XXV ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS – outubro/2001 Seminário Temático: Antropologia e Comunicação Coordenação: Isabel Travancas Movimentos musicais e identidades sociais no contexto da cultura de massa no Brasil - uma reflexão caleidoscópica Letícia C.R.Vianna Música é um complexo e diversificado lugar de interação social, criação e reprodução de representações que dizem de culturas e identidades específicas - sejam elas mais locais, regionais ou globais. Trata-se de universo com múltiplos mundos; aparentemente com infinitas possibilidades. Neste texto estarei refletindo sobre certos aspectos e mundos no universo da música de massa no Brasil. Parto da idéia de que a cultura de massa é paradoxalmente universal nas sociedades integradas ao modo de produção capitalista - ou mundo globalizado - mas extremamente diversificada em formas e conteúdos. Existem expressões musicais de diversas ordens, e as especificidades não se anulam em função de equivalência fundada no valor de troca. Isto é, música na cultura de massa não se reduz ao estatuto de mercadoria; mas enquanto mercadoria, além de ser produto de trabalho, de interações sociais específicas, é potencialmente um continente de significados coletivamente atribuídos. Na sociedade brasileira a musicalidade é um dos elementos que, no imaginário coletivo reforçado pela mídia, enfatiza a identidade do ser brasileiro . Por um lado há o reconhecimento de uma variedade de tipos de música genuinamente brasileiros como o samba, o baião, a música caipira, bossa nova, o choro - gêneros criados na primeira metade do século XX e consagrados como músicas nacionais tradicionais que remetem a universos simbólicos específicos. E também o tropicalhismo, o mangue beat, a timbalada...- gêneros da segunda metade do século XX, pensados como expressões modernas diferenciadas da musicalidade brasileira. 1 Por outro lado, também se reconhece um potencial para apropriação com marcas próprias a gêneros de domínio transnacional, como o rock, o rap, o jazz ... O brasileiro é musical; assim como joga, ou deveria jogar, futebol; come feijoada, bebe guaraná Antártica, pula carnaval etcetera e tal... Neste texto procuro fazer uma reflexão sobre as gêneses e as segmentações em três complexos musicais tradicionais brasileiros : o samba, que envolve diferentes subgêneros como partido alto, samba enredo, samba de breque, o samba- canção, o pagode. O complexo da música sertanejo/caipira que engloba a música caipira, o sertanejo country, as modas de viola instrumentais, os cantos de aboio, dentre outros subgêneros. O complexo musical do baião que engloba tipos musicais como o xote, o xaxado e o forró eletrificado e açucarado que anda muito em voga hoje em dia. O texto é uma conjunção de fragmentos numa tentativa de síntese de reflexões autônomas anteriores1. Aqui procuro observar os lugares destes domínios musicais pondo-os em comparação no contexto da cultura de massa no Brasil na metade e no final do Século XX. A intenção teórica é o tratamento de categorias clássicas nas análises antropológicas da cultura de massa tais como: indivíduo/sociedade; autoria/ anonimato; condicionamento/liberdade; padronização/diversidade; embrutecimento/ criatividade.Observar a pertinência dessas categorias, se ainda são operativas e que bases. Tenho claro que os recursos classificatórios na cultura musical de massa são polêmicos, confusos e dinâmicos - paradoxalmente naturais ( pois as classificações são fundamentos da racionalidade ) e artificiais ( posto que tais recursos não são dados , e sim construídos em função da especificidade dos contextos sociais em que são aplicados). Nesse sentido, as categorias nativas - da mídia - sertanejo, caipira, forró, partido alto, pagode,baião... são pensados enquanto rótulos de mercado cujos significados são variáveis em função dos contextos em que são acionados. 1 Vianna,L. ( 1999 e 2001) 2 O que pode haver entre o forró e o baião, entre música caipira e a música sertaneja? Entre o samba e o baião, o partido alto e a música caipira? A partir de que elementos são construídas fronteiras? O que há de comum entre eles a não ser o fato de serem produtos musicais no mercado? O que podem significar no imaginário social quando colocados em relação no cenário das ofertas para consumo musical ? Quais identidades aparecem, como aparecem, e que dimensões articulam? ... São algumas indagações que põem o pensamento em marcha para elaboração deste texto, que não passa de um ponto de partida, e não tem a menor pretensão de esgotar temas e questões. * Ao longo da primeira metade do século XX, com os desdobramentos de algumas idéias básicas dos modernistas2, houve uma preocupação com a busca, expressão e atualização de raízes e referências culturais nacionais através da classificação de gêneros regionais singulares. E estes eram incorporadas aos processos de desenvolvimento dos modernos meios de difusão cultural, sob o olhar atento e implacável da política oficial. O samba era, então, amplamente cultivado e reconhecido como a música nacional no panorama musical transnacional. E outros tipos de música nativa “não urbana” eram também cultivados: cocos, emboladas, fandangos, modas de viola...sob o rótulo generalizante de regionais ou sertanejas. Na dinâmica produção cultural o universo do gênero sertanejo foi se segmentando em mundos como o baião, a música caipira, música sertaneja; as quais, por sua vez, foram se conformando em mundos também segmentados, em constantes atualizações e invenções. Desde o final do século XIX existia uma certa alteridade constituída entre o sertão, a roça e a cidade na música e no imaginário mais geral das artes como literatura e artes plásticas...Uma alteridade que não imobilizava os artistas em um dos mundos. Patrício Teixeira gravou regionais; Pixinguinha andou pelo Grupo Caxangá - trajando chapéu de palha - e também por orquestras de jazz, rodas de choro e samba, alternando flautas e sax. Noel Rosa, Almirante, Braguinha 2 Elizabeth Travassos (1999) menciona cronologia na qual o movimento modernista vai de 22 a 45 dos anos novecentos; sendo que a primeira fase - de demolição e crítica ao romantismo - vai de 22 até o princípio da década de 30. E a segunda de 30 até 45 - fase na qual se daria a consolidação e integração 3 começaram suas carreiras no Bando de Tangarás, todos vestidos de matutos; Villa Lobos, Francisco Mignone, Radamés Gnattali...dentre tantos, transitaram sobre as fronteiras erudito/popular, urbano/rural, nacional/regional. A identidade nacional era construída pela soma de partes regionais tornadas acessíveis a toda a nação através de políticas públicas, obras artísticas e ampla difusão nos mass média. Naquele contexto a música era um lugar privilegiado para a construção e afirmação de identidades regionais e nacionais. O baião era música regional que trazia um sertão nordestino para o cenário da música popular urbana. A música caipira/ sertaneja trazia a roça e o mundo pastoril das comitivas do centro sul do país... Apareciam como diferentes perspectivas rítmicas, melódica, harmônicas, temáticas, performáticas e coreográficas que transcenderam limites geográficos, etários, de classe, de províncias culturais. Em vários lugares e através de várias mídias os então novos gêneros se infiltraram, fazendo sucesso. Sem suplantar a hegemonia do samba, que trazia o Brasil urbanizado, trabalhador e bem humorado (já que havia censura, e a cara da pobreza e malandragem não podia aparecer; mas, de qualquer jeito, aparecia através dos mecanismos não oficiais de difusão, driblando a censura e o estigma da malandragem). Estes e outros gêneros compunham um universo musical fragmentado e dinâmico, como um caleidoscópio. Associados a estes gêneros existem uma infinidade de bens colocados à disposição para o consumo, os quais se constituem enquanto conjuntos de símbolos que se referem a identidades coletivas e visões de mundo específicas. E assim surgiram sociais como o caipira, o nordestino, o malandro - personagens que povoaram e povoam as representações coletivas produzidas na esfera da cultura de massa, num âmbito que talvez pudéssemos chamar de nacional. Estes tipos têm toda uma iconografia que os torna facilmente identificáveis: o malandro veste camisa listrada, terno de linho, pode ter dente de ouro pulseiras e anéis se for malandro rico, ou com pinta de rico. O nordestino tem na figura do sanfoneiro Luis Gonzaga - com chapéu de couro, gibão e sanfona - uma referência forte que concorre com a imagem do cangaceiro Lampião, e a do faminto retirante. E o caipira tem no chapéu de palha, camisa quadriculada, lenço no pescoço, cigarro de palha e barba rala por fazer a indumentária básica para a fácil de algumas idéias aos cânones da arte brasileira. 