1 UM PERÍODO DE TRANSICÃO

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UM PERÍODO DE TRANSICÃO
Clodoaldo Hugueney
Texto para Discussão
Laboratório Século XXI
Em outubro de 2013, Clodoaldo Hugueney lançou as bases para o Laboratório do
Século XXI, centro de pensamento a ser localizado na FAAP em São Paulo. O objetivo
do centro era instigar uma reflexão crítica no Brasil sobre os grandes temas que iriam
marcar a vida social e política deste século.
Para dar inicio a este debate, Hugueney circulou um conjunto de notas que apontavam
para os grandes temas e encruzilhadas que formariam uma agenda política de
reflexão. As notas se organizam em torno a quatro grandes temas: a natureza da
transição na governança internacional, mudanças políticas, econômicas e nas
relações internacionais. Para cada tópico Hugueney aponta questões que definem a
natureza dos conflitos a serem enfrentados. Partindo sempre da ideia de que a
compreensão e discussão destes problemas levariam a um possível consenso sobre
reformas
Reeditamos aqui este texto que ilustra suas preocupações assim como a acuidade e
visão com que analisava os problemas com os quais nos confrontamos hoje.
Pensamos que estas notas que apontam para as particularidades da transição política
internacional e refletem sobre a crise nos modelos de governança do capitalismo
representam o espírito com o qual organizamos este programa de Diálogos. Isto é que
são as perguntas críticas que permitem antever cenários inovadores.
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O momento atual: singularidades históricas econômicas e políticas da
transição
Esse início do século XXI pode ser caraterizado como um período de transição. Estão
ocorrendo, a nível global, importantes transformações. Na política, a democracia
passa por crescentes vicissitudes e as formas de articulação da sociedade e seu
relacionamento com as estruturas de poder estão em transformação. Novas
tecnologias tornam a informação acessível a um número cada vez maior de pessoas
em tempo real. Os regimes autoritários também enfrentam dificuldades e não estão
imunes a essas mudanças
Na economia, o capitalismo, ainda às voltas com as consequências de sua maior crise
desde 29, procura encontrar saídas para reestruturar-se e compete cada vez mais
com o modelo do consenso de Pequim. As visões da crise, das possíveis rotas de
saída e das consequências desta transição para os países emergentes seguem em
debate sendo a última contribuição ao debate a tese de uma possível estagnação
secular. As rotas para o crescimento e o desenvolvimento voltam a ser repensadas e
há uma redistribuição significativa do poder econômico e um deslocamento do centro
da globalização para o Pacífico. Assiste-se ao início do que poderia ser um século
asiático.
No campo das relações internacionais há um claro declínio dos EUA como potencia
hegemônica, uma ascensão espetacular da China, acompanhada, a um ritmo mais
lento, por um grupo de países emergentes e por boa parte do mundo em
desenvolvimento, abrindo a perspectiva de um mundo multipolar, cuja construção está
apenas começando. Esse novo ordenamento in fieri compete com a tentativa dos EUA
de restaurar sua hegemonia, com base em sua superioridade militar (pivô para a
Ásia/Pacífico) e de sua perspectiva de recuperação econômica.
A arquitetura das regras e instituições multilaterais se mostra sem condições de
enfrentar os problemas atuais e de responder às necessidades de um mundo
multipolar em gestação.
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Os sinais de esgotamento dos modelos anteriores são claros, mas a definição de
novos modelos está por ser feita.
A crítica das mazelas dos sistemas político,
econômico e de relações internacionais é cada vez mais contundente, mas as
respostas em termos de proposição de novas formas de organização são ainda
precárias. Nesse momento, duas formas de abordar os problemas parecem dominar o
debate: a tentativa de contrapor o novo ao velho e de trabalhar pela restauração das
estruturas anteriores ou promover sua superação; a identificação de novas questões e
de novas formas de aborda-las, superando a dicotomia velho/novo.
