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IDENTIDADE E FORMAÇÃO DO ADMINISTRADOR: O PAPEL DA
EMPRESA JÚNIOR
Ésther, Angelo Brigato1 – [email protected]
Faculdade de Administração e Ciências Contábeis, Universidade Federal de Juiz de Fora
(FACC/UFJF)
Rua José Lourenço Kelmer, s/n - Campus Universitário
Bairro São Pedro – CEP: 36036-900 – Juiz de Fora – MG – Brasil
David, Igor Porto2 – [email protected]
Resumo: O artigo discute o papel da empresa júnior na formação profissional do
Administrador e, consequentemente, na construção de sua identidade. A empresa júnior é a
expressão de um movimento que vem ganhando força e adeptos ao longo do tempo, ancorada
nos preceitos liberais de mercado, que preconizam a necessidade de profissionais preparados
para dar conta dos desafios colocados às empresas. Tal perspectiva é suportada pelas
diretrizes curriculares, que orientam a construção de currículos, os quais, por sua vez,
estimulam a criação de empresas juniores. Ao mesmo tempo em que os currículos tendem a
se alinhar às diretrizes estabelecidas, em larga medida se afastam dos pressupostos da lei de
diretrizes e bases da educação brasileira, no sentido de favorecer a formação crítica e
reflexiva, privilegiando-se a formação técnica e tecnicista. O artigo apresenta resultados de
uma pesquisa realizada com gestores e ex-gestores de uma empresa júnior, de modo a
ilustrar e discutir tais argumentos.
Palavras-chave: Trabalho gerencial. Educação Superior. Identidade Profissional.
INTRODUÇÃO
A empresa júnior é a expressão de um movimento que vem crescendo nos últimos. A despeito
de seu papel no processo de aprendizagem para o desempenho das atividades do
administrador, ainda podemos considerar como insuficiente seu papel e influência na
construção da identidade deste profissional. Assim, o artigo discute a influência da empresa
júnior neste processo, analisando o entrelaçamento entre o disposto na lei de diretrizes e bases
1
2
Doutor em Administração pela UFMG (Professor Associado).
Bolsista de iniciação científica (BIC/UFJF).
da educação brasileira, o prescrito nas diretrizes curriculares nacionais para o curso de
Administração, e os preceitos do movimento empresa júnior.
De modo a subsidiar a análise, é apresentada uma pesquisa realizada com gestores e exgestores de empresa júnior de uma universidade federal brasileira. Os resultados apontam
distanciamento e convergências entre o prescrito e os dados empíricos, assinalando a
permanência, ainda, de uma formação técnica em detrimento do desenvolvimento da reflexão
crítica mais ampla.
1
IDENTIDADE
De modo geral, a ideia de identidade nos remete à pergunta “Quem é você?” ou “Quem sou
eu?”. As respostas podem variar, mas, certamente, trazem atributos definidores ou
predicativos acerca de quem se pergunta. Em outras palavras, a atribuição da identidade está
relacionada às avaliações decisivas sobre si mesmo, realizadas pelo indivíduo ou pelo outro
(STRAUSS, 1997). Do ponto de vista conceitual, isto não é o bastante, mas é o começo.
Uma primeira questão fundamental que surge envolve a suposição da identidade enquanto
uma essência ou substância num sentido metafísico. De modo geral, esta tende a ser a
premissa ontológica funcionalista, de que o indivíduo é portador de um núcleo essencial quase
imutável, sendo considerada como de difícil mudança.
Basicamente ao oposto desta tradição, tem-se a perspectiva pós-moderna, tal como colocado
por Hall (2004), a qual entende a identidade como uma manifestação linguística e mesmo
como uma ilusão (GIOIA, 1998), rejeitando qualquer essencialismo (CERULO, 1997).
De certo modo, a meio do caminho, na perspectiva interpretativa a concepção essencialista
também não é aceita, compreendendo-se a identidade como sendo uma construção que se dá
no contexto das relações sociais, portanto, num contexto de relações de poder. No entanto,
embora subjetivista, esta perspectiva não considera a identidade uma ilusão, como os pósmodernos.
Do ponto de vista dos interacionistas, em oposição à perspectiva funcionalista, prevalece a
interpretativa, assumindo que a identidade é construída ao longo do tempo, assumindo que ao
viverem e sofrerem suas experiências, as pessoas mudam suas avaliações e classificações, e
que, portanto, os valores atribuídos aos objetos se modificam com o tempo (STRAUSS,
1999). Para Strauss (1999), o indivíduo é parte de um sistema interativo dinâmico, não sendo
possível se falar de identidade individual sem considerar a identidade coletiva. Para ele, a
identidade é dinâmica e está associada ao desempenho de diferentes papéis articulados a
vivências específicas em mundos sociais particulares, em que se articulam, portanto, biografia
individual e processos sociais.
No campo da Administração e dos Estudos Organizacionais, são bastante influentes a teoria
da identidade social e a teoria da categorização social, cujas definições serão úteis para a
compreensão da formação do profissional em nível superior e de sua concepção acerca do
trabalho gerencial e do que significa ser gerente. A Teoria da Identidade Social (TIS) assume
a identidade como parte do autoconceito do indivíduo, procurando explicar o comportamento
humano articulando processos sociocognitivos de categorização e de autovalorização, os quais
estimulam os aspectos mais significativos da experiência, fazendo com que indivíduos se
definam de forma positiva de acordo com as normas e os estereótipos da categoria a que
pertencem, comparativamente a outros grupos. Complementarmente, a Teoria da
Categorização Social (TCS) concebe a identidade como resultado do processo de
socialização, e destaca o processo chamado de prototipagem. Isto significa que os indivíduos
representam os atributos dos estereótipos ou de membros exemplares de grupos na forma de
protótipos, os quais incorporam todos os atributos que caracteriza o grupo e os distingue dos
outros, incluindo crenças, sentimentos e comportamentos, maximizando as semelhanças e
diferenças entre grupos. (HOGG; TERRY, 2001).
