Quem Matou o Sistema de Saúde dos EUA?

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Parte
I
Quem Matou o Sistema
de Saúde dos EUA?
O Dia em que o Sistema
de Saúde dos EUA Morreu
E
Capítulo
1
ste livro é um ataque ao nosso sistema de saúde atual, mas também apresenta um sistema de saúde novo, diferente de tudo o que temos hoje.
Não estou lutando uma batalha insignificante, ou apenas sugerindo ajustes
aos benefícios do seu plano de saúde, ou que seu hospital acrescente algumas
práticas voltadas ao paciente. Este livro é um ataque frontal às estruturas e aos
arquitetos do sistema atual.
Nosso sistema de saúde de dois trilhões de dólares é do tamanho da
economia chinesa. Apesar de todos esses gastos, milhões de pessoas não recebem os cuidados que precisam porque estes são caros demais ou porque
nosso sistema fragmentado não consegue oferecer um tratamento integrado
e multifacetado para suas deficiências ou doenças crônicas. Nossos hospitais,
a maioria deles organizações sem fins lucrativos, em geral cobram os preços
mais altos de suas tabelas dos que não têm plano de saúde e depois se valem
de táticas de cobrança quase criminosas para garantir o pagamento.
Você pode não perceber, mas todos nós pagamos por isso. Se estamos
empregados, nossos chefes descontam parte do nosso salário para pagar por
1
esse sistema. Se somos autônomos, pagamos prêmios horrivelmente altos
em nossos planos de saúde. E como contribuintes, financiamos a parcela do
2
governo dos custos de saúde, o que chegou a 44% do total em 2004.
O sistema dá com uma mão e tira com a outra. Ele tira nosso dinheiro,
nosso tempo e nossa saúde e o dá generosamente a Wall Street e a figurões
26 PARTE I • Quem Matou o Sistema de Saúde dos EUA?
como executivos de hospitais, empresários com salários milionários. O Dr.
William W. McGuire, ex-CEO da UnitedHealthcare, um dos maiores planos de saúde dos EUA, além de receber 1,7 bilhão de dólares em opções de
ações durante seu tempo como CEO,3 também tinha um jato particular à
disposição. Além disso, um tapete vermelho era colocado na porta da sua
limusine para que seus pezinhos não precisassem encostar no mesmo chão
que os reles mortais ao seu redor.4 Esse dinheiro, ou pelo menos parte dele,
poderia ter sido utilizado a fim de dar serviços de saúde melhores ou reduzir
os custos para os segurados da UnitedHealthcare. Em vez disso, foi parar na
gigantesca conta bancária do Dr. McGuire.
Não estou sugerindo que coloquemos mais dinheiro em nosso sistema
de saúde (cerca de 2 trilhões de dólares, ou quase 20% da nossa economia,
já é mais do que suficiente). Também não acho que devemos montar outra
burocracia para pegar nosso dinheiro e usá-lo para racionar nossos serviços
de saúde. Provavelmente podemos receber todos os serviços que precisamos
com as despesas nos níveis atuais. O que estou defendendo é que utilizemos
de modo diferente o dinheiro gasto, com mais eficácia, para que consigamos
receber os serviços de saúde que queremos e até cobrir aqueles que hoje são
forçados a ficar sem plano de saúde por não poderem pagar.
A solução que vou discutir aqui atende pelo nome de saúde voltada para o
paciente (consumer-driven health care, em inglês) CDHC. É um termo que popularizei e que se tornou o modo mais comum de descrever essa nova solução
em saúde (procure no Google e descubra por si mesmo). A saúde voltada para
o paciente coloca o poder nas mãos dos indivíduos e permite que eles exerçam sua força quando se trata das ofertas de médicos, hospitais, seguradoras e
empresas farmacêuticas. Ela converte todo o sistema em algo que responde a
mim e a você enquanto consumidores finais de seus bens e serviços.
