DataGramaZero - Revista de Ciência da Informação - v.4 n.5 out/03 ARTIGO 03 As Crianças e a Linguagem Escrita Children and Written Language por Cláudia Maria Mendes Gontijo Resumo: O artigo é um desdobramento de uma pesquisa cuja finalidade foi investigar o processo que leva à utilização da escrita como recurso mnemônico. A partir das elaborações de Vigotski e Luria, a análise incidirá sobre como as crianças elaboram as relações entre o oral e o escrito na fase inicial de alfabetização escolar, com ênfase na linguagem, pois as crianças analisam as unidades constituintes da linguagem oral no plano verbal. Palavras-chave: Alfabetização; Oralidade; Escrita; Linguagem Egocêntrica. Abstract: This article is the development of a research that investigated the process of using written language as a mnemonic resource. Based on the concepts of Vigotski and Luria, this analysis focus on how children elaborate the relationship between speech and writing in the first stage of their instruction in reading and writing, emphasizing language, because children analyze the constituent units of oral language when they are developing their verbal skills. Keywords: Instruction in Reading and Writing; Oral Discourse; Writing; Egocentric Language. Introdução Quase três décadas se passaram, após a divulgação de diversas pesquisas que visaram compreender o processo de aprendizagem da leitura e da escrita pelas crianças. Os resultados dessas pesquisas fecundaram a prática e o discurso educacional brasileiro sobre a alfabetização e contribuíram para que os pesquisadores, os gestores da educação nacional e os professores que ensinam os alunos a ler e a escrever passassem a refletir sobre os processos de construção da escrita pelas crianças e, conseqüentemente, sobre os métodos de ensino. Entretanto, esse movimento não inaugurou mudanças significativas em termos de melhoria dos níveis de aprendizagem. Defrontamos-nos cotidianamente com notícias, veiculadas pela mídia e pelos jornais do País, que denunciam os baixos níveis de aprendizagem da linguagem escrita: crianças, adolescentes, jovens e adultos chegam às séries finais do Ensino Fundamental e ao Ensino Médio com o domínio de apenas dos rudimentos da leitura e da escrita. Nas escolas, encontramo-nos com professores(as) que apontam as dificuldades encontradas para ensinar a leitura e a escrita e as dificuldades das crianças em aprender. Obviamente, não acreditamos, ingenuamente, que as pesquisas na área de alfabetização e, portanto, a compreensão de como as crianças aprendem a ler e a escrever contribuem por si só para a solução dos problemas enfrentados pelas crianças e pelos(as) professores(as) nas escolas. Sabemos que a solução desses problemas depende da concretização de políticas públicas educacionais voltadas para a consolidação do proclamado direito à educação. Conforme afirma Horta, com base em Bobbio [1], no artigo em que analisa a questão do direito à educação como um dos direitos sociais da cidadania, A proteção dos direitos sociais [e, portanto, do direito à educação] exige, necessariamente, a presença do Estado: ‘Enquanto os direitos de liberdade nascem contra o superpoder do Estado – e, portanto, com o objetivo de limitar o poder –, os direitos sociais exigem, para à sua realização prática, ou seja, para a passagem da declaração puramente verbal à proteção efetiva, precisamente o contrário, isto é, a ampliação dos poderes do Estado’ (Horta, 1998, p. 9). Entretanto, acreditamos que as pesquisas que visam à proposição de estágios de desenvolvimento da escrita na criança não colaboram para a solução dos problemas encontrados pelos aprendizes. Contrariamente, têm servido, muitas vezes, para o estabelecimento de padrões de comportamento e de desenvolvimento infantil que atuam de modo perverso sobre as crianças que apresentam padrões diversos dos estabelecidos ou que não conseguem avançar para estágios mais elevados de desenvolvimento. Com base nos pressupostos da perspectiva Histórico-Cultural na Psicologia, acreditamos que o desenvolvimento das funções psicológicas superiores e, portanto, o desenvolvimento da linguagem escrita na criança [...] é um processo dialético complexo que se caracteriza por uma periodicidade múltipla, por uma desproporção no desenvolvimento das distintas funções, por metamorfoses ou transformações qualitativas de umas formas em outras, pelo complicado entrecruzamento dos processos de evolução e involução, pela relação entre fatores internos e externos e pelo intricado processo de superação das dificuldades e de adaptação (tradução nossa) (Vigotski, 1987, p. 151). Nesse sentido, este artigo tem como objetivo evidenciar que a apropriação da escrita pelas crianças, especificamente o processo de elaboração das relações entre o oral e o escrito, não é linear e depende, em considerável extensão, da prática pedagógica de alfabetização. A linguagem escrita O estudo sobre o desenvolvimento da linguagem da escrita remete, necessariamente, ao trabalho desenvolvido por Vigotski sobre o desenvolvimento dos conceitos científicos na criança em idade escolar. Segundo esse autor, essa questão é antes de tudo uma questão prática de suma importância, pois se refere às tarefas da escola na hora de ensinar às crianças o sistema de conhecimentos científicos. Além disso, aponta que [...] o desenvolvimento do conceito