Numa abordagem apoiada na teoria crítica, Ciampa (2006) destaca a proposição de Habermas
quanto a identidade do eu e a identidade do papel. Esta é considerada convencional, na
medida em que alguém é apenas portador de um papel, baseada nos estereótipos (conduta de
meninos ou meninas, homens ou mulheres, por exemplo), o que pode sugerir a existência de
uma identidade a priori ou “essencial”, uma vez que a identidade de papel é aquela atribuída e
reproduzida coletivamente. A identidade do eu é a chamada identidade “pós-convencional”,
que se define pelo processo e não pelo conteúdo a priori.
Neste sentido é que se pode falar sobre a política de identidade, ou seja, aquele conjunto de
princípios normativos que visam normalizar ou homogeneizar uma coletividade, visando a
garantir o compartilhamento de significados considerados relevantes para dar sentido às
atividades individuais. Em termos da identidade profissional, quanto mais antiga e estável
uma profissão, maior é o peso de sua tradição na manutenção e reprodução de um padrão de
comportamento, o que leva os grupos mais conservadores a defenderem a identidade
convencional, por vezes expressa por meio de um perfil. Se este grupo é forte e hegemônico o
suficiente, ele é capaz de estabelecer uma política de identidade que irá determinar ou
influenciar o modo pelo qual cada pessoa se reconhece e é reconhecida (CIAMPA, 2006). É
neste sentido que Elias (2000) se refere aos “estabelecidos” e aos “outsiders”, ao estudar as
relações de poder entre três comunidades numa pequena cidade inglesa. Lá, ele demonstra a
força desta pressão coletiva sobre um conjunto de indivíduos que constituem uma
determinada comunidade estigmatizada pelos estabelecidos, por meio de um forte jogo de
poder.
Por fim, destacamos que toda identidade é, também, política, em sua dimensão individual
(CIAMPA, 2006). Quanto mais o indivíduo se “posicionar” em termos daquele estereótipo,
mais sua identidade se aproximará de uma identidade convencional, expressa na forma do
protótipo. Quanto mais ele se afastar, mais próximo de uma identidade “pós-convencional”
ele estará. Neste sentido, o indivíduo poderá vir a ser estigmatizado ou não, mas, de todo
modo, poderá, também, estar se aproximando, pelo menos neste nível de relações sociais, de
um processo emancipatório.
Assim, torna-se fundamental compreender como a política de identidade afeta tanto a
dimensão coletiva do “pertencimento” quanto a singularidade individual. Neste sentido, o
artigo procura compreender este processo entre indivíduos que estão em processo educacional
e formativo em nível superior, conforme descrito a seguir.
2
A FORMAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO
3.1 Legislação: LDBEN e as DCNs
No Brasil, a educação é regulada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira
(LDBEN), cuja versão vigente foi aprovada em 1996, na forma da Lei n. 9.394. De acordo
com a lei, a formação superior tem como finalidade, em seu artigo 43:
I - estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito científico e
do pensamento reflexivo;
II - formar diplomados nas diferentes áreas de conhecimento, aptos para a
inserção em setores profissionais e para a participação no desenvolvimento
da sociedade brasileira, e colaborar na sua formação contínua;
III - incentivar o trabalho de pesquisa e investigação científica, visando o
desenvolvimento da ciência e da tecnologia e da criação e difusão da cultura,
e, desse modo, desenvolver o entendimento do homem e do meio em que
vive;
IV - promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e
técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber
através do ensino, de publicações ou de outras formas de comunicação;
V - suscitar o desejo permanente de aperfeiçoamento cultural e profissional e
possibilitar a correspondente concretização, integrando os conhecimentos
que vão sendo adquiridos numa estrutura intelectual sistematizadora do
conhecimento de cada geração;
VI - estimular o conhecimento dos problemas do mundo presente, em
particular os nacionais e regionais, prestar serviços especializados à
comunidade e estabelecer com esta uma relação de reciprocidade;
VII - promover a extensão, aberta à participação da população, visando à
difusão das conquistas e benefícios resultantes da criação cultural e da
pesquisa científica e tecnológica geradas na instituição. (BRASIL, 1996)
Como se pode depreender do texto legal, a educação superior vai além da mera formação
técnica, pressupondo a formação de um indivíduo mais consciente de seu papel na sociedade,
contribuindo para seu desenvolvimento e avanço, ressaltando-se que, em nenhum dos incisos,
seu papel consiste em promover o desenvolvimento econômico enquanto prioridade de sua
atuação. Ao contrário, espera-se uma formação mais ampla e cidadã, pautada numa conduta
ética e responsável, em que o estudante deve ser estimulado a pensar, refletir e agir
criticamente sobre a realidade em que vive.
A formação superior em Administração, especificamente considerada, é regulada pelas
“Diretrizes Curriculares Nacionais” (DCN). Convém ressaltar que os cursos de Administração
Pública possuem suas próprias diretrizes, após um período de embate em relação à formação
em Administração “geral”, que, na prática, confunde-se com a gestão de empresas privadas.
As DCN do curso de Administração preveem a elaboração do Plano Pedagógico de Curso –
ou PPC – (Resolução CNE/CES 4/2005). No bojo do PPC, e para além da tradicional grade
disciplinar, os cursos preveem atividades complementares, dentre as quais possa ser a
existência de empresa júnior, cujas características serão descritas adiante. De todo modo, vale
ressaltar o perfil do egresso estabelecido no artigo terceiro (Resolução CNE/CES 4/2005):
Art. 3º. O Curso de Graduação em Administração deve ensejar, como perfil
desejado do formando, capacitação e aptidão para compreender as questões
científicas, técnicas, sociais e econômicas da produção e de seu
gerenciamento, observados níveis graduais do processo de tomada de
decisão, bem como para desenvolver gerenciamento qualitativo e adequado,
revelando a assimilação de novas informações e apresentando flexibilidade
intelectual e adaptabilidade contextualizada no trato de situações diversas,
presentes ou emergentes, nos vários segmentos do campo de atuação do
administrador. (BRASIL, 2005.) (grifo nosso).
