a expressão da modalidade em peças cariocas

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
A EXPRESSÃO DA MODALIDADE EM PEÇAS CARIOCAS:
UMA ANÁLISE DIACRÔNICA
Evelin Azambuja Augusto
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2015
A expressão da modalidade em peças cariocas:
uma análise diacrônica
Evelin Azambuja Augusto
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do Rio de
Janeiro como quesito para a obtenção do Título
de Mestre em Letras Vernáculas (Língua
Portuguesa).
Orientadora: Professora Doutora Maria Eugênia
Lammoglia Duarte
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2015
A expressão da modalidade em peças cariocas:
uma análise diacrônica
Evelin Azambuja Augusto
Orientadora: Professora Doutora Maria Eugênia Lammoglia Duarte
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a
obtenção do Título de Mestre em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa).
Examinada por:
______________________________________________________
Presidente: Profª. Doutora Maria Eugênia Lamoglia Duarte – UFRJ
______________________________________________________
Profª. Doutora Juliana Esposito Marins – UFRJ
______________________________________________________
Prof. Doutor Gilson Costa Freire – UFRRJ
______________________________________________________
Prof. Doutor Humberto Soares da Silva - UFRJ – suplente
______________________________________________________
Profª. Doutora Ângela Marina Bravin dos Santos – UFRRJ - suplente
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2015
Augusto, Evelin Azambuja.
A expressão da modalidade em peças cariocas: uma
análise diacrônica./ Evelin Azambuja Augusto. – Rio de Janeiro:
UFRJ/Faculdade de Letras, 2015.
106f; il.; 30cm
Orientadora: Maria Eugênia Lammoglia Duarte
Dissertação (Mestrado) – UFRJ/Letras/ Programa de
Pós-Graduação em Letras Vernáculas, 2015.
Referências Bibliográficas: f.104-106.
1.
Modalidade. 2. Verbos auxiliares, verbos
predicadores e predicadores adjetivais. 3. Estudo de mudança
em tempo real. I. Duarte, Maria Eugênia Lammoglia. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de PósGraduação em Letras Vernáculas. III. A expressão da
modalidade em peças cariocas: uma análise diacrônica.
AUGUSTO, Evelin Azambuja. A expressão da modalidade em peças cariocas: uma
análise diacrônica. Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Faculdade de Letras/UFRJ. 2015.
RESUMO
Meu objetivo principal é analisar como as formas de expressão de modalidade
(epistêmica e não-epistêmica) se comportam ao longo do tempo no Português
Brasileiro. Para isso, foram analisadas peças de teatro escritas no Rio de Janeiro,
distribuídas ao longo de sete períodos dos séculos XIX e XX. Entre as diversas formas
de expressar essa categoria, focalizo os verbos auxiliares modais, os predicadores
verbais e predicadores adjetivais, esses dois últimos tipos favorecedores de estruturas
com um sujeito expletivo nulo. Como o português brasileiro prefere sujeitos
referenciais expressos, minha hipótese era a de que o uso de auxiliares aumentaria
ao longo do tempo. Como base teórica, utilizo o modelo de estudo da variação e
mudança proposto por Weinreich, Labov e Herzog (2006 [1968]), associado à Teoria
de Princípios e Parâmetros (Chomsky, 1981). Os resultados apontam que, embora
predominantes desde a primeira sincronia, os auxiliares tendem a crescer; que os
predicadores adjetivais ocorrem em número muito reduzido; e que os predicadores
verbais descritos nas gramáticas aparecem de modo parcimonioso no texto das peças
até o ano de 1955, dando lugar a duas formas verbais inovadoras, que permitem o
alçamento de um constituinte para a posição do sujeito expletivo, na segunda metade
do século XX. Foi possível constatar, ao lado da implementação de sujeitos
referenciais, uma clara preferência por sujeitos expressos de 1ª. e 2ª. pessoas, o que
leva à confirmação parcial de minha hipótese principal.
Palavras-Chave: Modalidade; Verbos auxiliares, verbos predicadores e predicadores
adjetivais; Estudo de mudança em tempo real.
AUGUSTO, Evelin Azambuja. A expressão da modalidade em peças cariocas: uma
análise diacrônica. Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Faculdade de Letras/UFRJ. 2015.
ABSTRACT
The aim of this research is to analyze the expression of modality (epistemic and nonepistemic) in Brazilian Portuguese in a diachronic study. The corpus comes from
popular plays written in Rio de Janeiro along the 19th and 20th Centuries, distributed
in seven periods of time. The structures analyzed were auxiliaries, verbal and
adjectival predicates. Whereas auxiliaries allow referential subjects, modal verbs and
adjectives favor an expletive subject. Since Brazilian Portuguese prefers overt
referential subjects, our hypothesis was that the use of auxiliaries would increase along
the time. The theoretical support comes from de model proposed by Weinreich, Labov
e Herzog (2006 [1968]) associated with the Principles and Parameters Theory
(Chomsky, 1981). The results show that auxiliaries are predominant in each
synchrony, but tend to increase along the time; adjectival predicates are rare; the
verbal predicates, presented in traditional grammars, appear in a very reduced way in
the plays scripts up to 1955, but two innovative forms, allowing constituent raising to
subject position, are implemented in our system in the last half of the 20th Century.