Nesse momento, não há clareza sobre como se estruturarão os sistemas político,
econômico e o internacional. Em nenhum dos três campos se poderia dizer que há um
rumo predominante e nem mesmo que o novo prevalecerá sobre o velho. Isso torna
esse período especialmente desafiador e impõe um grande esforço de reflexão,
diálogo e articulação para viabilizar novos enfoques e promover consensos.
Na verdade, o período atual não é uma transição típica, com um ponto de partida e
outro de chegada, mas uma transição aberta que pode ser comparada a um cenário
coberto por espesso nevoeiro, no qual fica difícil divisar caminhos e saídas.
O panorama atual é caracterizado por um mal-estar das democracias, com as
consequências políticas da crise política em franca evolução. Problemas profundos
apontam para uma quebra do consenso básico em democracias maduras. Persiste a
instabilidade em países em desenvolvimento e a falta de instituições sólidas e
modernas com capacidade de resposta. Os métodos de construção do consenso
envelheceram.
As novas tecnologias estão criando novos espaços de articulação e formas
alternativas de diálogo e de questionamento no momento em que a dinâmica social se
modifica com a expansão da classe média e com a mudança da agenda de
reivindicações. Novas redes sociais prenunciam um mundo de espaços crescentes de
compartilhamento da informação e de questionamentos.
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As instituições se mostram incapazes de responder e são deixadas de lado o que
torna inadiável uma agenda de reforma institucional que canalize as reivindicações. O
dilema da liberdade versus controle coloca-se tanto para os regimes democráticos e
autoritários e são necessárias formas de superar essa dicotomia. As próprias
tecnologias trazem consigo a capacidade de potencializar o controle e de expandir a
liberdade. Vive-se um deserto de lideranças e um questionamento das lideranças
tradicionais. É necessário repensar o Estado ultrapassando a velha oposição entre
Estado, planejamento e mercado. O sistema educacional, elo fundamental, tem que
ser reinventado.
Tópico Político
O deserto de lideranças – há uma clara ausência de líderes com capacidade de
compreender, formular e liderar reformas com visão de futuro. Mais que isso,
parafraseando o Papa Francisco, há uma carência de líderes com coração e
capacidade de empatia e compreensão. Ao mesmo tempo surgem novas lideranças
com propostas diferentes de relação com os eleitores.
Ressurgem as tendências à rejeição da liderança e dos instrumentos tradicionais de
articulação. O debate ideológico arrefeceu com o fim da URSS e as transformações na
China pós-Deng. O regime chinês apresenta uma proposta diferente que tenta
combinar meritocracia com liderança colegiada e pragmatismo. Há um claro risco de
retorno de lideranças populistas e autoritárias ante o desconcerto das populações com
a falta de resposta a suas demandas e o recurso à repressão. Nas democracias
ocidentais e afins as fronteiras entre os partidos perderam definição. Nos EUA, há uma
crise do bipartidarismo, um ressurgimento de tendências radicais e uma fragilização
das instituições.
O envelhecimento dos sistemas – a forma clássica de organização dos regimes
democráticos, com o sistema de equilíbrio de poderes, está perdendo eficiência. Os
partidos deixaram de representar alternativas e de tentar construir consensos e ter
capacidade para realizar o futuro. Assiste-se a um enfraquecimento do consenso
básico em torno da condução de reformas necessárias e de respeito às liberdades
fundamentais. Há uma perda de legitimidade dos regimes. O socialismo com
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características chinesas mostra-se incapaz de desenhar um projeto de reforma política
e de construção de um estado de direito. Ao lado da crise de lideranças há uma crise
de valores e uma perda de legitimidade dos regimes. Mais que uma crise da
democracia trata-se de uma crise do poder público que aparece como um sentimento
difuso de mal estar das formas de democracia.