Explicitamente, o perfil desejado é voltado às necessidades da esfera da produção,
notadamente empresarial. A formação crítica e reflexiva é preterida em nome da formação
técnica, conforme se pode depreender do perfil de competências requeridas, a seguir,
conforme o artigo quarto da referida resolução.
I - Reconhecer e definir problemas, equacionar soluções, pensar
estrategicamente, introduzir modificações no processo produtivo, atuar
preventivamente, transferir e generalizar conhecimentos e exercer, em
diferentes graus de complexidade, o processo da tomada de decisão;
II - Desenvolver expressão e comunicação compatíveis com o exercício
profissional, inclusive nos processos de negociação e nas comunicações
interpessoais ou intergrupais;
III - Refletir e atuar criticamente sobre a esfera da produção, compreendendo
sua posição e função na estrutura produtiva sob seu controle e
gerenciamento;
IV - Desenvolver raciocínio lógico, crítico e analítico para operar com
valores e formulações matemáticas presentes nas relações formais e causais
entre fenômenos produtivos, administrativos e de controle, bem assim
expressando-se de modo crítico e criativo diante dos diferentes contextos
organizacionais e sociais;
V - Ter iniciativa, criatividade, determinação, vontade política e
administrativa, vontade de aprender, abertura às mudanças e consciência da
qualidade e das implicações éticas do seu exercício profissional;
VI - Desenvolver capacidade de transferir conhecimentos da vida e da
experiência cotidianas para o ambiente de trabalho e do seu campo de
atuação profissional, em diferentes modelos organizacionais, revelando-se
profissional adaptável;
VII - Desenvolver capacidade para elaborar, implementar e consolidar
projetos em organizações; e
VIII - Desenvolver capacidade para realizar consultoria em gestão e
administração, pareceres e perícias administrativas, gerenciais,
organizacionais, estratégicos e operacionais. (BRASIL, 2005.)
É evidente o papel a ser desempenhado pelo administrador na esfera da produção privada e o
correspondente perfil de competências desejado para tanto. Sua perspectiva de ação é
microssocial, para a qual o entendimento e a compreensão da perspectiva macrossocial sequer
é mencionada ou levada em consideração, implicando uma formação centrada numa
perspectiva muito limitada da realidade, o que lhe impede ou dificulta, em decorrência, de
possuir ou desenvolver uma capacidade analítica e reflexiva mais ampla acerca de sua atuação
e da organização (empresa) em que trabalha (ou venha a trabalhar), em outros termos que não
a produção propriamente dita.
Como se pode notar, há certo desalinhamento entre o prescrito na LDB e o proposto nas
diretrizes curriculares para o curso de Administração. Neste sentido, duas observações são
pertinentes, no nosso modo de ver.
Em primeiro lugar, tanto a LDB quanto as DCN podem ser considerados como elementos
normativos e prescritivos de uma identidade de papel (HABERMAS, 1983), que constituem,
em alguma medida, uma política de identidade. Podemos perceber, inclusive pelos discursos
das revistas de negócios e pela difusão das chamadas comunidades epistêmicas, a difusão
daquilo que chamaríamos de “ideal de profissional”, equiparável ao estereótipo da teoria da
identidade social.
Em segundo lugar, grosso modo, o ideal de profissional da LDB – geral – e o ideal de
profissional das DCN são, fundamentalmente opostos, pelo menos em certo sentido. Enquanto
um preconiza um sujeito reflexivo e crítico, com potencial emancipatório (ainda que em
linhas muito gerais e superficiais), o outro defende, claramente, a formação de recursos
humanos qualificados tecnicamente para o trabalho produtivo, notadamente na esfera da
produção privada. Neste embate político, o ideal profissional técnico tem predominado,
alcançando alto valor na sociedade.
3.2 Formação profissional, projeto pedagógico e currículo: a reprodução da ideologia e a
política de identidade
Em seu pioneiro estudo sobre a formação do administrador, Covre (1991) mostra como se deu
a implantação dos primeiros cursos de Administração no Brasil, notadamente a Escola de
Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (EAESP), em função
de seu alto conceito junto ao setor empresarial à época (década de 1970). Para a autora,
baseada num referencial marxista (Gramsci e Althusser, principalmente), a escola se constitui
como órgão criador e veiculador da visão de mundo dominante da classe dominante, a qual,
naquele momento, necessitava de estudantes de bom nível intelectual, daí a predominância de
indivíduos oriundos de um nível socioeconômico privilegiado.
Naquele contexto, as grandes empresas eram o foco da formação em Administração, ao
contrário dos dias atuais. Conforme apontado por uma pesquisa realizada pelo Conselho
Federal de Administração (CFA, 2011, p.11), em que a maioria das empresas consideradas
(85%) foram de micro e pequeno porte (e cerca de 7% de grandes empresas), os resultados
apontam para a “consolidação da identidade do Administrador como um profissional com
visão sistêmica da organização, articulador de diversas áreas e pronto para o exercício da
liderança, formando e motivando pessoas e equipes de trabalho”.
Numa linha semelhante de argumentação, Gurgel mostra como a formação em Administração
é baseada num discurso ideológico, em que os valores liberais são a base de tal ideologia. Os
cursos de Administração, desta forma, aderem aos preceitos neoliberal, configurando-se como
difusores de tal ideário, contribuindo para a formação de profissionais acríticos e
reprodutores, igualmente, daquele ideário, daí a metáfora de a formação “gerenciar” o
pensamento dos estudantes (2003).
Destacamos ainda, o argumento de Paula (2012) para quem acaba por ocorrer a semiformação
do administrador, na medida em que os currículos dos cursos orientam sua atuação como
aquele que deve “proteger o lucro”, transpondo tal lógica a todo tipo de organização,
incluindo públicas e não-governamentais. Segundo Paula (2012), a semiformação – ausência
de uma formação mais crítica e cidadã, de modo geral – alcança não apenas os alunos, mas
também o corpo docente, que se mantém apegado ao padrão dominante de ensino e pesquisa.