Como vou mostrar neste livro, existem planos de saúde voltados para o
paciente que oferecem os serviços que você precisa ao preço que está disposto
a pagar; hospitais de baixo custo que não o tratam feito um pedaço de carne;
e governos que fazem o que deveriam, ou seja, ajudam os pobres, oferecem
transparência e protegem contra fraudes e abusos em vez de dizer ao seu
médico como praticar medicina. Existe um modo de criar mercados dinâmicos para serviços de saúde mais eficazes, mais eficientes e mais atentos ao
paciente-consumidor (e seu médico) do que temos hoje. Os últimos capítulos
Capítulo 1 • O Dia em que o Sistema de Saúde dos EUA Morreu
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se destinam a descrever esse sistema, como fazê-lo funcionar, os papéis corretos do governo e do setor privado em sua criação e sustentação e o que ele lhe
dá em termos de benefícios e boa saúde.
Quem matou o sistema de saúde?
Quando descobri que Jack Morgan morrera de uma doença renal foi quando
soube que nosso sistema de saúde havia morrido com ele.
Jack precisava de um transplante renal, um procedimento complexo, mas
comum. Sua amada filha se dispusera a ser a doadora: ela faria a cirurgia para
remover um de seus próprios rins e doá-lo ao pai. O plano de saúde de Jack
estava pago e ativo.
O que poderia dar errado? Tudo. Jack nunca recebeu o transplante. Em
vez disso, ele morreu da doença.
O rim é o sistema de filtragem do corpo. As vítimas de doenças renais na
prática são envenenadas e afogadas pela doença. Os filtros nos rins de Jack
estavam funcionando a menos de 20% do normal, então não conseguiam remover os resíduos e regular os fluidos em seu organismo.
Jack era cheio de energia, por isso, quando ficou doente pela primeira
vez, as pessoas ao seu redor notaram que ele estava letárgico e inchado. Sua
pele, em geral macia e brilhante, estava seca e escamosa. Seu médico achou
que ele estava deprimido e receitou um remédio genérico. Mas depois de várias consultas sem melhora nos sintomas, Jack recebeu o diagnóstico correto.
Um rim artificial, chamado de máquina de diálise, replicava a função de seus
rins naturais. Mas depois de muitos anos de diálise, a máquina não era mais
suficiente. Jack precisava que um rim novo, um rim bom, fosse transplantado
para o seu corpo.
O que poderia dar errado? Tudo. Tudo deu errado e Jack nunca recebeu o
transplante. Em vez disso, ele morreu da doença.
Sua morte não foi dolorosa, pelo menos não para Jack. Foi uma morte
rápida, envenenamento pelas próprias excreções, afogamento pelos próprios
fluidos. Mas foi uma morte dolorosa para as muitas pessoas que amavam Jack,
pois ocorreu prematuramente. Com um novo rim, Jack poderia ter sobrevivido outros 20 anos ou mais.
28 PARTE I • Quem Matou o Sistema de Saúde dos EUA?
O que aconteceu?
Jack foi morto por um sistema de saúde incompetente, defeituoso e caro,
um sistema que achava que estava protegendo-o. Um sistema que está, na
prática, morto. Ele foi morto...
Quem o matou, exatamente? E por quê?
Você lembra do romance e do filme Assassinato no Expresso do Oriente,
a história de Agatha Christie sobre um homem assassinado em um trem?
Bem, no final descobrimos que todos os passageiros foram responsáveis
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pela morte.
Foi isso o que aconteceu com Jack Morgan: todas as partes do sistema
de saúde falharam com ele. Ao contrário dos assassinos no romance de Agatha Christie, não foi intensional, mas a responsabilidade ainda é deles. Eles
estavam tão envolvidos com o seu interesse próprio que esqueceram o seu
trabalho de verdade: cuidar da saúde de Jack Morgan. No sistema de saúde
americano, e na Grã-Bretanha, na Europa e no Canadá, são gastos trilhões
de dólares com saúde, mas ninguém ouve os pacientes. Nesses países, isso
significa que eu e você não estamos sendo ouvidos. Jack não podia falar por si
e não havia um ombudsman que falasse por ele.