Repensando o Estado – a crise voltou a colocar em pauta o debate estado,
planejamento, mercado. A resposta chinesa à crise e a continuação do processo de
crescimento da China e a articulação de um programa de reformas reforçam os
argumentos sobre o papel central do Estado. Mas que voltar à oposição tradicional
estado/mercado é necessário repensar os dois termos dessa equação e discutir novas
formas de atuação e novas políticas. A reforma e fortalecimento das instituições é um
componente fundamental no esforço de combinar eficiência, transparência e agilização
das decisões e de sua implementação. A questão é menos quem governa e muito
mais como se governa. Repensar o Estado inclui mudar seus métodos de trabalho e
sua agenda abrindo espaço para as questões que estão se tornando mais importantes
como mudanças climáticas, o envelhecimento da população e a qualidade do serviço
público requerido pela ascensão social de grandes contingentes.
As novas tecnologias – as novas tecnologias da informação e das comunicações
ainda estão numa fase inicial de desenvolvimento. As transformações já sendo postas
em prática, como a computação em nuvem, modificarão de forma significativa as
formas de gestão e articulação e os sistemas de aprendizado.
A expansão das redes sociais potencializada por essas novas tecnologias está
modificando a forma de fazer política e de governar. O sentimento de empoderamento
criado pela difusão da informação e pela capacidade não mediada de articulação vem
acompanhado de um sentido de frustração ante a incapacidade de articular
plenamente as demandas e de obter respostas.
As novas mídias digitais mudam a forma de difusão da informação e da cultura. A
forma de utilização dessas tecnologias e os rumos que seu desenvolvimento tome
serão elementos importantes para definir o desenho futuro dos sistemas políticos.
Duas questões do ponto de vista da governança das novas tecnologias assumem
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crescente importância: a gestão da internet e a segurança cibernética. O sistema
educacional – os sistemas educacionais tem que passar por profunda reforma que
combine acesso ampliado com qualidade e incorpore as novas tecnologias e
desenvolva as habilidades que serão requeridas pelos novos ambientes de
socialização e trabalho que estão sendo gestados por essas tecnologias.
Construção do consenso – As bases para a construção de consensos e a
capacidade de alcançá-los usando os mecanismos tradicionais estão sendo erodidas
por uma série de fatores: a velocidade das transformações e a resistência às reformas
pelos interesses constituídos no antigo sistema, o impacto das novas tecnologias, as
transformações sociais decorrentes das mudanças demográficas e do processo de
urbanização em escala global. É também relevante a rápida expansão da classe
média, e as novas demandas que essas transformações sociais estão gerando e que
não encontram resposta nas estruturas de poder. Este impasse é mais dramático visto
a urgência por reformas e os fortes consensos necessários para sua formulação.
Tópicos econômicos
A cena econômica também está passando por grandes transformações, fruto das
consequências da crise e das estratégias de saída e de mudanças mais estruturais.
Como na cena política sobrepõem-se o velho e o novo e a configuração futura da
economia mundial é incerta. A ordem dos países em termos de tamanho de suas
economias está se modificando com a ascensão chinesa, a consolidação de um grupo
de países emergentes e o crescimento acelerado do continente africano.
Além de uma corrida pelo primeiro lugar entre os EUA e a China, ocorre uma
modificação do peso das economias desenvolvidas e em desenvolvimento no PIB e
no comércio mundiais e uma mudança do eixo da globalização do Atlântico para o
Pacífico. Uma das mudanças em curso é a perda de influência do dólar e o início de
um cauteloso processo de internacionalização do yuan.
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Ao lado desses deslocamentos a maior divisão do poder econômico cria uma base
para um mundo mais multipolar e pode levar a uma reafirmação das regiões e seus
laços econômicos.
Essas mudanças e a crise de 2008 e suas sequelas estão promovendo um renovado
debate sobre os modelos de crescimento e desenvolvimento. Com as mudanças de
peso relativo das economias e o crescente papel da China e da Ásia do Leste os
fluxos de comércio, financiamento e investimento estão se alterando. A demanda
chinesa por recursos naturais alterou os preços relativos valorizando as commodities.