4 identificação. E sua personalidade pode oscilar da imensa ingenuidade, beirando a idiotia, à esperteza e sarcasmo. Também neste cenário apareceu o boiadeiro, que, no processo , assumiu modos de peão de rodeio e cowboy do asfalto; que se opõe à figura e ao mundo do caipira, e está relacionado à música sertaneja. Esses tipos não correspondem necessariamente a tipos socias concretos, observáveis junto a segmentos sociais; isto é, não são tipos representativos, mas personagens presentes no imaginário social que conviviam e contracenavam nas representações veiculadas através de programas de rádio, filmes, revistas e teatros de revista, peças publicitárias e na imaginação o público... Tem malandro no samba Segundo a história oficial do samba, a malandragem , conforme Roberto Moura (1995) , é um tema tradicional e constitutivo deste universo musical desde sua origem - situada em um lugar e tempo bem definido: o princípio do século XX no Rio de Janeiro , então capital do país, que se configurava como uma metrópole moderna . Com o desenvolvimento industrial e comercial , o Rio era centro de convergência de população crescente : cerca de um milhão de nativos e migrantes originários de várias regiões do Brasil , Europa e África . Uma população que se distribuía no espaço de acordo com políticas urbanas adequadas às necessidades de uma economia capitalista , e se organizava a partir de relações de parentesco , aliança , amizade , origem regional e vários tipos de afinidades . Um ambiente de extrema criatividade e diversificação cultural , dada a conjunção de experiências fragmentada de usos e costumes de diferentes procedências . A zona central da cidade era considerada problemática já no século anterior , dada a alta densidade populacional em condições insalubres . Na virada do século a região foi reurbanizada de acordo com os padrões de modernidade da época . A população foi remanejada ; parte permaneceu na Cidade Nova e grande parte foi deslocada dos bairros tradicionais para a periferia, subúrbios - bairros fabris e favelas ( ocupação dos morros ) que se proliferaram por toda a cidade, definindo um padrão de ocupação consolidada ao longo do século (Moura,R., 1995). O comércio , a indústria , a burocracia estatal , os serviços domésticos , a estiva e outras funções operacionais do porto eram os principais mobilizadores da força de trabalho das camadas populares . Roberto Moura (op.cit.) ressalta a existência de uma massa de indivíduos atuando na economia informal como subempregados , artesãos , ferreiros , marceneiros, barbeiros, alfaiates , pedreiros , cozinheiras , costureiras , artistas... Muitos , sem relação formal e regular com o trabalho , se incorporavam às redes de 5 vagabundagem e eventualmente da criminalidade. O malandro era um tipo urbano dentre os vários encontrados neste contexto . A malandragem , em termos gerais , era identificada com atividades reconhecidas como desviantes, mas meio de vida de homens pobres não integrados ao mercado de trabalho oficial (contravenção , crime e expedientes como : o jogo , a cafetinagem , a extorsão , furto, contrabando) . Para alguns indivíduos das camadas populares , a malandragem era uma alternativa à mendicância - reservada aos velhos , deficientes e mulheres com crianças . Para as camadas médias e altas , a malandragem assustava e ameaçava , mas , por outro lado , fascinava como mundo exótico , proibido , alternativo à ordem social estabelecida e valorizada . Cláudia Matos ( 1996) coloca que o tema da malandragem ou o “espírito malandro” já existia em formas culturais como o Lundu e na Capoeira , mas a mitologia da malandragem - enquanto registro de uma cultura relegada à margem da sociedade - foi configurada quando o samba passou a ser processado pela indústria cultural como um gênero musical e poético , um rótulo para objeto de consumo à disposição no mercado . A cultura musical neste contexto cosmopolita era bastante diversificada, vários gêneros eram cultivados. De tradição européia existiam as polcas , mazurcas , valsas , xótis , cançonetas...; de tradição africana, os pontos de macumba e candomblé , as batucadas ... ; de origem ‘rural’, as chamadas músicas “regionais” ou “folclóricas”, como cocos, emboladas, caipiras; além de outros gêneros cultivados como a modinha e o lundu , o choro, o maxixe , o samba (tidos como os primeiros gêneros de música nacional) . A música era cultivada em diferentes ambientes da cidade : festas em casas de família , festas públicas nas ruas , teatros, cinemas, circos, cafés , botequins , cervejarias , lojas de artigos musicais , escolas , editoras, estúdios de gravadoras e rádio . Alguns gêneros eram mais populares que outros , e eram apreciados em diferentes grupos e redes sociais . E , na medida em que a indústria do divertimento se desenvolvia , as relações entre indivíduos de diferentes classes e tradições culturais se complexificava . E a música aparecia como significativo canal de integração entre classes , e meio de vida para alguns indivíduos das camadas populares. Em geral os historiadores do samba identificam pelo menos três regiões da cidade onde se cultivava samba: A Pequena África , o Estácio de Sá e Vila Isabel . Não eram guetos mas lugares paradigmáticos de uma cultura musical popular disseminada pela cidade, cultivada em diversos lugares por pessoas de diferentes classes e estilos de vida . Roberto Moura (1995) descreve a Pequena África como uma espécie de diáspora baiana nas cercanias do cais do porto, formada desde o final do século XIX por migrantes baianos , ex escravos e 6 seus descendentes . Os primeiros que conseguiam se estabelecer recebiam os que iam chegando e formou-se uma comunidade unida por tradições comuns , que se organizava em torno dos cultos de Candomblé e grupos festeiros. O autor chama a atenção para a importância e centralidade feminina na comunidade: as tias baianas que organizavam as festas em homenagem aos santos - festas que se profanizavam em música , dança e conversa . Mas o papel masculino era importantíssimo . Hilário Jovino foi um dos homens notáveis na comunidade , sobretudo pela capacidade de organização de ranchos e blocos carnavalescos que, quando saíam às ruas e redondezas da Praça Onze , paravam em frente das casas das tias , numa espécie de reverência e homenagem depois deslocada para a ala de baianas das escolas de samba . As festas das tias baianas eram espaços de sociabilidade onde se reforçavam os valores e a vitalidade criativa do