Os assassinos trabalham em seguradoras e hospitais que perderam suas
almas, empresas que se tornaram mais interessadas em dinheiro e em perpetuar a própria existência do que em prestar serviços de saúde. Os empregadores, junto ao Congresso dos EUA e uma série de estudiosos das políticas
de saúde, também são cúmplices. Eles ficaram satisfeitos com a substituição
das milhares de interações complexas que compõem a prática da medicina
por abstrações simples e utópicas, como a ideia de que uma seguradora ou o
governo podem “gerenciar a saúde” com menos custos e mais qualidade do
que o seu próprio médico.
O problema começa com os hospitais, os gigantes inchados que representam a maior parte de nosso sistema de saúde, quase um trilhão de dólares,
e a principal razão do aumento dos custos. Os custos dos hospitais aumentam
mais do que os serviços que oferecem. Eles conseguem fazer isso com a manipulação desavergonhada de sua imagem de organizações sem fins lucrativos
e contribuições políticas gigantescas. Os hospitais convenceram o Congresso
dos EUA a sufocar seus concorrentes em potencial, como hospitais especializados de propriedade de médicos, que poderiam oferecer serviços melhores
e mais baratos, e a conceder valiosas isenções fiscais. Eles também conven-
Capítulo 1 • O Dia em que o Sistema de Saúde dos EUA Morreu
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ceram juízes e tribunais a estrangular a concorrência, permitindo fusões de
hospitais e outras consolidações.
Está claro que o termo sem fins lucrativos, quando aplicado a esses hospitais, é uma grande piada. Há uma realidade surpreendente por trás da imagem de cuidadores beatíficos que os hospitais promovem. Essas instituições
supostamente altruístas lucram centenas de milhões de dólares todos os anos,
mantêm reservas de bilhões de dólares em dinheiro e pagam salários milionários a seus executivos. Elas jogam duro, impondo aos pacientes sem planos de
saúde contas inchadas e táticas de cobrança dignas de criminosos.
Os custos hospitalares gigantescos lesam os empregadores que adquirem o plano de saúde de seus funcionários. Desde 2000, os prêmios de seguros de saúde aumentaram 73%, em comparação com os aumentos inflacio6
nários e salariais cumulativos de cerca de 15%. Apesar dos próprios serem
vitimizados pelo sistema, os empregadores também se transformaram em
assassinos.
Alguns empregadores, especialmente os menores, não podem mais pagar o plano de saúde. Já os outros, os maiores, na tentativa de controlar os
custos, permitiram que seus departamentos de recursos humanos (RH) restringissem as opções de plano dos funcionários. Frequentemente, as empresas oferecem só uma opção, um plano de managed care. O pessoal do RH
acredita que ao limitar as opções e dar às seguradoras um grande volume de
segurados, é possível obter um controle significativo dos custos. Mas esse é
um equívoco: ao contrário, as opções estimulam a competição, a competição
motiva a inovação e a inovação é o único modo de deixar os serviços melhores e mais baratos.
Os departamentos de RH paternalistas se convenceram de que o managed care controlaria os custos melhor do que os pacientes ou os médicos.
Mas eles tiveram fé na instituição errada: a managed care se desviou de suas
raízes originais na organização Kaiser que criou o conceito original de
managed care como uma maneira fundamentalmente diferente de oferecer
serviços de saúde melhores e mais baratos. À medida que os planos de managed care se transformaram em uma indústria, perderam a alma: muitos se
concentraram demais nos lucros, às custas dos segurados.
A seguir, o Congresso e o poder executivo do governo americano permitiram que essa série de eventos desastrosos acontecesse, não apenas ajudando os hospitais a sufocar a concorrência, mas também aprovando leis
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que forçam os empregadores americanos a oferecer opções de managed care
mesmo quando eles não querem. Além disso, o Congresso arranjou subsídios gigantescos e desnecessários para os planos de managed care e seus
remédios favoritos. O golpe final do Congresso foi quando decidiu começar a praticar medicina, com planos de “pagamento por desempenho” que
recompensam os prestadores de serviços de saúde que seguem o livro de
receitas médicas do Tio Sam.