A oferta de produtos da agricultura e pecuária seguirá pressionada pela crescente
demanda asiática e pela dificuldade desses países em sustentar altos índices de autosuficiência. A questão da segurança alimentar é um desafio cada vez mais importante.
Os recentes desenvolvimentos no campo da energia nos EUA e o potencial para o
desenvolvimento de baterias de longa duração e com alta capacidade de
armazenagem podem mudar drasticamente o quadro energético mundial. Essas duas
últimas questões estão ligadas aos desafios da preservação ambiental e das
mudanças climáticas, questões que seguem sem uma resposta adequada e que
poderão ter um impacto crescente nas perspectivas de crescimento.
A construção de um modelo de desenvolvimento sustentável é cada vez mais urgente
ante a ascensão de mega-países como a China e a Índia e do acelerado processo de
urbanização nesses países e em outras regiões em desenvolvimento. No caso da
mudança climática, a crise reduziu os avanços e a busca do consenso ficou mais difícil
mas a prioridade do tema aumentou. Em paralelo a essas transformações assiste--se
a mudanças importantes na estrutura da economia real com a redução do papel da
indústria e com os alvores de uma nova onda tecnológica na qual a China pretende ter
papel relevante. A essas mudanças no aparato produtivo se associam mudanças
demográficas com o envelhecimento da população, um acelerado processo de
urbanização nos países em desenvolvimento, liderado pela China, e grandes
deslocamentos internos de população.
O peso relativo de países, grupos e regiões – Há uma mudança significativa na
distribuição do PIB e do comércio mundiais. A China assume a posição de segunda
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maior economia do mundo e caminha aceleradamente para ultrapassar os EUA.
Apesar das trajetórias de crescimento de China e EUA levarem a uma transformação
da China na primeira economia mundial nos próximos dez anos, a supremacia dos
EUA ainda é significativa e pode voltar a afirmar-se com as estratégias de saída da
crise e com a possibilidade de um acidente de percurso na China.
A ordem das maiores economias do mundo está mudando rapidamente. As economias
desenvolvidas veem sua participação no produto e no comércio cair e os países em
desenvolvimento tem um papel cada vez maior. Dentre esses os países emergentes,
apesar das dificuldades atuais, tendem a firmar-se como um conjunto relevante e
dentre eles os mega-países e China e Índia despontam como potências globais.
A região da Ásia do Leste e do Pacífico e o continente asiático em conjunto vêem sua
influência crescer e a nova fase da globalização estaria centrada no Pacífico e não
mais no Atlântico. Poderíamos estar assistindo ao princípio de um século asiático.
Enquanto as economias européia e japonesa entram em declínio a economia norteamericana parece ter mais condições de reagir com base em sua capacidade de
inovação, em seu mercado, em seu sistema educacional e em sua influência global.
Os novos custos da energia dariam maior competitividade à indústria americana e já
estão tendo um impacto a nível global.
O diagnóstico da des-americanização pode se revelar apressado. O mesmo pode
ocorrer com os que visualizam o fim da globalização. Apesar das dificuldades,
inerentes à crise econômica, não houve um descolamento das economias da
economia global e prepara-se uma nova fase da globalização com os mega-acordos
em negociação. Finalmente, há que mencionar que essa efervescência e as
consequências da crise e das políticas adotadas para supera-la estão promovendo um
repensar de modelos de crescimento e desenvolvimento Se o capitalismo liberal e o
consenso de Washington foram superados e se as economias maduras seguem
lutando para sair da crise, a China deve enfrentar uma nova geração de reformas para
reorientar seu modelo rumo à qualidade e ao consumo e os países emergentes devem
fazer reformas estruturais que, como as chinesas, vêm sendo adiadas, mas que agora
se tornaram prementes.
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Fluxos comerciais, financeiros e de investimentos – as mudanças na ordem de
magnitude das economias e das regiões estão promovendo alterações nos fluxos
globais. As relações sul-sul se tornam mais importantes. A demanda chinesa por
commodities agrícolas, minerais e florestais provocou um super-ciclo de preços e
mesmo com taxas mais baixas de crescimento o preço dos produtos básicos segue se
mantendo em níveis elevados.
