1 CARTOGRAFANDO LEMBRANÇAS José Willington Germano – [email protected] Universidade Federal do Rio Grande do Norte Lenina Lopes Soares Silva [email protected] Universidade Federal do Rio Grande do Norte Palavras-chave: Cartografia, lembranças, estratégia de pesquisa. I INTRODUÇÃO [...] O modo como imaginamos o real espacial pode vir a tornarse na matriz das referências com que imaginamos todos os demais aspectos da realidade. Boaventura de Sousa Santos As discussões em torno de estratégias de pesquisa e de outros modos de análise na área de história da educação com enfoque em abordagens qualitativas vêm sendo feitas como uma tentativa de tornar os conhecimentos produzidos bem mais sedimentados metodologicamente. Assim, ideamos este relato, considerando que as estratégias metodológicas em pesquisas no âmbito das Ciências Sociais e Humanas têm demandado estudos que utilizam procedimentos metodológicos inovadores, dentre os quais podemos citar, o desenvolvido pelo pensador português Boaventura de Sousa Santos. A comunicação que ora apresentamos tem como objetivo relatar a experiência desenvolvida na análise da pesquisa “Memória da Formação Médica: lembranças de alunos egressos do Curso de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”, realizada de 2003 a 2006, na Base de Pesquisa Cultura, Política e Educação, do Departamento de Ciências Sociais, vinculada também ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRN. A fundamentação de tal metodologia encontra-se nas propostas de Santos (2001) sobre os procedimentos de sociologia cartográfica ou cartografia simbólica como mapas da realidade a ser representada socialmente. Nessa perspectiva, observamos que Santos (2001, p. 224), tratando da cartografia simbólica das representações sociais, diz: “os mapas são um campo estruturado de intencionalidades, uma língua franca que permite a conversa sempre inacabada entre a representação do que somos e a orientação que buscamos.” A cartografia também é utilizada por Nobre (2003, p. 69), que a considera como um procedimento de pesquisa capaz de “apresentar e organizar os resultados obtidos em atividades de campo [...]” permitindo que o pesquisador mapeie os dados e possa visualizá-los em conjunto. Para nós os procedimentos de cartografia simbólica possibilitam que analisemos os dados coletados de forma substantiva – vendo-os no contexto do espaço histórico, social e cultural no qual ocorreram, portanto, pertinente 2 em trabalhos científicos alicerçados na história e na memória da educação em seus mais diversos campos de aplicação. Tais reflexões possibilitam compreender que trabalhos que trazem memórias como fontes de pesquisa talvez sejam formas de respeitar e de construir conhecimentos portadores de significados para a compreensão das relações humanas e sociais em certo tempo e lugar, ocorrências do passado que trazem lições para o presente que se faz futuro, sobretudo, se tiverem como parâmetro atitudes voltadas para a humanização e para o senso de pertencimento social, cultural e planetário como no caso das pesquisas que lidam empiricamente com lembranças do processo de escolarização e formação de sujeitos. Desse modo, compreendemos que lembranças podem ser traduzidas em conhecimentos, representadas como fragmentos de memória que chegam ao presente buriladas pelas experiências da vida, da história do sujeito; carregadas de nostalgia, em relação ao passado que de certa maneira é conformado socialmente; oferecem assim, ferramentas para atualizar o já vivido e para acreditarmos em expressões significativas permeadas de sentimentos que ficaram armazenados, os quais poderão ou não aflorar quando estimuladas no presente. Nesse sentido, ressalvamos que em pesquisa, as lembranças devem ser colhidas com os cuidados necessários à estruturação de um conhecimento que, sendo tradução, seja representativo da realidade e seja também prudente, como postula Santos (2003) e pertinente, como ensina Morin (2001). Salientamos que, nesta pesquisa, as lembranças foram analisadas como sinais da memória da formação médica dos sujeitos, e sendo tal formação parte do processo