científico de caráter social se produz nas condições do processo de instrução, que constitui uma forma singular de cooperação sistemática do pedagogo com a criança. Durante o desenvolvimento dessa cooperação amadurecem as funções psíquicas superiores da criança com a ajuda e com a participação do adulto. Na tarefa que nos interessa, isso encontra sua expressão na crescente relatividade do pensamento causal e no fato de que o pensamento científico avança até alcançar um determinado nível de voluntariedade, nível que é produto das condições do ensino. A singular cooperação entre a criança e o adulto é o aspecto crucial do processo de instrução, junto com os conhecimentos que são transmitidos à criança segundo um determinado sistema (Tradução nossa) (Vigotski, 1993, p. 183). Desse modo, Vigotski define os vínculos entre o desenvolvimento dos conceitos científicos nas crianças, as condições de ensino, a cooperação entre o adulto e a criança que aprende e os conhecimentos que estão sendo apropriados. É importante enfatizar que, ao estabelecer esses vínculos, o autor acredita que os conhecimentos científicos têm uma história na criança. Nesse sentido, critica as versões da psicologia infantil que afirmam que o desenvolvimento dos conceitos científicos “carecem em geral de história interior própria, que não sofrem processo de desenvolvimento no sentido estrito da palavra. Simplesmente são assimilados, são percebidos como algo acabado graças ao processo de compreensão, de assimilação e de atribuição de sentido” (1993, p. 184). Argumenta que esse ponto de vista carece de consistência teórica e prática. Teoricamente, considera que “o conceito não é simplesmente um conjunto de conexões associativas que se assimila com a ajuda da memória, não é um hábito mental automático, mas um autêntico e complexo ato do pensamento [grifos do autor]” (1993, p. 184). Dessa forma, afirma que o conceito é um ato de generalização. Os resultados das suas investigações confirmam que os conceitos, representados psicologicamente como significados das palavras, evoluem, ou seja, possuem uma história na criança. No momento em que a criança assimila uma nova palavra, relacionada com um significado, o desenvolvimento do significado da palavra não finaliza, mas só começa. A palavra é, a princípio, uma generalização do tipo mais elementar e unicamente à medida que se desenvolve, a criança passa da generalização elementar a formas cada vez mais elevadas de generalização, culminando esse processo com a formação de autênticos e verdadeiros conceitos (Tradução nossa) (Vigotski, 1993, p. 184-5). Em termos práticos, argumenta que a experiência pedagógica ensina que a aprendizagem direta dos conceitos é impossível e pedagogicamente infrutífera. O ensino baseado nessa visão resultará em uma aprendizagem mecânica, portanto, na repetição e na memorização que não conduz à apropriação dos conceitos. Tendo em vista que os conceitos se desenvolvem, possuem uma história na criança, Vigotski aponta que os conceitos científicos não evoluem da mesma forma que os conceitos cotidianos. Em outras palavras, a apropriação dos conceitos científicos não repete os processos de formação nas crianças dos conceitos cotidianos. Com relação à linguagem escrita, é possível compreender a interpretação de Vigotski, se analisarmos as comparações que estabeleceu entre a linguagem oral e a linguagem escrita. Para que a criança aprenda a falar, é suficiente que conviva com falantes de uma determinada língua. Dessa forma, essa aprendizagem não ocorre de modo natural e espontâneo, mas exige a participação em uma comunidade lingüística. No entanto, para que a criança aprenda a ler e a escrever, não é suficiente a convivência com pessoas letradas. Tal convivência poderá ensinar muito sobre os usos sociais da escrita, mas não possibilitará que a criança passe a usar a escrita para se comunicar com as outras pessoas e registrar suas idéias e pensamentos. Escrever e ler exigem o domínio da capacidade de refletir sobre a linguagem, ou seja, requerem o domínio de capacidades metalingüísticas. A linguagem é uma atividade lingüística primária, como assinala Donalson (apud Delfior, 1998). As atividades próprias da linguagem escrita, por sua vez, requerem que a criança tome consciência de determinados aspectos da linguagem [2] não necessários à comunicação cotidiana. As crianças e os adultos, segundo Delfior, comunicam-se por meio da linguagem, sem refletirem sobre esses aspectos, sem ter consciência, por exemplo, de que estão usando palavras, que estas são compostas por unidades menores. Se a aprendizagem da linguagem escrita exige o desenvolvimento de capacidades metalingüísticas, dentre elas a capacidade de analisar as unidades menores constituintes da linguagem oral, essa aprendizagem produz o desenvolvimento da linguagem oral. Dessa forma, Vigotski concluiu acertadamente que o desenvolvimento da linguagem escrita não reproduz os processos de desenvolvimento da linguagem oral, pois a linguagem escrita não é uma simples tradução da linguagem oral em signos escritos e nem o domínio da linguagem escrita se reduz a assimilar a técnica da escrita. Se a linguagem escrita se restringisse à tradução da linguagem oral em signos escritos, no momento em que a criança dominasse essa técnica, alcançaria o mesmo grau de desenvolvimento da linguagem