With the auxiliaries, it was possible to observe the implementation of overt subjects
particularly in 1st and 2nd person, confirming partially our main hypothesis.
Key words: Modality; Auxiliaries; Verbal predicates; Adjectival predicates; Study of
change in long term.
AGRADECIMENTOS
“Fundamental é mesmo o amor
É impossível ser feliz sozinho”
(Tom Jobim)
Nesse momento de muita felicidade, não posso deixar de agradecer às pessoas
que, de alguma forma, contribuíram para que eu chegasse até aqui.
Primeiramente, agradeço a Deus por sua infinita bondade e por tantas graças
recebidas ao longo da minha vida. À Nossa Senhora, por estar comigo em todos os
momentos, principalmente nos mais angustiantes.
À minha mãe, Elen, melhor amiga, companheira e porto-seguro, pela educação
que recebi, por ter paciência para ouvir minhas longas histórias, por me impulsionar
sempre, por torcer tanto por mim e ser minha fã número 1, enfim, pelo seu amor.
Ao Luis e à Helena, pelos momentos que vivemos juntos, pela segurança de
saber que posso contar com vocês, por me ensinarem o valor da família e do amor
sem querer nada em troca.
Ao meu pai, Augusto, Lúcia e Julia, pela torcida e incentivo de sempre. Vocês
são muito importantes para mim.
Às minhas avós, Celita e Elvira, e à minha avó emprestada, Teresinha, por
todas as orações, todo carinho e dedicação e pelos exemplos recebidos.
À família que me acolheu com tanto amor. À Hustana, por todo o incentivo, por
me ensinar tanto, pelos conselhos, as conversas e os passeios que só nós duas temos
coragem de fazer. Ao Ricardo, pela torcida e carinho, e à Teté, pela alegria de viver,
pelas várias coisas emprestadas ao longo desses 8 anos (rs). Obrigada por me
receberem em suas vidas de braços abertos.
Ao meu amor, melhor amigo e companheiro, Ivan, por me fazer uma pessoa
melhor, estar sempre presente, me dar forças, me ajudar em tantas coisas, pelo seu
amor e carinho e por dividir a sua vida comigo.
Aos presentes que a Faculdade de Letras me deu: Lu e Victor, pela amizade
sólida, pelos momentos que vivemos juntos e por todas as risadas. Edu, pelas nossas
internas que tanto me divertem, por me salvar em Francês diversas vezes e por ser
esse amigo leal e verdadeiro. Ju, por acreditar em mim, me escolher, entre tantas
opções, para ser sua sucessora, por guiar meus passos acadêmicos, por sua alegria
contagiante e seu carinho, mesmo quando briga comigo! Bruna Cupello, Jéssica Uhlig,
Jéssica Magalhães e Maria, cada uma de vocês, que têm personalidades tão
diferentes, é muito importante pra mim.
Aos meus amigos de sempre: Vivi, Camila, Manu, Clarinha, Ju, Tiago, Marcelo,
pela amizade verdadeira e sólida, apesar de não estarmos sempre juntos, por toda
força, incentivo e histórias que vivemos juntos.
Aos meus Maanamigos, por todas as orações, por entenderem a minha
ausência nos últimos meses e por me levarem para mais perto de Deus.
Aos meus colegas do Radical e do Eliezer, sobretudo à Liana Zaroni, pela
oportunidade que me deu, por acreditar na minha capacidade e me substituir sempre
que preciso, e ao Alexandre Valuzuela, por me ensinar tanto e me motivar a crescer
e a aprender cada vez mais.
À Gabriela Mourão, por aguentar meus momentos de desespero e tensão,
quase nenhum (rs), responder minhas mil perguntas e dividir esse momento
“mestranda” comigo. À Mayara Nicolau, por estar sempre disponível e me ajudar tanto.
Aos professores doutores Gilson Freire, Juliana Marins, Ângela Bravin e
Humberto Soares da Silva, por aceitarem fazer parte da minha banca.
À minha orientadora Maria Eugênia, por me ensinar tanto, por sua orientação
impecável, pelas broncas que me fizeram crescer muito e por ter me aceitado como
sua orientanda. Sem você, eu não teria conseguido!