educativo/formativo deles, optamos por fazer uma análise, não de tudo que foi lembrado ou das memórias em si, mas daquelas lembranças, partes da memória, concernentes ao processo de mediação pedagógica de tal formação. Dessa forma, selecionamos quatro categorias do conceito de mediação pedagógica formulado por Moraes (2003) que diz: a mediação pedagógica seria, portanto, um processo comunicacional, conversacional, de co-construção de significados, cujo objetivo é abrir e facilitar o diálogo e desenvolver a negociação significativa de processos e conteúdos a serem trabalhados nos ambientes educacionais, bem como incentivar a construção de um saber relacional, contextual, gerado na interação professor/aluno. (MORAES, 2003, p. 210). As categorias selecionadas para interpretação foram conteúdos de ensino, saber relacional, recursos didáticos e saber contextual, compreendidos da forma a seguir: a) conteúdos de ensino que compreendem os saberes ensinados na educação formal, que podem ser conhecimentos científicos, sociais, culturais e atitudinais de acordo com Libâneo (2004, p. 70); b) saber relacional aquele concernente a interação entre professores e alunos e entre alunos e alunos, entendido como o que vai além da autonomia e da emancipação de alunos e professores em seus processos de auto-organização pessoal e coletiva, nesse sentido, refere-se a “[...] qualidade da interação, onde os dois são elementos fundamentalmente importantes, o que nos leva a inferir que não depende somente da atitude do professor diante do aluno, mas das atitudes e dos comportamentos de ambos, Moraes (2003, p. 210 - 211),” inserindo-se, dessa maneira, no “aprender a viver” como sugere Morin (2002, p. 20); c) recursos didáticos são as estratégias, instrumentos e operadores técnicos e lingüísticos, utilizadas para as intervenções necessárias à assimilação e à produção do 3 conhecimento, à transmissão de informações e ao diálogo entre os saberes, conforme reflexões de Morin (1999) com a intenção de possibilitar e facilitar as aprendizagens dos alunos; d) saber contextual aquele que se refere à compreensão da condição humana e social e sua convivência planetária que segundo Morin (2005, p. 115), “[...] comporta não somente a compreensão da complexidade do ser humano, mas também a compreensão das condições em que são forjadas as mentalidades e praticadas as ações.” Reconhecemos o caráter arbitrário de tal modelação em categorias, todavia a interpretação procurou, nas conduções reflexivas, respeitar a narrativa de cada sujeito pontuando em todos os momentos que A memória humana é formada por um processo de construção coletiva, em que seus vestígios, quando expressados por meio da linguagem, contêm em si outras linguagens e a memória de outros sujeitos. Embora compreendamos que haja na narrativa de depoentes expressões particularizadas, próprias de cada sujeito, estas são tentativas de torná-los específicos. Mas, é nessa seletividade que vamos encontrar as singularidades e, também, o sentido da memória coletiva. Aqui, esta é entendida como um processo dinâmico direcionado pela confluência de vários elementos da composição da estrutura mental, que se distinguem e ao mesmo tempo são comuns, presentes em diferentes discursos sobre um determinado tempo, momento e espaço sociocultural, partes de uma mesma experiência e de uma mesma história, reconstruída no presente (SILVA, 2006, p. 120). Sendo assim, as palavras como partes do discurso formaram a base da interpretação da mediação pedagógica da formação médica dos sujeitos da pesquisa. Nesse sentido, a pesquisa em relato enquadra-se nas abordagens qualitativas por sedimentar-se em dados ditos subjetivos –, lembranças de alunos –, sendo estes os sujeitos. São alunos egressos das turmas que ingressaram em 1956, 1957 e 1958, os quais concluíram em 1961, 1962 e 1963, na Faculdade de Medicina de Natal/Rio Grande do Norte. Tal Faculdade foi incorporada à Universidade do Rio Grande do Norte, em 1958, e posteriormente à Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Do universo formado por 50 alunos foi retirada uma amostra de seis sujeitos, possibilitada por ser a pesquisa não paramétrica. A participação se deu por consentimento, conforme documentação arquivada na Base de Pesquisa Cultura, Política e Educação do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Essa pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa da UFRN e aprovada, em junho de 2003. 