oral. A linguagem escrita, segundo o autor, “é uma função especial da linguagem, que se diferencia da linguagem oral como a linguagem interior se diferencia da exterior em sua estrutura e no seu modo de funcionamento” (1993, p. 229). Ao comparar a linguagem interior com a linguagem escrita, afirma que [...] a linguagem interior é reduzida ao máximo, taquigráfica. A linguagem escrita é desenvolvida ao máximo, formalmente mais refinada, inclusive em relação à linguagem oral. Nela não há elipses como na linguagem interior. Quanto à sua estruturação sintática, é quase exclusivamente predicativa. De modo semelhante, na linguagem oral, a sintaxe se converte em predicativa quando o sujeito e os componentes da oração que se referem a ela são conhecidos dos interlocutores (Tradução nossa) (Vigotski, 1993, p. 231-2). Assim, de acordo com as idéias desenvolvidas por Vigotski, a linguagem escrita tem uma história na criança; o seu desenvolvimento não repete o desenvolvimento da linguagem oral, mas possibilita que a criança passe a refletir conscientemente sobre os processos envolvidos na comunicação cotidiana, à medida que passa a refletir sobre aspectos da linguagem não necessários de serem compreendidos durante o uso desse tipo de comunicação. As relações entre o oral e o escrito Vigotski, ao analisar os resultados da pesquisa de Luria sobre o desenvolvimento da escrita, diz que as primeiras escritas significativas “constituem símbolos de primeira ordem, denotando diretamente objetos ou ações e que a criança terá ainda de evoluir no sentido do simbolismo de segunda ordem, que compreende a criação de sinais escritos representativos dos símbolos falados das palavras” (1989, p. 130-1). O autor explica ainda que “enquanto símbolos de segunda ordem, os símbolos escritos funcionam como designações de símbolos verbais”. Porém, escrever não se reduz à reprodução de sons e, por isso, as investigações realizadas demonstram que a escrita infantil evolui, novamente, para um simbolismo de primeira ordem. A partir da idéia de que a escrita constitui um simbolismo de primeira ordem, diz que a aprendizagem da linguagem escrita exige um alto grau de abstração, pois se trata “de uma linguagem sem entonação, sem expressividade, sem nada do seu aspecto sonoro. É uma linguagem no pensamento, nas idéias, portanto, uma linguagem que carece da característica mais importante da linguagem oral: o som material” (1989, p. 229). Assim, mesmo que “o aluno tenha alcançado, com a ajuda da linguagem oral, um grau relativamente alto de abstração com relação ao mundo dos objetos [...] deve desprender-se do aspecto sensível da própria linguagem, deve passar à linguagem abstrata, a linguagem que não utiliza palavras, mas idéias de palavras” (p. 229). Para Vigotski, é exatamente esse grau de abstração da linguagem escrita que constitui uma das grandes dificuldades com que se defronta o aprendiz da linguagem escrita. Acrescenta ainda que é uma linguagem sem interlocutor. Nas conversações, em que se usa a linguagem oral, o interlocutor está presente, exige respostas, posicionamentos, dá respostas e se posiciona. De certa maneira, a linguagem escrita é “uma linguagem-monólogo, uma conversação com uma folha de papel em branco, com um interlocutor imaginário” (p. 230), o que implica, conforme o autor, dupla abstração para o aprendiz: do interlocutor e, como mencionamos, do aspecto sonoro. Considerando que a linguagem escrita é um simbolismo de segunda ordem, pois a compreensão da linguagem é efetuada, por meio da linguagem falada, diz que [...] a criança, ao pronunciar qualquer palavra, não se dá conta conscientemente dos sons que pronuncia e não realiza nenhuma operação intencional ao pronunciar um som sozinho. Na linguagem escrita, pelo contrário, deve tomar consciência da estrutura fônica da palavra, desmembrá-la e reproduzi-la voluntariamente em signos (Tradução nossa) (Vigotski, 1993, p. 231). Neste artigo, interessa-nos exatamente o surgimento das tentativas da criança em relacionar os símbolos escritos com unidades da linguagem oral. Acreditamos, assim como Vigotski, que a escrita não se reduz à reprodução dos sons, mas essa compreensão integra o desenvolvimento da linguagem escrita na criança e tem que se realizar. Em termos pedagógicos, a aprendizagem do aspecto sonoro da linguagem escrita deve ser organizada possibilitando a integração desse aspecto com os significados, pois, se isso não ocorrer, a aprendizagem será reduzida a um simples processo de associação entre letras e sons e vice-versa. É importante esclarecer que faremos um recorte de uma pesquisa de caráter semilongitudinal, que abordou integradamente aspectos importantes envolvidos na aprendizagem da escrita. Participaram da pesquisa 39 crianças que estavam matriculadas na primeira série do Ensino Fundamental, em uma escola da rede pública de ensino do interior do Estado de São Paulo. Os alunos foram estimulados a escrever textos produzidos oralmente e uma produção consistiu no registro de um poema previamente escolhido. Os temas dos textos estavam relacionados com o trabalho desenvolvido pela professora na sala de aula e as atividades de registro foram propostas em quatro momentos do ano letivo. Todas as atividades realizadas pelas crianças foram filmadas e transcritas para análise. A partir das análises do modo como as crianças registravam