O EU COMO PRINCÍPIO: A ESTÉTICA DE AUGUSTO DOS ANJOS Dr. Luiz Alberto Cerqueira/ UFRJ Resumo: Queremos mostrar que a poética de Augusto dos Anjos pressupõe uma compreensão filosófica da natureza humana inerente à história da filosofia no Brasil e que dessa compreensão da natureza humana — na medida em que ela se opõe à concepção científica que, pelo método experimental da filosofia moderna, fez da psicologia uma psicologia “sem alma” — resulta a percepção estética de uma necessidade de horroroso. Palavras-chave: Filosofia brasileira, Filosofia e arte, Filosofia e poesia. P rimeiramente, queremos mostrar que a poética de Augusto dos Anjos pressupõe uma compreensão filosófica da natureza humana e que essa compreensão é inerente à história da filosofia no Brasil enquanto uma exigência do conhecimento de si como espírito; em segundo lugar, que dessa compreensão da natureza humana — na medida em que ela se opõe à concepção científica que, pelo método experimental da filosofia moderna, fez da psicologia uma psicologia sem alma — resulta a percepção estética de uma necessidade de horroroso no “Eu” para mostrar que, uma vez despojado do seu destino espiritual, o homem se reduz a algo repulsivo porque então ele já está morto, não simbolicamente ou “em certo sentido” ou “como se estivesse”, mas literalmente morto. O eu como princípio [...] entendo por espírito a energia que sente e conhece, e se manifesta, em nós mesmos, como consciência1. Súbito, arrebentando a horrenda calma, Grito, e se grito é para que meu grito Seja a revelação deste Infinito Que eu trago encarcerado na minh’alma!2 Por amor da vida teórica e da aspiração a uma vida regida por normas universais, a filosofia estabeleceu-se na Antiguidade grega, especialmente a partir do “conhece-te a ti mesmo” socrático, como uma espécie de ciência cujo objeto é o conhecimento de si como espírito3. Desde então, o marco da fundação de cada nova época da história da filosofia, por oposição à decadência da vida teórica e ao ceticismo superveniente, é a 1 BRITO, Raimundo de Farias. O mundo interior. Introdução de Luiz Alberto Cerqueira. Lisboa: INCM, 2003, p. 60. 2 ANJOS, Augusto dos. Gemidos de arte. In: Eu e outras poesias (02 vols.). Belo Horizonte: Itatiaia, 1982, vol. 1, p. 101. 3 Depois de ressaltar a necessidade de buscar-se o “si mesmo” absoluto que confere o caráter ontológico à consciência, Sócrates explica que “ao prescrever-se o conhecimento de si mesmo, o que se ordena é o conhecimento de nossa alma”, no sentido de que o “si mesmo” consiste na parte da alma “em que nela se encontra sua faculdade própria, a inteligência”. PLATÃO, Alcebíades, ou da natureza do homem, 134a. “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 CERQUEIRA, Luiz Alberto -2- reafirmação do conhecimento de si como espírito. Assim foi com Agostinho4, em relação ao ceticismo que sobreveio à devastação de Roma por Alarico; assim foi com o cogito cartesiano, em relação ao ceticismo que sobreveio à Reforma e ao antiaristotelismo no século XVI. No âmbito da modernização da cultura ocidental, o pensamento brasileiro passou por experiência histórica similar. Após a reforma pombalina da universidade (1772), e a supressão oficial do aristotelismo, foi Gonçalves de Magalhães (1811-1882) quem melhor soube reconhecer em Descartes o fundador da filosofia moderna, não só porque o autor das Meditationes de prima philosophia adotou o “processo cético [...] em atenção ao tempo e às circunstâncias5”, como também, e principalmente, porque ele “tirou a filosofia dos bancos da escola e a emancipou, restituindo-lhe o seu verdadeiro método, o psicológico, e a sua única autoridade, a da razão6”. Sem dúvida, este seu reconhecimento teve por base a vivência dos mesmos problemas — ceticismo e necessidade de emancipação da filosofia — no Brasil, onde o ensino filosófico permaneceu dependente da teologia e ao serviço da fé durante dois séculos, e teve como conseqüência sua condenação da atitude humana meramente contemplativa e indiferente à verdade estabelecida pela razão: Não é por falta de inteligência que deixamos às vezes de reconhecer a verdade, mas por deficiência de atenção, o que depende da vontade; e muitas vezes por um falso preconceito, que nos faz duvidar da evidência só por parecer contrária ao nosso modo habitual de entender [...] Custanos muito no meio, ou no fim da vida, renovar as nossas idéias, como o mudar de linguagem, e reformar os nossos costumes. Assim, não há verdade em ciência alguma, não há fato novo [...] que não fosse, e não seja combatido por mil juízos antecipados. Outras vezes, não podendo conciliar fatos que nos parecem contrários ao que sabemos, negamos hoje o que afirmamos ontem, damos agora como causa o que antes reconhecemos ser efeito, ou desacoroçoados duvidamos de tudo; o que também é um erro, porque infalivelmente alguma coisa é verdade sem a 4 Em diálogo com a Razão (R), Agostinho (A) restabeleceu o conhecimento de si como princípio ontológico: “R - Tu, que desejas conhecer-te, sabes que és? A - Sei. R - Por onde o sabes? A - Não sei. R - Sabes que és movido? A - Não sei. R - Sabes que pensas? A - Sei. R - Logo, é verdade que pensas? A - Sim! [...] R - [...] só é bem-aventurado aquele que vive, e ninguém vive se não é; tu queres ser, viver, entender, e ser para viver, e viver para entender. Logo, sabes que és, sabes que vives, sabes que entendes” (AGOSTINHO, Solilóquios II, I-III). 5 MAGALHÃES, Domingos José Gonçalves de. Fatos do espírito humano. Petrópolis: Vozes/ABL, 2004, p. 78. 6 Ibidem. “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 O EU COMO PRINCÍPIO: A ESTÉTICA DE AUGUSTO DOS ANJOS -3- menor dúvida para o espírito humano, a começar pela sua própria existência7. Podia Deus sem dúvida criar uma sociedade de espíritos puros, não obrigados a coisa alguma, não sujeitos à menor dor, seres angélicos que vivessem em uma eterna bem-aventurança, só contemplando as maravilhas do seu criador. Mas qual seria o mérito desses espíritos para tanta ventura? Necessita Deus de admiradores inúteis?8. [O homem procura] A verdade por amor da verdade! [...] e nem pode deixar de o fazer; porque essa aspiração, essa percepção, essa reflexão da verdade em sua alma é o que o constitui inteligente; e daí nascem todas as ciências [...] Ele escolhe, prefere e pratica a verdade [...] esse 9 poder o constitui livre . Ressalte-se, entretanto, que este conceito da liberdade de arbítrio como princípio de ação — que “consiste somente em que podemos fazer uma coisa ou deixar de fazer [de maneira que] agimos de tal maneira que não sentimos absolutamente que alguma força exterior nos obrigue a tanto10” — pressupõe uma tradição filosófica, o aristotelismo, no interior do qual o luso-brasileiro Antonio Vieira (1608-1697), já postulara a liberdade dos filhos de Deus pelo conhecimento de si: [...] neste mundo racional do homem, o primeiro móbil de todas as nossas ações é o conhecimento de nós mesmos [...] Todos comumente cuidam, que as obras são filhas do pensamento ou idéias, com que se concebem e conhecem as mesmas obras: eu digo que são filhas do pensamento e da idéia, com que cada um se concebe, e conhece a si mesmo11. Vieira distingue no homem dois modos do ser: o homem natural e o homem moral. Aquele se compõe de alma e corpo; este se constitui ou consiste só na alma. De maneira que, para formar ou reformar o homem moral é necessário separar a alma do corpo12. Resultaria dessa separação uma perda ou prejuízo, como se assim ele passasse a ter “menos” ser? Ao contrário, pois sendo “o conhecimento de si mesmo, e o conceito que cada um faz de si uma força tão poderosa sobre as próprias ações13”, é tal separação que lhe acrescenta ao ser o dever, permitindo-lhe deixar de obedecer cegamente à natureza para agir como deve14. Neste sentido, os dois modos do ser não se excluem: “Há de servir o corpo ao próprio conhecimento [...] de maneira que o mesmo que impede 7 Idem, p. 348. Idem, p. 355. 