4 II CARTOGRAFANDO LEMBRANÇAS A incompletude estruturada dos mapas é a condição da criatividade com que nos movimentamos entre os seus pontos fixos. Boaventura de Sousa Santos Partimos da compreensão de que os mapas nos indicam lugares possíveis, contudo, são distorções da realidade, assim, as formas como vamos chegar a tais lugares devem ser planejadas para que os caminhos a serem percorridos tornem-se possibilidades reais. Assim, a sistematização dos dados e a interpretação das lembranças durante a pesquisa foram conduzidas através de uma cartografia simbólica como uma estratégia que envolve a construção de quadros/grelhas interpretativos que configuram mapas da realidade que se quer representar para ser vista e lida. Para Santos (2001) a construção de uma cartografia simbólica deve ser conduzida observando-se três parâmetros ou mecanismos de representação/distorção da realidade articulados entre si quais sejam a escala que é um mecanismo capaz de demonstrar (no mapa) a relação entre este, e a distância no terreno, que deve corresponder virtualmente ao que está sendo representado no mapa; a projeção que procura dar conta de um compromisso do cartógrafo/pesquisador com o uso específico que pretende dar ao mapa, refere-se as suas especificidades, singularidades etc; e a simbolização – esse mecanismo que demanda a compreensão de sinais e símbolos gráficos que estabelecem semelhanças com a realidade a ser representada – com a preocupação de facilitar a leitura e a visão do observador/leitor. Desse modo, “os mapas podem ser mais figurativos ou mais abstratos, assentar em sinais emotivos ou expressivos ou, pelo contrário, em sinais referenciais ou cognitivos. (SANTOS, 2001, p.205). A cartografia simbólica sistematizada para o tratamento dos dados da pesquisa considerou esses três mecanismos, procurando aproximar-se dos mapas que se delineiam “em sinais referenciais ou cognitivos” de acordo com as palavras de Santos, tendo como referentes empíricos as falas dos depoentes que deram suporte para a elaboração de sínteses que foram apresentadas em quadros, os quais tiveram como unidade de análise as palavras representativas dos elementos constituintes da mediação pedagógica expressadas nos depoimentos. Foi, portanto, uma estratégia delineada para elaborar uma cartografia simbólica da formação médica da UFRN de 1956 a 1963. Assim, o conjunto dos depoimentos foi considerado como o “terreno” a ser representado, e as palavras representativas das categorias em análise, fizeram a relação entre a distância de tal conjunto e as palavras no “mapa de lembranças”, mediada pelas teorias que deram suporte à sistemática de análise, formando a escala; o mecanismo de projeção demandou a construção de dois tipos de quadros: um de síntese e outro interpretativo de acordo com a especificidade da análise qual seja, compreender o processo de mediação pedagógica da formação médica dos sujeitos com base na fundamentação teórica; o mecanismo de simbolização apresentou-se nos dois quadros, trazendo para a leitura da pesquisa, tanto as falas do sujeitos, como a interpretação dos pesquisadores, de forma descritiva e narrativa. Como já referimos, as lembranças que foram analisadas são frutos da escuta de depoimentos através de entrevistas temáticas, observando-se durante o processo as condições de acessibilidade e de enfrentamento do tema pelos sujeitos, em suma, se as recordações não lhes causariam sofrimento ou rejeição. Isto porque, se fosse constatado, no primeiro contato, aquele sujeito não seria entrevistado. Esses cuidados foram 5 necessários porque a maioria dos sujeitos da pesquisa encontra-se na categoria de idosos. Ressaltamos que os encontros para a entrevista aconteceram em datas, locais e horários diferentes, escolhidos de acordo com a disponibilidade dos sujeitos. Os