própria Amazônia”.
Vale dizer, de acordo Novaes (1997, p. 25), que
a economia açucareira organiza-se para exportação; e a subsistência (como
a de São Paulo, ou a pecuária nordestina), que está voltada para dentro, dá
lugar a uma formação social instável, móvel, sem implantação. De outro
ângulo, o contraponto entre o caráter profundamente rural da sociedade
litorânea, e marcadamente urbano das Minas, realça a diversidade até o
paradoxo : o mais estável, permanente, é o setor litorâneo, voltado para
fora, nas bordas; o mais fluido e superficial é o setor interiorizado e urbano.
Como elo de ligação entre Metrópole e colônia, a cidade encontrou-se envolvida
por um conjunto de relações políticas administrativas, comerciais e culturais que a tornava,
cada vez mais, parte de uma rede urbana e de um sistema econômico interno.
A política urbanizadora, como argumenta Reis Filho (1968), teve seus desdobramentos durante todo o século XVIII para se consolidar como processo de urbanização no
século XIX, quando o espaço urbano adquiriu novos significados para os agentes sociais,
políticos e econômicos da conquista territorial. Na perspectiva do poder da Metrópole
portuguesa, os núcleos urbanos na colônia tornaram-se espaços de controle e, ao mesmo
tempo, permitiram ampliar, com eficácia, o sistema administrativo. Para o Estado brasileiro,
a cidade tornar-se-ia a condição concreta de intervenção política na economia e na sociedade.
As melhorias ocorridas nos quadros administrativos no início do século XIX, implicaram a incorporação de novos serviços tipicamente urbanos, (jurídicos-burocráticos,
comerciais, transportes e culturais) provocando alterações nas funções da cidade, bem como
modificações importantes na regulação do uso do solo urbano. As demandas de serviços
derivadas das atividades agrícolas e comerciais, que passaram a ser atendidas na cidade,
resultaram na edificação de prédios públicos, estabelecimentos comerciais, casas teatrais,
escolas, bibliotecas, praças etc.
Com o adensamento da aglomeração urbana, aumentou-se a pressão sobre o solo
urbano e, desse modo, as necessidades de parcelamento e geometrização do espaço interno
das cidades.
O parcelamento do solo urbano, como forma de regulamentação e controle do uso e
ocupação, registrou as regras impostas e elaboradas exclusivamente para as cidades. A divisão
dos lotes implicava na definição de espaços públicos e privados, bem como no seu preço.
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O desenvolvimento da economia colonial ao longo dos séculos XVII e XVIII, embora
voltada inteiramente para o campo, desdobrou-se em uma rede urbana que no século XIX
passou a concentrar, em determinadas regiões, significativos contingentes populacionais.
Segundo Geiger (1963), três fatores contribuíram para a expansão urbana durante o
século XIX : a abolição da escravatura; a maior divisão do trabalho; e o desenvolvimento
das médias e pequenas propriedades rurais. Um quarto fator pode ser acrescentado se
considerarmos a imigração européia na segunda metade do século XIX, sobretudo, para
São Paulo e Estados do sul do País. Por outro lado, como observa Deffontaines (1944, p.
144), “no decurso do século XIX, com o declínio da mineração, a montanha ficou vazia
com suas cidades mortas, verdadeiros monumentos históricos perdidos num deserto: São
João del Rei e Congonhas do Campo”.
Santos (1996, p. 20) informa que “ no final do período colonial, as cidades, entre as
quais avultaram São Luís do Maranhão, Recife, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, somavam perto de 5,7% da população total do País, onde viviam, então, 2.850.000 habitantes ”.
No final do século XIX, haviam apenas três cidades com mais de 100.000 habitantes:
Rio de Janeiro, Salvador e Recife. A partir do início do século XX, sobretudo no Estado de
São Paulo, a cafeicultura e a ferrovia foram decisivos para crescimento das cidades. Em
1900, a cidade de São Paulo contava com aproximadamente 240.000 habitantes.