9 Idem, p. 57. 10 DESCARTES, Meditações, IV. 11 VIEIRA, Antonio. As Cinco Pedras da Funda de Davi, parte III. In: Sermões (02 vols.). Organização de Alcir Pécora. São Paulo: Hedra, 2003, vol. 2. 12 Ibidem. 13 Idem, parte II. 14 VIEIRA, Antonio. Sermão de Santo Antonio (1654), parte V. In: Sermões. Organização de Alcir Pécora. São Paulo: Hedra, 2003, vol. 2. 8 “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 CERQUEIRA, Luiz Alberto -4- o conhecimento direto, serve ao conhecimento reflexo15”. Mas, se pelo primeiro modo a morte, que é a separação natural, nos causa horror e desespero, pelo segundo a separação promovida pela razão excede o mecanismo natural, tornando-se a alma na essência mesma do bom e do belo: Separemos logo o precioso do vil; e vivamos como almas separadas [...] Este segundo estado é muito mais perfeito; porque, livre a alma dos embaraços e dependências do corpo, obra com outras espécies, com outra luz, com outra liberdade [...] se a morte há de fazer por força esta separação, por que a não faremos nós por vontade? Por que não fará a razão desde logo, o que a morte há de fazer depois? Oh que vida! Oh que obras seriam as nossas tão outras do que são! [...] Almas, almas, vivei como almas: se conheceis que a alma é racional, governe a razão, 16 e não o apetite . Voltemos a Gonçalves de Magalhães. Ele renova o conceito vieiriano de um conhecimento da alma em si como um absoluto, porém dá um passo adiante, ao distinguir no caráter escolástico do ensino filosófico brasileiro o principal empecilho à assimilação do moderno conceito de liberdade, a qual deve ser entendida como princípio de ação, e não como indiferença na vontade17. Vieira ensinava que “assim como Deus nesta vida se conhece por fé, assim se conhece por fé também a alma18”. Diferentemente, Gonçalves de Magalhães fala de um saber filosófico estrito, de uma psicologia enquanto ciência do espírito ou alma livre: Nesse mundo da razão [...] reconhece o espírito como primeira necessidade refletir sobre si mesmo, distinguir-se do que não é ele, estudar essa faculdade ativa aberta à verdade, descobrir as suas leis [...] e com o testemunho irrecusável e imprescritível de sua consciência, a inteligência [...] cria a psicologia, acha as leis da lógica, os fundamentos da estética, da moral e da legislação, e, por conseguinte, de todas as ciências que se originam da liberdade humana, e que seriam vãs, ou não existiriam sem a liberdade19. Depois de Gonçalves de Magalhães, Tobias Barreto retomou a idéia de uma ciência do espírito no Brasil, mas já agora como problema: “desde Sócrates até os nossos dias, a consciência humana tem sido interpelada, e todavia as suas respostas ainda não enchem 15 VIEIRA, Antonio. As Cinco Pedras da Funda de Davi, parte II. In: Sermões. Organização de Alcir Pécora. São Paulo: Hedra, 2003, vol 2. 