entrevistados mostraram entusiasmo durante a exposição de momentos das suas vidas acadêmicas; avaliaram a importância e relevância de alguns dos momentos relatados para suas vidas pessoais e profissionais; apresentaram estilos narrativos diferentes e se detiveram para explicar detalhadamente alguns episódios, estabelecendo relações com situações vividas posteriormente, por eles. A cronologia dos acontecimentos durante os depoimentos não foi respeitada, contudo, isto não afetou a qualidade e o conteúdo genérico das informações/lembranças. Todavia, observamos, que os discursos se mostraram entrecortados, episódicos e fragmentados, no entanto, não são dispersivos, tendo em vista que a temática proporcionava o ir e vir das lembranças, tornando o assunto presente; dando-lhe coerência; articulando a narrativa e ao mesmo tempo, estruturando a coesão e a razoabilidade das narrativas. 2.1 OS PASSOS PARA CONSTRUÇÃO DA CARTOGRAFIA SIMBÓLICA A sociologia cartográfica ou cartografia simbólica da formação médica da UFRN (1956-1963), foi configurada em cartogramas de significados para sistematizar os procedimentos de análise da pesquisa, com apoio teórico apreendido de uma abordagem metodológica utilizada por Vygotsky (1989). Na referida abordagem esse autor analisa a relação entre pensamento e linguagem. Desse modo, acreditando nessa relação no processo de lembrar, tomamos como referência seus posicionamentos sobre unidade de análise. Nessa pesquisa, escolhemos como unidade de análise - a palavra e seus significados, no sentido e significado dado por Vygotsky (1989), que conduz à interpretação de que a palavra é o “microcosmo da consciência humana,” cujo significado e sentido têm função mediadora, possibilitando que na linguagem assuma dois movimentos funcionais: o da comunicação e o da representação. Assim, foi a partir da função comunicativa, encontrada nas narrativas sobre a formação médica que as palavras foram utilizadas em sua função representativa para elaborar a cartografia ora demonstrada, de acordo com as palavras expressadas pelos depoentes. Observamos que as palavras representativas no contexto de um discurso, oferecem suporte auto-organizativo à interpretação, carregam em si a representação do todo, um exemplo é: quando dizemos que os conteúdos de ensino de determinada disciplina são fundamentais, esta palavra refere-se a todos os conteúdos da disciplina e, ao reintroduzi-la no contexto, fazendo a relação parte/todo, poderemos dizer que fizemos uma distinção sem separação, de acordo com o pensamento complexo (MORIN, 2001). Compreendemos que por essa via – a palavra representativa pode ser configurada de forma hologramática, quando entendida por seus significados fora do contexto da narrativa, no entanto, articulada a ele pelos traçados teóricos conduzidos pelo pesquisador, no caso, conduzida pela temática. Vale salientar que nos reportamos também a Pesavento (2003, p. 103) que afirma a “cartografia social remete a pensar as ações dos homens, que se inscrevem, necessariamente, em uma temporalidade”, sendo assim, foi possível construir a cartografia conforme planejamos para construir a memória da formação médica da UFRN do período em estudo, tendo como referente as ações dos professores que lá lecionavam à época. 6 Dessa forma, salientamos que corroboramos o posicionamento de Santos (2001), quando este informa que o procedimento cartográfico consiste no mapeamento das informações em quadros paralelos que formam uma grelha, e o de Cortesão e Stöer (2001, p. 391) que analisa esta estratégia de tratamento temático e conclui que, fazer uma cartografia em uma pesquisa “[...] tem como objetivo produzir uma intertextualidade entre conceitos e discursos concorrentes, para mostrar que o conhecimento e a ação se inter-relacionam [...].” De acordo com todos as reflexões já explicitadas, primeiro, mapeamos nos depoimentos dos sujeitos, após a transcrição das fitas, as palavras representativas que se referiam aos elementos da mediação pedagógica, evidenciados como categorias de análise, dentre os quais, os já referidos: conteúdos de ensino; saber relacional, observando-se, neste