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................... . 14
CAPÍTULO 1- PONTOS DE PARTIDA ............................................................... . 17
1.1 O tratamento da modalidade nas gramáticas tradicionais ............................. . 17
1.2 A modalidade no âmbito dos estudos linguísticos ......................................... . 20
1.3 A expressão da modalidade nas gramáticas descritivas contemporâneas do
português ............................................................................................................ . 22
1.4 A expressão da modalidade em estudos empíricos e teóricos ...................... . 27
CAPÍTULO 2 - PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E METODOLOGIA ................... . 32
2.1 A Teoria da Variação e Teoria Gerativa ........................................................ . 32
2.1.1 O modelo teórico de estudo da mudança adotado - A Sociolinguística da
Variação .............................................................................................................. . 33
2.1.2 A teoria linguística adotada – o tratamento da modalidade e o modelo
de princípios e parâmetros .................................................................................. . 35
2.1.2.1 O tratamento da modalidade ................................................................... . 35
2.1.2.2 O modelo de princípios e parâmetros ...................................................... . 37
2.2 Objetivos e hipóteses .................................................................................... . 39
2.3 Procedimentos metodológicos ...................................................................... . 40
2.3.1 A amostra ................................................................................................... . 41
2.3.2 O envelope da variação .............................................................................. . 43
2.3.2.1 A variável sociolinguística ....................................................................... . 43
2.3.2.2 Os grupos de fatores ............................................................................... . 44
CAPÍTULO 3 – A ANÁLISE ................................................................................ . 53
3.1 Distribuição geral das estratégias ................................................................. . 53
3.2 A análise da modalidade epistêmica ............................................................. . 54
3.2.1 As formas de expressão da modalidade epistêmica .................................. . 54
3.2.2 Tipos de predicador verbal ......................................................................... . 57
3.3.3 Tipos de predicador adjetival ...................................................................... . 58
3.2.4 Tipos de verbo auxiliar ............................................................................... . 61
3.2.5 A referência do sujeito ................................................................................ . 63
3.2.6 Os sujeitos de referência arbitrária ............................................................. . 66
2.7 Os sujeitos de referência definida ................................................................. . 67
3.2.8 A forma de realização do sujeito ................................................................ . 70
3.3 A análise da modalidade não-epistêmica ...................................................... . 75
3.3.1 Distribuição geral das estratégias por tipo de modalidade não-epistêmica .. 75
3.3.2 As formas de expressão da modalidade não-epistêmica ........................... . 77
3.3.3 O predicador verbal .................................................................................... . 79
3.3.4 Tipos de predicador adjetival ...................................................................... . 80
3.3.5 Tipos de verbo auxiliar ............................................................................... . 82
3.3.6 A referência do sujeito ................................................................................ . 85
3.3.7 Os sujeitos de referência arbitrária ............................................................. . 87
3.3.8 Os sujeitos de referência definida .............................................................. . 90
3.3.9 A forma de realização do sujeito ................................................................ . 92
3.4 O que dizem os resultados ............................................................................ . 97
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ . 99
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 104
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1: A trajetória das estratégias para a expressão da modalidade epistêmica ao
longo do tempo .................................................................................................... 56
Gráfico 2: A trajetória dos verbos poder e dever para a expressão da modalidade
epistêmica ao longo do tempo ............................................................................. 63
Gráfico 3: Distribuição das estruturas para a expressão da modalidade epistêmica
segundo a referência do sujeito ao longo do tempo ............................................ 65
Gráfico 4: A realização dos sujeitos referenciais nulos (vs plenos) para a expressão
da modalidade epistêmica ao longo do tempo ................................................... 71
Gráfico 5: A trajetória das estratégias para a expressão da modalidade não-epistêmica
ao longo do tempo ............................................................................................... 78
Gráfico 6: A trajetória dos verbos poder, dever, ter que/ter de e precisar para a
expressão da modalidade não-epistêmica ao longo do tempo ............................ 84
Gráfico 7: Distribuição das estruturas para a expressão da modalidade não-epistêmica
segundo a referência do sujeito ao longo do tempo ............................................ 87
Gráfico 8: A realização dos sujeitos referenciais nulos (vs plenos) para a expressão
da modalidade não-epistêmica ao longo do tempo ............................................. 93
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Distribuição dos dados levantados segundo o tipo de modalidade ..... 53
Tabela 2: Formas de expressão da modalidade epistêmica ao longo do tempo .. 55