16 Idem, parte V. 17 Neste sentido ele acompanhou a Descartes, quando este afirma que “para que eu seja livre, não é necessário que eu seja indiferente na escolha de um ou de outro dos dois contrários; mas antes, quanto mais eu pender para um, seja porque eu conheça evidentemente que o bom e o verdadeiro aí se encontrem, seja porque Deus disponha assim o interior do meu pensamento, tanto mais livremente o escolherei e o abraçarei [...] De maneira que esta indiferença que sinto, quando não sou absolutamente impelido para um lado mais do que para outro pelo peso de alguma razão, é o mais baixo grau da liberdade, e faz parecer mais uma carência no conhecimento do que uma perfeição na vontade”. DESCARTES, Meditações, IV. 18 VIEIRA, Antonio. As Cinco Pedras da Funda de Davi, parte V. 19 MAGALHÃES, Domingos José Gonçalves de. Fatos do espírito humano. Petrópolis: Vozes/ABL, 2004, p. 60. “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 O EU COMO PRINCÍPIO: A ESTÉTICA DE AUGUSTO DOS ANJOS -5- meia folha de verdades. Não basta reconhecer e alegar a existência dos fatos internos20”. Embora preocupado em combater os defensores da psicologia de feição racionalista, na linha do espiritualismo de Cousin e Jouffroy, então em voga no Brasil, o mestre do Recife também não encontrou nas objeções empiristas ao espiritualismo uma idéia convincente de psicologia como ciência, observando que a “psicologia empírica, a despeito de todas as suas descrições e pinturas do mundo subjetivo, ainda nada pôde levantar que seja traduzível em forma científica21”. Contra racionalistas e empiristas, ele chama a atenção para a psicologia dos artistas: Se não se admite que, em face desses painéis do mundo interno, o que nos impressiona é ainda o ideal, a força criadora do artista, o nosso entusiasmo não tem senso [...] desde Homero até o maior poeta dos nossos dias, o que distingue as criações do verdadeiro artista é o característico da impersonalidade [...] o que existe, por exemplo, de mais impessoal do que o teatro de Shakespeare? [...] Entretanto se diz que ninguém ainda se mostrou tão conhecedor do coração humano [...] O autor de Père Goriot, por exemplo, era mais que um psicólogo, era um grande fisiologista, que andava sempre em dia com a dinâmica mimosa do organismo feminino, cujos movimentos mais imperceptíveis ele sabia detalhar na figura das suas personagens22. Tendo em vista a possibilidade de previsão científica dos fatos em função de dados a priori, Tobias Barreto observa na psicologia “a falta absoluta de dados para se formarem exatas e profundas previsões23”; tendo em vista o conhecimento científico das coisas em função das leis universais que definem a “natureza” dessas mesmas coisas, Tobias Barreto observa que “a psicologia não descobre uma só das leis que determinam a formação do indivíduo24”; finalmente, ele conclui: Não canso de repeti-lo: a ciência do eu implica contradição. Abstraído da pessoa, e do caráter que a constitui, o eu é coisa nenhuma, nada significa. Mas onde estão as induções científicas, feitas de modo que possam garantir nossos juízos sobre a marcha normal da personalidade alheia? Eu disse alheia; e pudera dizer própria. Todos nós sabemos, por experiência, que as mais das vezes, o que nos desarranja e nos perturba, no curso ordinário da vida é a ignorância de nós mesmos, da força de nossas paixões, ou da fraqueza de nossa vontade25. Na mesma medida, Farias Brito manifestou-se contra a psicologia experimental e enveredou pelo conhecimento de si na perspectiva metafísica da “coisa em si” kantiana. 20 BARRETO, Tobias. Estudos de Filosofia. Introdução e notas de Paulo Mercadante e Antonio Paim. In: Obras completas. Rio de Janeiro: INL/Record, 1990, p. 138. 21 Idem, p. 145. 22 Idem, pp. 149-152. 23 Idem, 153. 24 Ibidem. 