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Significado musical e inferências lógicas a partir da
perspectiva do pragmatismo peirceano1
Luis Felipe Oliveira2
Jônatas Manzolli4
Willem F.G. Haselager3
Maria E.Q. Gonzalez5
junho de 2013
1
Artigo publicado originalmente in: Cognição & Artes Musicais / Cognition &
Musical Arts, 3 (2008), 67-76.
2
Curso de Música, Centro de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul – UFMS. Unidade VIII, Cidade Universitária, CEP 79070900, Campo Grande – MS, Brasil. E-mail: [email protected]
3
Artificial Intelligence / Cognitive Science, NICI (Nijmegen Institute for Cognition and Information), Radboud University Nijmegen, The Netherlands –
[email protected]
4
Núcleo Interdisciplinar de Comunicação Sonora e Departamento de Música,
Unicamp, Brasil – [email protected]
5
Departamento de Filosofia, Unesp, Brasil – [email protected]
Resumo
Este artigo relaciona o conceito de significado musical à noção de raciocínio
abdutivo, conforme descrito no pragmatismo de C.S. Peirce. Argumentamos que essa noção lógica pode complementar as teorias desenvolvidas sobre
aspectos exclusivamente psicológicos. Após introduzirmos a perspectiva formalista de Hanslick sobre o significado musical, apresentamos a teoria psicológica de Leonard Meyer sobre tal conceito. Posteriormente, descrevemos a
teoria da expectativa musical de David Huron, a qual traz dados experimentais e fatos biológicos à cena. Ainda que essas duas teorias deixem espaço
para o fenômeno da geração de hipóteses na escuta musical significativa, elas
não explicam como tal fenômeno ocorreria em termos biológicos, psicológicos
ou lógicos. Nesse sentido, passamos a considerar a natureza do raciocínio abdutivo e seu papel na aquisição de conhecimento. Finalmente, apresentamos
alguns exemplos que buscam ilustrar como a abdução pode complementar
logicamente o entendimento atual sobre significado musical.
Palavras-chave: abdução, significado musical, expectativa musical, estrutura musical, escuta musical.
Resumo do editor na publicação original: Neste artigo polêmico, o
conceito de significado musical é discutido à luz do pragmatismo de C.S.
Peirce. Os autores argumentam que as idéias de Peirce podem complementar as teorias desenvolvidas sobre aspectos exclusivamente psicológicos, como
aquelas propostas por Leonard Meyer e David Huron. Algumas idéias novas apresentadas aqui irão certamente fomentar o debate sobre significado
musical.
1
Introdução
No século XIX, quando a musicologia estava se tornando uma área estruturada, Edward Hanslick empenhou-se, contra intensas e veementes opiniões
contrárias, na tarefa de definir e explicar o belo musical em termos exclusivamente musicais. Ele buscou formular um novo ponto de apoio sobre o qual
se poderiam sustentar todas as outras questões em estética musical. Sua tese
negativa afirmava que a música não seria a imitação das emoções ou paixões;
sua tese positiva considerava que o conteúdo da música seria a sua própria
forma, suas próprias notas moldadas pela atividade do intelecto (Hanslick,
1986). A música deveria ser entendida em termos do desdobrar estrutural
das idéias musicais. Os acadêmicos da área musical deveriam se espelhar
nas práticas das ciências naturais e procurar pelos fatos que necessariamente
tomariam parte na descrição da percepção musical e romper com os apelos
das opiniões, ainda que irracionais, do senso-comum. Qualquer conotação
extra-musical deveria ser banida da classe dos significados musicais; estruturas musicais por si só seriam suficientes para o entendimento musical, e
qualquer apelo a relações de tais estruturas com conteúdos ou reações emocionais seria perigoso, para não dizer “patológico,” nas discussões estéticas.
Pode-se dizer que Hanslick jogou fora o bebê junto à água do banho, mas, ao
mesmo tempo, seu formalismo radical tem o seu valor por trazer efetivamente
a música, em seus próprios termos, dentro das discussões da estética musical.