grupo . Em termos gerais essas festas duravam pelo menos três dias com comida , bebida , música e dança: baile na sala de visitas , partido alto nos fundos e batucada no terreiro . Muitas vezes essas festas eram interrompidas por batidas policiais , pois as reuniões populares eram percebidas como desordens . Sérgio Cabral (1996) aponta que a comunidade negra do centro da cidade era menos importunada pelo poder público que as comunidades das favelas e subúrbios , pois configurava uma espécie de elite negra respeitada e prestigiada por segmentos da elite carioca . Este prestígio era fundado no fato de tanto a música , a religião e outros saberes ali cultivados serem reconhecidos como cultura afro-brasileira ; mas também por ser dali , como lembra Roberto Moura no texto já citado, grande parte dos estivadores membros de um dos sindicatos mais organizados da cidade na época. Segundo Cláudia Matos , em princípio as tradições musicais de origem pressupunham a criação e performance coletiva em ambiente de festa. africana no Brasil A integração dessa cultura tradicional sob o rótulo de samba na cultura moderna apresentou o problema da individualidade autoral . O que era manifestação coletiva devia ter a cara de um indivíduo , o sambista, que apareceu identificado com o malandro - figura ambígua , liminar ; fazia a mediação entre um mundo tradicional da coletividade original de criação e performance artística , e o mundo moderno da individualização do artista e instituição da originalidade autoral. Além disso, o samba, no mundo do consumismo , abria uma brecha entre trabalho e lazer . O que era lazer - a batucada, os cantos e danças - poderia ser convertido em um meio reconhecido como legítimo (mas pouco valorizado) de ganhar a vida , limpando um pouco o estigma que pesava sobre o malandro . Samba surge enquanto gênero musical na medida em que se consolida como produto de cultura metropolitana , era uma espécie de ação coletiva integradora de diversas especialidades hierarquizadas: desde a composição e execução musical , à gravação em disco , veiculação nas mais variadas mídias... a 7 produção de samba se deu num processo coletivo de conformação de uma indústria cultural, num sentido mais amplo. O samba , então , não era uma cultura exclusiva dos negros e pobres como é freqüentemente colocado pelo senso comum . Desde seus primórdios integrou não só diferentes especialidades na produção , mas diferentes tradições culturais e diferentes tipos de ethos e segmentos da hierarquizada sociedade brasileira . Almirante, Braguinha , Ari Barroso , Nássara , Orestes Barbosa , Mário Reis , Francisco Alves , Noel Rosa , dentre outros , eram pessoas brancas , de camadas médias e altas que foram importantes personagens não só como compositores , parceiros e intérpretes , mas também como críticos , arranjadores , produtores e cronistas do mundo do samba ; pessoas que , no papel de mediadores , de certa maneira contribuíram para o alargamento das fronteiras dos grupos apreciadores do gênero . Hermano Vianna (1995 ) chama a atenção para a pouco valorizada participação da elite branca na cultura musical e “invenção” ou ascensão do samba à música nacional , signo da autenticidade mestiça da cultura brasileira . O ponto de partida para suas reflexões é um fragmento narrativo de Gilberto Freyre se regozijando de um encontro dele , Sérgio Buarque de Holanda , Heitor Villa Lobos e outros representantes da elite intelectual brasileira com Pixinguinha , Donga e outros personagens da elite musical negra já mencionada por Sérgio Cabral. O autor observa que , se por um lado o samba foi duramente perseguido e marginalizado , por outro lado também foi prestigiado e promovido por segmentos da elite nacional e estrangeira . Seria este , talvez , o desvendar do mistério do samba : não houve uma promoção súbita de música marginal de negros à música nacional , como aparece na história contada no senso comum. E delineia pelo menos duas tendências explicativas nas ciências sociais para essa mudança na qualidade do samba: uma delas afirma que o gosto pelo samba transcendeu o ethos original de produção e passou a ser cultivado também pela elite e camadas médias - um exemplo de cultura popular que se difunde . A outra tendência enfatiza a ascensão do samba à música nacional como meio simbólico de dominação das camadas populares pelas elites - a elite incorpora o samba como cultura oficial , minando seu potencial de cultura alternativa ou subversiva . O autor não nega o poder explicativo dessas duas perspectivas e procura explorar outra possibilidade de compreensão : a que relaciona a ascensão do samba com o movimento de idéias e configurações políticas ( da primeira metade deste século num contexto mundial ) em torno da invenção e definição de culturas autênticas e identidades nacionais . E assim , ao longo de suas reflexões, podemos vislumbrar as motivações de Gilberto Freyre em comparecer àquele encontro . Além da participação das elites e das camadas populares, o Estado, através de políticas culturais também foi de fundamental importância para a consolidação do samba como música nacional. Oliven 8 assinala que durante o Estado Novo - governo de tendência populista e totalitária - a perspectiva crítica desenvolvida com o tema da malandragem foi ostensivamente censurada pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda - órgão do governo para intervenção na produção cultural) , que, então , promovia sambas de exaltação ao trabalho e ufanismo nacional . Surge neste contexto a figura do malandro regenerado - que por amor à mulher ou mera convicção abandona a malandragem e se integra à economia formal como trabalhador . Assim , nem todas as formas de samba foram e têm sido prestigiadas e valorizadas na simbologia nacional . Algumas formas foram e têm sido eleitas , estimuladas e manipuladas politicamente em detrimento de outras . Segundo Oliven, com a censura imposta pelo Estado Novo, o samba de temática malandra teria perdido em qualidade crítica e vitalidade criativa . E o samba O Bonde de São Januário , de Wilson Batista - um renomado sambista malandro - é paradigmático desse empobrecimento criativo acarretado pela cooptação do sambista pelas políticas de Estado . De acordo com o autor , não obstante a temática do horror ao batente nunca ter sido abandonada, sendo logo restaurada no governo subsequente ao de Vargas , o malandro no samba perdeu o glamour - a malandragem já não era uma via alternativa ao trabalho , mas a capacidade de sobreviver trabalhando . Entretanto , Cláudia Matos coloca que apesar da perda do glamour do malandro enquanto personagem dos sambas , a malandragem enquanto linguagem do samba ganhou vitalidade com a censura do DIP , e menciona o mesmo samba de Wilson Batista citado por Oliven , O Bonde de São Januário , que na letra oficial gravada dizia que carregava “mais um operário” , mas na letra popularizada dizia que carregava “mais um otário” , como exemplo dessa vitalidade, criatividade e capacidade de burlar a ordem oficial . Segundo a autora , essa linguagem malandra é caracterizada pela ambigüidade , ironia , duplo sentido e uso de códigos e gírias pouco conhecidas pelo grande público . E assim , não obstante os esforços produção musical) (levados a cabo por políticas de intervenção do Estado na de desvincular o samba - então legitimado como música nacional - da ética da malandragem de recusa ao trabalho , a malandragem se consagrou e se perpetuou , não só como linguagem no samba , mas também como uma espécie de ética difusa significativa de um etos ou caráter nacional 3. Para Roberto da Matta ( 1983 e 1986) a malandragem não é apenas uma mitologia , um folclore , ou estratégia de sobrevivência das classes populares , mas uma espécie de ética corrente na sociedade 3 Uma imagem ao mesmo tempo recusada e cultivada pelos brasileiros , e que tem ícones na cultura transnacional de massa , como o Zé Carioca , um papagaio malandro criado pelos Estúdios Disney, após a Segunda Guerra, como um dos artifícios de integração brasileira ao American way of life . . 