25 Ibidem. “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 CERQUEIRA, Luiz Alberto -6- Isto deveu-se, com certeza, ao magistério de Tobias Barreto na Escola de Direito do Recife, especialmente do ponto de vista da inadequabilidade do método experimental no âmbito da ação moral, onde predomina a intencionalidade. Farias Brito propõe uma “psicologia transcendente” para dar conta do espírito que, para além dos fenômenos físicos, não se circunscreve dentro dos limites da previsibilidade e não se deixa apreender pelos critérios de medida e repetição. O espírito, cuja presença desperta sempre admiração, mas nunca se experimenta em laboratório, tem, por isso mesmo, o seu ser fora de alcance dos métodos da experiência. Desse modo, ele se coloca, sem saber, ao lado de um Husserl, para quem a “experiência não pode dizer-nos o que “é” o ser psíquico, no mesmo sentido válido para o físico. O psíquico não se experimenta como aparente; é o vivido contemplado na reflexão26”. O eu analisado em laboratório existe decerto, mas é despojado da vivência e da intencionalidade, da consciência enfim, e, por isso mesmo, é para a morte pela decomposição, como o eu descrito na poesia de Augusto dos Anjos em termos de carbono e amoníaco; contrariamente, a personagem de ficção não existe, mas é para a vida pela criação, pela composição que resiste ao tempo, como a Capitu de Machado de Assis. Farias Brito, como que completando o pensamento de Tobias Barreto, diz o seguinte contra a “psicologia sem alma” dos psicólogos modernos: Muito mais instrutiva é, de certo, a psicologia dos poetas e dos romancistas, que jogam, é verdade, com personagens fantásticos, mas inspirados na observação dos fatos e criados pela imaginação sob a pressão mesma da vida, senão reais, pelo menos possíveis, sendo de notar que é sempre das próprias paixões, das próprias lutas e sofrimentos, dos próprios sonhos e aspirações, que nos dá o artista, em seus personagens, a descrição viva e palpitante [...] um Hamlet, um rei Lear, o Tartufo de Molière, o Fausto de Goethe, têm mais vida e realidade que muitas figuras históricas de valor aliás não secundário [e agora citando argumento de Raul de Brugeilles] ‘O pai Goriot de Balzac é tão real quanto tal egípcio que vivia no tempo de Sesóstris [...] hoje sua existência não é mais real que a do egípcio?’27. Assim sendo, que é, para Farias Brito, o espírito como objeto de estudo? [...] um princípio vivo de ação, capaz de modificar, embora em proporções infinitamente pequenas, compreende-se, a ordem da natureza, capaz de dominar-se, capaz de exercer domínio sobre as coisas: uma força criadora, que não só tem a faculdade de emocionar-se em face do poder soberano da natureza, como ainda de criar alguma coisa de novo, aumentando sob certo ponto de vista, e relativamente, as proporções da realidade pelas produções e pelas maravilhas da arte. 26 HUSSERL, Edmund. La filosofía como ciencia estricta. Trad. de Elsa Tabernig, com estudo introdutório de Eugenio Pucciarelli. Buenos Aires: Nova, 1969, p. 72. 27 BRITO, Raimundo de Farias. O mundo interior. Introdução de Luiz Alberto Cerqueira. Lisboa: INCM, 2003, pp. 51-52. “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 O EU COMO PRINCÍPIO: A ESTÉTICA DE AUGUSTO DOS ANJOS -7- Ora, esse poder agente e real, esse princípio vivo de ação, essa força criadora, não poderá deixar de ser objeto de ciência, e é o que mais interessa ao nosso conhecimento. Há, pois, uma ciência [...] dessa força criadora, uma ciência do espírito. E essa ciência, tendo o seu objeto próprio e essencialmente distinto do objeto de todas as outras ciências, é única em seu gênero, com seus princípios e com seu método próprio [...] estuda a realidade em si mesma, o ser em seu mistério interior, em sua significação mais íntima e profunda, numa palavra, o ser consciente de si mesmo28. Trata-se, portanto, de refletir criticamente sobre o espírito inerente ao cogito cartesiano: Eu penso — eis para mim a primeira verdade [...] Não se deve, porém, dizer como Descartes: eu penso, logo existo — cogito, ergo sum. Devese ao contrário dizer: eu penso, logo existe meu pensamento. E se existo, é