A ascensão chinesa está sendo acompanhada de uma rápida internacionalização de
suas empresas. O papel do dólar como principal moeda de reserva tende a manter-se,
mas os acordos chineses de swap de moedas e de comércio em moeda local e a
flexibilização dos controles de capitais que deve acelerar-se caso a experiência com a
Zona de Livre Comércio de Xangai se prove exitosa, vão criando as bases para uma
internacionalização do yuan.
As perturbações nos fluxos de comércio, investimento e financeiro, decorrentes da
crise devem continuar com desvalorizações competitivas e instabilidade nos mercados
cambiais. Apesar do recurso a medidas protecionistas e adoção de políticas
comerciais para favorecer produtos locais a lógica da globalização deve seguir
prevalecendo. A mudança no quadro energético a partir da utilização do xisto nos EUA
terá impacto significativo na competitividade das economias e no comércio mundial de
petróleo e derivados com os EUA passando a ser um exportador de energia. Essa
mudança já está tendo consequências econômicas no aumento da competitividade
dos EUA e no preço da energia e deverá ter consequências políticas na estabilidade
dos grandes exportadores de petróleo, como a região do Golfo e a Venezuela.
Cadeias produtivas, mega-acordos comerciais e o futuro do sistema multilateral
de comércio – muito mais que negociações tarifárias amplas a nova onda de
globalização deve apoiar-se em negociações setoriais, como os acordos de tecnologia
da informação, na eliminação de barreiras não tarifárias e na homogeneização de
normas e simplificação de procedimentos. Os EUA estão assumindo a dianteira nesse
processo com suas propostas de Parceria Trans-Pacífica e na negociação com a UE.
Por detrás dessas tendências está a lógica das cadeias produtivas que reflete a
globalização de setores produtivos e a necessidade de reforçar essas cadeias
liberalizando o comércio de seus componentes. Os mega-acordos em negociação,
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EUA-UE, TPP e trilateral entre a China, a Coreia e o Japão ao envolver 85% do
comércio mundial poderiam, caso bem sucedidos, dividir a mundo entre países
integrados, recalcitrantes e marginalizados.
Os grandes países emergentes como Brasil e Índia teriam que fazer um esforço de
reformular suas estratégias de inserção internacional. O sistema mundial de comércio
centrado na OMC, já fragilizado pelo fracasso da Rodada de Doha, poderia
transformar-se em um mero mínimo denominador comum em matéria de regras e
barreiras e em um administrador das concessões passadas. O acordo alcançado em
Bali voltou a colocar a OMC e o sistema multilateral de comércio na agenda das
negociações comerciais e deve contribuir para acelerar o crescimento do comércio
mundial.
Regionalismo – embora o regionalismo se tenha enfraquecido com a crise e as
vicissitudes da UE e o modelo europeu esteja questionado a lógica regional deve
continuar coexistindo com a globalização. No leste da Ásia essa lógica é
especialmente forte com a China advogando um aprofundamento de seu acordo com
a ASEAN. Os modelos de ZLCs e de integração profunda estão sendo revistos e a
persistência do regionalismo demandará novos instrumentos de integração e uma
atenção maior à integração infraestrutural como de novo está promovendo a China na
Ásia. Assiste-se também à consolidação de lideranças regionais que modificam o
cenário dos processos de integração. O novo ordenamento global deve ser construído
a partir de uma combinação de multilateralismo e regionalismo.
Mudanças no aparato produtivo – a nova geração tecnológica poderá mudar
significativamente a forma de produção acelerando o processo de desindustrialização.