sentido, dois aspectos: interação entre professores e alunos e interação entre alunos; recursos didáticos; e saber contextual. Feito o mapeamento, construímos dois tipos de quadros, o primeiro de síntese, observando em sua estruturação a questão do ano de conclusão de curso de cada turma, inseridos na vertical e as categorias na horizontal, para que no quadro pudessem ser preenchidos com as palavras representativas. Isto permitiu visualizarmos de forma panorâmica se havia diferença de significação sobre os elementos da mediação pedagógica entre elas, no conjunto das narrativas, este quadro foi denominado de cartografia de significados, conforme pode ser observado no quadro 01. Os desafios para a elaboração dessa cartografia que podemos inscrever como de lembranças, encontram-se na dimensão dos referenciais e da cognição, pois embora reconhecendo que cada sujeito lembra do passado selecionando, avaliando e interpretando sua própria vida e não a realidade vivida, mas o que é de certo modo realidade para ele, assim como pensa Bosi (2003), interpretar as lembranças de forma lógica foi uma tarefa difícil. Partindo-se, desta compreensão, entendemos que os sujeitos da pesquisa se referiram aos elementos constituintes da mediação pedagógica utilizando as mesmas palavras ou palavras que denotam o mesmo significado, exceto para os recursos didáticos. Sobre o que foi feita uma re/interpretação, “considerando as mudanças institucionais da primeira para a segunda e para a terceira turma” (SILVA, 2006, p. 164), geradas também pelas mudanças de dependência administrativa da Faculdade, talvez, isso tenha provocado a discrepância apresentada sobre recursos didáticos pelas turmas. 7 CARTOGRAFIA DE SIGNIFICADOS ANOS PALAVRAS REPRESENTATIVAS DOS ELEMENTOS DE MEDIAÇÃO PEDAGÓGICA SABER SABER RECURSOS SABER RELACION RELACION DIDÁTICOS CONTEXTUA TURMAS CONTEÚ AL: AL: L CONCLUI DO DE interação interação NTES ENSINO entre entre alunos professores e alunos Importantes Amigável Bom – Diálogo – - Básicos Importante Bom Assistência à 1961 Confiabilidad comunidade e Importantes Especial Bom - Coeso Precários Trabalhar para a 1962 sociedade Proveitosos Amigo Bom - Alegre De sobra Trabalhar para a sociedade 1963 Importante Quadro 01 – Quadro Síntese: CARTOGRAFIA DE SIGNIFICADOS Fonte: Silva (2006) Dando continuidade a análise, no segundo momento, a partir deste quadro síntese foram construídos cinco quadros de acordo com as categorias de análise os quais foram denominados de cartogramas de significados. Nestes, foi deixado um espaço para colocar a interpretação, conforme quadros 02, 03, 04, 05 e 06. 8 CARTOGRAMA DE SIGNIFICADOS INTERPRETAÇÃO ANO TURMAS CONCLUINTES 1961 1962 1963 PALAVRAS REPRESENTATIVAS DE CONTEÚDOS DE ENSINO Importantes - Básicos Importantes Proveitosos Diante deste conjunto de palavras referidas aos conteúdos de ensino da formação médica da Faculdade de Medicina da UFRN, podemos entender que os mesmos foram fundamentais para a vida profissional dos alunos. Neste sentido, refletimos tendo como base a compreensão de Morin ( 2002, p. 490): ”[...] todo conhecimento é tradução a partir dos estímulos que recebemos do mundo exterior e, ao mesmo tempo, reconstrução mental, primeiramente sob forma perceptiva e depois por palavras, idéias, teorias”. Daí porque, mesmo entendendo que as palavras expressam apenas o nosso modo de ver, de opinar, de compreender, de afirmar e de negar, nossa proposição é a de que tudo que é ensinado, como e porque é ensinado deixa marcas na vida dos sujeitos. Assim, vemos que essas palavras dão um significado e um sentido valorativo aos conteúdos ensinados neste processo de formação médica, permitindo o entendimento da mediação pedagógica em estudo. Esses conteúdos de ensino tinham não apenas a função de serem ensinados e aprendidos naquele momento, mas também a de fomentar o uso deles, no futuro, quando do atendimento à saúde da população pelos profissionais médicos. Sendo o conhecimento tradução e reconstrução, a visão que temos do que foi ensinado no passado só poderá ser explicada indicando-se a complexidade do universo pedagógico, com