Bertero (2007) faz um resgate histórico da criação e da formação em Administração,
apontando aspectos interessantes acerca das competências necessárias, destacando-se a rede
social formada pelos indivíduos em sua trajetória pessoal e profissional, bem como as
especificidades do trabalho do administrador dependendo do nível decisório de sua atuação.
Bicalho e Paula (2012) também reforçam a ideia de que a formação em Administração é
ideológica, apoiando-se numa perspectiva crítica de análise. As autoras mostram, por meio de
um estudo empírico, que a empresa júnior adota práticas de violência simbólica de modo a
reforçar a ideologia e garantir a conformação dos indivíduos (administradores em formação) a
esta.
Para além da formação acadêmica, ressaltamos a influência do discurso maciço das revistas e
sites de negócio e/ou de Administração, bem como o papel das consultorias e dos chamados
gurus de Administração (conforme apontam, por exemplo, Wood Jr. e Paula, 2006), que
acabam por constituir comunidades de prática e/ou comunidades epistêmicas (enquanto um
tipo de think tank), difusoras do discurso empresarial de base neoliberal.
No contexto da formação profissional o projeto pedagógico e o currículo do curso exercem
papel fundamental. A LDB preconiza que toda instituição de ensino formule sua proposta
pedagógica, expressa no chamado projeto pedagógico. Segundo Moreira e Silva (2002) o
currículo pode ser considerado um elemento cultural e social, e não um artefato
desinteressado e neutro. Os autores mapeiam o estudo sobre o currículo em torno de três eixos
que consideram primordiais. São eles: Ideologia, cultura e poder. Para os autores, na questão
da ideologia não importa tanto se esta caracteriza um conhecimento falso ou verdadeiro, e sim
saber “quais vantagens relativas e que relações de poder elas justificam ou legitimam”
(Moreira; Silva, 2002, p.23). No que diz respeito à cultura, os autores colocam em xeque a
perspectiva tradicional de que a cultura é algo dado ou “universalmente aceita”. Ao contrário,
eles a concebem como um terreno de lutas, um campo não apenas de reprodução, mas
também de produção e de criação simbólica, o que ocasiona embates e lutas de poder. Em
relação ao poder, o currículo tende a ser a oficialização de qual conhecimento é válido,
expressando assim os interesses das classes com poder de decisão e um constituidor de
“identidades individuais e sociais que ajudam a reforçar as relações de poder existentes,
fazendo com que os grupos subjugados continuem subjugados” (MOREIRA; SILVA, 2002,
p.29).
Segundo Apple (2002), o currículo é parte de uma “tradição seletiva”, ou seja, da visão de
algum determinado grupo. Naturaliza-se o conhecimento disseminado, como se fosse a única
visão possível, como se fosse uma descrição neutra. Em um mundo marcado pelas sucessivas
tentativas de diminuição do Estado ou, pelo menos, de sua subordinação ao mercado, entendese que a educação cumpre um papel importante nessa disputa. E o currículo é um dos
instrumentos para produzir e reproduzir essa lógica.
De todo modo, é importante deixar claro que não consideramos o Estado o governo como
instância onipresente capaz de determinar, por si só, os sentidos e significados atribuídos à
educação e ao conhecimento (por meio das políticas educacionais, por exemplo, a própria
LDB), e a universidade uma mera reprodutora de implementação de tais políticas. Outras
influências se fazem presentes por meio das chamadas comunidades epistêmicas, por
exemplo. Nos termos de Lopes (2006, p.35), tais comunidades fazem circular, no campo
educacional, discursos que são base da produção de sentidos e significados para as políticas
de currículo em múltiplos contextos, em uma constante tensão homogeneidadeheterogeneidade”. A comunidade epistêmica diz respeito a rede de atores que partilham
orientações de políticas de modo a resolver problemas e que desenvolvem expertise científica
como base da argumentação para o solução daqueles problemas (AKRICH, 2010).
Nos projetos político-pedagógicos dos cursos de Administração e em seus respectivos
currículos, é recorrente a criação ou o estímulo à criação de empresas juniores, consideradas
como ambiente privilegiado de aprendizagem dos futuros administradores. Ao emularem uma
empresa e em prestando consultorias às do mercado, as empresas juniores estariam
favorecendo o aprendizado dos administradores em formação, uma vez que estariam aliando
teoria e prática, em vez de apenas fixarem conteúdos por meio de leituras ou aulas
expositivas.
De todo modo, o movimento empresa júnior pode ser considerado influente junto ao meio
empresarial (enquanto uma comunidade epistêmica), que o apoia explícita e publicamente,
mesmo que a contratação de seus serviços não seja prioritária. O que interessa, neste aspecto,
é a consolidação da cultura empreendedora entre os futuros profissionais. Recentemente, foi
aprovada no congresso nacional legislação que regula a atuação das empresas juniores no
contexto de sua relação com a universidade e o mercado. Da mesma forma, a indústria
comemora e aponta os benefícios da “parceria” entre a universidade e o setor produtivo (este
entendido como o setor empresarial), a partir da aprovação da proposta de emenda à
constituição (PEC 395/14)3 que permitiria às universidades cobrarem por cursos de pósgraduação lato sensu, de extensão e pelos mestrados profissionais, bem como a aprovação da
Lei 13.243/2016, referente ao Marco Legal da Ciência e Tecnologia4.