Apesar da tentativa desse autor de formular uma análise filosófica baseada
apenas nos elementos formais, ele garantiu que o significado musical fosse
sustentado sobre a percepção, tornando possível se pensar em termos dos
processos dinâmicos da escuta dos desenvolvimentos fenomênicos da música,
com relação a expectativas e frustrações. Em suas próprias palavras:
O fator mais importante no processo psíquico que acompanha a
compreensão de uma peça musical e que causa prazer é, em geral, omitido. Esse prazer é a satisfação espiritual que o ouvinte
experimenta ao seguir e percorrer ininterruptamente as intenções
do compositor e ao descobrir-se ora corroborado, ora agradavelmente surpreso em suas suposições. Compreende-se que este ir
e vir da corrente intelectual, este contínuo dar e receber, ocorra
inconscientemente e de maneira velocíssima. Um prazer artístico pleno será oferecido somente por uma música que provoque
e satisfaça essa participação espiritual, que poderia ser chamada
muito propriamente de “reflexões da fantasia’.” Sem atividade
espiritual, não existe, geralmente, prazer estético. Esta forma de
atividade espiritual é própria da música, porque suas obras não se
apresentam imóveis e de chofre, mas vão surgindo sucessivamente
diante do ouvinte, e, portanto, exigem dele não uma contemplação que tolere delongas e interrupções, mas um acompanhamento
2
incansável, com uma atenção mais arguta. (Hanslick, 1986, p.
127, aspas do autor)
Não obstante, como Meyer (1956, p. 4) menciona, a consideração hanslickiana não consegue explicar “a maneira pela qual uma sucessão abstrata,
não-referencial de sons se torna significativa.”
2
A teoria de Meyer sobre significado musical
Significado e emoção não são propriedades mutuamente exclusivas na escuta
musical ou em qualquer experiência estética em geral. Ao contrário, as respostas emocionais que acompanham a apreciação musical foram consideradas
por Leonard Meyer como conseqüências diretas do processo de escuta estrutural. Nesse sentido, a chave para o entendimento de como uma sucessão de
tons se torna significativa e afetiva, sintetizando duas perspectivas estéticas
tradicionalmente opostas, seria encontrada na psicologia da escuta musical.
Os principais pressupostos da teoria de Meyer foram aqueles princípios
mentais oferecidos pela Psicologia da Gestalt (e.g. Koffka, 1935). Tais princípios são gerais o suficiente para serem relacionados a qualquer processo
mental que envolva percepção e cognição de qualidades formais e poderiam
ajudar na explicação de como tons individuais são agrupados em entidades
formais de alto-nível. A lei de prägnanz, um termo que pode ser entendido
como a ‘propriedade de ser conciso,’ a qual pode ser descrita como a tendência de um sistema (mental) de sempre buscar pelo processo ou forma
mais concisa, estável, regular, ordenada, econômica, simples possível (Kubovy, 2001) é a pedra angular da Psicologia da Gestalt. Tal lei pode ser
decomposta em princípios mais específicos como, por exemplo, os da boacontinuidade, do fechamento, da similaridade, da simetria, da proximidade,
das relações figura-fundo etc. Meyer empregou essas “leis mentais” para sustentar sua teoria do significado e afeto como resultantes da percepção da
forma em música. As leis da Gestalt poderiam ser entendidas em conexão
com as noções de hábitos e expectativas: para Meyer, expectativas seriam
conseqüentes da atuação habitual da mente em acordo com as leis descritas
na Psicologia da Gestalt.
A estrutura teórica de Meyer é composta de três instâncias distintas:
significado hipotético, significado evidente e significado determinado. Significado hipotético é a geração inconsciente de expectativas relacionadas a
e específicas de uma configuração de estímulos, que pode ser descrita por
relações probabilísticas entre antecedentes e conseqüentes. É a manifestação de um sistema de crenças e hábitos estéticos (fruto de aprendizagem e
culturalmente dependentes) que dirigem a experiência de escuta de ouvintes
culturalmente situados (cf. Aiken, 1951). Em acordo com essa visão, uma
peça de música pode ser significativa apenas quando o ouvinte é apto a esperar conseqüentes específicos a partir de antecedentes igualmente específicos
3
– isso parece estar proximamente relacionado ao que Hanslick quis dizer na
passagem citada acima, considerando apenas a diferença entre entender-se a
música enquanto manifestação cuja inteligibilidade é culturalmente dependente, como no caso de Meyer, ou universalmente atribuída, como no caso
de Hanslick.