Tabela 3: Tipos de predicadores verbais para a expressão da modalidade epistêmica
ao longo do tempo ............................................................................................... 58
Tabela 4: Tipos de predicadores adjetivais para a expressão da modalidade
epistêmica ao longo do tempo ............................................................................. 60
Tabela 5: Tipos de verbos auxiliares para a expressão da modalidade epistêmica ao
longo do tempo .................................................................................................... 62
Tabela 6: Referência do sujeito ao longo do tempo (modalidade epistêmica) .... 65
Tabela 7: Realizações dos sujeitos de referência arbitrária ao longo do tempo
(modalidade epistêmica) ..................................................................................... 67
Tabela 8: Distribuição dos sujeitos de referência definida ao longo do tempo
(modalidade epistêmica) ..................................................................................... 69
Tabela 9: A expressão dos sujeitos de referência definida referenciais nulos
(vs
plenos) ao longo do tempo (modalidade epistêmica) .......................................... 70
Tabela 10: Distribuição dos dados levantados segundo o tipo de modalidade
nãoepistêmica ........................................................................................................... 76
Tabela 11: Formas de expressão da modalidade não-epistêmica ao longo do tempo
............................................................................................................................. 78
Tabela 12: Tipos de predicadores adjetivais para a expressão da modalidade
nãoepistêmica ao longo do tempo ............................................................................. 81
Tabela 13: Tipos de verbos auxiliares para a expressão da modalidade
nãoepistêmica ao longo do tempo ............................................................................. 84
Tabela 14: Referência do sujeito ao longo do tempo (modalidade não-epistêmica)
............................................................................................................................. 86
Tabela 15: Distribuição dos sujeitos de referência arbitrária ao longo do tempo
(modalidade não-epistêmica) .............................................................................. 89
Tabela 16: Distribuição dos sujeitos de referência definida ao longo do tempo
(modalidade não-epistêmica) .............................................................................. 92
Tabela 17: A expressão dos sujeitos de referência definida nulos (vs plenos) ao longo
do tempo (modalidade não-epistêmica) .............................................................. 93
LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Relação das peças teatrais (PB) e sua distribuição em períodos de tempo
........................................................................................................................... 42
14
INTRODUÇÃO
No âmbito da teoria linguística contemporânea, entende-se por modalidade a
expressão da atitude do falante, indicando necessidade, obrigação, possibilidade
e permissão (NEVES, 2000; OLIVEIRA, 2003, entre outros). É possível encontrar
inúmeros trabalhos que tratam dessa categoria, que pode ser expressa por diferentes
formas gramaticais. Esta pesquisa visa a investigar a expressão da modalidade dentro
de uma perspectiva “paramétrica”, que analisa a preferência por algumas formas em
detrimento de outras, levando em conta uma importante mudança que se dá no
português do Brasil (PB) no que diz respeito à marcação do Parâmetro do Sujeito Nulo
(PSN), que passa de língua de sujeito nulo “consistente” para língua de sujeito nulo
“parcial” (ROBERTS e HOLMBERG, 2010), o que significa sujeitos pronominais
referenciais preferencialmente expressos, além de exibir uma competição entre
sujeitos expletivos nulos e sentenças pessoais, seja através da inserção ou alçamento
de constituintes para a posição estrutural do sujeito, evitando um expletivo nulo.
Por essa razão, interessam a este trabalho as formas que se relacionam à
posição do sujeito, como os verbos auxiliares modais (como poder e dever),
predicadores verbais (como cumprir e convir) e predicadores adjetivais (como possível
e preciso). É preciso acrescentar que estes sempre projetam uma estrutura com
expletivo, quando construídos com o verbo ser em estruturas como: é preciso, é
necessário, entre outras. Enquanto os verbos auxiliares, na sua maioria, projetam um
sujeito referencial, a menos que se combinem com um predicado existencial, os
predicadores verbais e adjetivais projetam sempre sentenças impessoais, com um
expletivo nulo, como podemos ver, respectivamente, a seguir:
(1)
Alice: Mas nós não vamos lutar pela igualdade de oportunidades, igualdade de
salários, igualdade de direitos, enfim. E essa luta tem que começar aqui.
(A mulher integral, Carlos Eduardo Novaes, 1975)
(2)
Ambrósio: Øexpl Basta [que se compre uma caixinha com soldadinhos de
chumbo].
(O noviço, Martins Pena, 1845)
15
(3)
Doroteia: De qualquer maneira Øexpl é preciso [preparar o espírito do
Candinho], para que êle não de importância a qualquer grosseria do Carlos.
(O hóspede do quarto nº 2, Armando Gonzaga, 1937)
Um tópico que causa bastante divergência em relação à modalidade é a sua
classificação. De forma geral, consideram-se duas classificações: deôntica (quando
indica obrigação ou permissão) e epistêmica (quando está ligada às crenças e
opiniões do falante, indicando possibilidade/probabilidade). No entanto, como
veremos no capítulo 2, outras propostas são apresentadas, sem que se perca essa
classificação mais geral. Utilizo a proposta de Neves (2006), que separa a categoria
em dois tipos: a) epistêmica e b) não-epistêmica. Essa última, nos moldes de Palmer
(2001 [1986]), abarca as modalidades deôntica (que expressa permissão e obrigação
e está no eixo da conduta) e dinâmica (que expressa habilidade e capacidade e está
no eixo da habilidade). É possível ver exemplos de expressão da modalidade
epistêmica
e
da
modalidade
não-epistêmica
–
deôntica
e
dinâmica
–,
respectivamente, em (4), (5) e (6), respectivamente:
(4)
Filipe: E essas dificuldades devem ter sido bem grandes; porque há quinze dias
que o ministério está organizado, e ainda não se pôde achar um ministro para
a Marinha.