Os EUA e outras economias maduras como a Alemanha e o Japão seguem tendo
liderança nesse processo. A China pretende deixar para trás o catching up e assumir a
liderança num grupo de tecnologias que denominou indústrias estratégicas
emergentes. São indústrias fundamentais para dar resposta a desafios chineses, tais
como a questão ambiental e as novas formas de energia, são setores onde a
tecnologia ainda está em desenvolvimento, com potencial para definir o novo
paradigma tecnológico, e onde o terreno para a competição ainda está aberto.
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Mudanças sociais – estão em curso mudanças importantes que deverão ter um
impacto econômico crescente. Entre essas, valeria mencionar as mudanças
demográficas, com o envelhecimento das populações e a redução das taxas de
crescimento. O acelerado processo de urbanização na Ásia e na África que deverá
retirar centenas de milhões de pessoas do campo impactando hábitos de
comportamento e consumo. Essa nova onda de urbanização deve recolocar questões
importantes para as estratégias de desenvolvimento sustentável. A expansão da
classe média que parece indicar que a classe operária vai para o paraíso, deve ser
vista em termos da sustentabilidade desse crescimento e da necessidade de
desenvolver novos padrões de consumo e novas fontes energéticas e métodos
produtivos. A situação da China, com seu crescimento vertiginoso e sua devastação
ambiental é um espelho das dificuldades desse caminho.
Tópicos relações internacionais
As relações internacionais no início do século XXI refletem as transformações em
curso nos planos político e econômico e estão marcadas fundamentalmente pelo
declínio dos EUA como potência hegemônica e pela ascensão da China, um país em
desenvolvimento e potencia assimétrica. Essa configuração cria a possibilidade de
substituição na hegemonia, quer por uma transição pacífica ou violenta, quer por um
novo arranjo que rejeite a hegemonia e estruture um mundo multipolar estável.
Nesse período de transição vemos várias opções: tentativas de retorno à
unipolaridade, tais como um G-2 entre os EUA e a China ou outro entre os EUA e a
Rússia e, a partir da crise na Síria, combinações triangulares e plurilaterais. Trata-se
de um período de gravidade zero, com o mundo navegando sem maestro e sem novas
articulações que reforcem a multipolaridade e promovam a reforma das regras e
instituições multilaterais. Isso é especialmente grave, pois o tratamento de questões
que poderão comprometer o futuro, como a mudança climática está sendo postergado
ou mesmo em retrocesso. Essas tendências coexistirão por um período até que o
problema do revezamento na hegemonia seja resolvido de uma forma ou de outra. O
que parece claro é que a ordem atual não é estável. Para os países ascendentes o
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dilema é deixar correr o barco, ou assumir novas responsabilidades o que não é trivial
dado que são países em desenvolvimento, com prioridades internas e que as
potências atuais tendem a ditar as novas responsabilidades e o papel de cada um na
divisão do custo. O reforço de estruturas regionais é possível, mas as vicissitudes da
integração europeia e a nova fase da globalização que está começando complicam
esse cenário. Na verdade, como nos planos político e econômico, reformas profundas
são necessárias, pois a arquitetura multilateral, componente essencial para a
estabilização da multipolaridade, está em franco declínio. Reformar essa arquitetura
sem uma liderança clara não será fácil.
Além dessa reforma do multilateralismo, duas outras questões tem o poder de
modificar o panorama atual. A primeira diz respeito ao diálogo de civilizações e à
possibilidade de estabelecer uma convergência entre o Ocidente e o Oriente no que
poderia ser visto como uma nova rota da seda. A segunda, ligada a esta, tem a ver
com os valores que orientarão o mundo do século XXI. A concepção ocidental de que
a democracia liberal tenderá a prevalecer e transformar-se num sistema universal não
encontra eco nas tradições confucionistas e no moderno socialismo com
características chinesas e no Islã que poderia ser visto como a última fronteira
ideológica. Mas tampouco hoje parece corresponder à configuração que o sistema
político vem assumindo na potência hegemônica, com o declínio do respeito às
liberdades individuais. As novas tecnologias da informação e comunicação criam as
condições para que a ingerência e o controle restrinjam os espaços da individualidade.