Significados evidentes ocorrem quando o conseqüente se torna “atualizado
como um evento musical concreto,” atingindo um “novo estágio na significação” (Meyer, 1956, p. 37). Ele aparece quando a relação entre antecedente e
conseqüente é realmente percebida. Pode existir uma tensão conflitante entre
os dois significados, especialmente quando o conseqüente esperado é atrasado
ou deceptivo. Esse processo dinâmico de significação pode ser visualizado
em uma “cadeia de causalidade,” na qual que cada significado evidente se
torna hipotético no desdobrar dos eventos musicais, como
S1 . . . . . . C1 S2 . . . . . . C2 S3 . . . . . . ,
onde Sn significa um estímulo específico e Cn um conseqüente específico
(Meyer, 1956). O fato de que um conseqüente real poder ou não confirmar
um significado hipotético não altera a natureza e a operação do processo.1
Significados determinados, diz Meyer (1956, p. 38), “surgem das relações
existentes entre significados hipotéticos, evidentes e os posteriores estágios
do desenvolvimento musical.” Este tipo de significado tem o caráter distinto
de manifestar-se no “trabalho atemporal” da memória, quando relações entre
estímulos são compreendidas em suas totalidades.2 Ele acontece quando o
significado musical se torna objetificado, um processo que opera sobre um
objeto da consciência do ouvinte. Na perspectiva de Meyer, significados
determinados enquanto objetos da consciência decorrem da percepção de
anomalias estruturais ou quando respostas habituais não se adequarem a determinadas estruturas sonoras. Meyer (1956, p. 39) diz que “se o significado
for se tornar realmente objetificado, como uma regra ele o será quando forem encontradas dificuldades que impossibilitem o comportamento normal e
automático.”
Na perspectiva apresentada pela teoria meyeriana, o significado (ou a
significação) musical é um processo mental guiado pelas operações habituais
(gestálticas) da mente em acordo com as estruturas musicais, no processo
de escuta. Tal perspectiva é próxima daquele formalismo musical postulado por Hanslick; ou ela poderia ser entendida como uma perspectiva mais
abrangente, tornando tanto a estrutura musical quanto os hábitos de escuta
(frutos de aprendizado e culturalmente específicos) condições necessárias em
qualquer consideração sobre os significados da música. Meyer complementa
1
É importante lembrar que as dinâmicas entre significados hipotéticos e evidentes não
se manifestam apenas horizontalmente, mas também verticalmente, ou, como diz Meyer
(1956, p.38), entre os vários níveis arquitetônicos.
2
Lê-se “timeless work” no original. Meyer provavelmente quer se referir às operações
da memória não restritas pela temporalidade da percepção.
4
o formalismo de Hanslick com considerações dos domínios psicológico e cultural.
O mesmo processo, isto é, a ineficiência da ação habitual, molda tanto
os significados musicais quanto as reações afetivas à música. O autor justifica sua posição advogando que emoção e pensamento reflexivo não são duas
e distintas coisas, mas diferentes manifestações de uma mesma atividade
psicológica: “ambas dependem do mesmo processo perceptivo, os mesmos
hábitos estilísticos, os mesmos modelos de organização mental; e o mesmo
processo musical dá origem e molda os dois tipos de experiência” (Meyer,
1956, p. 40). Parece que uma ênfase em um ou outro aspecto na experiência
musical se deva a disposições e crenças relacionadas a experiência estética
(cf. Aiken, 1951) ou a treinamento musical formal. Quando a operação habitual desenvolve-se livremente, sem distúrbios, a escuta e a significação
musicais manifestam-se de uma maneira bastante inconsciente, seguindo e
antecipando as supostas intenções do compositor.
Está claro que significado e afeto derivam da tensão entre previsibilidade
e surpresa na escuta das estruturas musicais.3 E quando as estruturas são
estranhas o bastante as operações habituais da mente são perturbadas e
outros processos têm de surgir para que um conjunto de informações musicais
incompreendidas se tornem significativas e inteligíveis. Entre outras coisas, a
teoria de Meyer foi importante porque forneceu uma frutífera hipótese sobre
como a escuta musical opera e dá forma a estímulos sonoros a princípio
(musicalmente) desconexos, permitindo que significados e emoções tomem
lugar na experiência estético-musical.