os textos (processo de registro) e dos registros produzidos (escrita), evidenciamos as relações que as crianças, na fase inicial de alfabetização, elaboravam entre o oral e o escrito. Ferreiro & Teberosky estudaram a evolução da escrita e verificaram as hipóteses construídas pelas crianças durante o período, denominado por Ferreiro (1995), de fonetização da escrita. Os trabalhos dessas autoras foram corroborados por estudos realizados por pesquisadores brasileiros [3]. De acordo com essas autoras, a evolução da escrita em crianças pré-escolares e em crianças matriculadas em “uma escola pública; todas provenientes da classe baixa, que recebiam ensino sistemático em iguais condições, sob o ponto de vista dos aportes metodológicos” (1989, p. 238) não possui “diferenças marcantes”. Em outras palavras, não há distinção na evolução da escrita entre crianças pré-escolares e crianças iniciantes de um processo escolar de alfabetização. Conforme Quadro (Ferreiro e Teberosky, 1989, p. 239) – Evolução da escrita nas crianças escolarizadas – apresentado pelas autoras, os 28 sujeitos da pesquisa escreviam, no início do ano escolar, de acordo com os níveis evolutivos observados nas crianças pré-escolares. Durante o ano, foram verificadas mudanças nos níveis apresentados no início do ano. Contudo, as crianças que tinham “como nível inicial condutas do tipo 1 e 2” não alcançaram condutas do nível 5. Explicando melhor, as crianças que, no início do ano escolar, identificavam “a escrita com a reprodução dos riscos típicos do tipo de escrita reconhecida como modelo [nível 1]” (p. 239) não alcançaram o final da evolução – a escrita alfabética (nível 5). Por outro lado, as crianças que se situavam no nível 4 ou entre os níveis 4 e 5, ao final do ano, adquiriram o domínio do código alfabético. O nível 4 é caracterizado, pelas autoras, como intermediário: a hipótese formulada pelas crianças se situa entre a silábica e a alfabética: [...] a criança abandona a hipótese silábica e descobre a necessidade de fazer uma análise que vá ‘mais além’ da sílaba pelo conflito entre a hipótese silábica e a exigência de quantidade mínima de grafias (ambas as exigências puramente internas, no sentido de serem hipóteses originais da criança) e o conflito entre as formas gráficas que o meio lhe propõe e a leitura dessas formas em termos de hipótese silábica (conflito entre uma exigência interna e uma realidade exterior ao próprio sujeito) [grifos das autoras] (p. 196 e 209). Dessa forma, de acordo com os resultados da pesquisa, as crianças matriculadas nas classes de alfabetização progrediram segundo os mesmos passos da conceitualização descritos pelas autoras para a evolução da escrita nas crianças pré-escolares. O período de fonetização da escrita, caracterizado pela tentativa, por parte das crianças, de atribuição de valores sonoros às letras anotadas, inicia-se pela hipótese silábica (Nível 3). Nessa situação, cada letra corresponde a uma sílaba. Ferreiro & Teborosky consideram essa etapa qualitativamente importante, pois [...] a) se supera a etapa de uma correspondência global entre a forma escrita e a expressão oral atribuída, para passar a uma correspondência entre partes do texto (cada letra) e partes da expressão oral (recorte silábico do nome); mas, além disso, b) pela primeira vez a criança trabalha claramente com a hipótese de que a escrita representa partes sonoras da fala (Ferreiro & Teberosky, 1989, p. 193). No estudo que realizamos, observamos o surgimento da tentativa de as crianças atribuírem valores sonoros às letras anotadas. Entretanto, essas tentativas não seguiram o curso evolutivo descrito pelas autoras e nem se restringiram às relações propostas entre o oral e o escrito. Observamos, como apontado por Gontijo (2001a), que as crianças elaboravam no plano verbal a análise das unidades constituintes da linguagem oral e, dessa forma, manifestavam as relações que estabeleciam entre o oral e o escrito. Para evidenciar as tentativas de as crianças relacionarem o oral e o escrito, analisaremos, primeiramente, os registros produzidos pelo aluno Ricardo no início e no final do ano letivo. O primeiro registro refere-se ao texto produzido oralmente sobre sua brincadeira preferida e o segundo corresponde ao texto produzido a partir de uma história em seqüência. Em seguida, mostraremos como a criança produziu os registros. Esconde-esconde Um menino fica no poste. E os outros vão se esconder. Depois, correm e dizem: — Um, dois, três, salve eu! O telefone Era uma vez uma bruxa que estava dormindo no sofá. Depois, tocou o telefone e ela atendeu. O gato pegou a varinha da bruxa escondido e fez o telefone sumir. O gato viu um lanche e comeu o lanche. A bruxa acordou e viu o gato. Comparativamente à escrita elaborada no início do ano escolar, há mudanças importantes nos registros produzidos por Ricardo ao final do ano. O domínio de um número maior de letras possibilitou variação das letras usadas para compor os registros. Essa variação ocorreu, também, no primeiro registro, mas, como dominava um número menor de letras (M, E, N, B, O, I, H, R, A, V), as diferenciações entre os registros são menos evidentes. As diferenciações nos registros, no entanto, não possibilitaram a emergência de escritas significativas e, dessa forma, não proporcionaram que a criança lembrasse o conteúdo que motivou