O declínio da unipolaridade – a multipolaridade ainda é um objetivo distante.
Vivemos num período em que a potência hegemônica segue imperando embora
apresente sinais de declínio. Esses sinais não são só econômicos. Há um claro
desgaste da imagem e do soft power dos EUA, sua legitimidade tem sido erodida e
sua atuação internacional se é indispensável e determinante mostra crescentes sinais
de fadiga e de incapacidade de desenhar e levar adiante projetos construtivos.
Os EUA parecem combinar em sua atuação, certa hesitação entre uma repartição do
poder, associando outros países a suas iniciativas e a reafirmação de sua hegemonia
e de sua capacidade de prevalecer, com base em seu poderio militar. Esta linha
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parece predominar e inibirá as tentativas de fazer avançar uma ordem internacional
baseada no compartilhamento dos interesses dos Estados.
No plano interno a prevalência dos controles ligados a objetivos mal definidos de
segurança nacional conduzem à montagem do maior sistema de vigilância e de
interferência do mundo, o que coloca na ordem do dia questões como a segurança
cibernética e a disciplina das formas de ingerência virtual.
Sinais da multipolaridade e de substituição da hegemonia - a crise da economia
norte-americana e a ascensão continuada da China projetam a possibilidade de uma
substituição no líder hegemônico. Essa possibilidade que é um elemento poderoso de
incerteza e conflito abre vários cenários para o período atual: uma transição pacífica
entre os EUA e a China como potência hegemônica; um reforço do elemento de
contenção na relação EUA-China como colocado pelo pivô para o Pacífico que poderá
levar a um conflito aberto; um G-2 com um condomínio sino-americano do mundo;
novas articulações que apontem para a multipolaridade como o BRICS e o G-20.
À China, como potência assimétrica e país em desenvolvimento, com imensos
desafios internos, não parece interessar um conflito e nem mesmo deslocar recursos
para um esforço de resposta no plano militar, onde ela está nitidamente em
inferioridade, aos movimentos dos EUA. Os emergentes tampouco parecem em
condições de articular-se e de propor novas visões para o mundo.
A tese chinesa derivada do pensamento clássico chinês de rejeição da hegemonia e
sua promoção da ascensão pacífica não parecem capazes de tranquilizar seus
vizinhos ou convencer as potências ocidentais. Nesse ambiente, o exercício de
planejamento estratégico e de pragmatismo e flexibilidade, parecem fundamentais. As
fórmulas tri e plurilaterais deverão assumir crescente relevância no posicionamento
dos países.
Um mundo sem maestro e a repartição dos custos – se não estamos num mundo
de gravidade zero é verdade que na atual configuração a construção de consensos
tornou-se mais complexa. Se por um lado o enfraquecimento dos EUA e seu papel
hegemônico abre a perspectiva de construção de um mundo multipolar, por outro uma
superpotência inoperante e preocupada em restaurar sua supremacia é um elemento
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desestabilizador. Se por um lado, a ascensão da China e dos emergentes cria
elementos de multipolaridade, por outro a incapacidade desses países em articular-se
e apresentar propostas sobre como construir uma multipolaridade harmoniosa acaba
dificultando essa evolução.
A repartição dos custos da liderança encontra obstáculos, não só no fato de que
países em desenvolvimento têm dificuldade em assumir maiores compromissos
internacionais, mas também no fato de que na atual configuração de poder as novas
responsabilidades tenderão a ser ditadas pelas potências de turno. Há sinais de volta
da reafirmação do poder dos EUA no pivô para a Ásia, nos acordos recentes sobre a
Síria e o Irã e no novo estilo de liderança norte-americana demonstrado nessas
negociações.
O mundo herdado do século XX – a queda do muro de Berlim marcou o fim da
bipolaridade, mas também o início do redesenho do mundo herdado dos conflitos do
século XX e do regime bipolar. Este redesenho está longe de terminar. A unipolaridade
norte-americana e as teses da supremacia ocidental e dos valores democráticos
contribuíram para esse redesenho e colocaram claramente os limites do poder imperial,
das soluções militares e do impacto interno desses projetos.