Do ponto de vista da aprendizagem, é inegável que a prática é fundamental para o
desempenho e aperfeiçoamento das competências profissionais (entendidas como
conhecimento, habilidades e atitudes). Porém, os “oito benefícios” apontados pela CNI
(Confederação Nacional da Indústria) constituem o discurso ideológico em sua forma mais
explícita, por assim dizer, pois resume tudo a uma lógica mercantil em que ganham o aluno, a
universidade e a empresa. Nada acerca da dimensão social, das desigualdades e do
contraditório é levado em consideração, efetivamente. Ao contrário, é nítido o pensamento
único segundo o qual a competição é tanto o meio quanto a finalidade. No referido site da
CNI, a lógica expressa graficamente é: indústria + universidade = inovação (competitividade)
e conhecimento (empreendedorismo)5.
3
Cf. CNI. Agência de Notícias. Notícias. 8 benefícios que a interação entre indústrias e universidades trazem
para um país [2016]. Disponível em <http://www.portaldaindustria.com.br/cni/imprensa/2016/01/1,77130/8beneficios-que-a-interacao-entre-industrias-e-universidades-trazem-para-um-pais.html> Acesso em 02 fev. 2016.
4
Cf. ANDIFES. Início. Na mídia. Marco legal da ciência e tecnologia. O que muda na vida dos pesquisadores?
[2016]. Disponível em <http://www.andifes.org.br/marco-legal-de-ciencia-e-tecnologia-o-que-muda-na-vidados-pesquisadores/>. Acesso em 05 fev. 2016.
5
Cf. CNI, op. cit.
Colocada desta forma, a questão remete a discussão quanto ao papel da universidade como
instância reprodutora da ideologia dominante neoliberal, a qual coloca o conhecimento, a
educação e a universidade sob um mesmo critério, isto é, como meios para a formação de
recursos humanos para o mercado de trabalho numa economia liberal. Em outras palavras,
transforma a universidade numa universidade corporativa. Desta forma, o setor privado
transfere grande parcela de seus custos da formação de recursos humanos e de pesquisa e
desenvolvimento para o setor público, apropriando-se do conhecimento e da tecnologia por
este produzido, que são materializados em produtos e serviços, os quais, por sua vez, são
vendidos ao mercado, para aqueles que podem comprar.
Na próxima seção, são apontados os aspectos metodológicos da pesquisa realizada, seguida da
análise dos dados obtidos e as considerações finais.
3
ASPECTOS METODOLÓGICOS
A pesquisa realizada é, basicamente, qualitativa, a qual possibilita o desenvolvimento de uma
ideia geral e um interesse numa questão de pesquisa, baseada numa perspectiva interpretativa
e apoiada num referencial adequado aos seus propósitos (FLICK, 2008).
A pesquisa objetivou compreender como os estudantes de administração percebem o trabalho
do administrador enquanto ocupante de uma função gerencial, tendo em vista sua possível
realização após a conclusão do curso. Em geral, ser gerente é um dos motivos pelos quais os
estudantes procuram ingressar numa empresa júnior, daí a escolha de estudantes que
ocuparam e ocupavam à época do levantamento uma função gerencial na empresas júnior do
curso de Administração. No total, foram entrevistados 6 estudantes que ocupavam os cargos
gerenciais e 9 estudantes que haviam ocupado tais funções. A rigor, eles representam o corpo
gestor de dois mandatos.
Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas ou, nos termos de Flick (2003), entrevistas
episódicas, as quais procuram contextualizar as experiências e situações a partir do ponto de
vista do entrevistado. As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra, com a devida
aceitação e consentimento de todos os participantes. Para a análise, foram utilizados, ainda,
dados secundários, obtidos por meio de acesso aos sites institucionais mais representativos do
movimento empresa júnior para o caso estudado: FEJEMG, a Federação das Empresas
Juniores do Estado de Minas Gerais, e a Brasil Júnior, Confederação Brasileira de Empresas
Juniores. Procurou-se identificar os chamados núcleos de sentido (BARDIN, 1977) quando da
análise textual, a partir do agrupamento das respostas em função das categorias utilizadas.
4
4.1
O TRABALHO DO ADMINISTRADOR NA CONCEPÇÃO DOS ESTUDANTES
Formação em Administração e o papel da empresa júnior
A construção da representação acerca do trabalho do administrador se inicia muito antes da
prática do exercício profissional. Neste sentido, a formação universitária desempenha um
papel crucial, pois é por meio dela que valores e ideologias são transmitidas, reproduzidas e,
por vezes, analisadas criticamente.
Neste sentido, a criação de empresas juniores tem sido estratégia e prática recorrentes nos
cursos de Administração no país para complementar a formação profissional, além de
proporcionar possibilidades de estágio e emprego num futuro próximo. O movimento empresa
júnior surgiu na França em meados da década de 1960 e se espalhou pelo mundo desde então.
No Brasil, tem alcançado um crescimento expressivo. Segundo o site da Federação das
Empresas Juniores do Estado de Minas Gerais,
Fundadas e geridas exclusivamente por estudantes universitários, as
empresas juniores (EJs) transformam estudantes em empreendedores
comprometidos e capazes de transformar o Brasil. Através de serviços
prestados com o conhecimento adquirido nos cursos, os empresários juniores
desenvolvem empresas clientes e disseminam a atitude empreendedora. Com
isso, são formados profissionais cada vez mais preparados e dotados de
6
competências como liderança, visão estratégia e experiência em gestão .
(FEJEMG)
Como se pode perceber, o valor fundamental disseminado e, ao mesmo tempo sua finalidade,
é transformar estudantes em empreendedores. Nos termos de Ciampa (1991), identidade é
metamorfose, mas ela ocorre num processo de interação, numa relação intersubjetiva. Da
forma como o movimento empresa júnior concebe, tal transformação parece partir de um
ponto, e não ocorrer como processo de interação, denotando uma separação crítica entre o
indivíduo e a sociedade: empresa júnior como instituição que transforma o indivíduo, quase
que magicamente, por meio de um sistema de “formatação”, o qual poderia bem ser chamado
de “doutrinação”. Em outras palavras, uma análise (aqui não expressa formalmente) das
informações e da forma como as informações estão dispostas nos sites institucionais do
6
Cf. http://www.fejemg.org.br/site/. Acesso em 21 jan. 2016.
movimento empresa júnior (FEJEMG e Brasil Júnior, neste caso), sugere uma analogia muito
próxima a uma doutrina religiosa7. De todo modo, parece-nos clara a proposta ideológica do
movimento.