9 brasileira . A malandragem seria uma possibilidade dentro do dilema brasileiro - uma articulação peculiar da ideologia individualista e a rígida hierarquia social . Para este autor , no Brasil há uma incoerência entre a regra jurídica e a prática cotidiana . E a malandragem é “um modo de navegação social” que oscila entre um projeto nacional baseado em leis universais que tem por sujeito o indivíduo , e situações cotidianas , onde cada um se resolve como pode , apelando para as relações pessoais . Ao lado do personagem malandro, e interagindo com ele , há o personagem caxias - representante do mundo racional , que valoriza o trabalho . O malandro manipula o mundo , tenta vencer sem fazer força - “É um papel social que está a nossa disposição para ser vivido com certa classe ou jeito” ( R. da Matta , 1986 ) . Na perspectiva de Alba Zaluar ( 1994 ) , a malandragem rotinizou-se . E o malandro - o verdadeiro malandro , da ginga , do morro , que atua nas brechas sem ser necessariamente um agente do mal - se deu mal , aposentou-se ou foi trabalhar na indústria cultural ; e quem se deu bem foi o malandro federal 4. Nesse contexto outro personagem surgiu : o bandido - sinistro, destrutivo ; um soldado da indústria do crime que se entrega ao jogo do matar e morrer... seduzido pelo poder da arma de fogo e pelo dinheiro do tráfico de drogas . O sertão e a roça - mediação e gêneses musicais Sem suplantar a hegemonia do samba outros gêneros extremamente significativos apareceram na primeira metade do século XX . Por um lado o baião e a música caipira funcionaram como entretenimento, novidade, para as massas consumidoras. Por outro lado, foram didáticos na medida em que trouxeram, estilizadas, as especificidades culturais de diferentes regiões para o “campo de visão” de grande parte da nação (até onde os meios de comunicação de massa alcançaram), contribuindo para uma reavaliação funcional da categoria sertão. Nesse sentido, o baião favoreceu a auto-estima do imigrante nordestino nas cidades do sul, onde geralmente ficava subordinado à condição de assalariado mal pago e perseguido pelo estigma de “nortista”,“pau de arara” , miserável e atrasado5. E abriu novos caminhos para o músico nordestino nos centros urbanos. 4 Neste texto a autora faz referência à música Homenagem ao Malandro ,de Chico Buarque de Holanda . A música fala que o malandro glamuroso dos anos 20 e 30 já não existe mais ; foi substituído pelo malandro federal, funcionário público de médio e baixo escalão , que é corrupto , rouba a nação e fica impune . 5 Sobre classificações estigmatizantes relacionadas aos migrantes nordestinos no Rio ver Morales, Lúcia 10 O mundo da música caipira já vinha se configurando, a partir de São Paulo, a pelo menos uma década quando o baião estourou no Rio,no final dos anos 30, duas décadas depois da gravação de Pelo Telefone. A música caipira , já vinha favorecendo a imagem dos migrantes provenientes da zona rural do centro sul do país; também condicionados à condição de assalariados e perseguidos pelo estigma de indolentes, inocentes, atrasados. E desde sua gênese vem movimentando uma gigantesca indústria de produção de bens simbólicos, integrando diferentes segmentos sociais ao mercado. No processo de consolidação do baião, Luiz Gonzaga foi uma figura fundamental, um mediador cultural que transitou em diferentes mundos, articulou diferentes categorias profissionais, pessoas e domínios, catalisando um movimento. Na consolidação da música caipira, o mediador por Personalidade excelência foi Cornélio Pires. muito curiosa, misto de empresário e artista, foi um dos mais personagens na indústria do entretenimento no centro sul importantes do Brasil, e um dos principais divulgadores da cultura caipira no panorama da cultura de massa de bases nacionais, desde os anos 20. Produzia discos de músicas caipira, programas de rádio e shows,agenciava artistas e promovia caravanas de artistas que percorriam a vasta região rural pontilhada de pequenas e médias cidade. Tinha o patrocínio de empresários e empresas com produtos no mercado dispostos a associarem suas marcas a visões de mundo específicas, para atingirem determinados públicos alvo . Logo gravadoras multinacionais como a a Vitor, a Columbia e Odeon viriam compartilhar o mercado próspero e aberto pelo pioneiro. Em conformidade com alguns pesquisadores como Waldenir Caldas( 1979) e Rosa Neponuceno ( 1999) a música caipira nasceu como gênero urbano, com referência às matrizes do universo do folclore; como os cantos de trabalho, cateretês, lundus, batuques e congadas, modas e rasqueados de viola, cantos de aboio...Caracterizada pela dupla que canta em terças, conta causos ou duela em repentes, sob acompanhamento de violas de 10 cordas - geralmente. A música caipira nasceu com limitações formais e temática dadas pelos veículos de difusão e o gosto citadino, e sem as prerrogativas de pressupor a criação coletiva e o anonimato autoral que marcam a produção cultural no domínio do folclore. (1993). 11 Trazia para a cidade a nostalgia do cotidiano em mundo agro-pastorial, articulando um discurso crítico ao modo de vida moderno das cidades grandes através da exploração da comicidade que podem ter as situações de desajuste do migrante na cidade. Apresentava um perfil diferente do “ ... perfil ridicularizado do Jeca Tatu, traçado por Monteiro Lobato, ...” (Neponuceno 1999). Assim, mundo caipira e mundo da cidade apareciam como lugares simbólicos demarcados que não eram exatamente correlatos a espaços geográficos. O sentimento e visão de mundo caipira não se perdem quando, na cidade, o imigrante canta o desejo de volta e o arrependimento de ter migrado. Embora “representando a roça” a música caipira era música produzida e difundida a partir de São Paulo. Do mesmo modo, embora “representante” do sertão nordestino, o baião era música feita na cidade, no Rio de Janeiro, por nordestinos de camadas populares e médias imigrados para o sul, que se integraram a certas redes do mundo da música, das instituições e profissionais da indústria cultural, e da política oficial. E atingiram as massas, num movimento interessante de invenção de mais um gênero no panorama da música popular urbana no Brasil. Maria S.Vieira (1999) observa que, até os anos 20, sertão era signo de algo distante, não civilizado, com índios, sertanejos e feras soltas numa vastidão inóspita e indomada natureza; diferente da roça domesticada e pacata cantada na música caipira - também regional e muitas vezes também chamada de sertaneja. A partir dos anos 20 o sertão passou por vários processos de novas significações, em “impulsos domesticadores”(Pimentel,S. 1998) ou movimentos na música, na literatura, ciências humanas, artes plásticas e artes cênicas (Vieira,M.S 1999)...A imagem de sertão, amplamente divulgada no senso comum urbano da época, era a do atraso, da miséria e desolação; da expulsão do sertanejo para a cidade que paulatinamente ficava populosa, se tornando inóspita também, devido à imigração. E a música e imagem de Luiz Gonzaga, e das duplas caipiras trouxeram outras cores para este quadro. Vieira (op.cit.) observa que nas músicas que compôs, em parcerias, ao