Localizadas na faixa litorânea, formando o tão propalado “arquipélago econômico”,
as cidades litorâneas lançaram raízes para o interior do território, configurando uma relativa
continuidade do processo de expansão urbana através do movimento da fronteira agrícola.
De acordo com Santos (1996, p. 20), esse
arquipélago, formado por subespaços que evoluíam segundo lógicas próprias [...] foi relativamente rompido na segunda metade do século XIX,
quando, a partir da produção do café, o Estado de São Paulo se torna o pólo
dinâmico de vasta área que abrange os estados mais ao sul e vai incluir,
ainda que modo incompleto, o Rio de Janeiro e Minas Gerais.
Na verdade, o processo de urbanização sofreu poucas alterações entre o final do
século XIX e o início do século XX. A aceleração do processo se deu entre os anos 20 e 40,
período em que a população ocupada em serviços cresceu mais rapidamente que o total da
população economicamente ativa. No caso do Estado de São Paulo, a taxa de crescimento
da população urbana no o referido período foi de 43% (SANTOS, 1996).
A história da colonização portuguesa no Brasil, mostra também a história e a geografia
da cidade. Da conquista territorial à exportação de produtos agrícolas, a cidade desenhou o
mapa econômico e político do Estado português, constituindo-se, ao mesmo tempo, como
espaço de controle sobre o território conquistado e ponto de articulação com a economia
metropolitana, tornando-se cidades internacionais antes mesmo de serem nacionais.
As relações econômicas entre Metrópole e Colônia se faziam através das cidades
e estas, por sua vez, dependiam menos do sucesso empreendedor da colonização do que
da política administrativa estabelecida pela Metrópole. O caráter de espaço de articulação
entre Colônia e Metrópole produziu uma rede urbana singular dado à especificidade de suas
funções no sistema colonial e de sua distribuição geográfica .
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Evidentemente, outras características poderiam ser atribuídas a cidade no período
colonial e outras relações poderiam ser exploradas do ponto de vista teórico e conceitual,
como também do seu papel em territórios em processo de incorporação. A arquitetura, o
urbanismo, a cultura urbana e as relações de poder através das cidades, constitui-se em um
campo de pesquisa extremamente importante para a geografia urbana brasileira, mas ainda
pouco estudado e analisado teoricamente.
Os trabalhos realizados durante os anos 40 e 50, revelaram uma certa preocupação em
relação ao período colonial, um desses trabalhos, como observou-se, foi Vilas e cidades do
Brasil colonial: ensaio de geografia urbana retrospectiva, de Aroldo de Azevedo, publicado
pela Universidade de São Paulo (USP), em 1956. Outro trabalho, menos abrangente, foi
o de Pierre Deffontaines (1944) no artigo Como se constituiu a rede de cidades, enfatizou
sobretudo o Estado de São Paulo.
Outro geógrafo que tratou da questão urbana no início dos anos 50, considerando
a cidade desde o período colonial foi Pierre Monbeig (1943), em estudos sobre Goiânia e
a frente pioneira no oeste paulista e norte do Estado do Paraná, mostrando a preocupação
em valorizar o período de colonização para uma melhor compreensão do urbano no Brasil.
Com Evolução da Rede Urbana Brasileira lançado em 1963, Pedro Geiger apresentou
um importante estudo sobre as funções da cidade na Colônia e seu processo de evolução
nas áreas de expansão territorial.
A partir dos anos 60, os trabalhos de pesquisa em geografia urbana passaram a
enfatizar principalmente, o processo de industrialização, a formação da rede urbana, a
regionalização e questões relacionadas ao planejamento regional. Muito desses trabalhos
romperam com a história. Um exemplo pode ser notado em Análise fatorial : problemas
e aplicações em geografia, de Faissol (1973), e tantos outros considerados de abordagem
quantitativa ou neopositivista.
Assim, considerando o que se expôs anteriormente em relação ao recorte histórico
e espacial da análise sobre o papel da cidade nas áreas de fronteira econômica, passou-se a
examinar a urbanização do Estado de São Paulo até os anos 30 em seus aspectos gerais.