os registros. Nos dois momentos, as letras grafadas correspondiam às unidades pronunciadas no plano verbal. Dessa forma, era possível observar como compreendia as relações entre o oral e o escrito. Vejamos como ele elaborava essas relações no início do ano escolar: P.: Escreva esconde-esconde. C.: Do jeito que eu sei? P.: Do jeito que você sabe. C. - Es (grafa a letra R) com (grafa as letras OA e, em seguida, as letras DV, sem expressar os segmentos correspondentes). P.: Um menino fica no poste. C.: Um (grafa a letra O) me ni (grafa a letra E) me ni (grafa a letra I) ni no (grafa as letras MO) pos te (grafa as letras BDN) te. P.: E os outros vão se esconder. C.: E os (grafa a letra O) outros (grafa a letra E) vão (grafa a letra I) se (grafa a letra N) com (grafa a letra O) der (grafa a letra M). Assim, a criança elaborava a análise das unidades da linguagem oral no plano verbal; as letras anotadas não eram aleatórias: correspondiam às unidades pronunciadas. Para registrar as sílabas, anotou duas e uma letra. Para registrar a palavra “outros”, escreveu apenas uma letra. Ao anotar duas letras não usou somente o padrão consoante-vogal. Registrou consoante-consoante, vogal-vogal e, ao grafar uma letra, utilizou as vogais e consoantes. No final do ano letivo, escreveu o texto da seguinte maneira: P.: O telefone. C.: O (grafa a letra O) te, e (grafa as letras EO) fo (registra a letra O) ne (registra as letras VICI). P.: Era uma vez uma bruxa que estava dormindo no sofá. C.: E (grafa a letra R) u (grafa a letra E) ma (grafa a letra A) vez (grafa a letra E) u (grafa a letra O) ma (grafa a letra U) bruxa (grafa a letra I) que (grafa a letra C) ta (grafa a letra TA) dor (grafa a letra O) min (grafa a letra I) no (grafa a letra U) so (grafa a letra T) fa (grafa a letra O). Como pode se visto, a criança registrou, para a sílaba, uma, duas e quatro letras; escreveu uma letra para a palavra “bruxa”. Desse modo, as relações entre o oral e o escrito não foram construídas, apenas, a partir dos fonemas e das sílabas. Em certos momentos, a análise incide sobre a palavra. Além disso, o número de letras usado para registrar as sílabas é variável. O fato de as crianças registrarem duas letras para as sílabas não implica, conforme nosso entendimento, compreensão do caráter alfabético da escrita. Provavelmente, a experiência escolar, baseada no registro de sílabas com duas letras (consoante-vogal), influenciou o registro de duas letras para as sílabas analisadas. Por outro lado, é importante evidenciar que a criança, desde o início do ano escolar, tentava relacionar o oral com o escrito. No primeiro momento, registrou as vogais pertencentes às sílabas analisadas; no segundo, fez esse mesmo tipo de registro, escreveu corretamente a sílaba “ta” e registrou a sílaba “te” com duas vogais. Nesse sentido, podemos observar que, para uma mesma unidade analisada, os registros correspondentes são variados. Além disso, a análise incidiu sobre as unidades palavra e sílaba. Os exemplos são interessantes e evidenciam que coexistem, na mesma criança, diferentes maneiras de registrar uma mesma unidade (sílaba) e que a análise pode incidir sobre diferentes unidades (palavra ou sílaba). Com referência à primeira constatação, podemos dizer que não há novidade em relação à hipótese silábica observada por Ferreiro & Teberosky (1989). A novidade reside no fato de a criança registrar quantidades distintas de letras para as sílabas (4, 2 e 1 letra) e no fato de a análise incidir, também, sobre a palavra. Analisaremos o registro elaborado por Nilton e o modo como foi produzido para destacar a relação construída pelo aluno entre o oral e o escrito. Marcelo, marmelo, martelo Marcelo era um menino que queria outro nome. Ele queria que o seu nome fosse marmelo. A sua mãe disse que marmelo é nome de fruta. Ele queria que o seu nome fosse martelo e a sua mãe disse que martelo era nome de ferramenta. A escrita produzida pelo aluno não é legível. Entretanto, é interessante observar que utilizou os mesmos segmentos de letras, em dois contextos, para escrever as palavras “Marcelo e martelo”. Ele registrou “mão e Mnto”, respectivamente, para as palavras. Pode-se observar, então, que compreendeu que não há distinções nas grafias usadas para escrever a mesma palavra. Gontijo (2001b) e Gontijo & Leite (2002) discutiram essa questão e evidenciaram, a partir da análise dos textos produzidos pelas crianças, que as indistinções na escrita possibilitam a emergência de escritas significativas, ou seja, proporcionam que as crianças passem a se relacionar com a escrita para lembrar os significados anotados. Observemos, portanto, como a criança escreveu o texto: P.: Vamos escrever o título da história: Marcelo, marmelo martelo. C.: Marcelo (registra as letras MAO), Marcelo, marmelo (registra as letras ETRO MNTO). P.: Pode falar em voz alta para te ajudar a escrever. Marcelo era um menino que queria outro nome. C.: Marmelo. P.: Marcelo era um menino que queria outro nome. C.: Marcelo, Marcelo (registra M) era (registra a letra A) um (registra a letra O) menino (registra a letra E) que (registra a letra O) queria (registra a letra R) o (registra as letras OC) tro nome (registra a letra A) mar. P.: Você disse, então: Ele queria que o seu nome fosse marmelo. C.: Ele (registra a letra E) que, queria (registra a letra D) que