Neste processo de formatação ou de “processamento” dos estudantes, pressupõe-se que eles
são capazes de apreender, de forma absolutamente imediata, todo o conhecimento necessário
para o desempenho de suas atividades, de acordo com o ideário capitalista atual. Em outras
palavras, a capacitação profissional, que precisa de tempo para ser desenvolvida, é tida como
obtida instantaneamente, habilitando os estudantes a se tornarem profissionais da noite para o
dia, ao contrário do que o que ocorre na prática, ou seja, “são necessários geralmente três ou
quatro anos para um jovem profissional recém-saído da universidade entender o que
realmente tem utilidade nas matérias que estudou” (SENNETT, 2006, p.100).
Complementarmente, é interessante observar que, embora sejam ainda estudantes, são
chamados de empresários juniores, o que denota uma rotulação simbólica alinhada aos
valores empresariais que defende. Neste aspecto, como diria Anselm Strauss, “todo nome é
um recipiente”, pois “nele estão vertidas as avaliações conscientes e inconscientes de quem o
nomeia” (STRAUSS, 1999, p.35). Ao mesmo tempo, o termo “empresário” é ressignificado
como “empreendedor”, a despeito do termo empresário significar, na linguagem corrente
empresarial, o proprietário de um negócio.
Segundo Strauss (1999, p.36), quem recebe a nomeação – numa tentativa de fixar sua
identidade – pode reagir dentro de um “espectro de sentimentos que vai de relativa
indiferença a violenta rejeição ou a orgulhosa aceitação”. Neste aspecto, no site do “Brasil
Júnior”, que é a “confederação brasileira de empresas juniores [...] que representa as empresas
juniores brasileiras, impulsionando a vivência empresarial que elas proporcionam e
legitimando-as à sociedade”, cuja missão é “representar o movimento empresa júnior
e potencializá-lo como agente de formação de empreendedores capazes de transformar o
Brasil”, é expresso, formalmente, como valor para seus membros: “Orgulho de ser MEJ –
Somos apaixonados pelo nosso trabalho e trabalhamos por um movimento em que
7
Foge ao escopo deste artigo tal análise. De todo modo, gostaríamos de ressaltar este aspecto, mesmo que a
título de “provocação”, mesmo porque a analogia com religião não é nova nas análises organizacionais críticas.
acreditamos. Nosso orgulho de ser júnior é o que nos faz gigantes pela própria natureza”8.
Como se pode notar, o orgulho não é apenas uma reação esperada, mas um valor em si mesmo
que deve ser buscado e reproduzido9.
Por outro lado, segundo a referida pesquisa do Conselho Federal de Administração, realizada
em 2011, não deixa de ser interessante notar que apenas 5,75% dos administradores
pesquisadores optaram pelo curso de Administração motivados pela necessidade ou interesse
de “abrir negócio próprio”.
Portanto, e ainda que de forma resumida e simplificada, percebe-se uma ampla e profunda
influência sobre os estudantes de administração – sobretudo aqueles que se identificam com a
proposta –, tornando o MEJ e suas decorrentes instituições verdadeiras comunidades
epistêmicas, conforme os termos de Akrich (2010).
Entretanto, não podemos admitir a premissa de que a empresa júnior transforma o indivíduo
por ela mesma independente do próprio indivíduo, embora possamos assumir, de certo modo,
o “processamento” dos indivíduos, mas sempre de forma dialética.
4.2 A identidade do administrador na perspectiva de estudantes em cargo gerencial em
uma empresa júnior.
A pesquisa foi realizada com alunos de administração de exerciam ou haviam exercido função
gerencial na respectiva empresa júnior, de uma universidade federal, conforme Quadro 1, a
seguir.
Quadro 1 - Entrevistados
Funções ocupadas à
época
Funções ocupadas
anteriormente
8
Presidente; Vice-Presidente; Diretor de Marketing; Diretor de Finanças; Gerente de
Projetos; Diretor de Operações.
Presidente (2); Vice-Presidente; Diretor de Marketing; Diretor de Finanças; Gerente
de Projetos; Diretor de Operações; Diretor de Qualidade; Diretor de Gestão do
Conhecimento.
Cf. http://brasiljunior.org.br. Acesso em 21 jan. 2016. Nesta linha, ver, por exemplo, como alguns consultores
vêm defendendo que as empresas “invistam” na espiritualidade, por exemplo. Cf. MEDEIROS, Odilon.
Espiritualidade, felicidade e lucratividade nas empresas. [02/09/2015]. RH Portal. RH na Prática. Disponível em
<http://www.rhportal.com.br/artigos/rh.php?rh=Espiritualidade,-Felicidade-E-Lucratividade-NasEmpresas.&idc_cad=8n6n67v2k.>. Acesso em 26 jan. 2016.
Ver, ainda, CARVALHO, Madalena.
Espiritualidade corporativa: um caminho para o desenvolvimento de organizações e pessoas. [02/09/2015]. RH
Portal.
Treinamento
e
Desenvolvimento.
Disponível
em
<http://www.rhportal.com.br/artigos/rh.php?idc_cad=n_b33pbt5>. Acesso em 26 jan. 2016.
9
Na referida página inicial da Brasil Júnior, consta o apoio institucional de grandes empresas do país: Ambev,
Itaú, Caixa Seguradora, Votorantim e Rede Globo. Cf. http://brasiljunior.org.br/. Acesso em 21 jan. 2016.
Aqueles que haviam ocupado funções anteriormente já não pertenciam à empresa júnior, pois
seu limite de permanência na mesma já havia terminado (cerca de dois anos)10.