3
A teoria da expectativa musical de David Huron
A perspectiva que Meyer iniciou foi estabelecida principalmente através do
discurso teórico e das evidências coletadas na análise musical. Distintamente,
David Huron (2006) desenvolve uma teoria da antecipação musical baseada
nas práticas da psicologia experimental e da análise estatística. Apesar de
suas abordagens bastante diferentes, ambas as teorias são similares e mesmo
complementares. Huron oferece uma consideração mais atualizada da expectativa musical, estabelecendo um vínculo mais forte entre a anatomia
3
Meyer descreve as relações entre surpresa e estruturas (im)previsíveis em termos de
normas e desvios dentro de um estilo musical, que só pode ser entendido em termos
de hábitos e disposições. Aiken (1947, p. 156, aspas do autor) disse que “falamos de
“tradições,” “estilos de arte,” “significados,” e assim por diante como se essas coisas tivessem
seu próprio tipo de realidade independente que estaria eternamente imbricada às obras
de arte. Mas tradições e significados são mantidos vivos apenas através das disposições
e hábitos que formam os contextos subjetivos de cada indivíduo. Obras de arte estética,
precisamos nos lembrar continuamente, existem apenas como objetos da percepção e do
sentimento. Não pode existir qualquer conteúdo estético além das respostas dos indivíduos
que lhes dão significado.”
5
Figura 1: Diagrama esquemático dos circuitos cerebrais envolvidos nas reações emocionais a eventos surpreendentes. O circuito rápido é responsável
pela valência sempre negativa logo após a percepção de um evento surpreendente. O circuito lento envolve avaliação contextual e pode resultar em
estados afetivos positivos, negativos ou neutros. A interação contrastiva entre os dois sistemas resulta, na maioria dos casos, nas sensações agradáveis
de surpresa. (In: Huron, 2006, p. 20)
cerebral e o domínio psicológico, assim como um entendimento biológico das
emoções musicalmente induzidas.
“Expectativas precisas são funções mentais adaptativas que permitem
aos organismos se prepararem para ações e percepções apropriadas” (Huron,
2006, p. 3). Antecipações ou expectativas estão presentes em todas as esferas
da experiência, e supõe-se que a geração de expectativas está relacionada ao
desenvolvimento do neocórtex humano (Barlow, 2001).
Emoções são a contraparte das expectativas, atuando como motivadores
para os objetivos e propósitos dos organismos (Frijda, 1987, 1986; Scherer &
Ekman, 1984). Huron (2006, p. 4) sintetiza tal visão afirmando que “emoções encorajam os organismos a buscarem comportamentos que são normalmente adaptativos e a evitar aqueles que são normalmente inadaptativos.”
A relação entre antecipação e estado emocional está no âmago da teoria de
Huron. Resumidamente, quando as expectativas falham em corresponder
6
com os eventos futuros e, conseqüentemente, a situação pode tornar-se potencialmente perigosa para o organismo, seu estado emocional passa a ser
caracterizado por uma sensação de valência negativa, que através de mecanismos associativos torna-se conectada àquela situação específica. De maneira
oposta, quando a previsão se mostra correta, existe um estado emocional
positivamente avaliado que age como uma espécie recompensa límbica pelo
sucesso preditivo do organismo. Anatomicamente, tem-se sugerido que dois
circuitos cerebrais que atuam concomitantemente estão relacionados à sensação de surpresa (cf. Fig. 1). Por um lado, o circuito rápido resulta em
estados emocionais sempre negativos, e prepara o organismo para a ação
imediata em uma situação imprevisível – ser surpreendido significa ter feito
as previsões erradas. Por outro lado, o circuito lento envolve áreas corticais responsáveis pelas avaliações contextualizadas, mas que requerem mais
tempo. A avaliação cortical pode resultar em uma valência contrastiva com
aquela decorrente do circuito rápido, por exemplo quando a análise de uma
situação revela que seus eventos apesar de surpreendentes não são potencialmente perigosos. O contraste entre a valência sempre negativa de um
circuito cerebral e a potencialmente positiva do outro reforça a positividade
de um estado emocional final. Então, emoções positivas, no que se refere à
antecipação, podem ser conseqüência de duas possibilidades: (i) quando a
expectativa é correta (recompensa límbica); (ii) quando a expectativa não é
correta mas a situação imprevista não é perigosa (valência contrastiva).