o (registra as letras TO) seu nome (registra a letra I) fosse (registra a letra CO) martelo, né? P.: Você falou marmelo. C.: Mar (copia as letras MNTO do título) martelo. P.: A sua mãe disse. C.: A. Pode escrever aqui? (aponta a outra linha). P.: Pode. C.: A (registra a letra A) sua (registra a letra M) mãe (registra a letra O) disse que (registra a letra T) martelo. P.: Marmelo. C.: É. Marmelo (registra a letra M). É borracha isso daqui? (apaga a letra M). Marmelo, né? P.: É. O modo como Nilton escreveu o texto produzido oralmente é muito interessante. Por meio da fala, presente durante o registro, verificamos que grafava cada letra a partir da análise da unidade palavra. Para registrá-la, utilizava uma e duas letras (registrava com maior freqüência uma letra). Em uma situação, a análise incidiu sobre a sílaba e registrou duas letras correspondentes. Se compararmos os registros produzidos por Ricardo e Nilton, veremos que Ricardo se detinha mais intensamente na análise das sílabas. No caso de Nilton, ocorreu exatamente o contrário, a análise incidiu quase exclusivamente sobre as palavras e no registro de correspondentes gráficos para essa unidade. Dessa forma, as tentativas de atribuir valores sonoros às letras anotadas não começam ou não se restringem à análise da sílaba, como demonstraram Ferreiro & Teberosky (1989) em seus estudos. Em algumas situações, as crianças analisam a palavra e registram letras correspondentes a essa unidade. Além disso, ao anotar essa unidade, utilizam um número variado de letras. O mesmo ocorre com as sílabas. O que tornou possível a verificação do registro correspondente à unidade analisada e a identificação de quais unidades eram analisadas foi a presença da linguagem durante o registro dos textos. Como mostram os exemplos anteriores, as crianças elaboravam, no plano verbal, a análise das unidades da linguagem oral e registravam grafias correspondentes às unidades analisadas. Assim sendo, consideramos que o exame da linguagem, presente durante os registros, é fundamental para o entendimento de como as crianças compreendem as relações entre o oral e o escrito durante o processo de alfabetização. Mostraremos o registro de Natália e como foi elaborado. O exemplo possibilitará a análise da linguagem presente durante o registro. Batata quente Pegar uma bolinha. Uma criança tem que ficar de pé para dizer: — Batata quente, quente, quente, quente. Depois, aquele que queimar vai falar batata quente no lugar do outro. Como podem ser observadas, na escrita produzida pela aluna, algumas palavras podem ser interpretadas. Ela explicou a brincadeira Batata quente. Usou as letras “ce” para escrever a sílaba “quen” da palavra quente. O primeiro enunciado “pega uma bola” pode ser lido integralmente, mesmo tendo dito, durante a produção oral, “pegar uma bolinha”. Nas outras partes do texto, podemos observar registros para as palavras que não possibilitam a sua leitura e a utilização do mesmo segmento de letras - “batatacete” – para as palavras batata quente, nos três contextos em que foram escritas. Vejamos como ocorreu o registro da brincadeira. P.: O nome da brincadeira é batata quente. C.: Ba (grafa a silaba BA) bata (registra a sílaba TA) ta, é o t e o a de novo (registra a sílaba TA) quen, ca, que, ca, que (registra as letras CE) batata quente, te, ta, batata quente (registra a sílaba TE). P.: Pegar uma bolinha. C.: Pe, pa, pe. Separado, não é? P.: Pode escrever na outra linha. C.: (Registra a sílaba PE). P.: Pegar uma bolinha. Você já escreveu o PE. C.: (Apaga e escreve a letra P novamente). Pe, gar. É o ga de gato? P.: É o ga de gato. C.: Gar, pegar (registra a sílaba GA) pegar. P.: Uma. C.: É o u e o m de macaco? P.: É. C.: (Registra as letras UM). P.: Uma bolinha. C.: Bo, ba, be, bi, bo (registra a palavra BOLA). P.: Muito bem! Aí você disse o seguinte: uma criança tem que ficar de pé [...]. C.: Uma cri, cra, cre, cri, ca, que, qui, uma cri, cri, cra, cre, cri, é o “K” e o “i”, né? P.: Isso. C.: (Registra as letras CI). Uma cri, an, an. Como é o an? P.: O “a” e o “n”. C.: Ah! O “n” de Natália? P.: Isso o “n” de Natália. C.: (Registra as letras NA). Uma cri, an, ça, uma cri, an, ça tem uma cri, an, an, ça, ça, se, si. É o “sa” de sapo, com o quê? P.: Com o “a” , não é isso? C.: (Registra a sílaba SA). P.: Uma criança... C.: Tem. P.: Tem. C.: Te, tem (sussurra a família silábica) te, te. É o “t” e o “i”, né? P.: É o “t”, isso! C.: (Registra as letras TU). P.: Tem que. C.: Que, ca, que, qui, co. Pera aí. Ca, que. É o “k” e o “e”. P.: Tem que... C.: Separado? P.: Separado. C.: (Registra as letras CE). P.: Ficar. C.: Fi, fa, fe, fi (registra a sílaba FI, apaga e acerta a letra F) ficar é o “K” e o “a”. P.: De pé. C.: Pé, é “p” e o “e”. P.: (Confirma). C.: Separado (registra a palavra PÉ). Pé. P.: Você escreveu o quê? C.: Pé. Tem que ficar de pé. P.: E aí não está faltando nada? (a criança não escreveu a palavra “de”) C.: Aqui, né (aponta entre as palavras fica e pé). P.: O que está faltando aí? C.: É de ficar [...] tem que ficar de, da, de (escreve as letras DE) é o “d” e o “e”, separar aqui (apaga e escreve a palavra pé separada)... Não continuaremos a descrever o processo de registro, pois, com o que foi escrito, é possível perceber todo o esforço da criança para elaborar a escrita. A linguagem estava presente durante toda a