ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Julho/2012 EXPERIMENTAR(-SE): DANÇA CONTEMPORÂNEA E TRANSFORMAÇÃO Cibele Ribeiro da Silva (UFRN) Cibele Ribeiro da Silva, bailarina criadora-intérprete, performer, diretora artística, docente e pesquisadora do movimento e das artes contemporâneas. Ministra cursos de dança contemporânea, improvisação, composição e preparação corporal para bailarinos, atores, outros artistas e público em geral. É mestranda em Artes Cênicas pela UFRN. [email protected] Resumo Na dança contemporânea, o modo de fazer e pensar a dança admite muitas significações que se transformam continuamente, mas que permanecem incompletas, tal sua diversidade e complexidade. É necessário o deslocamento da compreensão do fazer cênico e pedagógico desta dança do viés temporal para uma abordagem artística e filosófica. No empenho de sinalizar as ressignificações de dança que ocorrem na dança contemporânea, encontramos quase nenhuma uniformidade, mas algumas tendências que serão aqui tratadas, no sentido de apreender uma certa “lógica estética” desta dança. A seguir, a dança contemporânea é apreendida a partir das características artístico-filosóficas inauguradas pela dança moderna e pós-moderna, em especial, no que concerne às possibilidades de movimentos, chegando-se ao tema da improvisação em dança e a possibilidade de experimentar (-se) trazida por este procedimento. Palavras-chave: Dança Contemporânea, Improvisação, Preparação Corporal, Experimentação. EXPERIENCE (YOURSELF): CONTEMPORARY DANCE AND TRANSFORMATION Abstract In contemporary dance, the way of doing and thinking dance allows a large number of meanings, which are in permanent transformation, but remain incomplete, such your diversity and complexity. It makes the necessity to dislocate the comprehension of the scenic / education areas of this dance from the historical understanding to an artistic and philosophic approach. With commitment in pointing out the dance re-meanings which appear in contemporary dance, we find almost no uniformity, but some tendencies which will be discussed in these reflections, in order to understand a kind of “esthetic logic” of this dance. After these first reflections, the contemporary dance will be observed in your artistic and philosophic elements, christened by modern and post modern dance, especially the possibilities of movements, reaching the dance improvisation subject and the possibility to experience (and also experience yourself) brought by this action. Keywords: Contemporary Dance, Improvisation, Body Preparation; Experimentation. http://portalanda.org.br/index.php/anais 1 ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Julho/2012 Introdução O que é dança contemporânea? Essa é uma questão que ocupa, muitas vezes, grande parte das discussões de quem trabalha com esse tipo de dança. Definir o que é dança contemporânea é uma questão quase irremediavelmente em aberto, já que ela admite muitas significações que se transformam continuamente, mas que permanecem incompletas, tal sua diversidade e complexidade. Podemos afirmar que não há uma dança contemporânea, mas diversas danças contemporâneas, uma vez que ela não trata de um estilo de dança, cuja definição precisa assegura um modo de fazer ou uma técnica que configura uma estética. Na dança contemporânea, várias formas, estilos, técnicas e estéticas de dança convivem, se permeiam e interagem. Comumente, a dança contemporânea é definida pela temporalidade histórica que carrega no nome, como se ela fosse tão somente aquilo que se faz em dança nos tempos atuais. Mas sua determinação levando em consideração apenas o tempo histórico a que pertence se mostra insuficiente. Não se pode, por exemplo, considerar o Odissi, uma dança clássica indiana, como dança contemporânea apesar desta dança ser executada atualmente. Por outro lado, podemos ter uma dança contemporânea cujos criadores possuem fortes influências técnico-estéticas do Odissi em seu processo criativo, mais certamente essa referência estará mesclada a outras influências técnicoestéticas e principalmente filosóficas específicas dos modos de fazer e pensar a dança contemporânea. Uma conceitualização histórico-filosófica da dança contemporânea começa a se delinear quando se afirma que sua temática trata das questões da contemporaneidade. Ainda que essa possa ser uma afirmação verdadeira, não pode ser generalizada. Pode a dança contemporânea deter-se sobre uma temática