O processo de urbanização no Estado de São Paulo nas décadas de 1920 e 1930
O processo de urbanização no Brasil, entre o final do século XIX e as primeiras
décadas do século XX, apresentou em termos numéricos, pequenas alterações no quadro
geral do seu crescimento. Em 1872, a população total era de 10.112.061 habitantes, apenas
6,8% estavam nas cidades; em 1920, a população total era de 27.500.000, e a população
urbana passou para 10,7% (SANTOS, 1996).
Em relação ao interior do Estado de São Paulo, Rossini (1988, p. 74) informa que
a urbanização acelerada pelo “movimento de capitais mercantis locais propiciando investimentos de origem privada de companhias de energia, de telefone, de meios de transporte,
bancos, instituições de ensino etc”; reforçaram de modo significativo o crescimento urbano
através da ampliação do setor de serviços.
Considerou-se que o uso de energia elétrica, como um dos indicadores do crescimento
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de atividades urbanas e de inovações técnicas, mostra que no início do século XX (1907),
trinta e dois estabelecimentos industriais utilizavam-se da energia elétrica e nos anos 20,
eram 3.042 estabelecimentos (LORENZO, 1997, p.179).
Nos anos 20, embora tenha sido a exportação de café o principal elo de ligação com
o mercado externo, foi na cidade que o capital estrangeiro se instalou com maior proeminência. Entre os anos 30 e 50, o Brasil passou de exportador de produtos primários, para
importador de bens de consumo duráveis e de capital fixo.
Esse processo de urbanização, que antecedeu o desenvolvimento da economia industrial do pós guerra (1945), apresentou-se nas décadas de 1920/30 de modo bastante singular
nas zonas de fronteira agrícola do oeste paulista.
As regiões pioneiras do oeste paulista (municípios de Marília, Araçatuba, São José
do Rio Preto e Presidente Prudente) foram durante as três primeiras décadas do século XX,
o palco privilegiado da atuação do café e da ferrovia. Ambos constituíram-se nos agentes
protagonistas do movimento pioneiro, alterando a localização (privilegiou-se os espigões
dos planaltos) e a estrutura das cidades, bem como suas relações comerciais. A estação
ferroviária, como observa Geiger (1963, p. 92), “ou atraiu para a sua proximidade o centro
comercial, ou criou um outro”.
A relação café-ferrovia, no final do século XIX, iniciou-se com a construção da São
Paulo Railway entre 1860 e 1865, ligando Santos-Jundiaí. Em 1872, como informa Singer
(1974, p. 39),
deu-se a concessão da Estrada de Ferro São Paulo-Rio, que partindo de São
Paulo, alcança Moji das Cruzes em 1875, Jacareí, São José dos Campos,
Caçapava e Taubaté no ano seguinte, e Pindamonhangaba, Guaratinguetá
e Cachoeira, em 1877, entroncando nessa cidade com a Estrada de Ferro
Central do Brasil (antiga D. Pedro II). Completava-se desta forma a ligação
com a Capital Federal.
No início do século XIX, o café representava 18,4% da exportação nacional; no caso
açúcar era de 30,1% . Entre 1831 e 1840, a exportação de café chegou a 43,5% e a do açúcar
a 24,0%. No final do século o café era responsável por 64,5% das exportações (ROSSINI,
1988, p. 73). Além disso, foi a partir do final do século XIX, como informa Rossini, “ que
o grande surto imigratório para São Paulo vai ocorrer, subsidiado pelo governo provincial.
Neste período, a população cresceu cerca de 46,0%, atingindo 1.221,383 habitantes em 1900
chegou a 2.282.269 habitantes”.
Deve-se enfatizar o período compreendido entre 1872 e 1920, pois a partir deste
período que o processo de urbanização no Estado de São Paulo ganhou impulso definitivo.
Segundo Lorenzo (1997, p. 169), em estudo sobre o uso de energia elétrica no Estado de São
Paulo durante a década de 1920, observou que “o crescimento da população das cidades de
mais de trinta mil habitantes [...] entre 1872 e 1920, é de 7.393%, contra um crescimento
de 488% para a população total do Estado”.