Deve-se notar que a previsibilidade é, na consideração de Huron, principalmente uma questão de probabilidade, e como tal, a principal atividade
mental envolvida na geração de previsões é o raciocínio indutivo. Segundo
o autor, este é modo que a natureza encontrou para lidar economicamente
com eventos futuros, como se eles fossem similares àqueles encontrados no
passado; se uma estratégia funcionou bem em certas situações ela deverá
funcionar bem em outras situações semelhantes. Voltando à música, a experiência (passada) de escuta de um ouvinte é base para suas expectativas, e
ela pode ser descrita pela análise estatística do repertório desse ouvinte. Em
outras palavras, expectativas musicais refletem as propriedades estatísticas
do repertório de um ouvinte.
Huron (2006) propõe quarto tipos de expectativas: verídicas, esquemáticas, dinâmicas e conscientes. Cada uma é relacionada a um tipo específico
de memória e de situação musical. Expectativas verídicas são associadas a
situações de escuta específicas de determinadas obras musicais, ela é representada na memória episódica, a qual codifica um tipo de informação que
poderia ser chamada de autobiográfica. Expectativas esquemáticas refletem
padrões culturais gerais de estruturas e formas musicais; elas são codificadas
em memórias chamadas de esquemáticas e são apreendidas pela exposição a
um certo ambiente cultural. Expectativas dinâmicas envolvem informações
codificadas na memória de curto-prazo e são guiadas pelo desvelar das estruturas musicais, ito é, nas interações entre antecedentes e conseqüentes que
7
Meyer (1956) descreveu. Por fim, as expectativas conscientes são manifestações verbais e explícitas sobre o que pode acontecer, similar ao que Meyer
chamou de objetificação do significado. Os três primeiros tipos de expectativas, pré-verbais e inconscientes, são responsáveis pela maioria das situações
normais de escuta, quando não são necessários pensamentos deliberativos e
as expectativas são indutivamente manifestas.
Logicamente, Huron (2006) caracterizou a expectativa musical em termos indutivos e sugeriu que esses processos refletem um tipo de aquisição
biológica evolucionária, oferecendo um retrato detalhado dos vários tipos de
expectativas musicais em um dado ambiente cultural. Entretanto, quando
os esquemas que um ouvinte aprende indutiva e estatisticamente se mostram equivocados ou inapropriados, novos esquemas deverão ser gerados.
Mas, até onde pudemos verificar, nenhum dos autores mencionados até o
momento discutiu ou apontou como novos esquemas surgem ou que tipo de
raciocínio ou operação lógica poderia estar envolvida em tais casos.
4
Lógica da descoberta, pragmatismo e abdução
Para Charles S. Peirce, a principal atividade de qualquer sistema dotado de
mente é a produção de hábitos. Hábitos estáveis, por sua vez, constituem
crenças a partir das quais a realidade é apreendida. Desta perspectiva, um
sistema mental pode ser entendido como uma rede dinâmica de hábitos e
crenças pelas quais as novidades e anomalias são detectadas como eventos
surpreendentes. Como reforçado por Peirce, “(. . . ) a crença, enquanto dura,
é um hábito forte, e como tal, força o homem a nela acreditar até que algo
surpreendente quebre este hábito” (CP 5.524).4
Hábitos e crenças dão origem a expectativas que permitem a antecipação
de eventos futuros. Considerando que expectativas não são sempre bem
sucedidas, muitas vezes existem conflitos entre as expectativas derivadas de
hábitos bem estabelecidos e as dinâmicas dos eventos ambientais, produzindo
o efeito da surpresa.
Do ponto de vista da lógica de Peirce, existem dois tipos de surpresa:
ativa e passiva. Surpresas ativas ocorrem “quando o que se percebe é conflitante positivamente com as expectativas” (CP 8.315). Surpresas passivas
ocorrem “quando não se tendo expectativas positivas, mas apenas a ausência
de qualquer palpite sobre qualquer coisa fora do comum, algo bastante inesperado acontece” (CP 8.315). Nesse contexto, surpresas musicais irão sempre
ser ativas, porque, supostamente, os ouvintes já devem possuir expectativas
mesmo antes que qualquer nota seja ouvida.