Infelizmente, como demonstram os acontecimentos no Oriente Médio e na África esse
redesenho de fronteiras políticas, religiosas e culturais está longe de terminar.
Infelizmente, também não há nenhuma visão de como conduzir esse processo de uma
forma menos traumática.
Arquitetura multipolar – é clara a perda de relevância da arquitetura multipolar de
regras e instituições para enfrentar os problemas do século XXI. Quer se trate das
Nações Unidas, de seus organismos especializados, das organizações de Breton
Woods e da OMC, o diagnóstico é de que esta vasta construção nem tem, na maior
parte dos casos, uma agenda para o futuro, nem tem mais condições de articular e
construir consensos relevantes. Seus debates tornaram-se, em muitos casos,
ritualísticos e as burocracias internacionais assumiram, em muitas organizações um
papel preponderante.
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As tentativas de reconhecer outros stakeholders (multinacionais, ONGs, academia, etc)
não conseguiram dirigir o debate para soluções consensuais. As articulações em
grupos que vão perdendo sua significação tornam as discussões estéreis. Essa
situação tornou-se mais grave na medida em que a construção de uma ordem
multipolar, que parecia um objetivo de longo prazo, entrou ainda que de forma
incipiente, na ordem do dia. A estabilidade de um mundo multipolar não será
conseguida através de esquemas de balança de poder e requer uma sólida construção
multipolar a qual está por ser pensada, formulada e proposta.
Os valores do Ocidente e do Oriente e uma nova rota da seda – o Ocidente parece
conformado em perder a batalha econômica para a China e a Ásia. Não importa que a
China se transforme no centro manufatureiro do mundo desde que a supremacia dos
valores ocidentais esteja garantida. A China e o Oriente não parecem tão convencidos
nem dessa supremacia que para eles é muito recente, nem de que tais valores devam
prevalecer sobre os valores da cultura oriental. Sem entrar na consideração dessas
questões o que se deseja aqui ressaltar é que um mundo multipolar onde a
supremacia econômica se desloque do Atlântico para o Pacífico e onde o lugar de
primeira economia do mundo seja ocupado pela China não pode deixar de refletir os
valores da principal economia do mundo. Ainda mais quando se considera que a
China é herdeira de uma cultura milenar e com imensas contribuições ao
desenvolvimento científico e à cultura universal. Como no caso do revezamento de
hegemonias a resposta está em deixar de lado o conceito de supremacia e buscar
formas de harmonização e convivência. No caso do Ocidente e do Oriente foi
exatamente o que ocorreu durante séculos ao longo da rota da seda.
ATIVIDADES DO LAB XXI
Essas questões podem ser discutidas a partir de uma visão teórica ou procurando
enfoca-las através de seus diferentes aspectos. É esta a abordagem escolhida com
vistas a permitir um tratamento mais pragmático de cada um dos três grandes temas e
a identificar rotas possíveis para mudanças em cada tópico. Em documento desta
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natureza que tem por objetivo apenas mapear o terreno para futuras discussões as
nuances e os pormenores foram abandonados em favor da concisão.
Ao mesmo tempo a perspectiva do LAB XXI deve combinar uma visão abrangente
com a capacidade de identificar e aprofundar a análise de tópicos de especial
relevância dentro de cada tema. Outra preocupação importante deve ser a
horizontalidade e a busca de interrelacões entre os temas. Os produtos do LAB XXI
devem ter preferencialmente a forma de “policy-oriented papers”.
Finalmente, cabe ressaltar que embora o texto acima parta de uma perspectiva global
é claro que o objetivo final do LAB XXI é desenhar cenários para o Brasil, analisar o
impacto das transformações em curso a nível global no panorama político, econômico
e das relações internacionais brasileiras e identificar mudanças necessárias.
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