de outra temporalidade histórica que não a atual, sem deixar de ser dança contemporânea. É necessário, portanto, o deslocamento da compreensão do fazer cênico e pedagógico da dança contemporânea do viés temporal para uma abordagem artística e filosófica. Dança de correlações provisórias Para tratar de uma questão similar a essa aqui apresentada, a proposta de Hans-Thies Lehmann (2007) é que o fazer teatral de um período seja compreendido a partir das suas características estéticas singulares, e não apenas através de sua http://portalanda.org.br/index.php/anais 2 ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Julho/2012 temporalidade histórica. Tal noção é sugerida por Lehmann com o termo “teatro pósdramático” em substituição do termo “teatro pós-moderno” para denominar as novas formas de se conceber a cena teatral e a montagem cênica que surgiram entre as décadas de 1970 e 1990. Para o autor, a principal das características estéticas deste teatro é a total flexibilização da noção de drama, quando não, a total ausência do drama. Além disso, ele observa que o novo teatro não pretende negar os aspectos estéticos modernistas, mas ao contrário, fecunda e explode questões trazidas pelo modernismo. Sérgio de Carvalho observa que Lehmann deseja, nesse contexto, valorizar a autonomia da cena, voltando-se a práticas teatrais “fundadas na radicalização dos signos específicos do teatro” (LEHMANN, 2007, p. 9). Assim, seguindo a proposta metodológica de Lehmann, de se ater aos elementos distintivos de um movimento artístico ao invés de sua temporalidade, talvez possamos afirmar que a singularidade mais marcante da dança contemporânea é que cada artista inventa e reinventa sua técnica e sua estética sem cessar, a partir de correlações provisórias, reconfigurando a dança como um todo. Por isso, uma noção possível do que seja a dança contemporânea seria considerá-la uma dança na qual cada criador tem a possibilidade pensar e fazer a própria dança com autonomia. Assim como Lehmann encontra no teatro pós-dramático ressignificações em diversos aspectos da própria concepção de teatro constituindo uma nova “lógica estética”, a proposta aqui não é esgotar, mas sinalizar ressignificações semelhantes que ocorrem também na dança contemporânea. Se nela não encontramos quase nenhuma uniformidade, podemos observar algumas tendências. O autor registra, por exemplo, novas relações hierárquicas entre autor-diretor-ator mais horizontalizadas, que podem ser percebidas também na dança contemporânea, que muitas vezes, desestabiliza as relações diretor-coreógrafo-bailarinos, na qual aos primeiros cabem a criação e os últimos, a execução. Com a dança contemporânea, cada vez mais, bailarino e criador passam ser a mesma pessoa, fazendo com que surja a figura do bailarino-coreógrafo ou criador-intérprete, como passa a ser comumente chamado. Como conseqüência dessas relações funcionais e de autoridade mais flexíveis, há uma tendência do uso do termo “grupo”, para definir a reunião destes artistas da dança ao invés de “companhia”, cuja denominação parece carregar sentidos da antiga relação de subordinação. Esses grupos são compostos por diretores que, muitas vezes, incentivam os bailarinos à criação cênica, eliminando a figura do coreógrafo que possuía a função exclusiva da composição coreográfica. http://portalanda.org.br/index.php/anais 3 ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Julho/2012 Com a dança contemporânea surge também a experiência dos coletivos de dança, agrupamentos unidos por interesses espontâneos e não hierárquicos cujos artistas dividem e se alternam nas mais diversas funções, de produção a iluminação. A presença do diretor é substituída, por vezes, pela figura de um provocador cênico – que instiga o processo criativo de modo temporário, ou pela prática da criação coletiva. Encontra-se ainda uma tendência a realização de trabalhos criativos a partir de solos, duos e trios, o que facilita a organização e execução de uma dança não convencional, mais comercialmente independente, prescindindo de um grande suporte estrutural e fortalecendo as pesquisas de movimento e as pesquisas cênicas, potencializando as fronteiras da dança. Se na dança moderna, assim como no balé clássico, houve, muitas vezes, uma dramaturgia da dança ligada à noção tradicional de dramaturgia como texto teatral, de alguma forma linear e concisa, essa noção de dramaturgia na dança contemporânea é substituída por uma “cartografia de cena” onde há a apreensão de um mapa ou forma caleidoscópica que indica ou traduz o trabalho cênico na qual o artista se norteará. E assim, a dramaturgia da dança contemporânea passa a estar no próprio corpo e no seu inventário de histórias. Assim como no teatro pós-dramático delineado por Lehmann, a dança contemporânea opta, muitas vezes, pelo não uso da narrativa, provocando maior explicitação de um corpo tomado como possibilidade de movimentos. Abre-se, ainda, para a pesquisa em outras áreas tais como anatomia, cinesiologia, propriocepção e educação somática. Lehmann traz em sua obra ainda a descrição de um ator que figura como um agente cênico ou como um artista cênico, mais genericamente, de modo a dissolver e flexibilizar fronteiras de formação e atuação entre atores, dançarinos, performers, músicos, artistas plásticos. Assim como na dança contemporânea, encontramos uma tendência não a um apagamento das fronteiras entre as artes e suas especificidades, mas a possibilidade de riqueza estética desta convivência e instabilidade, compondo uma verdadeira “zona de indiscernibilidade” deleuziana – na qual os saberes artísticos deixam de estar um a serviço do outro. Compõem um espaço estético em ebulição, ao prescindir dos rótulos a priori e proporcionar à dança a liberdade criativa de ser. http://portalanda.org.br/index.php/anais 4 ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Julho/2012 Entre a dança contemporânea e dança moderna Tal como um imã, a dança contemporânea aproxima de si os mais variados conhecimentos sobre movimento e sobre o corpo, hibridiza fazeres, técnicas, estéticas, estilos, preparações corporais, linguagens artísticas e hibridiza o próprio tempo histórico-artístico-filosófico deixando-se influenciar por danças das mais diversas temporalidades. É certo que a dança contemporânea consolida pressupostos artísticofilosóficos inaugurados pela dança moderna. Um deles é que ela não possui uma quantidade determinada de movimentos que são conhecidos por seus nomes, mas trata justamente da infinidade de movimentos humanos e daquilo que não tem necessariamente nome em termos de movimentos. Essa ideia retoma a pioneira da dança moderna Isadora Duncan (1879-1927), para quem a “dança não é só a arte que exprime a alma humana através do movimento, mas o fundamento de uma concepção completa de vida, mais livre, mais harmoniosa, mais natural.” (DUNCAN, 1996, p. 27) A dança, a partir de Duncan passou a ser sinônimo de movimentos livres, não codificados e expressivos. Para o artista e educador Rudolf Laban (1879-1958), “Isadora Duncan contribui consideravelmente para a tendência do homem moderno de superar sua timidez, manifestada ao ocultar o corpo” (LABAN, 1990, p. 13), desperta o sentido de poesia no movimento deste homem, e o sentido lírico na dança. Duncan, ao reconstruir os movimentos dos dançarinos da antiguidade grega, libertou os corpos dos bailarinos modernos e demonstrou que o “fluxo do movimento tem um princípio ordenador que não se pode explicar mediante os costumeiros fundamentos racionalistas.” (Idem, p. 13) Por sua vez, Laban será um dos primeiros artistas e estudiosos a sistematizar essa nova forma de pensar, fazer e ensinar a dança, pois, nessa mesma perspectiva, esse artista percebe que: É impossível, realmente, abranger em seu conjunto o fluxo do movimento humano, estudar as variações quase infinitas dos passos e postura do corpo, da mesma maneira que se pode fazer com o número restrito de movimentos utilizados nas formas estilizadas de dança. Em vez de estudar cada movimento particular, pode-se compreender e praticar o princípio do movimento. Este enfoque da matéria dança http://portalanda.org.br/index.php/anais 5 ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Julho/2012 implica uma nova concepção desta: o movimento e seus elementos. (Ibidem, p. 16) A abordagem labaniana da dança, “procura integrar o conhecimento intelectual com a habilidade criativa, um objetivo importante em qualquer forma de educação” (Ibidem, p. 19) e tem como principal interesse ensinar “a viver, mover-se, expressar-se no ambiente que rege sua vida” (Ibidem, p. 28) Ou, seja, novamente a naturalidade da dança é invocada, associando-se sua harmonia à da própria vida. Para este artista e pensador do movimento, a aprendizagem da dança deve basear-se em movimentos “instintivos”, como os do bebê ao mover-se. “No princípio, ele não imita, apenas reage aos estímulos” (Ibidem, p. 