Os estudos das emoções que estão normalmente conectadas com estes dois
tipos de surpresa fazem parte das investigações da psicologia, mas a análise
4
Referência aos Collected Papers serão designadas por CP seguido do volume e do
parágrafo.
8
da estrutura geral da surpresa pertence à área da lógica pragmática. De
acordo com a lógica do pragmatismo, situações surpreendentes requerem a
reformulação das crenças e a formação de novos hábitos. Dada a natureza das
crenças, entendidas como hábitos estáveis já assimilados, a mente procura
superar situações conflituosas pela criação de novos hábitos, os quais, então,
podem resultar em novas crenças caso se mostrem adequados. Conflitos irão
persistir até que a mente forme um novo conjunto de crenças, transformando
a situação surpreendente em uma “questão de fato.” Gonzalez & Haselager
(2005) consideram a análise do processo de geração de novas crenças como
uma das maiores contribuições de Peirce no estudo lógico da criatividade.
Peirce (CP 5.189) oferece uma descrição lógica do processo de raciocínio
criativo, que ele chamou de raciocínio abdutivo, entre outros nomes:
Um fato surpreendente, C, é observado.
Mas se H fosse verdadeiro, C poderia ser uma questão de fato.
Então, existe razão para se suspeitar que H é verdadeiro
Apesar de caracterizar-se como uma forma lógica de raciocínio, a abdução
é falível – ela não fornece certezas, como ocorre com o raciocínio dedutivo.
Contudo, como apontado por Peirce, a abdução é bastante útil para guiar
a mente quando esta se confronta com eventos surpreendentes ou fatos anômalos, auxiliando em libertá-la da dúvida. Nesse sentido, Peirce (CP 5.173)
sugere que a abdução é quase como um instinto:
Essa faculdade possui ao mesmo tempo a natureza geral do Instinto, assemelhando-se aos instintos dos animais, superando os
poderes gerais de nossa razão e por isso dirigindo-nos como se
estivéssemos em poder de fatos que estão inteiramente além dos
alcances de nossos sentidos. Ela assemelha-se ao instinto também
na sua pequena responsabilidade perante o erro; ainda que ela se
mostre equivocada mais freqüentemente do que certa, ainda assim a freqüência relativa com a qual ela está certa é, ao fim e ao
cabo, uma das coisas mais maravilhosas em nossa constituição.
Da abdução, Peirce considerou que “sua única justificativa é que por
sua sugestão a dedução pode extrair uma previsão a qual pode ser testada
pela indução, e que, se nós podemos aprender qualquer coisa ou realmente
entender fenômenos, é por meio da abdução que isto ocorre” (CP 5.171).
Neste sentido, o conhecimento (seja ele científico ou artístico) é construído
pela integração destes três tipos de raciocínio – dedução, indução e abdução
–, assumindo o papel primordial que a abdução exerce na elaboração de
hipóteses e na superação de situações incertas e conflitantes.
A partir deste pequeno sumário da visão peirceana sobre a natureza do
raciocínio abdutivo, é interessante considerar-se a possibilidade de existência
de um princípio lógico geral que sustente as suposições sobre as respostas
9
emocionais e significativas que acompanham a escuta musical. Peirce entende
que a abdução está também envolvida em julgamentos perceptivos, os quais,
apesar de sua naturalidade e suas manifestações normalmente inconscientes,
são hipotéticos e não definitivos, são questões de hábitos e não de fatos
invariáveis.