atividade. Podemos dizer que havia dois tipos de linguagem: uma direcionada para a pesquisadora, para receber confirmação sobre como deveria registrar uma sílaba e sobre onde deveria colocar os espaços em branco na escrita; e a outra visava a encontrar, por meio da repetição oral das famílias silábicas, as letras correspondentes à sílaba que era pronunciada. Desse modo, podemos dizer que a primeira era comunicativa, pois estava direcionada para uma outra pessoa, e a segunda era egocêntrica, porque a criança não se dirigia a nenhum interlocutor em particular. Ambas, no entanto, estavam orientadas para a resolução da atividade proposta: registrar o texto produzido oralmente. Para Vigotski (1993), os dois tipos de linguagem têm origens sociais, mas possuem funções diferentes. A linguagem comunicativa tem a função de estabelecer contato social, comunicação com as outras pessoas, obter resposta a uma pergunta ou intervir sobre os outros. No caso de Natália, para receber confirmação sobre as letras que deveriam ser escritas e sobre onde deveria colocar os espaços em branco. Assim, ao mesmo tempo em que a linguagem atuava sobre a outra pessoa, exigindo-lhe um posicionamento, exercia uma ação sobre a própria criança que, ao receber a confirmação, concluía a atividade. A linguagem atuava ainda como recurso que lhe permitia encontrar as letras adequadas à sílaba que desejava escrever. É possível dizer que atuava como signo, tal qual quando as crianças contam nos dedos para lembrar a grafia de um numeral. Nesse sentido, a recordação da letra adequada à sílaba não se estabeleceu por meio de um processo associativo direto entre as sílabas (unidades sonoras analisadas) e letras, mas foi mediada pela linguagem. A atividade de escrita tornou-se demorada e penosa para a menina que tinha que recitar as famílias silábicas até encontrar as letras que desejava escrever. Isso fazia também com que esquecesse o conteúdo da frase que deveria ser escrita e, por isso, tivemos que repetir as palavras de cada frase. Vigotski analisou as investigações de Piaget destinadas a explorar as funções da linguagem na criança. Piaget, a partir de suas investigações, concluiu que a linguagem infantil pode ser dividida em egocêntrica e socializada. Para esse autor, a linguagem é egocêntrica, porque a criança “ao pronunciar as frases do primeiro grupo [...] não se preocupa em saber a quem fala nem se é escutada. Ela fala seja a si mesma, seja pelo prazer de associar qualquer um a sua ação imediata” (1986, p. 7). Dessa forma, a linguagem egocêntrica se distingue da linguagem socializada em sua função. Por meio da linguagem socializada, a criança tenta estabelecer trocas com os outros “seja informando o interlocutor de qualquer coisa que possa interessar a ele e influir sobre sua conduta, seja havendo troca verdadeira, discussão, ou mesmo colaboração em busca de um objetivo comum (p. 7). Vigotski aprecia o valor da descoberta de Piaget e, a partir de um exame detalhado das investigações e conclusões desse autor, conclui que, para Piaget, “a linguagem da criança pequena é, em sua maior parte, egocêntrica. Não serve aos fins nem às funções de comunicação, serve somente para acompanhar a atividade e as sensações da criança” (1993, p. 49). Então, a linguagem egocêntrica não desempenha nenhuma função importante na atividade infantil. Ela aparece, segundo Vigotski, [...] nas descrições de Piaget como acessório da atividade infantil, como um reflexo da natureza egocêntrica do seu pensamento [...]. É uma linguagem para si mesmo, para sua própria satisfação; poderia não se manifestar, e sua ausência não modificaria em nada a atividade infantil. Poder-se-ia dizer que essa linguagem infantil, subordinada completamente aos motivos egocêntricos, é quase incompreensível para as pessoas que cercam a criança, é algo como um sonho verbal; produto de sua mente, mais próxima à lógica das ilusões e dos sonhos que do pensamento realista (Tradução nossa) (p. 49). Diretamente ligada à afirmação de que a linguagem egocêntrica não desempenha função importante na atividade infantil, Piaget crê que “atrofia e desaparece na idade escolar”. Vigotski acredita, contrariamente, que a linguagem egocêntrica assume, desde a mais tenra idade, uma função importante e definida na atividade infantil; “se converte em um instrumento para pensar no sentido estrito, ou seja, começa a exercer a função de planejar a resolução da tarefa surgida no curso de sua atividade [grifo nosso]” (p. 51). A atividade realizada por Natália evidencia que a linguagem egocêntrica, presente durante o registro, converteu-se, efetivamente, em um instrumento para pensar as letras que serviam para escrever as sílabas. Verificamos que, em certo momento do processo do desenvolvimento da escrita, essa linguagem deixa de se manifestar. Poderíamos pensar, de acordo com as pressuposições de Piaget, que ela se atrofiou e desapareceu. Entretanto, não cremos que isso aconteça. Segundo a interpretação de Vigotski, a linguagem egocêntrica “é considerada uma etapa transitória na evolução da linguagem externa à interna” (1993, p. 52). Essa conclusão advém do fato de a linguagem egocêntrica e a linguagem interior possuírem semelhanças na estrutura e quanto à função. A linguagem egocêntrica, assim como a linguagem interior, isolada do contexto em que foi produzida, pode se tornar