Os ex-executivos do governo que estão nos conselhos diretores de seguradoras e prestadoras de serviços de saúde mantêm seus relacionamentos com
os congressistas com muita dedicação, e são bem recompensados pelo trabalho. A pessoa que administrava o gigantesco programa Medicare do governo
americano, por exemplo, fazia parte do conselho diretor da UnitedHealthcare
que aprovou pagamentos de 1,6 bilhão de dólares ao Dr. William McGuire,
o ex-CEO e presidente da empresa. Ela própria se saiu muito bem: por seus
serviços no conselho ganhou quase 15 milhões de dólares em ações, além de
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outras compensações.
Os estudiosos das políticas de saúde também ajudaram a matar Jack,
motivados pelo interesse próprio e pela crença em seus intelectos superiores para defender um papel maior de controle do sistema. Com seu discurso
intelectual e seus artigos sobre políticas públicas, eles abriram caminho para
que os tecnocratas supervisionassem os médicos e usurpassem suas decisões
e preferências de tratamento – o principal defeito do managed care e do pagamento por desempenho.
Os estudiosos conseguiram a façanha de culpar os médicos que tratam os
pacientes pelos fracassos do sistema de saúde no país. Eles dizem que os médicos cometem erros que seriam eliminados se fossem controlados pelos pesquisadores que, de algum modo, sabem como praticar uma medicina melhor.
Todos os seus esforços envolvem colocar os médicos sob o seu controle ou de
tecnocratas que seguem suas orientações. Os estudos mais recentes do Instituto de Medicina, uma das Academias Nacionais e um grupo de especialistas
em políticas de saúde que aconselha o Congresso dos EUA, se concentra em
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como os médicos são horríveis. Sua solução? Nos dar mais poder para dizer
aos clínicos qual é o jeito certo.
Mas, atualmente, a medicina é mais arte do que ciência. Ao contrário das
poderosas leis universais da física, que guiam a prática da engenharia, existem
poucas regras invioláveis nas ciências da biologia e da bioquímica, que orien-
Capítulo 1 • O Dia em que o Sistema de Saúde dos EUA Morreu
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tam a prática da medicina. Os cientistas estão apenas começando a entender
como nossos corpos funcionam, à medida que as pesquisas sobre o genoma
humano decodificam a incerteza de nossa biologia, do nosso destino e da
nossa saúde. Então, onde está a ciência que vai permitir que algum burocrata
diga ao seu médico, que conhece você muito melhor do que o burocrata, qual
é o melhor modo de praticar medicina em você? Essa ciência não existe.
Alguns acadêmicos também acusam os médicos de serem gananciosos,
alegando que eles oferecem serviços médicos desnecessários aos pacientes
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apenas para ganhar mais dinheiro. Sim, alguns fazem isso, mas a maioria não.
Pelo contrário, muitos médicos mentem para as seguradoras apenas para garantir que seus pacientes vão receber os cuidados de que necessitam, e dois
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terços doam 11 horas mensais do seu tempo livre aos pacientes.
Os acadêmicos e formuladores de políticas venceram. Depois de décadas
de lavagem cerebral com pregações desse tipo, o Congresso dos EUA aprovou
uma série de leis novas com o dobro da extensão da Bíblia limitando as ações
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dos médicos que querem prestar serviços de saúde. Mas em sua ânsia por
aprovar leis restritivas, o Congresso abandonou a paixão nacional por inovações e os empreendedores que dão vida a elas. Muitas das nossas principais
empresas foram fundadas por empresários com conhecimento profundo das
tecnologias mais importantes, da mesma forma que os médicos, e apenas os
médicos, conhecem a prática da medicina. Thomas Edison não foi apenas o
empresário admirável que fundou a General Electric, era também um inventor brilhante. Henry Ford fez mais do que fundar a Ford Motor Company;
foi um engenheiro mecânico genial que em apenas oito anos cortou o preço
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dos automóveis pela metade com suas inovações tecnológicas e gerenciais.
Bill Gates foi mais do que o fundador visionário de uma grande empresa, a
Microsoft, ele também era um excelente programador de software. Mas se os
três fossem médicos, provavelmente não teriam estabelecido negócios com a
mesma excelência, eficácia e eficiência no mundo da saúde.