(Caiu o ministério, França Júnior, 1882)
(5)
Madalena: Preciso ir lá dentro dar umas ordens.
(O simpático Jeremias, Gastão Tojeiro, 1918)
(6)
Dolores: Psiu... que besteira é essa... tu pode arrumar um homem tão melhor.
Chora, não, Margareth. Não vale o esforço.
(No coração do Brasil, Miguel Falabella, 1992)
O principal objetivo do trabalho é analisar como as formas de expressão de
modalidade se comportam ao longo o tempo no Português Brasileiro. Espero que, por
causa da mudança mais geral por que passa o PB, na qual há uma tendência a evitar
sujeitos referenciais nulos e ocupar a posição disponível à esquerda de sentenças
impessoais, o número de construções com verbos plenos e predicadores adjetivais
16
diminuirá ao longo do tempo. Já em relação às construções com verbos auxiliares,
acredito que sejam cada vez mais utilizadas, justamente por projetarem uma posição
de sujeito preferencialmente referencial. Além disso, creio que os sujeitos referenciais
das construções com verbos auxiliares serão cada vez mais preenchidos, sobretudo
a 1ª e a 2ª pessoa, que já se encontram plenamente implementadas na fala
espontânea.
A fim de mostrar o comportamento das diferentes formas de expressão da
modalidade, utilizo uma amostra de peças teatrais cariocas distribuídas em sete
períodos ao longo dos séculos XIX e XX, tal como proposto por Duarte (1993). Adoto
como pressupostos teóricos a Teoria da Mudança Linguística (WEINREICH, LABOV
e HERZOG, 2006 [1968]), sobretudo, no que diz respeito ao encaixamento da
mudança, associada à Teoria de Princípios e Parâmetros (CHOMSKY, 1981), no que
concerne à marcação do Parâmetro do Sujeito Nulo (PSN).
Este trabalho se compõe de três capítulos. No primeiro capítulo, são
apresentados o tratamento da modalidade nas gramáticas tradicionais, a abordagem
da categoria no âmbito dos estudos linguísticos e nas gramáticas descritivas
contemporâneas do português, além da revisão de alguns estudos já realizados a
respeito do tema.
No segundo capítulo, trato dos pressupostos teóricos que orientam a pesquisa,
refino meus objetivos e hipóteses e descrevo os procedimentos metodológicos
utilizados, que incluem a descrição da amostra e os grupos de fatores levantados.
No terceiro capítulo, apresento a análise dos resultados e sua interpretação à
luz dos grupos de fatores utilizados, mostrando a evolução das três formas ao longo
dos períodos de tempo analisado. Por fim, a partir dos resultados encontrados,
apresento as considerações a que esta pesquisa permite chegar.
17
CAPÍTULO 1:
PONTOS DE PARTIDA
Introdução
Neste capítulo, discutirei o tratamento que a categoria modalidade recebe. Por
se tratar de uma categoria a merecer tratamento especial somente a partir da evolução
dos estudos que se inserem no âmbito da Linguística, é natural que ela não apareça
explicitamente como uma categoria na tradição gramatical, e, consequentemente, nos
livros didáticos, que ainda seguem as descrições tradicionais. Como referi, o estudo
dessa categoria se dará a partir do desenvolvimento dos estudos linguísticos, com
uma breve menção em Lyons (1979 [1968]) e com o clássico artigo de Palmer
(2001[1986]). Algumas gramáticas descritivas atuais, elaboradas a partir da
sustentação de uma teoria linguística, se preocupam em incluir a modalidade, que,
por ser tratada justamente à luz dessas diferentes perspectivas teóricas, acaba por
abarcar uma gama muito variada de nuances, o que é natural quando se trata de tema
tão complexo. Embora esta breve revisão possa abranger um quadro mais amplo e
divergente, meu objetivo, como anunciei na introdução, é analisar apenas um conjunto
de estruturas que veiculam a modalidade epistêmica e não-epistêmica, nos termos de
Neves (2006), e a forma como esse conjunto interage com outras mudanças no nosso
sistema.