porque sou capaz de pensar, e minha existência não consiste em outra coisa, senão em meu pensamento. E se me tornar incapaz de pensar, perdendo totalmente a consciência, cessarei de existir29. Tal observação tem como alvo a interpretação material da forma condicional “se... então” pertinente ao “penso, logo existo”. Do ponto de vista desta interpretação, o cogito implica a percepção de uma existência: se penso, necessariamente existo e, neste sentido, a verdade se fundamenta no sujeito como fenômeno objetivo, isto é como fato fisiologicamente observável, e não no conhecimento de si como espírito ou pensamento. Contrariamente, para Farias Brito uma “ciência do espírito” deve ter uma dimensão metafísica, para além da mera constatação no âmbito da experiência, segundo a qual a verdade se fundamenta no ato de pensar, de modo que se se perde a consciência de si o sujeito pode manter-se fisiologicamente vivo, mas psiquicamente morto. E é justamente em função dessa dimensão metafísica do conhecimento de si que vive o eu, de modo que, para enfatizarmos o sentido da “psicologia transcendente” em Farias Brito, bem como o da “expressão da dor estética” em Augusto dos Anjos, não parecerá extravagante se dissermos que o eu está realmente morto, não simbolicamente ou “em certo sentido” ou “como se estivesse”, mas literalmente morto, se ele perde a consciência de si como espírito: [Do ponto de vista físico] sempre que um corpo se move, é impelido por algum corpo anterior em movimento, quer dizer: obedece à ação de uma força estranha [...] só conhecemos a força em seus efeitos exteriores, ou por outra, como movimento. E isto significa que só conhecemos a força em sua aparência material, como movimento ou como corpo deslocandose no espaço: o que quer dizer precisamente que só conhecemos a força como fenômeno, jamais como “coisa em si”. [Mas do ponto de vista metafísico, há] uma força que conhecemos por outra forma, que, conhecemos, por assim dizer, diretamente e face a face, ou mais 28 29 Idem, pp. 60-61. Idem, pp. 354-355. “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 CERQUEIRA, Luiz Alberto -8- precisamente, que conhecemos em sua significação interna. É a que reside em nós. E esta é de natureza intelectual, pois o que nos determina a agir, são necessidades de que temos consciência, são fins que temos em vista realizar; logo, idéias. E a força que reside em nós e pela qual nos movemos é, de fato, o pensamento30. A essência do belo Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa, Abranda as rochas rígidas, torna água Todo o fogo telúrico profundo E reduz, sem que, entanto, a desintegre, À condição de uma planície alegre, 31 A aspereza orográfica do mundo! Coube a Farias Brito distinguir e proclamar entre nós a necessidade de estudo do espírito enquanto fundamento do sentido da vida, denunciando, entretanto, o perigo de uma exacerbada exigência de verdade acerca desse sentido. Assim, temos a ciência, que nos permite realizar o ideal de uma vida em bases racionais; e a arte, que nos fornece este ideal como a expressão de uma necessidade [...] se bem que dela não tenhamos a clara percepção, nem o sentido exato [...] E como o ideal é o sonho da perfeição, e este sonho envolve toda a verdade e toda a justiça e toda a virtude e todo o amor [...] segue-se evidentemente daí que, de todas as produções do espírito, a arte é a mais humana e a mais essencialmente espiritual32. Por isso, diz ele, é um “absurdo de certos sistemas estéticos [a proposta de] descrever a realidade nua e crua. É uma espécie de reprodução, à maneira de caricatura, da obra mesma da ciência33”. Evidentemente, não é esta a proposta de Augusto dos Anjos. Pelo contrário, belo é o soneto onde se lê “Escarra nessa boca que te beija!”, mas não o significado literal de tal exortação. Augusto dos Anjos faz uso da linguagem científica, é verdade, mas somente para exprimir a sua percepção estética da feiúra do eu representado pelo filósofo moderno, o qual reduziu a natureza à causalidade mecânica e chegou a conceber uma psicologia sem alma: 30 Idem, pp. 367-368. ANJOS, Augusto dos. Monólogo de uma Sombra. In: Eu e outras poesias. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982, vol. 1, p. 49. 32 BRITO, Raimundo de Farias. O mundo interior. Introdução de Luiz Alberto Cerqueira. Lisboa: INCM, 2003, pp. 65-66. 33 Idem, p. 71. 31 “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 O EU COMO PRINCÍPIO: A ESTÉTICA DE AUGUSTO DOS ANJOS -9- Aí vem sujo, a coçar chagas plebéias, Trazendo no deserto das idéias O desespero endêmico do inferno, Com a cara hirta, tatuada de fuligens Esse mineiro doido das origens, Que se chama o Filósofo Moderno! Quis compreender, quebrando estéreis normas, A vida fenomênica das Formas, Que, iguais a fogos passageiros, luzem... E apenas encontrou na idéia gasta, O horror dessa mecânica nefasta, 34 A que todas as coisas se reduzem! *** Cansada de observar-se na corrente Que os acontecimentos refletia, Reconcentrando-se em si mesma, um dia, A Natureza olhou-se interiormente! Baldada introspecção! Noumenalmente O que Ela, em realidade, ainda sentia Era a mesma imortal monotonia De sua face externa indiferente! E a Natureza disse com desgosto: “Terei somente, por ventura, rosto?! “Serei apenas mera crusta espessa?! “Pois é possível que Eu, causa do Mundo, “Quanto mais em mim mesma me aprofundo, “Menos interiormente me conheça?!”35 Voltemos a Farias Brito. O método introspectivo, por ele defendido como método próprio da filosofia, tem a ver com a sua idéia de que um saber estrito acerca do espírito “não se aprende nos livros, mas na luta mesma da vida: é uma ciência que, por assim dizer, não se aprende, mas vive-se; ciência [...] em que o objeto do conhecimento é consubstancial com o sujeito36”, razão pela qual “A ‘coisa em si’ ou o espírito [...] só pode ser conhecido por observação interior37”. Contrariamente às objeções kantianas de que esse método só fornece ao observador a matéria de um jornal autobiográfico, Farias Brito não só observa que “Kant confunde introspecção com imaginação38”, como ressalta que “Kant não admitia ciência senão como sistematização no sentido da causalidade mecânica. Mas há 34 ANJOS, Augusto dos. Monólogo de uma Sombra. In: Eu e outras poesias. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982, vol. 1, p. 49. 35 Idem, vol. 2, p. 41: Natureza Íntima, soneto dedicado a Farias Brito. 36 BRITO, Raimundo de Farias. O mundo interior. Introdução de Luiz Alberto Cerqueira. Lisboa: INCM, 2003, p. 70. 37 Idem, p. 408. 38 Idem, p. 410. “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 CERQUEIRA, Luiz Alberto - 10 - também a causalidade psíquica [...] a causalidade mecânica não é talvez senão uma sombra da causalidade psíquica”39. Contrariamente ao conhecimento científico com o qual conquistamos à natureza o direito de viver pelo trabalho e pelo sacrifício, a percepção estética torna a vida desejável e promove um comprometimento do eu com a sua rotina através das sensações e das emoções: “Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa [...] reduz, sem que entanto, a desintegre, /À condição de uma planície alegre, / A aspereza orográfica do mundo!”