O Congresso e os acadêmicos atacaram as falhas dos médicos, mas não
comemoraram os seus sucessos. Alguns dos líderes da comunidade médica
também esqueceram o propósito da saúde e se perderam na política. Mas de
todos os muitos participantes do sistema de saúde, os médicos são aqueles
que melhor aderiram à sua ética profissional. Por meio de inovações científicas na prática da medicina, a expectativa de vida aumentou consideravelmente e as doenças diminuíram. No entanto, ajustada para a inflação, a
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renda dos médicos diminuiu 7% entre 1995 e 2003, enquanto a dos traba13
lhadores técnicos e profissionais cresceu 7%. Enquanto isso, os médicos
são cada vez mais obrigados a seguir as receitas médicas inventadas pelos
burocratas do governo e pelas seguradoras. Com os danos à sua autonomia
profissional e bem-estar financeiro, não é à toa que o número de candidatos
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aos cursos de medicina tenha diminuído quase 20% entre 1996 e 2006.
Quando pergunto aos meus alunos médicos por que se matricularam no
curso de MBA da Harvard Business School, muitos respondem: “Não consigo mais praticar medicina”.
O tipo de sistema que existe hoje odeia as inovações, bem como os estranhos com boas ideias. Ainda assim, às vezes, esses estranhos triunfam. Dois
cientistas brilhantes que ajudaram Jack a sobreviver o quanto pôde estão nessa categoria. Seu gênio alterou profundamente o padrão de cuidados para
doenças renais.
Um era um acadêmico clássico, um médico e PhD holandês, alto e magro,
com uma cara comprida, um nariz grande e um cavanhaque europeu, vestindo o uniforme clássico da pesquisa científica: calça chino amarrotada, camiseta e tênis. Seu nome é Willem Kolff, e ele é um gênio. Quando o conheci, dez
anos atrás, ele tinha a vitalidade e o intelecto de um jovem de vinte e poucos
anos no corpo de um homem de oitenta e poucos. Kolff inventou um rim
artificial que filtra as impurezas do sangue em um processo lento e doloroso,
mas que salva vidas: a diálise. O segundo estava mais próximo da ideia de um
bom médico: Joe Murray, dos hospitais Brigham e Women’s, da cidade de
Boston, tem jeito de avô, é sorridente e nobre, e introduziu o transplante renal
entre vivos.
A Mãe Natureza é a melhor engenheira possível: como os rins são importantes, ela nos deu dois. Apesar dessa medida de segurança, ambos podem falhar ao mesmo tempo, principalmente pela diabetes (quase metade dos novos
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casos) e/ou pressão alta (25%).
Os transplantes são uma excelente solução, e foi Joe Murray quem realizou o primeiro transplante de um rim retirado de um doador vivo. Até 15
de agosto de 2006, havia 67.328 pessoas esperando por um rim, mas apenas
13.268 rins disponíveis. Infelizmente, a demanda é muito maior do que a
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oferta.
A diálise, que limpa as impurezas do corpo, é a única alternativa aos
transplantes. As saunas romanas provavelmente foram um dos primeiros lo-
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cais para diálise. Os romanos eliminavam as impurezas de seus corpos pelo
suor; o processo os purificava, mas também os desidratava: eles trocavam a
insuficiência renal por uma sede profunda.
O segredo do rim artificial é um material bastante comum, o plástico:
uma membrana porosa para permitir que as impurezas do sangue sejam
sugadas, e forte para resistir à pressão criada pelo fluxo sanguíneo. Durante
a Segunda Guerra Mundial, na Holanda ocupada pelos nazistas, Willem
Kolff descobriu essa membrana em uma embalagem de salsicha feita de
acetato de celulose. Ele enrolou vários metros dessa membrana ao redor
de um tambor, colocou em um tanque cheio de líquidos, utilizou o motor
de um cortador de grama como fonte de energia e, com tudo isso, criou o
primeiro rim artificial.
Mas, na saúde, toda boa ação leva a uma punição. Certamente, os dois
ajudaram os pacientes com doenças renais a terem vidas boas e produtivas,
mas ambos os médicos também foram alvo de muitos abusos no caminho.
Eles perseveraram apesar da oposição constante às suas inovações no tratamento das doenças renais por parte do establishment médico. Você lerá mais
sobre isso a seguir.