longo de sua carreira, Luiz Gonzaga fala de um sertão pobre e inóspito que expulsa o homem de lá; mas também de um sertão que deixa saudade no migrante esperançoso de um dia voltar. E se por um lado existiam algumas músicas formalmente dramáticas e tristes, por outro, existiam aquelas que falavam de um cotidiano rico de situações sociais e tipos humanos, e da felicidade que as chuvas 12 traziam; e da saudade. E sobressaíam as músicas alegres, com rítmos e letras sensuais que convidavam todos à dança e à festa. O baião, nesse sentido, apareceu como um lugar de sociabilidade entre migrantes e nativos, contribuindo para que os imigrantes elevassem a auto-estima em um contexto social onde eram discriminados de várias formas, o que gerava dificuldades sérias para uma integração social satisfatória6. Signos estigmatizantes, então evocados, como o sotaque, a cabeça grande e redonda - em forma de lua cheia - ganhavam um valor positivo na voz e figura de Luiz Gonzaga - o carismático e alegre Lua. O ano de 1948 foi marcante, pois, influenciado por Pedro Raimundo, um famoso acordeonista regional que se vestia como um típico gaúcho, Luiz Gonzaga resolveu se apresentar com chapéu de couro usado no sertão nordestino. Anos antes o alagoano Jararaca e o pernambucano Ratinho se apresentavam com esse tipo de chapéu, mas o substituíram pelo chapéu de palha - que , de certa maneira, tem uma conotação relacionada à roça, à música caipira do centro sul; embora no sertão também se use chapéu de palha. Bem, o chapéu de couro usado no sertão pelo cangaceiro, boiadeiro e sanfoneiro, foi parar na cabeça de Luiz Gonzaga. E ele encontrou resistência nas casas de shows e estúdios de rádio, mas se impôs e se apresentava de terno, gravata e o chapéu. Em 1952 passou a se apresentar vestido de cangaceiro - um signo que ele elegeu para sua nordestinidade. A figura do cangaceiro também era um signo reconhecido da cultura sertaneja e era divulgado através da arte popular - como os textos e xilogravuras dos cordéis, a arte no barro de Mestre Vitalino ... - e também foi um tema bem explorado pela indústria cultural: jornais, revistas, literatura e cinema brasileiro. O cangaço fascinava pela ambigüidade. Por um lado a dimensão da bravura e valentia, da capacidade de sobrevivência em ambiente natural inóspito...; por outro a truculência, violência e marginalidade...derivaram em estéticas e poéticas várias... E por algum tempo Luiz Gonzaga posou de Lampião, com chapéu de couro, gibão, cinteiro de munição e armas...Mas antes que o fascínio se desgastasse, e o lado bandido e sisudo do cangaço ofuscasse o glamour, Luiz Gonzaga se desarmou, abriu o sorriso (uma das suas marcas registradas); e o chapéu e o gibão ganharam ênfase como signos do vaqueiro e do sanfoneiro, também figuras típicas da cultura que pretendia representar. 13 Sobre autoria e anonimato Na história oficial a casa de tia Ciata é considerada o berço do samba , por ter saído dali uma das primeiras músicas gravadas como samba : Pelo Telefone , de polêmica autoria e letra reivindicada por Donga , filho de uma tia baiana e freqüentador da casa de Tia Ciata . Mas, como observa Roberto Moura , o samba naquele contexto não era tanto um gênero de música mas uma designação genérica para as festas das ruas e das tias . “No samba se batia pandeiro, tamborim, agogô , surdo, instrumentos tradicionais que iam se renovando , confeccionados pelos músicos ou com o que estivesse disponível : pratos de louça , panelas, raladores, latas , caixas , valorizadas pelas mãos rítmicas dos negros . As grandes figuras do mundo musical carioca , Pixinguinha , João da Baiana , Heitor dos Prazeres , surgem ainda crianças naquelas rodas , onde aprendem as tradições musicais baianas , a que depois dariam uma forma nova , carioca.” (R .M., 1995 :103) . A polêmica do samba Pelo Telefone é paradigmática da tensão entre individualidade autoral moderna e criação coletiva tradicional na esfera do samba De acordo com as pesquisas de Roberto Moura , o motivo melódico deste samba foi retirado do folclore , e era cantado como partido alto aberto a improviso na casa de Tia Ciata . Donga deu um desenvolvimento formal definitivo e , com letra do jornalista Mauro de Almeida, registrou na Biblioteca Nacional em novembro de 1916 , sem mencionar parceiros . A letra criticando as relações da polícia com o jogo , então proibido , não foi a registrada [ o chefe da polícia / pelo telefone / mandou avisar / que na carioca / tem uma roleta/ para se jogar /...] , mas foi a que se popularizou no carnaval daquele ano . Depois do registro de Donga , várias outras partituras com diferentes letras foram registradas por diferentes autores . O caso rendeu um conflito entre Donga , Tia Ciata , Hilário , Sinhô e outros que criticaram Donga por querer aparecer sozinho como autor de algo que teria sido feito na comunidade . 7 O fato é que , no processo de instituição do samba enquanto gênero que ia sendo valorizado no mercado de entretenimento , podemos observar uma tensão entre a criação coletiva e uma tendência à individualização autoral . Essa tensão proporcionou o desenvolvimento de 6 7 Sobre integração e identidade do nordestino no Rio de Janeiro ver Morales, Lúcia(1993) Ver também Almirante ( 1977) 14 associações diversas entre produção e veiculação da música popular . E a parceria se constituiu como uma das práticas mais comuns e complexas. Parcerias eram compradas , dadas e extorquidas , e muitas vezes o nome do verdadeiro compositor nem aparecia nos registros. Cláudia Matos coloca que a compra e venda de sambas e parcerias era prática corrente e bem aceita pelo compositor e pelo parceiro que fazia negócio, não aparecendo como uma deformação do direito individual ; talvez porque a individualização do autor não estivesse ainda bem enraizada na cultura do samba. Mas não obstante uma certa tendência ideológica em privilegiar o indivíduo autor , o samba enquanto gênero musical , produto de cultura metropolitana , era uma espécie de ação coletiva integradora de diversas especialidades hierarquizadas: desde a composição e execução musical , à gravação em disco , veiculação nas mais variadas mídias... a produção de samba se deu num processo coletivo num sentido mais amplo . Assim como a polêmica surgida com a gravação de Pelo Telefone , a polêmica em torno de Asa Branca também é paradigmática da tensão entre autoria individual / criação coletiva que se observou na gênese dos gêneros reconhecidos como nacionais. Em março de 1947 Luiz Gonzaga lançou um disco de 78 rotações por minuto, com as músicas Vou Prá Roça e Asa Branca, em parceria com Humberto Teixeira. Dominique Dreyfus observa que “como grande parte das melodias que Gonzaga trouxera para suas parcerias, Asa Branca fazia parte do repertório tradicional do sertão. Ele sempre ouvira seu pai tocar essa música no fole, inclusive até cantarolar: Asa branca foi se embora , bater asa do sertão, larará não chore não...O povo escutava e ia improvisando, completando a letra a partir do mote dado por Januário... na vez seguinte ninguém se lembrava exatamente da letra, então fazia outra, em cima do que recordava da antiga. A música crescia, evoluía sem eira nem beira e sem dono. Naquelas bandas não havia história de autoria, música era propriedade coletiva (...) No sertão também música era como passarinho8. A música que Gonzaga queria divulgar pelo Brasil todo era aquela que ele ouvira durante toda a sua infância, eram as melodias que aprendera de Januário, nos forrós do sertão, nas noitadas do Araripe, nas festas de São João... músicas que pertenciam a todos e a 8 Referência à frase de Sinhô sobre a questão da autoria no samba:“Samba é que nem passarinho, é de quem pegar”. 