5
Abdução e significado musical
Apesar de seu formalismo, Hanslick percebeu que o conteúdo musical poderia ser instanciado apenas por formas da estrutura musical no domínio
da escuta. Meyer estabeleceu uma relação entre expectativas e significado
musical. Como vimos, ele distinguiu três tipos de significado: hipotético,
evidente e determinado. Rejeitando as idéias de que a música imitaria as
emoções e afetos através de seus sons e de que o conteúdo musical poderia
ser atribuído objetivamente somente à estrutura musical, Meyer argumentou
que o significado em música deveria ser visto na experiência fenomênica do
ouvinte. Tal experiência foi por ele descrita como as relações (inconscientes)
entre um objeto, algo para o qual este objeto aponta, e um observador.5 O
que é mais importante na teoria de Meyer é que ela postula o significado musical como uma espécie de confronto dialético entre hipóteses e suas possíveis
corroborações na estrutura musical, a partir de uma perspectiva fenomenológica. Isso é a relação dinâmica entre significados hipotéticos e evidentes. Já
os significados determinados têm outra natureza, sendo conseqüências de um
processo de objetificação que opera sobre a dinâmica da escuta transformada
em objeto da análise consciente. Assim, o significado hipotético é a base das
expectativas musicais, e, conseqüentemente, de qualquer experiência significativa em música.
Parece existir uma correlação entre estados emocionais e a eficiência das
expectativas geradas na escuta. Meyer estabeleceu uma correlação no domínio da psicologia, mas sua teoria não postulou efetivamente como tal correlação poderia ser. Foi Huron, que cinqüenta anos depois realizou uma
correspondência entre expectativas e emoções, no escopo de uma psicologia
mais próxima da biologia. Contudo, nem a psicologia nem as neurociências ainda não proveram os meios conceituais para se investigar a geração
de hipóteses que leva às expectativas (experiência significativa) que podem
resultar em afetos durante a apreciação musical (experiência emocional).
Logicamente, a teoria de Huron é construída sobre as bases da tradicional
forma inferencial dedução-indução, explicando como a escuta musical opera
na antecipação dos eventos vindouros. Contrariamente, a consideração de
Meyer sobre o significado musical não é lógica, mas psicologicamente elaborada, e também falha em explicar como hipóteses são geradas na percepção.
5
Em termos peirceanos teríamos signo, objeto e interpretante, respectivamente.
10
Acreditamos que é justamente neste ponto que a lógica da descoberta,
na perspectiva do pragmatismo de Peirce, pode ser relevante. É plausível
sugerir uma relação de complementaridade entre as formulações psicológicas
de Meyer, e as evidências experimentais e evidentes de Huron, e a lógica da
descoberta de Peirce, oferecendo um modelo de como expectativas musicais
são construídas na escuta musical e resultam em estados emocionais. Em
resumo, nossa tese é de que o que Meyer chamou de significado hipotético, e
que é a base do processo de significação, não é nada além de uma instanciação
do que Peirce chamou de raciocínio abdutivo, o qual forma a base inferencial
dos processos de aquisição de conhecimento.
Significado musical, ou melhor, significação musical é uma forma particular de um processo geral de significação que é instanciado, primeira e
inicialmente por meio da abdução. Nossa perspectiva enfatiza a interação
entre abdução, indução e dedução, sugerindo que esses três tipos de raciocínio se manifestam nos processos de significação musical, que podem ser
pensados como processos emergentes, isto é, não redutíveis nem ao ouvinte
nem à obra, isoladamente. O significado evidente, discutido na teoria de
Meyer, nada mais é que um caso de processo indutivo de verificação de hipóteses, e o que ele chamou de significado determinado decorre principalmente
de raciocínios dedutivos. De qualquer forma, hipóteses precisam ser geradas
para tais tipos de significado possam emergir.
Sobre a base do argumento indutivo existe uma perspectiva probabilística
de entendimento que resultaria meramente da exposição de um sujeito a
obras de um repertório específico. Acreditamos que a indução e dedução
sozinhas não são suficientes para caracterizar a escuta musical porque a obra
não nos mostra, efetivamente, como devemos ouví-la, mesmo após várias
audições. Até mesmo para as operações cognitivas básicas de segmentação
de agrupamento de notas em uma simples melodia não existem regras que
poderiam ser instanciadas aprioristicamente ou apreendidas pela audição
reiterada, como se a obra fosse revelar seus segredos após várias seções de
escuta. Segmentação e agrupamento são questões de raciocínio hipotético
(e habitual), que é verificado indutivamente contra os eventos sonoros que
vão se manifestando na escuta musical. Em um ambiente musical muito
homogêneo a indução será muito mais presente do que a abdução, e em tais
casos a escuta pode mesmo estar sujeita a determinações probabilísticas ou
ser descrita por processos estatísticos. Entretanto, dentro de um ambiente
musical estilisticamente diversificado, hábitos de escuta terão de ser gerados
e adaptados mais regularmente. Um conjunto estável e invariante de hábitos
não seria adequado para que experiências significativas sejam possíveis sobre
repertórios diferentes estilisticamente – novos hábitos de escuta precisam ser
gerados a cada vez que um novo sistema ou estilo musical aparece.
