Clique aqui para ler - Marina Knöbl Evangelista

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Fiam - Perfil: João Sobrinho
João Sobrinho.
“ Os relatos de alguém que acompanhou a rotina e a história de
um hospital psiquiatra bem de perto.”
Gritos e gargalhadas desproporcionais ecoavam pelos escuros corredores, sem fim.
Na mente de João Sobrinho ainda paira a imagem de um homem nu segurando uma faca, sentado no interior de uma geladeira, dominado por uma mente esquizofrênica a dizer calmamente: “Se você der um passo
para frente, eu mato você”. Parece que foi ontem. Mas não foi. O antigo Insa, Instituto de Neuropsiquiatria
de São Paulo, é hoje um Hospital Veterinário. O local foi desligado há 10 anos pela vigilância sanitária, por
conta do estado deplorável de higiene em que se encontrava. Hoje, tudo funciona normalmente.
Mas a rotina ali já foi bem diferente. E João presenciou tudo. Quando o hospital ainda estava em funcionamento, ele costumava visitar o local com frequência. Após ter sido desligado, foi o responsável pelas
reformas. Em sua memória, restaram apenas as histórias tristes que não podem ser apagadas e a lembrança
de um lugar tenebroso que um dia já existiu ali.
Foi lá que obteve as piores cenas de sua vida. Foi lá que observou até onde vai o limite da insanidade humana. Foi lá que viu pessoas há 10 dias sem dormir e sem comer, saciadas apenas pela forte droga que lhes
era injetada na veia. Hoje, ele sabe que aquela dose era tão alta, que seria capaz de dopar cavalos.
O prédio era grande, os corredores estreitos. As paredes eram frias, o que aumentava a sensação de
estar num local com maus presságios. Para piorar, não havia janelas. As luzes entravam apenas por pequenos buracos redondos, bem próximos ao teto. A ventilação era mínima. Os pacientes tomavam banho de sol
durante duas horas diárias, num páteo cercado por muros com quase 5 metros de altura. Os quartos eram
pequenos como leitos hospitalares. A cada quatro quartos, a sensação de estar numa prisão aumentava por
conta das grades, instaladas a fim de evitar possíveis fugas. A cozinha era espaçosa, mas
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igualmente escura. Por ser legitimamente antiga,
foi utilizada como cenário durante as gravações
do longa-metragem “Carandiru”. O local também
foi escolhido como cenário de outro grande filme
nacional, “Bicho de Sete Cabeças”. Além dos
cômodos comuns como a enfermaria, existia um
lugar popularmente chamado de “solitária”. Um
quarto minúsculo e escuro, sem banheiro, sem
janelas, e sem claridade alguma. A porta, de ferro,
foi completamente arranhada, por unhas e, até
mesmo, pelos dentes daqueles que passaram por
ali.
Os médicos controlavam as doses dos
medicamentos em fichas pessoais. E como em
um diário,
anotavam
absolutamente tudo
sobre o
paciente.
Desde seu
comportamento, e
suas alucinações, à
frequência
em que
dormiam e
comiam...
Alguns
pacientes
chegavam a serem internados por mais de sete
vezes. O comportamento agressivo era inevitavelmente comum. Brigas internas, apesar da
constante monitoração, resultavam até em morte.
Talvez eles não soubessem o que estavam fazendo... Mas, em meio à quase mil internados, surgiu
a necessidade de registrar o número de falecidos. O Livro de Óbitos continha muitas páginas
porque havia, em média, de 4 a 6 mortes por dia.
Isso resultou até na construção de um velório.
A agressividade, gerada pelos transtornos psíquicos, levava os familiares a internar seus entes.
Em muitos casos, ter alguém assim na família
era considerado até mesmo uma
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vergonha naquela época. Assim, surgiram os
manicômios. Cercado de pessoas que sofriam com
alucinações e transtornos mentais devido a psicoses, drogas ou álcool, a recuperação era quase impossível. Como um depósito humano, as pessoas
eram abandonadas por seus parentes e chegavam
a apodrecer, literalmente, deitadas em suas camas
durante muitos dias. A depressão tomava conta
desses pacientes que sequer levantavam de suas
camas. Com a ausência do apoio familiar, a morte
era inevitável. E não era fácil presenciar histórias
desse tipo. Tampouco entendê-las. Era como se
houvesse um universo paralelo onde era possível
andar sem roupas e urinar em bocas alheias. Os
menos distantes da
realidade
tiravam
proveito
da situação. Para
manter o
controle,
eles alteravam ainda
mais a realidade de
pacientes
com insanidade
mental.
Um deles chegou a subir no muro e pular do
prédio, de mais de 30 metros de altura, para tentar
subir numa árvore porque o disseram que ele seria
o Tarzan. Um outro paciente conseguiu fugir pelos
muros, o que era muito raro de acontecer, mas, em
menos de uma hora após a fuga, pulou da ponte
do Morumbi e morreu afogado.
Para controlar tanta agressividade, os enfermeiros amarravam os pacientes na cama, com
ataduras de ferro. Devido à medicação, eles mal
sentiam a dor, e com muita agitação, espremiam
a mão até que restos de sua pele e de seu sangue
grudassem nas “algemas” que os segurava. Os
recém-chegados eram ainda mais difíceis de
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serem controlados. Por isso, as primeiras noites eram passadas, geralmente, na solitária.
A famosa história do choque elétrico possui outra versão, segundo um enfermeiro da Insa. Não era
da filosofia do hospital cometer maus tratos aos pacientes, embora hoje esse modelo de hospital psiquiátrico
seja considerado inadequado e inaceitável. Alguns pacientes chegavam a “morrer” por exaustão psíquica.