1.1 A expressão da modalidade nas gramáticas tradicionais e nos livros
didáticos 1
Embora desde os gregos já se fizesse a distinção entre dictum e modus, a
tradição gramatical, desenvolvida ao longo da Idade Média e dos séculos
subsequentes, não apresenta uma descrição e sistematização da categoria
modalidade. Enquanto o dictum diz respeito à parte referencial, quando o falante
apresenta o conteúdo referencial assertivamente ou interrogativamente, por exemplo,
1
Meu interesse em analisar os livros didáticos, além das gramáticas tradicionais, é mostrar que, apesar da
importância dessa categoria, diferentemente do que ocorre no ensino de inglês, por exemplo, em que é
sistematizada, normalmente, não há abordagem desse tópico ou sua sistematização nos livros didáticos. Isso
reflete a não abordagem da categoria na escola, o que considero um equívoco, já que o falante utiliza a categoria
modalidade frequentemente, sem conhecê-la e refletir sobre ela.
18
o modus diz respeito à atitude do falante em relação à situação representada. Na
maioria das nossas gramáticas tradicionais, os autores sobrepõem os conceitos e de
modo e de modalidade. Exemplo disso é a gramática de Cunha e Cintra (2013 [1985],
p.462), em que dizem: “Entende-se por MODO [...], a propriedade que o verbo tem de
indicar a atitude (de certeza, de dúvida, de suposição, de mando, etc.) da pessoa que
fala em relação ao fato que enuncia”. Como se observa, a atitude do falante seria
expressa através dos modos verbais – o indicativo, o subjuntivo e o imperativo. Os
autores não fazem referência a outras formas de expressar essas atitudes e crenças,
entre as quais estão os verbos auxiliares, os predicadores verbais e os predicadores
adjetivais, que interessam a esta pesquisa.
Rocha Lima (2011 [1957], p.168), entretanto, além de afirmar que “o MODO
caracteriza as diversas maneiras sob as quais a pessoa que fala encara a significação
contida no verbo”, referindo-se ao indicativo, subjuntivo e imperativo, faz uma rápida
menção aos verbos auxiliares modais, ao tratar do emprego do infinitivo nãoflexionado. Mostra-nos que um dos casos em que esse aparece é quando se agrega
um verbo principal a um auxiliar, formando uma unidade semântica: “Em português,
esses verbos que habitualmente REGEM OUTRO VERBO são os seguintes: poder,
saber, querer e dever, chamados ‘auxiliares modais’” (op. cit: p. 504). Por fim, o autor,
ao descrever as orações substantivas subjetivas, menciona um trecho do Manual de
análise – léxica e sintática, de 1955, de José Oiticica, importante estudioso dos
processos de estruturação sintática e referência no assunto, e cita alguns verbos
plenos e adjetivos predicadores, que hoje se incluem entre categorias que veiculam
modalidade, mostrando certas ideias que eles carregam, sem, entretanto, dedicar-se
de fato à descrição da modalidade no português.
19
Costuma haver certa vacilação no pronto reconhecimento das orações
substantivas subjetivas. Atente-se, pois, para os principais esquemas de
construção em que elas figuram – observando-se particularmente os verbos
da oração principal.
“São os seguintes, quando em terceira pessoa e seguidos de que, ou se:
a) De conveniência: convém, cumpre, importa, releva, urge, etc.2
b) De dúvida: consta, corre, parece, etc.
c) De ocorrência: acontece, ocorre, sucede, etc.
d) De efeito moral: agrada, apraz, admira, dói, espanta, punge, satisfaz, etc.
e) Na passiva: conta-se, sabe-se, dir-se-ia, é sabido, foi anunciado, ficou
provado, etc.
f) Nas expressões dos verbos ser, estar e ficar, com substantivo, ou adjetivo:
é bom, é verdade, está patente, ficou claro, etc.” (ROCHA LIMA 2011 [1957]:
328)
Em Bechara (2009 [1961], p. 253-254), igualmente, apenas a categoria modo
é contemplada, como podemos ver no trecho:
Modo – Assinala a posição do falante com respeito à relação entre a ação
verbal e seu agente ou fim, isto é, o que o falante pensa dessa relação. O
falante pode considerar a ação como algo feito, como verossímil – como um
fato incerto –, como condicionada, como desejada pelo agente, como um ato
que se exige do agente, etc., e assim se originam os modos: indicativo,
subjuntivo, condicional, optativo, imperativo. (BECHARA 2009 [1961]: 253254)
No entanto, tal como ocorre em Rocha Lima, ao tratar das aplicações dos
verbos auxiliares, destaca os verbos auxiliares modais, como é possível observar a
seguir:
Os auxiliares modais se combinam com o infinitivo ou gerúndio do verbo
principal para determinar com mais rigor o modo como se realiza ou se deixa
de realizar a ação verbal:
a) necessidade, obrigação, dever: haver de escrever, ter de escrever, dever
escrever, precisar (de) escrever, etc.
b) possibilidade ou capacidade: poder escrever, etc.
c) vontade ou desejo: querer escrever, desejar escrever, odiar escrever,
abominar escrever, etc.
d) tentativa ou esforço; às vezes com o sentido secundário depreendido pelo
contexto, de que a tentativa acabou em decepção (foi buscar lã e saiu
tosquiado): buscar escrever, pretender escrever, tentar escrever, ousar
escrever, atrever-se a escrever, etc.
e) consecução: conseguir escrever, lograr escrever, etc.