a multidimensionalidade e multirreferencialidade de suas práticas e relações sociais, envolvidas na tessitura da vida, a qual encontra-se presente, pela via do passado, em grande parte para a condução do futuro, como no caso em análise. Desta maneira, podemos entender que os conteúdos de ensino perpassados durante a formação médica tiveram seu espaço no futuro da vida dos alunos. Quadro 02 - CONTEÚDOS DE ENSINO Fonte: Silva (2006) 9 CARTOGRAMA DE SIGNIFICADOS INTERPRETAÇÃO ANO TURMAS CONCLUINTES 1961 1962 1963 PALAVRAS REPRESENTATIVAS DE SABER RELACIONAL: INTERAÇÃO ENTRE PROFESSORES E ALUNOS Amigável Especial Amigo As palavras representativas direcionadas ao saber relacional, no aspecto interação, entre professores e alunos, denotam atitudes qualitativas, predominando a amizade como sentimento em relação aos professores. Rosnay (2002, p. 498) alerta-nos para uma questão que corrobora esse entendimento numa concepção dessa interação envolvida pelos dois atos implicados nela entendidos como ação/relação: “Aprender e ensinar por aprender é uma coisa. Aprender e ensinar para agir é outra. Aprender e ensinar para compreender os resultados e os objetivos de sua ação é ainda outra.” Assim ideada, a interação pode ser complementada pela reflexão de Morin (2002), que nos fala da interação inserida numa aprendizagem de e para a vida. Será que nos guiando, por esses pensamentos, poderíamos interpretar que a mediação pedagógica que ocorria na Faculdade de Medicina da UFRN, no período em estudo pautava-se numa prática dialógica, à medida que os antagonismos da relação entre professores e alunos eram superados na prática efetiva? Por fim, ideamos que o reconhecimento dessas atitudes interativas dos professores pelos alunos, da forma como foram significadas, podem ser a constatação de uma relação hierárquica sábia entre humanos, um processo que pressupõe uma “sensibilidade solidária” e um “estabelecimento de vínculos” como pensa Germano (2006). Essa interação, assim praticada no passado, é hoje confirmada ao ser confrontada com um ideal que antes era objetivado pelos professores e que, no presente, é compreendido e reconstruído pelos ex-alunos, tornando-se, assim, uma interação que ficou alicerçada em sentimentos que fomentam os laços de sociabilidade e convivência no grupo. Neste sentido, as palavras que foram ditas pelos alunos egressos traduziram o pensamento deles em relação à qualidade daquilo que eles viveram com os professores no movimento do processo de ensino e aprendizagem da formação médica da UFRN. Quadro 03 - SABER RELACIONAL: INTERAÇÃO ENTRE PROFESSORES E ALUNOS Fonte: Silva (2006) 10 CARTOGRAMA DE SIGNIFICADOS INTERPRETAÇÃO ANO TURMAS CONCLUINTES 1961 1962 1963 PALAVRAS REPRESENTATIVAS DE SABER RELACIONAL: INTERAÇÃO ENTRE ALUNOS Boa – Importante - Confiabilidade Bom - Coeso Bom – Alegre O conjunto de palavras relacionadas à interação entre os alunos, como um dos aspectos envolvidos no saber relacional, manifestado pelos alunos egressos da Faculdade de Medicina da UFRN, sujeitos desta pesquisa, representa fragmentos do que ficou na memória. Compreendemos assim, pelas palavras ditas, que havia no grupo de alunos, além da confiança expressada, respeito pelos outros e alegria nas relações por eles desenvolvidas. Por essa perspectiva, entendemos que essa interação talvez representasse a maneira de ser, de ver, de perceber, de sentir e de compreender o mundo desse grupo que assim agia pelo entendimento das diferenças e das contradições existentes na vida social, observadas naquele momento de suas vidas. As palavras coeso, alegre e confiabilidade nos fizeram pensar sobre a proposta de reencantamento da educação de Moraes (2003, p. 198), na qual seriam integrados: “[...] o sentir, o pensar e o agir, resgatando também a sensibilidade, a dimensão do coração, a dimensão espiritual e sagrada da vida [...],” fazendo-nos acreditar que, mesmo tendo os alunos feito uma avaliação qualitativa da interação, tiveram também a preocupação de reafirmar, usando como suporte as relações cooperativas entre eles, de que essa interação pressupunha o reconhecimento de emoções, sentimentos, afetos