26). Só mais tarde, o impulso de imitar será natural. Congregando habilidade artística e conhecimento intelectual, o estudante labaniano de dança, passa pela experimentação, exame, e exercício de diversos elementos do movimento, criando sua forma de dançar. A essa ação, denominamos atualmente improvisação em dança. A improvisação é a liberdade de experimentar e pesquisar os movimentos, sem intenção de fixá-los numa repetição. Nela, temos como ponto de partida e finalidade a exploração que visa a ampliação do repertório corporal e o conhecimento do corpo e de si. Mas retornemos à dança moderna. Segundo Eliana Rodrigues Silva (2005), a dança moderna introduz no final do século XIX a visão da dança como liberdade criativa, na qual a coreografia tende a desenvolver-se a partir da criação individual de cada artista. O centro do corpo passa a ser pensado como gerador de movimentos. A dança é feita eminentemente com os pés descalços e o chão passa a integrar o espaço do dançarino, possibilitando-o sentar, deitar ou dançar na horizontal e não mais é pensado apenas como suporte do corpo vertical. Há um uso diferenciado da música de modo não literal, ou seja, a música não conduz mais a obra artística. E por último, um elemento não menos importante: ainda que se mantenha a estrutura narrativa como no balé clássico, trata-se agora de uma narrativa cuja dramaticidade é altamente explorada em seus elementos expressivos e na singularização de personagens. A narratividade também se modifica quanto à temática, que passa a estar unida aos princípios filosóficos e estéticos individuais de cada criador. Mas a dança moderna vai pouco a pouco reabsorvendo ideais estéticos e filosóficos do balé clássico, que passam a ficar muito parecida com este, nos seus http://portalanda.org.br/index.php/anais 6 ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Julho/2012 aspectos técnicos e estéticos, a ponto de se desvencilhar de noção de liberdade criativa de movimentos em meados do século XX. Paradoxalmente, estes novos coreógrafos são menos hostis que seus predecessores à dança clássica: evidentemente não voltam às pontas nem às fórmulas mitológicas, mas sua orientação não lhes inspira a mesma cólera contra o movimento executado por ele mesmo, independentemente de qualquer ligação com a vida. (...) A dança moderna, no começo do século é a primeira negação do balé clássico. Em meados do século aparece como negação da negação. (GARAUDY, 1973, p. 137) Será a partir da dança pós-moderna, com o grupo Judson Dance Theater (19621964), que o movimento de cada indivíduo voltará a torna-se objeto de estudo da dança. O grupo é apontado pela historiadora da dança Sally Banes (1999) como marco inicial de um novo paradigma na dança, o da dança pós-moderna, cujas características serão em grande parte absorvidas pela dança contemporânea. Segundo Banes, o primeiro concerto de dança deste grupo incluía: danças feitas com técnicas aleatórias, indeterminação, jogos de poder, tarefas, improvisação, determinação espontânea e outros métodos (como de tentos e turbulências): todos eles minam deliberadamente a narrativa ou os significados emocionais da dança moderna padrão. (...) algumas [danças] das quais apresentadas em silêncio (...).(BANES, 1999, p. 95). Nesse momento - ao encontrar-se num período de volta às tradições e convenções da dança - interessa a esses artistas negar completamente o padrão anterior de dança. E isso é feito, de acordo com SILVA (2005), a partir da exploração e demonstração do movimento por si próprio, sem intenção de expressão nem mensagem psicológica. O movimento cotidiano quer ser identificável, sem virtuosismo. As qualidades do movimento passam a serem motivos suficientes para dançar e compor. Os processos criativos deixam novamente de ser expressão pessoal de um coreógrafo-compositor executados por um intérprete para serem espaços de experimentação e improvisação dos artistas. Da cena contemporânea à sala de prática Apesar da dança contemporânea constituir toda um novo paradigma da dança e do dançar, Isabel Marques (2001) observa que novamente encontramos muitas vezes, http://portalanda.org.br/index.php/anais 7 ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Julho/2012 um ensino de dança que perpetua o autoritarismo da didática tradicional, em que prevalecem a ideia da supervalorização do virtuosismo e do aluno idealizado como tábula-rasa, na qual o aprimoramento técnico deve se dar através da