2
Apesar de Rocha Lima englobar os verbos convir, urgir e cumprir sob o mesmo rótulo, em que se tem uma ideia
de conveniência, nesse trabalho, considero os verbos convir e bastar epistêmicos, por perceber que, ao utilizálos, o falante expressa sua opinião e não denota uma ideia de obrigação/necessidade, como no caso dos verbos
cumprir e urgir, os quais consideramos não-epistêmicos. Algumas definições de convir, por exemplo, encontradas
em alguns dicionários, sobretudo no Houaiss, nos dão esse embasamento, como é possível ver a seguir:
Definição de convir Dicionário Houaiss:
1. Concordar, aceitar, admitir. Ex: Convenhamos em que suas observações são impertinentes.
2. Vir a propósito, servir. Ex: Este é o apartamento que nos convém.
3. Ser conveniente, adequado, útil. Ex: Vamos fechar negócio porque o preço convém.
20
f) aparência, dúvida: parecer escrever, etc.
g) movimento para realizar um intento futuro (próximo ou remoto): ir escrever,
etc.
h) resultado: vir a escrever, chegar a escrever, etc. (BECHARA 2009 [1961]:
277)
Conforme se vê, na descrição desses dois autores, a noção de modalidade só
aparece explicitamente quando tratam dos verbos auxiliares. Ainda que alguns verbos
plenos e estruturas com predicadores adjetivais analisados nesta pesquisa para
veicular essa categoria (como convir, cumprir, é bom, entre outros) sejam
contemplados na gramática de Rocha Lima quando ele cita Oiticica, nesses casos,
não há uma associação com a categoria modalidade, porque, naturalmente, como
vimos, ela não estava desenvolvida no âmbito da tradição gramatical.
Os livros didáticos seguem a mesma direção da gramática de Cunha e Cintra
(2001). No livro didático de Paschoalin & Spadoto (2008, p. 103), há apenas uma
pequena definição de modo “é a indicação da atitude de quem fala em relação ao fato
expresso pelo verbo”, excluindo, mais uma vez, a noção de modalidade. O mesmo
ocorre com a gramática de Ulisses Infante (2008, p. 165), que indica que o modo
verbal é uma atitude: “De uma forma geral, os modos verbais decorrem de três
atitudes diferentes de quem fala ou escreve” e não faz menção à categoria em
questão. Nessa gramática didática, seguindo também o que se viu na tradição
gramatical, há uma pequena seção a respeito dos verbos auxiliares, em que os
auxiliares modais poder e dever são citados e, a própria conceituação já deixa ver a
veiculação das noções de capacidade, possibilidade, dever, obrigação: “Poder e dever
são auxiliares que exprimem a potencialidade ou a necessidade de que determinado
processo se realize ou não: Eles podem trabalhar. Eles devem trabalhar” (op. cit: p.
177).
Como vimos, embora o conceito de modalidade não seja tratado como uma
categoria, pelas razões acima expostas, os auxiliares modais aparecem de maneira
pouco sistemática na tradição gramatical.
1.2 A modalidade no âmbito dos estudos linguísticos
Em seu clássico e pioneiro livro Introdução à Linguística Teórica, Lyons (1979
[1968]) ao descrever a categoria modo, diz que:
21
O modo, como o tempo, frequentemente se realiza pela flexão do verbo ou
por sua modificação por meio de “auxiliares”. (LYONS 1979 [1968]: 322)
Segundo ele, as frases declarativas são neutras, não-marcadas, no que diz
respeito à atitude do falante, ao contrário das frases imperativas e interrogativas, que
são marcadas. Até esse momento, o autor não fala em modalidade. Posteriormente,
diz que, ao nos voltarmos a outras modalidades, que não sejam de ordem ou
interrogação, é possível encontrar uma grande variedade de maneiras nas diferentes
línguas pelas quais a ‘atitude’ do falante é gramaticalmente marcada. De acordo com
o autor, é possível pensar em pelo menos três escalas de modalidade:
a) a do desejo ou da intenção, como em: Tenha um bom dia.
b) a da necessidade ou da obrigação, como em: Eu tenho que comprar detergente.
c) a da certeza ou possibilidade, como em: Ele deve estar cansado.