15 ninguém. Ele nunca escondeu o fato de ter se utilizado amplamente esse material ” (Dreyfus 1996:120 / 121). E Luiz Gonzaga, em depoimento dado ao Museu da Imagem e do Som e citado no texto de Dreyfus, coloca: “Quando eu quis lembrar das coisas que tocava quando era menino, para Humberto Teixeira botar letra, eu tive dificuldade, não me lembrava muito. Até que toquei Pé de Serra , Juazeiro, Asa Branca. E Humberto me perguntava: Mas isso é seu mesmo? E eu só vim a tomar conhecimento dessa coisa , que quando você inventa uma música no fole ela é sua, aqui no Rio de Janeiro (...) Aproveitei muito do folclore nordestino. Mas aí não se deve tropeçar; deve ter cuidado de dar uma nova vestimenta, aproveitando só aquilo que a gente sente que foi feito com a imagem do povo. Se você der uma vestimenta digna e lançar um produto seu, não acontece nada com você. É muito comum o pessoal falar: ‘Ah , mas esse sucesso de fulano eu conheço desde menino’. Isso existia mesmo, mas, e o resto? a nova letra? Ao mesmo tempo é necessário que se faça um trabalho sério em cima disso. A pessoa não deve matar o tema, deve melhorá lo. Asa Branca era folclore. Eu toquei isso quando era pequeno com meu pai. Mas aí chega Humberto Teixeira e coloca: “Quando olhei a terra ardente /qual fogueira de São João...”e se conclui um trabalho sobre Asa Branca. Agora, depois disso eu vou botar ‘tema popular’? ou ‘recolhido’?, ‘pesquisado por Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga’? Aí tudo quanto é vagabundo vai ser dono também ? Não cantando com a nossa letra , mas cantando com uma letra fajuta, pra pegar sucesso. Aí nós pegamos o tema, Humberto e eu” (citado em D.Dreyfus,po.cit.:120/121). Asa Branca foi um grande sucesso, e de alguma maneira levantou polêmica em relação às questões de autoria - questões relativas à apropriação do coletivo pelo indivíduo semelhantes as levantadas pelo samba em seus primórdios. E a polêmica não ficou só em torno de Asa Branca, durante toda sua carreira, Luiz Gonzaga reconheceu ter se inspirado no ‘folclore’ do nordeste aprendido com o pai na infância e em sua vida de viajante. Anos mais tarde houve tensão com a família, que reivindicou parte de direitos autorais para Januário - o sanfoneiro do sertão, fonte de inspiração para seu filho Luiz Gonzaga e seus parceiros. A questão da autoria também foi problematizada em episódios de tensão com alguns parceiros, sobretudo Humberto Teixeira e Zé Dantas, que reivindicaram autoria exclusiva para músicas que Luiz Gonzaga gravou como sendo de parceria. 16 No caso do samba, era muito comum o intérprete aparecer como autor sem ter participado da composição, e também era muito comum a venda de parcerias. Mas no caso do baião, quando Luiz Gonzaga não participava efetivamente da elaboração da música, dava ao parceiro o tema, a linha melódica e o ritmo que deveriam ser explorados; de modo que, mesmo tendo participação indireta, considerava-se autor. Não há uma fórmula para a expressão ou para a solução das tensões que envolvem a atribuição do estatuto da autoria no mercado musical de massa. E a questão da autoria, juntamente com a questão da autenticidade aparecem como complexos dilemas constitutivos de características intrínsecas à cultura de massa. Pagode e sertanejo - sobre canções de amor Pagode - além de significar festa com samba - é um rótulo de mercado cunhado pela mídia, e fugazmente incorporado na linguagem popular carioca durante os anos 94 e 95, para um certo tipo de samba - um pagode relacionado a uma identidade nacional. O tipo de samba não estava surgindo naquele momento mas foi dada uma atenção maior ao gênero, houve uma ampliação do mercado consumidor e novas oportunidades surgiram para os artistas deste mundo. Desde então o pagode está no topo das paradas de sucesso; um desses grupos, segundo a revista Veja, vendeu 1,6 milhão de cópias do disco lançado em 1995, batendo a vendagem de Roberto Carlos - o rei da música romântica, campeão de mercado. A quantificação do sucesso na cultura de massa é impressionante: a “música de trabalho” desse disco de pagode chegou a tocar 690 vezes em uma semana nas rádios da cidade de São Paulo.9 A consolidação do pagode foi numa época de copa do mundo de futebol (1994), e transição para um governo social democrata que prometia um “Brasil novo” após o governo Collor - cuja trilha sonora foi a “música sertaneja romântica”. Era um momento de valorização dos símbolos nacionais e elevação da auto estima do ser brasileiro. Entre outras representações midiáticas da época, uma me parece bem significativa: a peça publicitária de um patrocinador da copa na TV: “Guaraná Antártica10 - uma paixão nacional como o pagode e o futebol”. 9 “Jovem Guarda Negra” - revista Veja, 22 de maio de 1996. Ed. Abril. 10 O mesmo guaraná que aparece como signo nacional no discurso “surrealista” de Assis Chateaubriand ,quando 17 O pagode, então, é um sub-gênero bastante específico de samba, e é executado por grupos de vários integrantes. No Rio de Janeiro ouvi em tom pejorativo os rótulos “samba de paulista” e “samba de corno” para esse tipo de samba. Mas não obstante o tom pejorativo da rotulação, esse tipo de samba foi e é amplamente consumido por vários segmentos cariocas, em vários contextos cotidianos. Os nomes dos grupos são bastante curiosos: Razão Brasileira, Só Preto Sem Preconceito, Só Prá Contrariar, Raça Negra, ... Apesar de nomes sugestivos de temáticas sócio políticas , o pagode fala de amor, desejo e ciúmes em relações heterossexuais. Pagode é, portanto, um determinado tipo de samba que se intercepta com um gênero de canções com fronteiras mais fluidas: o gênero canção de amor. O pagode fala de um determinado tipo de amor: a paixão entre homem e mulher. O amor no pagode aparece como paixão configurada de uma maneira bastante semelhante a observada por Gilberto Velho (1986), em um ethos geracional bem definido. Segundo o autor, a paixão seria uma crença ou aceitação da possibilidade da irrupção do irracional na vida dos indivíduos, que mobiliza o que há de mais profundo e íntimo... uma experiência individual forte e dramática que tem no sofrimento um fundamento pedagógico. “A paixão é a presença do extraordinário que penetra o cotidiano, transformando-o. É representada como uma espécie de iluminação, há algo mesmo de mágico.” (V., op.cit.: 95). Entretanto, o autor coloca que a paixão pode ser mal recebida, perigosa, nociva ou inadequada, e é necessário domesticá-la, sob o risco da perda total de controle sobre o self. Nesse sentido a paixão é ambígua: por um lado é uma expressão sensível da individualidade ; por outro , rompe a ordem do mundo - na radicalidade é anti-social. Não quero e não posso afirmar que o universo pesquisado por Gilberto Velho tenha alguma relação com o mundo do pagode. Idealmente o mundo do pagode está relacionado às camadas populares, e não às camadas médias e altas pesquisadas pelo autor em um tempo histórico bem definido. Entretanto, se estamos tratando de grupos contextualizados em uma mesma sociedade complexa, devemos levar em conta que os vários grupos se inter-relacionam e que existem diferenças, mas também convergências de sentidos cultivados entre eles. O da inauguração da TV Tupi, a primeira emissora de TV no Brasil.( ver R.Ortiz: 1989 ). 