repetição e da aceitação incontestável das informações transmitidas pelo professor: Ao contrário do que se pensaria, um forte movimento conservador tem invadido nos últimos anos escolas, universidades e academias de dança. Conceitos de corpo, de arte, de tempo, e de espaço desenvolvidos por muitas das instituições de ensino de dança no Brasil e no exterior são muitas vezes avessos às transformações radicais que a dança sofreu (...). (MARQUES, 2001, p. 27) Para a autora, a “arte mudou, mas isto não afetou decisivamente o ensino da dança. Efetuadas as experiências corporais e cênicas das décadas de 60 e 70, outra concepção de dança deveria estar hoje em pauta.” (MARQUES, 2001, p. 26). Quando utilizamos a improvisação como procedimento de ensino da dança num grupo, uma das primeiras reações que notamos é que a codificação de movimentos, para aqueles que a tem internalizada em seu corpo por haverem estudados técnicas codificadas, tende a se misturar com a exploração de outros estilos e a se dissolver. Os exercícios de replicação de movimento podem ou não ser usados nessa concepção de ensino da dança e muitos educadores preferem não os utilizar nas etapas iniciais de um curso. Prioriza-se o olhar do artista para si próprio e muitas vezes, busca-se alternar, no trabalho corporal, o foco interno para só depois trabalhar o foco externo. Dessa forma, é possível trazer o sujeito para uma concentração consigo próprio. Dessa forma, não se necessita de salas de aula com espelhos ou eles não são utilizados se estão presentes. Também não se utiliza a formação clássica na sala de aula de dança onde os alunos são enfileirados. Se não estão em roda para visualizar alguma explicação de exercício, os alunos estão distribuídos pelo espaço da sala. A partir desses pressupostos, os artistas cênicos, estudantes ou profissionais, são convidados, através da exploração e improvisação de movimentos, a perceber o que é a dança para eles, fazendo-os vivenciar a dança. Muitas vezes, após dançar e vivenciar a improvisação em dança, solicita-se que cada um mostre um pouco do seu trabalho para o grupo, numa roda de improvisação, como oportunidade de observar o outro, de se observar a si próprio e ser observado. Assim como no início, a finalização http://portalanda.org.br/index.php/anais 8 ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Julho/2012 das vivências, muitas vezes, é feita em roda, sentados, onde se pode discutir os trabalhos. Os participantes colocam-se verbalmente de modo a trazer ao “domínio consciente” as “novas formas de movimento” (Laban, 1990), o aumento progressivo de seus repertórios pessoais de movimento, e também seus medos, aflições e suas críticas, entre outras coisas. Experimentar(-se): improvisação e transformação Não há, porém, qualquer validade nos procedimentos nessa proposta de preparação corporal que aqui se delineia como pesquisa de movimentos e do corpo, se não existir espaço para a experiência. Experimentação é ponto zero nesta proposta, o ponto de partida. No dicionário Aurélio (FERREIRA, 2009), encontramos alguns significados da palavra experiência: 1. ato ou efeito de experimentar(-se); experimento 2. Prática da vida. 3. Habilidade, perícia, prática, adquiridas com o exercício constante duma profissão, duma arte ou ofício. 4. Prova, demonstração, tentativa, ensaio. 5. Filos. Experimentação 6. Filos. Conhecimento que nos é transmitido pelos sentidos. 7. Filos. Conjunto de conhecimentos individuais ou específicos que constituem aquisições vantajosas acumuladas historicamente pela humanidade. Aproveitando os múltiplos sentidos da palavra experiência, partiremos do primeiro sentido proposto por FERREIRA, que sugere como sinônimo o “ato ou efeito de experimentar(-se)”. Encontramos aqui uma ideia fascinante: experimentar algo é também experimentar a si próprio. Nesse ato reflexivo de colocar a si mesmo em situação de “prova, demonstração, tentativa, ensaio”, como também propõe o autor, chegamos a uma noção de prática e de habilidade. Segundo Jorge Larrosa Bondía (2002), a “experiência é aquilo que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. (...) A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece.” (LARROSA BONDÍA, 2002, p. 21) O autor, que explora a relação entre a sabedoria da experiência, o conhecimento e a vida humana privilegia a experiência não só como forma de conhecimento, mas como sabedoria do mundo. Mas, segundo ele, nosso mundo tem se caracterizado pela