De um modo geral, as respostas orbitam em torno do discurso da liderança, e não do
empreendedorismo, como se poderia esperar, dada a força do discurso do movimento empresa
júnior neste sentido. Ao contrário, nenhum dos entrevistados sequer mencionou os termos
“empreendedorismo”, “empreendedor”, ou “empreender”. No entanto, a grande maioria
aponta a liderança como palavra-chave para o desempenho da função do administrador
investido em cargo gerencial. A rigor, apenas um mencionou a palavra empreendedorismo,
mas apenas para se referir ao movimento empresa júnior, e não ao trabalho do administrador
ou do gestor propriamente ditos.
Para além da liderança, quando perguntados sobre quais competências o administrador deve
possuir para exercer a gerência, as respostas se concentram em “trabalhar em equipe”,
“responsabilidade”, “foco em resultados”, “comunicação”, “comprometimento”, “iniciativa”,
“visão estratégica”, “visão sistêmica”, “relacionamento interpessoal”, “organização”. Neste
aspecto, não houve nenhuma distinção entre as respostas dos atuais gestores e ex-gestores.
Em relação à formação, não se percebe uma maioria expressiva em torno de uma resposta. Ao
contrário, surgem respostas contraditórias, tal como afirmar que o “curso é muito teórico e
deveria ter aulas mais práticas”, ao mesmo tempo em que recomendam, quando perguntados
sobre o que eles sugeririam a quem pretende alcançar uma posição gerencial, que “estudem
bastante”.
Em relação às funções que realizavam (atuais e ex-gestores), a grande maioria das respostas
apontou na direção do exercício de atividades rotineiras e operacionais, a despeito de se
referirem a necessidade de geração de resultados, tanto para os clientes quanto da própria
empresa júnior.
De modo geral, gestores ex-gestores apontaram como a principal ação que um gerente não
deve fazer a “desconsideração para com os colaboradores ou equipe de trabalho”. No nosso
10
Nenhum dos entrevistados pertence à gestão atual. A data de pesquisa foi suprimida para não possibilitar a
identificação dos indivíduos, garantindo-se seu anonimato.
modo de ver, tal observação é fundamental para se compreender o trabalho do administrador,
pelo menos enquanto desempenhando uma função gerencial: garantir a adesão dos demais aos
ideais organizacionais. Isto pode ser corroborado quando se identifica o “alcance de
resultados” como uma das principais fontes de satisfação do trabalho.
Alguns entrevistados apontaram a necessidade de se manter alguma distância entre os colegas,
isto é, vários deles são colegas em sala de aula, por exemplo, mas, na empresa júnior, devem
se comportar de acordo com os preceitos hierárquicos, o que traz alguma tensão para os
comportamentos coletivos.
Neste aspecto – aliado aos demais –, nota-se que a identidade profissional começa a ser
construída num contexto de ambiguidade, em que, ao mesmo tempo que devem compartilhar
valores, pressupostos e modos comportamentais semelhantes, devem manter certa distância
entre si, dado o caráter – implícito, não declarado – de competitividade existente entre os
componentes da empresa júnior e entre eles e os demais alunos e alunas do curso. É notório
que a participação na mesma é vista como uma alavanca estratégica para alcançar objetivos
profissionais fora da faculdade, ou seja, muitos esperam se destacar na empresa júnior como
forma de “garantir” uma vaga de emprego ou de trainee numa grande empresa.
Embora não tenham sido perguntados diretamente – pois esperava-se que os depoimentos
trouxessem à tona respostas espontâneas, sem nenhum tipo de direcionamento que indicasse
certas questões de interesse subjacentes – sobre questões de cunho macroeconômico ou
macrossocial, a grande maioria se manteve atrelada à instância institucional, ou seja, ao nível
de sua própria atuação na empresa júnior.
Um aspecto interessante observado pelos pesquisadores na prática da empresa júnior diz
respeito aos artefatos e comportamentos construídos. Desde o ingresso na empresa, os
administradores em formação devem se vestir de determinada maneira – relativamente formal
–, o que implica, dentre outras atitudes, jamais calçar um tênis ou usar uma bermuda, por
exemplo. O pressuposto é que o vestuário indica para o cliente da empresa que se trata de um
ambiente sério e profissional, mesmo sabendo que se tratam de alunos. Observe-se que aí
reside um elemento simbólico significativo, pois o vestuário é uma linguagem corporal aceita
como certa e universal, sem que nenhuma pesquisa ou levantamento sobre isto tenha sido
feito anteriormente.
Algumas hipóteses – não verificadas – emergiram durante e após a análise das entrevistas. O
fato de os entrevistados não se referirem ao termo “empreendedorismo” e derivados implica,
ainda que inconscientemente, uma não adesão a tal ideário? Ou apenas refletiu sua “real”
atuação na empresa júnior, denunciando, silenciosamente, um enorme fosso entre o prescrito e
o que ocorre na prática? Tais estudantes não teriam assimilado o discurso forte do
empreendedorismo, a despeito de toda a pressão neste sentido? Estariam tais estudantes
denotando uma “não identificação” com o trabalho do administrador?
No nosso modo de ver, embora não tenha sido possível verificar empiricamente – dado que tal
constatação se deu apenas após a realização das entrevistas e sua análise – as questões
formuladas acima, nada indica, de fato, uma não adesão aos valores e discursos da formação
profissional. Mas, ao mesmo tempo, pode indicar que, mesmo diante de um discurso forte, de
uma produção simbólica reafirmada pelas comunidades epistêmicas, a assimilação não ocorre
de forma linear e homogênea, até porque, certamente, o currículo pode conter elementos
“subversivos” ao discurso dominante, embora não o elimine. Talvez, até, funcione como uma
espécie de amortecedor. No entanto, pelo menos em relação aos dados empíricos, tal
afirmação não passe, ainda, de mera especulação, embora seja um indício interessante.