Observou-se ainda que, neste período, quando a imigração se acentuou e o café e a
ferrovia passaram a expandir-se para o oeste paulista, o segmento dominante do movimento
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ruralista brasileiro passou a empenhar-se mais fortemente na organização política da agricultura. Em 1897 foi fundada a Sociedade Nacional de Agricultura (SNA), que propunha
a diversificação agrícola e a modernização técnica das relações de produção. Em 1909,
foi criado o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio com o objetivo de estimular
a diversificação agrícola e preparação da mão-de-obra rural através do ensino agrícola e
fomento à imigração/colonização.
Por outro lado, referindo-se às relações de trabalho, a importância da ferrovia
relacionou-se não somente com o avanço da cafeicultura e com a reestruturação da rede
urbana paulista, mas também com a expansão das relações capitalistas de produção. A
divisão interna do trabalho, a hierarquia administrativa, os regimentos internos de regulação e controle da produção, são aspectos que fizeram da empresa ferroviária um modelo
de organização e disciplina do trabalho que influenciaram outras atividades econômicas,
inclusive a cafeicultura.
A influência da ferrovia deu-se, sobretudo, na cidade. O traçado das estradas de ferro
não só alterou o funcionamento da rede urbana, surgindo várias cidades ao longo de suas
paralelas de aço, como diria Odilon Nogueira (1974), como também as “contaminou” de
cultura urbana e ‘modernidade’.
Sem dúvida, a expansão urbana que acompanhou a chamada “frente pioneira” correspondeu de acordo com Lorenzo (1997, p. 137),
às necessidades do café, ou dos privilegiados urbanos, em seus investimentos” e abriu “possibilidades de absorção do desemprego, e [...] à
necessidade de manutenção da situação básica dominante; a sociedade
hegemonicamente agrária faz do desenvolvimento urbano a sua janela
para o exterior, a janela que recepcionará o moderno.
As cidades que surgiram com a ferrovia modificaram, em grande parte, o funcionamento da antiga rede urbana. Antes de serem criadoras de cidades, como argumentou
Deffontaines (1944, p. 56), as ferrovias provocaram uma verdadeira hecatombe urbana. Este
autor informa que, “primeiro foi a morte de todos os pequenos portos da costa não servidos
pelas vias férreas: Angra dos Reis, Ubatuba, Nova Almeida e Tôrres”. Depois, provocaram
uma forte concorrência com a navegação fluvial que gerou a decadência e a estagnação de
cidades ligadas a este setor.
Seguindo as “cristas dos espigões” a ferrovia no Estado de São Paulo, sobretudo
na primeira metade do século XX, tornou-se, parafraseando Azevedo, a “espinha dorsal”
da rede urbana do interior paulista. As principais companhias ferroviárias que atuaram no
Estado de São Paulo (Companhia Paulista, Sorocabana, Noroeste do Brasil, Mogiana), tinham
como prática comum a construção de estações e sub/estações em distâncias que variavam
entre 20 e 30 quilômetros ao longo das respectivas linhas férreas. As estações ferroviárias
funcionaram, muitas vezes, como embriões de cidades ou pequenas vilas ou simplesmente
sucumbiram, mais tarde, com a crise do café e da ferrovia.
No caso da Companhia Paulista, a maioria das linhas foram estabelecidas principalmente na chamada zona velha, anteriormente ocupada pelo café e com inúmeras cidades.
A Noroeste do Brasil, por outro lado, se expandiu nas zonas pioneiras, onde a divisão da
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terra e tampouco a cafeicultura tinham alcançado.
Geralmente, na estação terminal da linha férrea – ponta de linha – surgia um núcleo
urbano que ganhava rapidamente status de cidade. Em 1896, quando a ferrovia chegou em
Bauru, era um povoado que contava, como informa Deffontaines (1944), com cerca de “50
cabanas de madeira”; 2 anos depois era uma cidade com perto de 4.000 habitantes.