de uns para com os outros, sem descartar a ocorrência de conflitos. Assumiam quem sabe? o que Morin (2001) pensa sobre os princípios do conhecimento pertinente que reconhecem o que já está posto pela ciência como saber sistematizado e envereda pela apreensão da condição humana e daquilo que é tecido junto, propondo que “[...] todo desenvolvimento verdadeiramente humano significa o desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e do sentimento de pertencer à espécie humana,” Morin (2001, p. 54). Assim, vimos que essa interação teve um significado relevante para o grupo. Quadro 04 - SABER RELACIONAL: INTERAÇÃO ENTRE ALUNOS Fonte: Silva (2006) 11 CARTOGRAMA DE SIGNIFICADOS INTERPRETAÇÃO ANO TURMAS CONCLUINTES 1961 1962 1963 PALAVRAS REPRESENTATIVAS DE RECURSOS DIDÁTICOS Diálogo - Bom Precários De sobra As palavras lançadas para recursos didáticos deixam transparecer duas concepções existentes sobre eles na Faculdade de Medicina da UFRN. A primeira, que havia naquele processo de mediação pedagógica uma compreensão de recurso didático, como o conjunto de instrumentos, procedimentos e estratégias de ensino utilizadas com o objetivo de facilitar a aprendizagem, dentre eles, o diálogo com alunos; e a outra, que concebia recursos didáticos apenas como materiais concretos, instrumentos objetivos de ensino, dadas as palavras com as quais a maioria dos alunos se referiu a esse elemento constituinte da mediação pedagógica. Depreendemos, desses entendimentos, que nessa mediação eram utilizados, como recursos para ensinar e aprender tanto instrumentos materiais quanto subjetivos, como a linguagem e o pensamento presentes na atitude dialogal entre professores e alunos. Por essa via refletimos que a utilização de recursos didáticos, em certo sentido, envolve a concepção de conhecimento do professor pois é ele que planeja, com objetivos e metas a serem alcançados. Sendo assim, podemos supor que quem usa o diálogo como estratégia de ensino tem uma intencionalidade voltada para a compreensão e a interação, o que poderá provocar, nos alunos, o desejo de aprender. Vemos dessa maneira que o diálogo é um instrumento que pode ser usado pelo professor para fazer a crítica a procedimentos que não se encontrem de acordo com os princípios éticos. Segundo Masetto (2000), dialogar é uma das características da mediação pedagógica vista como estratégia na forma de tratamento de diferentes conteúdos pelo professor, tendo em vista que dialogando é que se faz a articulação entre os mais diversificados materiais e equipamentos tecnológicos utilizados no processo de ensino e de aprendizagem. Quadro 05 - RECURSOS DIDÁTICOS Fonte: Silva (2006) 12 CARTOGRAMA DE SIGNIFICADOS INTERPRETAÇÃO ANO TURMAS CONCLUINTES 1961 1962 1963 PALAVRAS REPRESENTATIVAS DE SABER CONTEXTUAL Assistência à comunidade Trabalhar para a sociedade Trabalhar para a sociedade - Importante As expressões relativas ao saber contextual, ditas pelo grupo de alunos egressos, mostram o envolvimento deles com a comunidade no sentido de prestação de serviços médicos. Este era o espírito e o discurso vivido durante a formação médica da Faculdade de Medicina da UFRN, no período em estudo. Daí advém a idéia de que essas palavras traduzem o envolvimento do grupo com a sociedade e, talvez, por isso se explique o engajamento social dos alunos no sentido de assistência à saúde da população. Torna-se válido lembrar que, seguindo por essa trilha, como não havia à época a tecnologia médica atual, o paciente era um dos meios e formas de ensino e de aprendizagem médica, sabendo-se que comumente no discurso oficial não há essa relação entre prestar assistência médica à sociedade e ao mesmo tempo aprender a profissão. Depreendemos então das expressões verbalizadas que esse saber, da forma como foi mediado na formação médica, foi-nos apresentado com significados depositários do sentido dado tanto pela história como pela memória. Embora reconheçamos que eles sejam apenas vestígios, lembranças, trazem, em parte, enquanto tradução, os desejos e intencionalidades inseridos nas ações e relações sociais do contexto, agora