Esta perspectiva pode ser relacionada a transformações de espaços conceituais (Boden, 1994). Um espaço conceitual é uma estrutura multidimensional
que contêm os princípios que constituem e unificam uma área de conheci11
mento. Boden entende o sistema tonal como um sistema gerativo que pode
ser descrito como um espaço conceitual. Experimentações feitas por compositores não apenas exploram as possibilidades de um sistema como esse,
mas ocasionalmente também transformam e expandem suas estruturas. A
transfiguração atonal do sistema tonal é um exemplo da transformação de
um espaço conceitual em música (Boden, 1994, p. 81). Gonzalez & Haselager
(2005) propuseram que a abdução pode ser tomada como a inferência lógica
que torna a expansão e a transformação do espaço conceitual possível.
Espaços conceituais não são apenas adequados para a descrição da ação
de um compositor, mas também para a ação habitual de um ouvinte. O
conjunto de hábitos que, de acordo com Peirce, constituem as crenças de uma
pessoa pode ser tomado como um espaço conceitual. Nesse sentido, hábitos
de escuta e crenças estéticas são elementos desse espaço músico-conceitual.
Na perspectiva dos ouvintes, seus espaços conceituais são alterados todas as
vezes que um novo hábito ou crença é criado em resposta a um novo tipo de
música ou estilo. Sendo assim, a escuta musical, pela perspectiva lógica do
pragmatismo, é um ato potencialmente criativo.
Imagine como a adição de uma obra como a Sagração da Primavera pode
alterar a experiência auditiva de um ouvinte, o seu espaço conceitual. Depois
de ouvir aos acordes da Dança dos Adolescentes, não se poderia mais ouvir
acordes repetidos, como aqueles do primeiro movimento da Terceira Sinfonia
de Beethoven da mesma forma – agora Beethoven passaria a ser lido à luz
de Stravinsky, ou melhor, ouvido ao som de Stravinsky. Podemos ilustrar
outra situação ainda mais radical: música eletroacústica. Para um ouvinte
familiarizado, por exemplo, com a música do sistema tonal e mesmo póstonal, como a do próprio Stravisnky, as obras dos primeiros compositores
da música eletrônica poderiam até mesmo deixar de serem categorizadas
como música. As mais extravagantes experiências concretas de Schaeffer e
seus colegas, ou mesmo as recentes paisagens sonoras poderiam ser ainda
mais perturbadoras. Não é difícil se encontrar opiniões (principalmente no
senso-comum) expressando a reluta em aceitar a música contemporânea como
música. Uma hipótese é que os ouvintes podem estar tentando entender tais
obras com os hábitos errados. A partir da referência oferecida pelos hábitos
tradicionais (normalmente tonais) de escuta, a música contemporânea não se
tornará inteligível. O ouvinte tem que criar novos hábitos (e possivelmente
novas crenças estéticas) para poder estabelecer relações significativas sobre
as estruturas sonoras de outra forma ininteligíveis. A expansão do espaço
conceitual do ouvinte pela abdução altera não apenas a forma pela qual
ele experiencia a nova música, mas também transforma a experiência de
obras que já lhe sejam muito familiares. Nesse sentido, o ato (criativo) de
ouvir música é sempre uma nova experiência, porque os hábitos de escuta e
as crenças estéticas estão permanentemente sendo alteradas pelo raciocínio
abdutivo.
Se o significado musical, assim como a experiência afetiva, emerge, então,
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pela formulação de hipóteses sobre relações estruturais na escuta musical,
acreditamos que a consideração da lógica (da descoberta) peirceana pode
contribuir para a elucidação de como tal processo se dá. Lógica (semiótica)
e psicologia sem complementam na descrição de fenômenos cognitivos e perceptivos, oferecendo um retrato mais nítido das operações mentais envolvidas
na sempre criativa atividade de ouvir-se música afetiva e significativamente.
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