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É de se esperar que a formação do administrador seja compatível com os princípios
preconizados pelas DCNs para o curso. Ao mesmo tempo, seria esperado que houvesse
compatibilidade com as finalidades prescritas para o ensino superior segundo a LDBEN. A
despeito das imperfeições e ambiguidades desta última – que, sem dúvida, é resultado de um
embate longo de poder e que ainda contém uma série de problemas –, seria esperado que a
LDBEN servisse de diretriz maior e embasadora das DCNs. Como vimos, não é este o caso,
pois a última não atende à primeira em seu fundamento, constituindo-se mesmo em uma
contradição, ou, na melhor das hipóteses, numa forte tensão.
Diante desta situação, os currículos dos cursos de Administração acabaram por se balizar num
conjunto de fundamentos e numa lógica que obedece a outros princípios que não aqueles
preconizados para o ensino superior, pelo menos de uma forma geral. No caso específico da
problemática aqui analisada, ficou claro que o papel da empresa júnior e de seus
desdobramentos institucionais – FEJEMG e Brasil Júnior – constitui um agravamento daquela
contradição.
Quando entrevistados acerca do ser administrador nas organizações – que, na prática, tende a
ser equiparada à empresas de modo geral –, os princípios norteadores da formação de cunho
empresarial são evidenciados, a despeito de, em alguns momentos, os estudantes tomarem
certo “cuidado” em formular um discurso que tenda a dissimular a ideologia subjacente.
Assim, nenhum dos entrevistados se refere ao papel do administrador como aquele que deve
gerar lucro para as empresas, embora se refiram a resultados. Ao contrário, por vezes o
discurso vai na direção de “promover o crescimento das pessoas”, por exemplo. A utilização
do discurso do “resultado” – geralmente associado aos benefícios gerados para a empresa,
para os clientes e para a “sociedade”, ou associado a outros termos como eficiência,
produtividade etc. –, ao invés de lucro, é um modo de disfarçar ou escamotear a real
finalidade da ação gerencial nas empresas, algo, aliás, já demonstrado por Antunes (1996) em
meados da década de 1990.
Neste aspecto, o que parece ter se modificado desde que Antunes (1996) explicitou as “novas
formas de sedução na empresa”, foi a ascensão da ideologia (ou da teologia?) do
empreendedorismo. Como vimos anteriormente, o movimento empresa júnior foi muito
competente em se apropriar deste discurso, num contexto em que o individualismo é uma das
grandes características do próprio capitalismo, que defende a crença no indivíduo como
agente de tudo o que faz, independentemente do coletivo. Ser empreendedor significa ser
individualista e buscar seu próprio “sucesso”, desde que desenvolva determinadas
competências para isto. Ora, um dos lugares para se obter competência é a formação superior
numa universidade ou numa faculdade, daí a aderência dos currículos à lógica do
empreendedorismo. Daí, igualmente, a ascensão do poder do movimento empresa júnior.
Na prática, ainda que inconscientemente, os estudantes se veem como executores, e não como
empreendedores. As funções realizadas por eles, a despeito do discurso institucional, deixa
claro que suas atividades são predominantemente burocráticas e rotineiras, embora seja
construída uma aura de importância e de relevância, de status e prestígio, sobretudo diante dos
demais alunos que nunca ingressam na empresa júnior.
De todo modo, há de ressaltar que, embora não tenham citado o termo empreendedorismo e
seus derivados, isto não implicaria, necessariamente, que os entrevistados não buscassem uma
ação empreendedora, conforme o discurso hegemônico. No entanto, isto não foi percebido nas
respostas. Ao contrário, seus depoimentos orbitaram em torno de uma representação
tradicional acerca do papel gerencial, que envolve atividades rotineiras e burocráticas
predominantemente. Por outro lado, é possível que outros entrevistados num futuro próximo,
por exemplo, mencionem os termos dominantes. De todo modo, parece-nos relevante o fato
de todos os entrevistados não terem ressaltado um dos valores mais caros ao movimento
empresa júnior.
De todo modo, a política de identidade defendida pelo mainstream empresarial tem
encontrado eco entre os estudantes de Administração, mesmo porque seus princípios estão
consubstanciados nas diretrizes curriculares. Ao mesmo tempo, a mídia de negócios e boa
parte do corpo docente tem preconizado o discurso do empreendedorismo. No entanto, a
despeito do movimento empresa júnior como um todo defender e difundir o conceito e
ideário, nenhum dos entrevistados pareceu se identificar com tal identidade prescrita.
Estranhamente, não apontaram a identidade empreendedora nem para os administradores em
geral e nem para sua própria atuação dentro do movimento empresário júnior.
Ainda assim, não nos parece que os estudantes entrevistados estejam em busca de sua
emancipação. Ao contrário, aquilo que apontam como referente ao trabalho do administrador
se resume àqueles preceitos de uma identidade convencional, em larga medida consolidada,
tal como afirmado na pesquisa do CFA, que ainda identifica o empreendedorismo, em 2011,
como um conteúdo novo que deve ser explorado pelos cursos de Administração. Neste
aspecto, os estudantes nada mais apontaram do que o estereótipo convencional do
Administrador, aqui repetido: “consolidação da identidade do Administrador como um
profissional com visão sistêmica da organização, articulador de diversas áreas e pronto para o
exercício da liderança, formando e motivando pessoas e equipes de trabalho”.
Por fim, é importante ressaltar que não se nega a necessidade da formação técnica
profissional. Mas, é igualmente importante destacar que a formação profissional não se
resume a atender apenas às necessidades do mercado – posto que este termo tende a ser
equivalente ao mercado de compra e venda de produtos e serviços –, mas atender às
necessidades sociais em sentido amplo, o que implica considerar que nem todos estão
inseridos num mercado. Em outras palavras, atender necessidades de mercado na linguagem
empresarial significa atender necessidades de clientes, ou seja, indivíduos que podem pagar
pelos produtos e serviços, e não à sociedade como um todo.
6
REFERÊNCIAS
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Mobilizations on the Internet. Sociological Research Online, SAGE Publications, 15 (2),
2010. <10.5153/sro.2152>. Acesso em 10 dez. 2015.
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