reconstruídos. Desse modo, podemos constatar que o saber contextual perpassado na mediação pedagógica, em estudo, trazia as marcas de seu espaço-tempo e também a vinculação com os problemas locais que passavam pela assunção de compromissos sociais para com a comunidade e a sociedade. Tais análises nos instigam, assim, a pensar como Morin (2002), quanto à compreensão das finalidades do ensino, como aquelas que em seu próprio contexto sejam capazes de provocar nos alunos enraizamento histórico, social e cultural e pertencimento humano na Terra, gerando dessa forma um conhecimento pertinente. Quadro 06 - SABER CONTEXTUAL Fonte: Silva (2006) III REFLEXÕES FINAIS Pela via já delineada a cartografia de significados como estratégia para tratamento de um tema relacionado à memória da formação médica, permitiu diminuir vários problemas de ordem interpretativa. Isto porque foi traduzida como facilitadora da análise, à medida que possibilitou a sistematização das derivações da memória e das lembranças, expressas através das palavras dos sujeitos, como forma de expressão do pensamento pela linguagem, para a interpretação do pesquisador, como o sujeito que faz a re/interpretação e mapeia os referenciais; permitindo a facilitação e a compreensão da leitura. Por tal via se traduz, como significados dos significados, por constituir-se em 13 uma forma de produção de conhecimentos que confluíram e se alimentaram de uma explicação complexa e polissêmica. Apreendida do universo da memória para transitar do universo reflexivo para o universo da representação, através da discussão sobre o histórico, o social e o cultural implicados no processo de formação médica. As trilhas percorridas para buscar um tratamento da temática que desse à pesquisa uma metodologia de certo modo original, proporcionaram afirmar que na pesquisa não buscamos conclusões, enfatizamos soluções e registros de pertencimento social de uma prática educativa vivida em um passado recente. Tornando, assim, possível confirmarmos as preocupações de Santos sobre conhecimentos prudentes, e de Morin sobre conhecimentos pertinentes, ao verificarmos, quarenta anos depois, que a memória dos sujeitos ainda traz ao presente aquilo que ficou retido e deixou suas vidas marcadas significativamente pelas atitudes positivas que permearam a formação médica dos sujeitos ouvidos, sendo, portanto, reveladoras de sentimentos de amizade, dedicação ao ensino e à aprendizagem, deixando-nos com a mesma dúvida de Ítalo Calvino (2000, p. 72): “por que a rede furada da memória retém certas coisas e não outras.” As dificuldades dessa estratégia encontram-se em nível pessoal pelo desafio de estruturar uma pesquisa de caráter histórico significativo, tecendo-a de acordo com os determinantes do conhecimento científico, mas, tendo que dar alguns nós e laços com fios da literatura e da arte e de outras áreas de conhecimento para além das Ciências Sociais e Humanas, sem perder a unidade e a multiplicidade pela falta de lógica entre o ideado e o concretizado através de lembranças de uma vivencia educativa. Por fim, esclarecemos que os resultados da pesquisa foram parcialmente publicados na dissertação de mestrado intitulada “Lembranças de alunos, imagens de professores: narrativas e diálogos sobre formação médica”, defendida em 2006, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRN e que os quadros aqui apresentados foram adaptados do relatório da pesquisa e constam na referida dissertação. REFERÊNCIAS BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 10. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. CALVINO, Ítalo. O caminho de San Giovanni. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. CORTESÃO, L; STÖER, S. R. Cartografando a transnacionalização do campo educativo: O caso português. In: SANTOS, B. de S. (Org.). A globalização e as ciências sociais. São Paulo: Cortez, 2002. Cap. 10, p. 377- 416. GERMANO, José Willington. Globalização alternativa, políticas emancipatórias e solidariedade. Natal, 2006. (No prelo) MASETTO, Marcos T. Mediação pedagógica e o uso da tecnologia. 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