. Filhos de um eu epistêmico, o realismo e o naturalismo supõem a mesma concepção mecânica da natureza, no sentido de que o artista deve acercar-se das coisas e dos fatos impessoalmente, isto é, apenas em função das leis universais que regem a existência. Neste sentido, o cientificismo no Brasil oitocentista, cuja irrisão foi a “poesia científica”, deve ser entendido como uma necessidade histórico-cultural. Afinal, que é o cientificismo senão o uso político-ideológico do valor científico do conhecimento? Do ponto de vista de uma realidade sem graça, onde tudo se explica segundo uma causalidade mecânica estritamente dentro dos limites da experiência, a atividade poética tem um caráter transcendente, como uma viagem extraordinária ao mundo da idealidade do pensamento, ao país da fantasia, onde tudo é calma, perfeição e beleza; de onde, entretanto, o eu retorna kafkanianamente condenado a uma existência absurda, sem sentido nem esperança, para viver à sombra de si mesmo, numa realidade onde a vida pode transformar-se, subitamente, em pesadelo e revolta: Recife. Ponte Buarque de Macedo. Eu, indo em direção à casa do Agra40, Assombrado com a minha sombra magra, Pensava no destino, e tinha medo! [...] Ah! Com certeza, Deus me castigava! Por toda a parte, como um réu confesso, Havia um juiz que lia o meu processo E uma forca especial que me esperava! [...] Escarrar de um abismo noutro abismo, Mandando ao Céu o fumo de um cigarro, Há mais filosofia neste escarro Do que em toda a moral do Cristianismo! [...] Homem! Por mais que a Idéia desintegres, Nessas perquisições que não têm pausa, Jamais, magro homem, saberás a causa De todos os fenômenos alegres!41 39 40 Idem, p. 411. A casa do Agra, ao fim da Ponte Buarque de Macedo, era o necrotério. “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 O EU COMO PRINCÍPIO: A ESTÉTICA DE AUGUSTO DOS ANJOS - 11 - *** Vêm-me à imaginação sonhos dementes. Acho-me, por exemplo, numa festa... Tomba uma torre sobre a minha testa, Caem-me de uma só vez todos os dentes! 42 *** E esfregando as mãos magras, eu, inquieto, Sentia, na craniana caixa tosca, A racionalidade dessa mosca, 43 A consciência terrível desse inseto! *** Estou sozinho! A estrada se desdobra Como uma imensa e rutilante cobra De epiderme finíssima de areia... E por essa finíssima epiderme Eis-me passeando como um grande verme Que, ao sol, em plena podridão, passeia! [...] Lembro-me bem. Nesse maldito dia O gênio singular da Fantasia Convidou-me a sorrir para um passeio... Iríamos a um país de eternas pazes Onde em cada deserto há mil oásis E em cada rocha um cristalino veio. Gozei numa hora séculos de afagos, Banhei-me na água de risonhos lagos, E finalmente me cobri de flores... Mas veio o vento que a Desgraça espalha E cobriu-me com o pano da mortalha, Que estou cosendo para os meus amores! Desde então para cá fiquei sombrio! Um penetrante e corrosivo frio Anestesiou-me a sensibilidade E a grandes golpes arrancou as raízes Que prendiam meus dias infelizes 44 A um sonho antigo de felicidade! Referências Bibliográficas: ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. Rio de Janeiro: Bertrand, 2001. BARRETO, Tobias. Estudos de filosofia. Introd. e notas de Paulo Mercadante e Antônio Paim. In: Obras completas. Rio de Janeiro: INL/Record, 1990. BRITO, Raimundo de Farias. O Mundo Interior: Ensaio Sobre os Dados Gerais da Filosofia do Espírito. Introd. Luiz Alberto Cerqueira. 3. ed. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003, p.1-428. 41 ANJOS, Augusto dos. As Cismas do Destino. In: Eu e outras poesias. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982, vol. 1, p. 60. 42 . Idem, p. 135: Tristezas de um Quarto Minguante. 43 Idem, p. 80: Os Doentes. 44 Idem, 118: A Ilha de Cipango. “Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007 CERQUEIRA, Luiz Alberto - 12 - _________Ensaio sobre o Conhecimento. Introd. Luiz Alberto Cerqueira. 3. ed. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003, p. 429-466. 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