incompreensível para os outros, pois “é condensada, tende à omissão e à abreviação” e não tem por finalidade estabelecer comunicação com as outras pessoas. Desse modo, acreditar que a linguagem egocêntrica atrofia e desaparece é imaginar que as crianças deixam de pensar quais letras servem para anotar as sílabas ou as palavras quando deixam de pronunciá-las em voz alta. A consolidação da aprendizagem das letras correspondentes aos sons e vice-versa possibilita que a escrita evolua para um simbolismo de primeira ordem, ou seja, torna-se direta, sem precisar que a criança elabore tão detidamente a análise das unidades sonoras para registrar seus correspondentes gráficos. Assim, os nossos estudos sobre a linguagem escrita e, portanto, a observação da linguagem presente durante os registros dos textos evidencia a sua natureza social e aponta principalmente que “a verdadeira direção do desenvolvimento do pensamento da criança não vai do individual ao socializado, mas do social ao individual” (Vigotski, 1993, p. 59). A criança começa, por meio da linguagem, a construir as relações entre o oral e o escrito elaboradas socialmente. Essa descoberta é fundamental para as crianças como foi para os homens ao longo da sua história social. Ainda é importante ressaltar que a análise desenvolvida por Natália incidia sobre as sílabas. Para cada sílaba analisada, eram registradas duas letras, observando sempre o padrão consoante-vogal. As sílabas simples, organizadas a partir desse padrão, eram privilegiadas pela professora no início da alfabetização e, por isso, Natália as usava sempre; mesmo quando teve, por exemplo, que registrar a sílaba “an” da palavra “criança”. Considerações finais As pesquisas que temos realizado apontam, indiscutivelmente, que a análise da linguagem presente durante os registros dos textos é fundamental para que possamos compreender as relações que as crianças estabelecem entre o oral e o escrito, durante a fase inicial de alfabetização. Vigotski (1993) diz que as expressões egocêntricas da criança, à medida que a atividade evolui ditam a atividade, assumindo a função de planificação e direção. Acreditamos que, efetivamente, isso ocorre, tendo em vista que a criança, ao tentar escrever como os adultos, usando letras, inicialmente, reproduz as características externas/aspectos formais de um texto escrito. Ao elaborar a análise das unidades da linguagem oral no plano verbal, a criança deixa de reproduzir essas características e passa a organizar a escrita com base nessa análise. Desse modo, a quantidade de letras anotadas passa a ser ditada pela linguagem, pois, para cada unidade pronunciada, são definidas quantas e quais letras devem ser anotadas. Ao definir que a linguagem egocêntrica “representa uma fase prévia ao desenvolvimento da linguagem interna” (1993, p. 30), Vigotski forneceu um método de investigação para o entendimento de como as crianças passam a elaborar para si os conhecimentos construídos socialmente. Em outras palavras, a análise da linguagem egocêntrica e por meio dela é evidenciada a transição das funções interpsíquicas (que se constituem no plano social, entre as pessoas) para as funções individuais (para o próprio indivíduo). Assim, por meio da linguagem egocêntrica, é possível observar como as crianças começam a elaborar para si mesmas as relações entre o oral e o escrito e como esse processo se desenvolve. A análise desenvolvida mostra a dificuldade em traçar uma evolução linear para as tentativas de a criança relacionar o oral e o escrito. Ao escrever um texto, as crianças analisam diferentes unidades da linguagem oral e grafam diferentes quantidades de letras para as unidades analisadas. É possível observar, como mostraram Ferreiro e Teberosky (1989), que as crianças analisam as unidades silábicas e registram letras correspondentes; porém, é complicado, com bases nos nossos dados, estabelecer uma evolução que comece pela sílaba e possua uma regularidade no seu percurso. Finalmente, é importante reiterar que a compreensão do aspecto sonoro da linguagem escrita integra o processo da apropriação da escrita pelas crianças. Entretanto, essa compreensão não deve ocorrer desintegrada do aspecto semântico, pois, conforme aponta o próprio Vigotski, palavras sem significados são sons vazios. Nesse sentido, em temos pedagógicos, o bom ensino será aquele que consegue integrar essas e outras facetas (usando a terminologia de Soares, 1995) da linguagem escrita. Notas [1] Referência completa no final do texto. [2] Segundo Delfior (1998, p. 7), “tradicionalmente dentro das habilidades metalingüísticas se incluem as habilidades metafonológicas, as metamorfológicas, as metassintáticas, as metassemânticas e as metapragmáticas”. Desse modo, a reflexão sobre a linguagem pode se dirigir a qualquer um desses aspectos. [3] Para uma revisão desses estudos, ver Soares (1991). Referências Bibliográficas BOBBIO, N., (1992). A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus. DEFIOR, S., (1998). Conocimento fonológico y lectura: el paso de las representaciones inconscientes a la conscientes. Revista Portuguesa de Pedagogia: leitura, Universidade de Colômbia, Faculdade de Psicologia de Ciências da Educação, ano XXXII - 1, p. 5-27. FERREIRO, E., (1995). Desenvolvimento da alfabetização: psicogênese. 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