Era como se o cérebro fosse desligado por alguns minutos. O paciente continuava vivo, mas sua mente
deixava de funcionar. Parecia com um manequim de loja. O choque, geralmente dado na cabeça, era utilizado para reanimar esses pacientes.
Todos esses relatos foram vividos por João Sobrinho, atual funcionário do HoVet. Mas apesar de ter
conhecido o hospital detalhadamente, ele não foi um paciente.
Final da década de setenta. João era trabalhava em uma firma e mantinha amizade com muitos colegas. Mas um deles, em especial, era diferente de todos os outros. Era engraçado reparar que Adevair ficava
esquisito se não mudasse as folhas do calendário ao chegar no trabalho. E ninguém poderia fazer isso em
seu lugar, era um dever exclusivamente dele. Mais estranho ainda era observar sua incapacidade de entrar no
ônibus se houvesse uma pessoa atrás dele. Ele tinha de ser o último. Sempre. E se não fosse, esperava outro
ônibus passar. Também não conseguia se segurar nos ferrinhos do ônibus. Ele não encostava a mão onde
muitas pessoas já haviam segurado. Adevair era uma pessoa muito reservada, mas acabou se tornando uma
piada no escritório. Até o dia em que todos descobriram que aquelas manias faziam parte de um transtorno
psíquico chamado esquizofrenia. Era para ser mais um dia normal. Mas acabou ficando gravado na memória
de todos que presenciaram aquela cena. “Ele chegou no trabalho pensando que era outra pessoa. Todos nós
éramos funcionários, mas, naquele dia, ele chegou ordenando para que os donos da empresa realizassem
as nossas tarefas... Achamos que era uma brincadeira no início, mas ele estava realmente alterado, como se
fosse o chefe de todos. Só percebemos que era sério quando ele rasgou documentos e contratos na frente de
todos”. Um médico do convênio foi chamado, e Adevair foi diagnosticado. Era o início de uma grande descoberta. Alguns minutos depois a ambulância de um hospital psiquiátrico levou-o numa camisa de força. E os
dias de João nunca mais foram os mesmos... Adevair foi deserdado por seu pai, morava sozinho e não tinha
ninguém. João, então, se tornou o responsável pela internação e passou a visitá-lo regularmente.
A realidade para Adevair era outra. Ele relatou aos enfermeiros que a internação se tratava de uma
vingança de João por ter sido demitido de “sua empresa”. Mas com o tempo, o sentimento de ódio e indignação acabou, e após três meses em tratamento, ele aparentava ter se recuperado. Recebeu alta, voltou para
casa e os problemas voltaram a aparecer. Desta vez, Adevair espancou uma vizinha que estava grávida,
e uma outra mulher que estava lavando roupas. As agressões resultariam em outra internação, desta vez,
num hospício em Santana. A polícia contatou João para que tentasse convencê-lo a ir de bom grado. E João
foi. Desde então, aquela cena permanece viva em sua mente. Seu colega de trabalho, enlouquecido e sem
razão, estava nu, sentado dentro de uma geladeira com a pele roxa de frio, e o mais chocante: estava com
uma grande faca na mão. O olhar estava fixo e lembrava chamas em brasa. Aparentemente calmo, ele dizia
em voz baixa: “Se você entrar, eu vou matar você”. João tentou entrar no pequeno e humilde apartamento,
situado num cortiço, para que seu amigo saísse dali e voltasse a se tratar. Mas para sua surpresa, Adevair
não estava brincando. A polícia dominou-o com facilidade, pois, apesar de tentar esfaqueá-los, ele estava
fraco, doente e muito magro. Agora, pela segunda vez, João teve de presenciar a mesma cena de antes. A
internação, a camisa de força, a agressividade, os gritos incontroláveis... João visitou-o poucas vezes durante
a segunda internação. Quando finalmente aparentava estar totalmente recuperado, Adevair recebeu alta, e o
alívio veio, mas durou pouco tempo.
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Uma semana depois, um telefonema. Era a polícia, novamente. Desta vez, para que fosse reconhecer
um corpo, possivelmente de Adevair. E era. Foi a pior cena que João já viu na vida. Seu colega de trabalho,
agora calmo de verdade, inanimado, inchado e sem coloração. Morto há pelo menos três dias, em sua cama,
abandonado, sem ninguém para velá-lo. Não foi fácil. E ainda não é fácil de esquecer. Apesar de não terem
construído laços de amizade, João o acompanhou durante todos os estágios de seu tratamento e fez o possível para que ele se recuperasse. Eles se conheciam há seis anos. Apesar de tudo, a médica já o tinha avisado:
“Não tem retorno. Os remédios controlam, mas não curam”. Atualmente, todos os funcionários têm conhecimento da antiga atividade do prédio. Existem boatos
entre alunos e funcionários de que o prédio seja mal assombrado. Histórias inacreditáveis são relatadas
diariamente, dando início a uma espécie de lenda urbana. Ao questioná-los sobre suas crenças, o resultado
surpreendeu. Não importa a religião, católicos, budistas, ateus, evangélicos, espíritas e crentes concordam
que o prédio realmente tenha alguma força sobrenatural. Mas isso não impede que as pessoas continuem
frequentando o local. O medo não afastou nem mesmo os seguranças, que já chegaram a dormir em cima do
mármore no interior de uma sala que já foi o velório do Insa um dia...
Documentos e Lembranças : Tudo o que restou do Instituto de
Neuropsiquiatria São Paulo
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Marina Knöbl Evangelista - Jornalismo II Semestre.
Proº Cláudio Tognolli - Introdução ao Jornalismo.
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