No decorrer de meu ataque, você vai encontrar algumas outras personalidades muito interessantes entre centenas de empresários, executivos de hospitais, políticos, acadêmicos e burocratas anônimos que criaram esse sistema destrutivo. Um deles foi o príncipe das trevas, o ex-presidente dos EUA
Richard Nixon, que deu início ao movimento da managed care ao assinar a
legislação que forçava os empregadores a oferecer HMOs (Organização de
Manutenção da Saúde) como opções de seguro de saúde a seus funcionários
e que apoiava essas HMOs por meio de subsídios federais gigantescos, financiados pelo contribuinte, reduzindo os preços das HMOs. Eles também
incluem o estranho casal que criou a Kaiser, uma grande HMO da Califórnia: Henry Kaiser, um empreendedor confiante e de sangue quente, e o Dr.
Sidney Garfield, 24 anos mais jovem, que por admirar Kaiser casou com a
cunhada deste apenas para fazer parte da família. Acredite se quiser, também temos alguns heróis, como os doutores Willem Kolff e Joe Murray, que
você já conheceu, e Richard “Dickie” Scruggs, um advogado do Mississippi
que, apesar do apelido infantil, é tão amigo quanto um tubarão. Scruggs está
derrotando hospitais em processos contra as contas absurdas cobradas de
pacientes sem seguro de saúde.
34 PARTE I • Quem Matou o Sistema de Saúde dos EUA?
Jack Morgan
Jack Morgan representa muitos pacientes que morreram nas mãos do sistema
de saúde americano. Dei-lhe características que formam muitas de suas experiências. Decidi que ele seria chef e proprietário de um restaurante francês de
sucesso, por exemplo, porque os profissionais autônomos têm dificuldade em
adquirir um seguro de saúde.
Ninguém que conhecia Jack quando era criança achava que ele teria sucesso. Ele fora um adolescente problemático, sempre pronto para fazer festa,
nunca para estudar. Sua primeira tentativa em uma faculdade local, estudando contabilidade, foi desastrosa. Conseguiu um emprego lavando pratos em
um restaurante apenas para ter o que fazer. Mas a sorte sorriu para Jack. O
restaurante estava em ascensão, parte da revolução gastronômica que começara nos EUA na década de 1980. O proprietário era um chef famoso que buscava misturar os melhores ingredientes orgânicos da região com as famosas
técnicas culinárias francesas. O chef era tão maluco quanto Jack: inconstante,
brilhante, exigente; mas, ao contrário de Jack, ele tinha sucesso. O chef despertou em Jack o interesse pela culinária.
A avó de Jack era francesa: seu nome era “Jacques”, em homenagem ao
falecido avô. A grandmère era uma ótima cozinheira doméstica e ensinou toda
a família a cozinhar. Apesar de Jack achar que sabia cozinhar, ele logo aprendeu que em um restaurante profissional, seu orgulho era exagerado. Foi promovido de lavador de pratos a preparador, um de muitos trabalhadores que
preparava a comida que o chef iria cozinhar. Jack passava seus dias na cozinha
desossando patos, limpando peixes e fatiando milhares de cenouras, aipos e
cebolas em pequenos cubinhos, todos exatamente do mesmo tamanho, que
formariam o mirepoix, a base caramelizada de quase todos os molhos.
A cozinha do restaurante era pequena (quanto menor a cozinha, mais
espaço para os clientes) e a cena era infernal. A gordura pegava fogo na grelha
e criava labaredas; nuvens de vapor saíam da panela de macarrão; e os chefs,
quase todos homens, ficavam muito apertados, sob pressão constante para
cozinhar a comida e preparar os pratos. Mas Jack ficava hipnotizado pelo
ambiente. Ele adorava o ritmo, a criatividade, a bonomia irreverente. E, acima
de tudo, ele adorava a comida: a preparação, a apresentação, tudo, exceto pelas
vísceras (tripas, fígado, timo) dos animais.