carência de experiências. Da mesma forma, o estudo-aprendizagem da dança feito exclusivamente pela dança codificada ou pela busca da perfeição formal de movimentos replicados, pode sacrificar a formação do artista e do sujeito ao impor uma atitude interna de carência de experiência. http://portalanda.org.br/index.php/anais 9 ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Julho/2012 Além disso, segundo Larrosa Bondía, a experiência tem seus antagonistas: o excesso de informação, a obsessão por opinião, a falta de tempo, a alta velocidade dos acontecimentos, a falta de silêncio, a falta de memória e o excesso de trabalho. Todas essas expressões contrárias da experiência são cotidianamente enfatizadas na contemporaneidade, na apreensão exacerbada do intelectual e no utilitarismo das formas de vida. Todos os elementos antagonistas da experiência descritos acima pelo autor, se encontrados dentro de um espaço de aprendizado da dança, levarão da mesma forma à carência de experiência. Larrosa Bondía compara a falta de experiência à estagnação ao afirmar que somente “o sujeito da experiência está (...) aberto à transformação” (LARROSA BONDÍA, 2002, p. 26). Da mesma forma, para Laban, é a experiência do movimento o que caracteriza o ser vivo e toda mudança se transmuta em movimento: Diz-nos a ciência que a mudança é um elemento essencial da existência. As estrelas que vagueiam pelo céu nascem e morrem. Crescem e desaparecem, colidem umas com as outras, ou ainda destroem-se pelo fogo. A mudança está em toda parte. Este incessante movimento ao largo de um espaço incomensurável tem seu paralelo nos movimentos mais diminutos e de menor duração que ocorrem em nossa Terra. Até mesmo as coisas inanimadas como cristais, rios, nuvens e ilhas crescem e desaparecem, aumentam e quebram, aparecem e desaparecem. A mudança se transforma em movimento nos seres vivos, dotados de uma necessidade imperiosa de empregar o tempo e as alterações que ocorrem no tempo para seus propósitos pessoais. (...) Em todas essas necessidades, o movimento tem papel central. (LABAN, 1978, 144-5) Larrosa Bondía considera que o acontecimento da experiência necessita de certos requisitos, aos quais podemos transcrever perfeitamente à experiência de dançar: A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (LARROSA BONDÍA, 2002, p. 19) http://portalanda.org.br/index.php/anais 10 ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Julho/2012 Assim, ao criar oportunidades para o acontecimento da experiência de dançar, o saber sensível do corpo tende a despertar e coloca o sujeito diante de si mesmo, no ponto fundamental entre as impossibilidades e possibilidades corporais e pronto para a transformação. Mas ainda que se possam criar essas oportunidades de acontecimento a um grupo, a experiência do acontecimento é única para cada sujeito e abre sua subjetividade ao desconhecido: Se o experimento é repetível, a experiência é irrepetível, sempre há algo como a primeira vez. Se o experimento é preditível e previsível, a experiência tem sempre uma dimensão de incerteza que não pode ser reduzida. Além disso, posto que não se pode antecipar o resultado, a experiência não é o caminho até o objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem “pré-ver”, nem “pré-dizer”. (Idem, 2002, p. 28) Nessa proposta da experiência do dançar através da improvisação, encontra-se o desconhecido de si, do corpo. Vivencia-se o irrepetível, o incerto, o imprevisível. Explora-se a abertura dos sentidos e a capacidade de transformação dessa ampliação. E é com esse intuito que se delineia uma proposta metodológica de um corpo-devir um corpo que é transformação, mudança, desejo, em vias de tornar-se. Referências BANNES, S.. Greenwich Village 1963: avant garde, performance e o corpo efervescente. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. FERREIRA, A. B. H. Aurélio século XXI: o dicionário da Língua Portuguesa. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. LABAN, R. Dança Educativa Moderna. São Paulo: Ícone, 1990. _________. Domínio do Movimento. São Paulo : Summus Editorial, 1978. LARROSA BONDÍA, J. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Tradução João Wanderley Geraldi. Revista Brasileira de Educação, n0. 19. Jan/Fev/Mar/Abr 2002. MARQUES, I. A. Ensino de dança hoje: textos e contextos. São Paulo: Cortez, 2001. SILVA, E. R. Dança e pós-modernidade. Salvador : EDUFBA, 2005. http://portalanda.org.br/index.php/anais 11