Além da ferrovia e da cafeicultura, as médias e pequenas propriedades produtoras
de alimentos, proporcionaram também, como argumentou Prado Jr. (1944, p. 64), uma
“maior rapidez na organização da rede urbana, com melhor caracterização da hierarquia de
seus centros urbanos”.
As cidades que surgiram com a monocultura do café e a expansão da ferrovia até
o final do século XIX, foram essencialmente cidades de serviços. As cidades da indústria
nasceram com o algodão e a cana-de-açúcar. O processo de urbanização nutrido pelo binômio café-ferrovia no Estado de São Paulo só ganhou impulso definitivo a partir dos anos
30, mas as duas primeiras décadas do século XX foram decisivas para o desempenho da
economia paulista no cenário nacional.
Entre 1900 e 1920, a população paulista cresceu 101,2%. No censo de 1920 o Estado
de São Paulo contava com 15% da população nacional (4.592.188 habitantes) e participava,
em 1907, com 16% da produção industrial; em 1919, era de 31%. Além disso, em 1920, São
Paulo contava com 6.810 quilômetros de estradas de ferro e a Capital paulista chegava aos
593.134 habitantes ( ROSSINI, 1988; SINGER, 1974).
A expansão da ferrovia foi acompanhada durante todo período pela expansão rodoviária. Observou-se que no governo de Washington Luís Pereira de Souza (1920-1924), a
abertura de estradas estaduais (rodovias) e vicinais foram alvos constantes de investimentos.
“Em 1924, [...] o Estado de São Paulo contava com 22.432 veículos, sendo 4.395 caminhões,
trafegando em mais de mil quilômetros de rodovias, construídas pelo governo estadual”; O
ano de 1924 foi também o da instalação da General Motors, no município de Santo André
(REIS FILHO, 1997, p.149).
No referido período, a agricultura paulista produzia 28% do valor da produção
agrícola em 2.000.000 de hectares cultivados (30% da área cultivada no País). Segundo o
Censo Agropecuário de 1920 (FIBGE), dos 648 mil estabelecimentos agrícolas existentes
no Brasil, 80.921 estavam no Estado de São Paulo. Além disso, como informa Tartaglia
(1993, p. 14), “a agricultura paulista utilizava 401 tratores e 27.902 arados (tração animal
e mecânica) o que representava 23,5% do total de tratores do país e 19,8% dos arados utilizados”. Os 24,7 milhões de hectares do Estado de São Paulo, 14,3% estavam ocupados
com lavouras, 48,4% com pastagens e terras incultas e 37,2% com matas naturais. Evidentemente, devemos ponderar sobre a exatidão desses dados, uma vez que as dificuldades
encontradas na época e as possibilidades de mapeamento das áreas e levantamento de dados
eram extremamente limitadas.
Para Tartaglia (1993, p.59-64), durante os anos 20 a rede urbana paulista definiu-se
“em torno dos eixos ferroviários e as cidades-pólo mais importantes delineadas e consolidadas em sua maioria”. Segundo este autor, “ao longo dessas ferrovias nascem e florescem
núcleos urbanos que, de várias formas, apoiam a atividade agrícola, sustentam a operação
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da ferrovia e se integram rapidamente ao sistema urbano paulista”. A base dessa rede urbana originou-se, portanto, na produção do café e “assentou-se no desenho das ferrovias,
onde se distribuíam núcleos urbanos que davam suporte às lavouras e às necessidades de
armazenagem e transporte de café e outros produtos”.
Neste caso, o surgimento da cidade condicionou-se, primeiramente, à expansão da
ferrovia e a função de suporte dos fluxos e armazenagem de mercadorias. Ou seja, o surgimento dos núcleos urbanos correspondeu à demanda gerada pela produção agrícola : o café.
Entretanto, cidades como Ribeirão Preto, Araraquara e São José do Rio Preto (todas fundadas
por mineiros) surgiram antes do café e da ferrovia; por outro lado, cidades como Valparaíso
e Andradina (Noroeste do Brasil) surgiram antes mesmo da chegada da “frente pioneira”.