Capítulo 1 • O Dia em que o Sistema de Saúde dos EUA Morreu
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Para sua surpresa, Jack começou a desenvolver ambições: ele também
queria ser dono do próprio restaurante. Jack sabia que precisava de mais treinamento. Ele se candidatou a uma famosa escola de culinária francesa e foi
aceito. Na preparação, Jack estudou francês e mapeou um roteiro dos melhores restaurantes da França, utilizando o Guia Michelin para planejar a viagem.
O primeiro encontro de Jack com um rim ocorreu em um restaurante no
norte da França, famoso pela carne de cordeiro. Orgulhoso do seu domínio
da língua francesa, Jack pediu agneau. Um prato de cordeiro, com um molho belíssimo e salpicado com ervas frescas, apareceu em sua mesa; mas uma
mordida o convenceu de que aquela carne cheia de urina não era o agneau que
ele tinha em mente.
Jack havia acidentalmente encomendado rins de cordeiro. O sabor destacava a função do órgão: os rins produzem a urina que remove as excreções
dos nossos corpos. Depois que a comida é digerida e utilizada, o corpo secreta
produtos úteis e inúteis para o sangue. O rim possui 1 milhão de filtros que
separam mais ou menos dois litros de água em excesso. Nós chamamos essa
excreção de urina.
Mal sabia Jack que, 20 anos mais tarde, muito depois de ter conquistado
sucesso como restaurateur, ele teria outro encontro infeliz com um rim ao
desenvolver uma doença renal.
Dessa vez, as consequências do encontro seriam devastadoras: Jack
Morgan morreu de sua doença renal. Muitas pessoas choraram sua morte, pois
Jack era um cara legal: efervescente, charmoso, exigente. Todos o amavam,
incluindo sua filha de 29 anos. Ela o amava tanto que estava disposta a doar
um de seus rins para substituir os órgãos irremediavelmente doentes do pai.
A Mãe Natureza é a melhor bioengenheira do mundo. Ela nos criou com
muitas redundâncias para que, se por nosso descuido destruirmos alguma
parte do nosso corpo, outra esteja disponível para assumir a sua função. Ela
nos deu dois rins, mas as pessoas podem sobreviver com apenas um, mesmo
um transplantado do corpo de outra pessoa.
Os milagres de engenharia da Mãe Natureza incluem um exército que
persegue e destrói incansavelmente todos os invasores. Nós o chamamos de
sistema imunológico. Mas às vezes até os melhores projetistas cometem erros.
Se o sistema imunológico interpreta um rim doado como sendo um corpo
estranho, ele destrói o órgão. Os rins que vêm de parentes têm uma probabi-
36 PARTE I • Quem Matou o Sistema de Saúde dos EUA?
lidade maior de passar pela inspeção do sistema imunológico. Não havia um
par melhor para os tecidos de Jack do que o rim de sua filha. Por mais brilhante que fosse o rim artificial inventado por Willem Kolff, ele tinha limites.
Jack precisava das habilidades de Joe Murray.
A opção era transplante renal ou morte.
Jack Morgan precisava do transplante, mas acabou morrendo. Terrivelmente debilitado pela diálise, Jack desenvolveu uma infecção e morreu.
Jack Morgan não teve chance. Como pequeno empregador, só podia pagar um plano de saúde, o de managed care. E o plano o matou, atrasando o
transplante por pura incompetência, como aconteceu com a seguradora californiana Kaiser Permanente: naquele caso, 100 pessoas morreram enquanto
esperavam por transplantes renais, 25 das quais tinham um doador perfeito
disponível.
Você e eu somos todos Jack Morgans em potencial, vítimas da vaidade,
ganância e do interesse próprio sem limites de quem deveria nos proteger. As
ideias neste livro vão nos permitir tirar o sistema de saúde que está nas mãos
de quem matou Jack Morgan e colocá-lo no seu lugar, ou seja, sob nosso controle em um sistema de saúde voltado para o paciente.
Começarei meu ataque ao sistema de saúde expondo as culturas deturpadas das HMOs e das gigantes da managed care dos EUA. Vou mostrar como
elas perderam a alma, como suas missões se distorceram, deixando de ser a de
proteger e preservar a saúde dos pacientes em prol do interesse próprio e do
enriquecimento, e como pessoas como Jack Morgan acabaram morrendo no
caminho.
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