18 interessante aqui é evidenciar a convergência na percepção da paixão como magia - um estado alterado de consciência - e marcar as expressões da paixão através do canto. J.Jorge Carvalho (1994) observa que “os gêneros musicais criados para a canção de amor variam, assim como variam os estilos de amor”; trata-se de um gênero inesgotável - tem para todos os gostos, para todos os jeitos de amar. Nesse sentido a canção de amor seria um lugar privilegiado para a observação da criatividade cultural em torno do afeto. O autor coloca que, em geral, as canções populares de amor são “simples, elementares, fáceis de cantar, pobres harmonicamente, repetitivas melodicamente, cheias de lugares comuns musicais; os textos em geral apresentam rimas pobres, imagens batidas, termos reiterados obsessivamente - e, apesar de tudo isso, a canção romântica se impõe sempre e opera o milagre de tocar a emoção das pessoas”. A canção romântica proporciona a possibilidade de se escapar da “aridez afetiva” em que vivemos; são “cantos que embriagam como drogas, poemas individuais a disposição do afeto - vias de educação sentimental (grifo meu ) ...” A eficácia simbólica da canção de amor depende da adesão, da coincidência entre o sentimento que se tem e aquele que a canção descreve. Ele identifica pelo menos dois tipos ideais de amor encontrados nas canções da música popular brasileira: o amor romântico e o amor cortês - que se diferenciam, se combinam e se confundem em uma infinidade de estilos musicais. J.Jorge Carvalho nesse texto se detém no gênero sertanejo - um gênero de canção de amor romântico que fala do abandono e sofrimento 11 - chamando a atenção para a ênfase no erotismo, na destruição das convenções que determinam o distanciamento respeitoso típico do amor cortês - construído por “armadilhas retóricas” que protegem a corporeidade do ser amado. Na canção sertaneja o amor é construído na concretude, na materialidade: “A carnalidade é o ponto de fuga para onde convergem todas as utopias almejadas pelo amor romântico (...) a dimensão última que é também a primeira, sublime, e baixa ao mesmo tempo.” É interessante mencionar que o que o autor chama de música sertaneja não é exatamente a música sertaneja, mas um tipo bastante específico dentro desse gênero. Como tem sido 11 O autor coloca que as canções de amor romântico podem explorar o sofrimento e abandono ou a harmonia, entusiasmo e leveza 19 colocado ao longo deste texto, os rótulos para gêneros musicais têm significados diversificados em cada contexto. Na década de trinta, no contexto metropolitano brasileiro, músicasertaneja designava o conjunto de músicas do “distante sertão”, músicas do folclore rural nostalgicamente revividas na cidade: cocos, emboladas, fandangos, modas de viola... No decorrer da história a música do sertão Norte/Nordeste do Brasil deixou de ser rotulada de sertaneja, e ganhou o rótulo forró; e a música do sertão Centro/Sul permaneceu com o rótulo música sertaneja ou caipira. Waldenyr Caldas ( 1977) em pesquisa sobre a história do gênero procedente da região Centro/Sul, coloca que tratou-se da história da conformação de um ícone na cultura de massa uma representação musical de uma dada realidade rural à disposição do mercado das grandes cidades. O gênero foi caracterizado por alguns traços básicos: a dupla de violeiros cantando em terças e personificando o matuto ou caipira; o rasqueado de viola; e a temática rural. No momento da sua pesquisa (meados da década de setenta), o autor observava algumas transformações no mundo da música sertaneja - uma dinâmica que ele identificou como “perda da autenticidade”, já que não tratava mais da cultura rural, mas de temas urbanos: carros, amores... Da música caipira “original” ficou apenas a dupla cantando em terças. Os arranjos passaram a ser feitos para instrumentos elétricos, e a indumentária dos artistas lembrava mais a dos cowboys americanos que a dos matutos ou caipiras. Sidney V. Pimentel (1997) observa que, na década de oitenta, a tendência observada por W.Caldas se confirmou de uma maneira muito particular. O repertório romântico foi cada vez mais privilegiado e a música sertaneja veio a ser um importante elemento de caráter nacional/local do transnacional “movimento country” difundido a partir dos Estados Unidos, nos anos cinqüenta. No canto sertanejo romântico observado por J.J.Carvalho as dimensões do afeto e da carnalidade estão implícitas uma na outra. Nas letras de pagode encontrei, no limite, uma dissociação entre essas dimensões. Existem letras românticas que poderiam ser transpostas para o gênero sertanejo com simples modificações de arranjos musicais, e essas transposições são de fato feitas. Mas também existem letras onde o afeto não se consuma na relação sexual, e letras onde nem sempre é o afeto o motivo da relação sexual evocada. No limite podemos observar letras que mencionam extrema violência e preconceito em relação à mulher...numa confusão entre machismo e misoginia. 20 Sobre autenticidade e consumo personalizado Os gêneros musicais que evocam identidades coletivas específicas não são de produção e consumo exclusivos a certos segmentos ou etos com alguma relação mais objetiva com o suposto lugar de orígem da expressão músical; e as identidades sociais relacionadas aos gêneros musicais não se limitam às representações dos grupos sociais de onde emerge a produção. Uma vez no mercado, as expressões de musicalidade são postas, potencialmente, ao alcance de todos e de cada um; do gosto mais ou menos eclético, sempre particular - e do capital - de cada indivíduo. Enquanto objetos de consumo, os gêneros musicais correm o risco de terem sentidos imprevisíveis. Por mais cuidadosas que sejam as estratégias de marketing, e previsíveis os gostos da massa, nunca se sabe ao certo que tipo de significados ou usos podem ser dados a um certo produto. Para jovens funkeiros das periferias cariocas, por exemplo, o baião pode não significar nada, ou algo muito vago relativo a música do nordeste. Já para os jovens cariocas apreciadores de forró, tem outro sentido - um clássico, referência do “autêntico forró pé de serra”; sentido por sua vez distinto do sentido dado por indivíduos migrados do nordeste para Rio trinta ou quarenta anos atrás.... Assim, um mesmo bem de consumo pode ocupar distintas posições nas diferentes visões de mundo dos muitos etos; e um gênero musical pode se aproximar mais ou menos de uma visão de mundo compartilhada por indivíduos de diferentes tipos de etos e se tornar ícone de identidade coletiva. Mas isso não quer dizer que os indivíduos de um mesmo etos devam necessariamente cultivar exclusiva e homogeneamente o gênero musical signo de identidade coletiva. A atitude dos indivíduos urbanos frente aos gêneros musicais é bastante complexa, diversificada e fragmentada; pois os indivíduos potencialmente transitam e fazem mediações entre mundos culturais distintos, conformando trajetórias específicas. Por um lado em certas dimensões da vida social o cultivo da especificidade do gosto - 21 a seleção particular de gêneros cultivados - é elemento reconhecido como fronteira de personalidades individuais em um mesmo etos. Mas a liberdade de escolha é paradoxalmente limitada e condicionada pela posição que o indivíduo ocupa em um grupo, e pela posição que o grupo ocupa na hierarquia social da cultura abrangente. E, não obstante a intensa criação de novidades para o mercado, a mídia oferece códigos para a inteligibilidade diferenciada - uma espécie de pedagogia para o consumo de massa. Assim existem consensos estabelecidos que têm certa duração e que possibilitam que o bem esteja à disposição de um mercado eclético segmentado e permanente. Então, existem dimensões da vida social em que o pertencimento a um grupo definido é o mais relevante na definição de identidade, e podemos observar a seleção, imposta ou eleita, de um ou alguns gêneros