A concepção de que a rede urbana no oeste paulista se formou a partir da expansão
cafeeira e ferroviária, deixou de lado fatores que não permitem a compreensão acerca dos
processos de espacialização do urbano no Interior do Estado do São Paulo. Entre os fatores
importantes, analisados mais adiante, referem-se à atuação das companhias privadas de
colonização e comercialização de terras, do processo de estruturação agrária e do papel
desempenhado pelo Estado na formação da economia regional.
O surgimento da cidade na fronteira agrícola do oeste paulista, na primeira metade
do século XX, resultou, em grande parte, do processo de urbanização de meados do século
XIX, e não somente de um conjunto de fatores que passou a se articular economicamente
em função da cafeicultura e da ferrovia, fazendo com que a cidade surgisse como espaço
do excedente.
Sem dúvida, as cidades constituíram-se em espaço de trocas, de suporte da economia agrícola, armazenagem e beneficiamento de produtos agrícolas. Essas funções, porém,
foram as que as cidades adquiriram ao longo do movimento de expansão agrícola e não as
que lhes deram origem.
Em relação ao avanço da economia paulista, referido acima, pode-se destacar vários
fatores que contribuíram para o seu dinamismo : a expansão da cafeicultura; a implantação
de uma importante malha ferroviária; a substituição do trabalho escravo pelo imigrante
livre; a descentralização política administrativa advinda com a proclamação da República;
e o precoce, mas acelerado, processo de industrialização da Capital paulista.
O conjunto desses fatores deve ser entendido como resultado de um contexto mais
amplo, envolvendo as escalas nacional e internacional. A Primeira Guerra Mundial, por
exemplo, aumentou as exportações, favoreceu a emergência de políticas industriais e ampliou,
relativamente, o mercado interno. Os dados abaixo confirmaram a supremacia econômica
de São Paulo no referido período: 15% da população nacional; 28,8% da produção agrícola;
2,3 milhões de hectares de área cultivada (50% de café); 50% das exportações nacionais;
75% das exportações são produtos manufaturados; 6.600 quilômetros de ferrovias.
A partir dos anos 30, o processo que articulou agricultura-urbanização-indústria,
ganhou impulso decisivo com a presença do Estado. A mudança no modo de acumulação de
capital, unificou os interesses industriais, financeiros, imobiliários, comerciais e agrícolas,
como também instituiu uma nova divisão espacial e social do trabalho. São Paulo tornouse, como argumentou Rossini (1988), o centro nervoso da economia nacional.
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Embora a crise do modelo agro-exportador a partir do anos 30 tenha colocado a
agricultura em segundo plano em relação aos investimentos políticos e econômicos do Estado, parte do capital cafeeiro se associou às diretrizes da indústria e do setor de serviços,
sobretudo nos ramos de transporte e imobiliário, e dinamizou de modo efetivo o desenvolvimento industrial.
Com o avanço da industrialização, o processo de unificação do mercado interno e
a concentração da produção industrial na região sudeste se acentuou de modo decisivo e
permitiu a rápida formação de aglomerados urbanos industriais e, consequentemente, aprofundou as desigualdades regionais. Por outro lado, a diminuição do movimento imigratório
acentuou a migração interna, o que resultou em uma divisão regional do trabalho, onde a
Região Nordeste apareceu como mercado de mão-de-obra para a indústria do Sudeste, e o
Norte e Centro-Oeste como regiões de expansão da fronteira agrícola dirigida pelo Estado.
A partir de 1940, como informa Rossini (1988, p. 106 e 113), “as ferrovias entram em
franco declínio, acelerando a retirada de ramais deficitários por falta de modernização e por
causa da nova política do Estado. Em 1955 quase 1.000 km de ferrovias foram suprimidos”
, ao mesmo tempo, a diversificação da agricultura passou a impor uma “nova orientação na
compartimentação espacial da produção agrícola”, fazendo com que a articulação Capital e
Interior passasse a se apoiar no tripé industrialização-urbanização-agricultura.
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