como signos de identidades coletivas. Desse modo, nos ambientes urbanos não é impossível encontrar um jovem que, na adolescência, freqüentava bailes funk junto com sua galera, mas também curtiu heavy metal; e hoje é cavaquinista em grupo de choro, ou apreciador de pagode, de forró, de música baiana, de música erudita... de MPB... Tudo ao mesmo tempo, ou cada gênero a seu tempo, conforme as ondas lançadas e relançadas pela indústria fonográfica, e as fases de sua trajetória. E não seria de estranhar que o adolescente funkeiro mencionado acima, além de todos os gêneros musicais que possa, potencialmente, estar cultivando, possa também participar, compondo ou cantando na folia de reis de sua vizinhança. Posto que, não obstante o fato da cultura de massa e folclore serem sistemas culturais distintos, que envolvem códigos cultuais, visões de mundo, atitudes e processos relacionais distintos, é possível que possam coexistir em um mesmo contexto social, e haver trânsito de indivíduos e de símbolos entre um e outro sistema. De maneira esquemática podemos definir folclore como conjunto de fatos culturais produzido independentemente da lógica de mercado, por uma lógica externa à lógica da cultura de massa, e regida por determinações outras que não o mercado: 22 parentesco, aliança e vizinhança, fé e devoção, festa e celebração... A música nesse domínio é feita entre o povo marcando os ritmos da vida em escalas mínimas, pontuais no aqui e agora - a partir de matrizes simbólicas mais gerais. Como os mitos que só se realizam em versões bem específicas e localizadas. O folclore, de maneira ideal e didática, outra dimensão de realidade que se opões à cultura regida pelo mercado. É a não cultura de massa, embora seja praticado por centenas de milhares de pessoas no tempo e no espaço. Na cultura de massa a música é objeto produzido por uma indústria cultural altamente complexa em estrutura e representações voltadas para o consumo em larga escala, por público segmentado. Há trânsito entre os dois planos de realidade, que normalmente coexistem em diferentes intensidades. Na ponta de produção de um sucesso podem estar músicos e matrizes simbólicas do universo do folclore. E os repertórios e personagens da cultura de massa podem inspirar a produção no folclore. Mas os dois domínios culturais não se confundem: o Cálix Bento cantado em uma folia de reis, em uma localidade mineira, em um determindado ano que o político tal deu uma bandeira nova e promoveu um bom lanche, em termos analíticos pode ser análogo ao Cálix Bento cantado em uma folia do interior de São Paulo dez anos mais tarde, quando um dono de fazenda recebeu a folia e deu um banquete.. Mas não é a mesma coisa, nem está no mesmo plano de análise que o Calix Bento gravado por Milton Nascimento na década de setenta do século vinte, e escutado tal como foi gravado 20, 30 anos depois por público de diferentes segmentos. Na dimensão da cultura de massa - ou mercado de bens - os gêneros vão sendo criados, apropriados e reinventados constantemente ao sabor da história, no desenrolar das conjunturas sociais. O universo é rico em invenções, fusões, tradições e novidades. E o jogo de identidades daí derivado é complexo. Ao observar a dinâmica no mercado tradicionais em questão, podemos ver recente dos gêneros nacionais um complexo de clivagens, definições e fronteiras que constituem diferenças no interior dos gêneros musicais tais como baião, forró, música caipira, sertaneja e sertaneja country, samba e pagode. 23 Não obstante as profundas diferenças entre estes mundos musicais, existe uma espécie de clivagem interna a eles que obedece um princípio comum. Isto é, entre os habitantes destes mundos, músicos e apreciadores, corre um discurso sobre o que é música autêntica e o que é música comercial. O “samba verdadeiro” que se opõe à música dos pagodeiros; a autêntica música caipira em oposição à música country; o forró pé de serra que se opõe ao forró eletrificado e açucarado muito em voga neste princípio de século XXI. A noção de autenticidade cultural perdura desde o romantismo para estabelecer distinções na produção cultural12. Entretanto, no contexto que estamos observando a questão é colocada de maneira diferente da forma como é tratada por intelectuais românticos ou influenciados por T. Adorno (1980). A distinção observada não se estabelece entre o produzido em massa e o folclore, ou entre a cultura pop e a cultura clássica européia; mas em relação a tipos de músicas de qualidade diferenciada produzidas dentro da cultura de massa. Uma idéia que estabelece fronteiras no interior dos mundos musicais, e obedece à tendência de segmentação de mercado. Assim, dada a complexidade da cultura musical nas sociedades contemporâneas, um dos desafios do pesquisador de música popular, me parece, é a busca da especificidade de cada gênero, e, a partir de comparações, a busca do sentido de cada um num conjunto de gêneros musicais de um dado contexto. Nesse sentido, um paralelo entre pagode, sertanejo e forró (gêneros cujas origens históricas são nacionais) pode, em princípio, ser feito nos seguintes termos: Assim como o samba cantado por sambistas como Bezerra da Silva (partido alto), a música caipira de Tonico e Tinoco e o baião de Luiz Gonzaga são elaborações culturais que refletem certas realidades sociais específicas de um tempo e espaço da sociedade brasileira. O sambista Bezerra da Silva traz à luz um mundo favelado contemporâneo; Tonico e Tinoco falam de um mundo rural do centro/sul vívido enquanto referência a algo perdido na vida da metrópole; e Luiz Gonzaga fala de um mundo rural nordestino, também nostalgicamente vívido na memória do imigrante. Já o pagode, o sertanejo country romântico (de duplas como Leandro & Leonardo) e o forró romântico (a oxente music de grupos como o Mastruz Com Leite) não têm a densidade reflexiva de experiências culturais específicas, e estão vinculados a identidades mais vagas ou generalizantes - onde o valor central é dado ao indivíduo que ama, que sofre, que tem desejos, 24 que tem prazer sexual e prazer no consumismo. O “pagode pop” ou já apareceu vinculado à identidade nacional brasileira; o “sertanejo pop” ou romântico já apareceu vinculado a um ethos country transnacional. E o fato de a música caipira, o baião e o partido alto serem mais elaborados em termos musicais e temáticos, não quer dizer que sejam mais ou menos autênticos ou originais que a música sertaneja romântica, a oxente music e o pagode; mas evidencia competências de produção e consumo qualitativamente diferenciadas no extenso e complexo mercado musical de massa. Existem gêneros musicais que prescindem de maior erudição e perspectiva critica no produzir e consumir, mas não são naturalmente melhores ou piores que os gêneros mais simples, os quais têm suas qualidades estéticas e funções sociais. O que podemos problematizar é o espaço que cabe a cada gênero no sistema de difusão cultural, e as implicações, para a consciência coletiva, de uma superexposição de certos gêneros mais simples em detrimento de relativa invisibilidade de outros mais elaborados. Nesse sentido, podemos advogar que há espaço para tudo na cultura de massa. Mas não se pode negar que é imprescindível que a massa consumidora tenha a oportunidade de ser apresentada à grande diversidade musical para que possa exercer a liberdade de escolha; e assim, possa escapar da fortíssima tendência da mídia - com a conivência do Estado - que leva ao embrutecimento dos sentidos e do pensamento crítico. 12 Ver Carvalho (1987) e Eco (1987) 25 BIBLIOGRAFIA ADORNO , T. 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