O autor dá pistas sobre a dificuldade em sistematizar a categoria modalidade e
diz que preferiu nomear os tipos de modalidade como escalas por perceber que elas
podem ser subdivididas em um número maior ou menor de classificações, como
necessidades ou obrigações mais ou menos fortes. Além disso, mostra que as línguas
podem fundir duas ou três dessas escalas ou nem mesmo reconhecê-las
gramaticalmente. Em poucas linhas – na realidade o autor não dedica grande espaço
à modalidade – ficam claras para o leitor a complexidade da categoria e a perspicácia
do autor em tratar os tipos como escalas. No que se refere ao presente estudo,
podemos dizer que os itens B e C já incluem os elementos de que vamos tratar.
Um autor importante no estudo da modalidade é Palmer (2001[1986]), que
entende a categoria como “a gramaticalização das atitudes e opiniões (subjetivas) do
falante”. Em relação aos marcadores gramaticais que podem expressar essa
categoria nas línguas, o autor cita três: a) os sufixos, clíticos e partículas individuais;
b) a flexão e c) os verbos modais.
Para ele, há dois tipos de modalidade: a)
proposicional (que se subdivide em modalidade epistêmica e modalidade evidencial);
b) de evento (que se subdivide em modalidade deôntica e modalidade dinâmica).
Enquanto a modalidade epistêmica diz respeito ao julgamento do falante em relação
ao valor de verdade ou ao status factual da proposição, como em: (a) O João deve
estar em seu escritório (ideia de probabilidade), a modalidade evidencial diz respeito
22
a evidências que o falante tem para o status factual da proposição3, como em: (b)
Qualquer um pode ver que você está doente. Como podemos ver, ambas estão
ligadas à atitude do falante em relação ao valor de verdade ou status factual da
proposição. A modalidade deôntica denota obrigação ou permissão vinda de uma
fonte externa, como em: (c) O João pode entrar na sala agora (ideia de permissão). A
modalidade dinâmica, por sua vez, expressa habilidade/capacidade, que vem do
indivíduo em questão, como em: (d) O João pode/consegue correr um quilômetro em
cinco minutos (ideia de capacidade).
É possível notar semelhanças entre o que os dois autores dizem a respeito da
expressão da modalidade. Podemos associar os dois primeiros tipos de modalidade
apresentados por Palmer, a epistêmica e a evidencial, à terceira escala de Lyons, já
que dizem respeito ao grau de certeza do falante, incluindo a noção de
possibilidade/probabilidade. A modalidade deôntica, por sua vez, pode ser relaciona
à segunda escala de Lyons, pois ambas tratam da ideia de obrigação ou necessidade.
Lyons, no entanto, não fala, como Palmer, da noção de permissão que essa
modalidade pode expressar. Por fim, o último tipo de modalidade de Palmer, a
modalidade dinâmica, pode ser associada à primeira escala de Lyons, uma vez que
tratam da ideia de vontade. A noção de habilidade, que também é expressa pela
modalidade dinâmica e interessa a este trabalho, não é citada por Lyons, constituindo,
assim, uma inovação do estudo de Palmer.
1.3 A expressão da modalidade nas gramáticas descritivas contemporâneas do
português
As gramáticas recentes que incorporam os estudos linguísticos, de uma forma
geral, dedicam uma seção à categoria modalidade. Muitas delas se preocupam em
distinguir as categorias modo e modalidade e em tratar dos tipos de modalidade.
No âmbito das gramáticas descritivas portuguesas, podemos destacar os
estudos de Oliveira (2003) e Oliveira e Mendes (2013). De acordo com a primeira,
pode-se definir, linguisticamente, modalidade como a gramaticalização de atitudes e
opiniões dos falantes, ideia que retoma Palmer. Segundo a autora, entre as formas de
3
Esse tipo de modalidade está ligado às evidências sensoriais que o falante tem para chegar demonstrar sua
opinião, sobretudo, no que diz respeito aos sentidos visão, olfato e audição. Isto é, ele faz uma afirmação a partir
do que viu, sentiu ou ouviu.
23
se expressar essa categoria, podem-se citar os verbos modais poder e dever; verbos
que dão ideia de obrigação, necessidade, crença do falante, como ter de/que, precisar
de e saber, respectivamente; advérbios (como provavelmente, necessariamente) e
adjetivos (como possível, capaz, certo); os tempos verbais imperfeito, futuro e
condicional e os modos indicativo, subjuntivo e imperativo. Para ela, “Os domínios de
possibilidade e necessidade são variantes paradigmáticas, que se realizam em quatro
domínios, modalidades interna ao participante, externa ao participante, deôntica
e epistêmica” (op.cit: p. 248). Em uma nota de rodapé, descreve melhor esses quatro
tipos de modalidade:
No primeiro caso lidamos com a capacidade e necessidade (interna do
participante). No segundo caso estamos a lidar com circunstâncias que são
externas ao participante envolvido numa situação, mas que a tornam possível
ou necessária. A modalidade deôntica diz respeito às circunstâncias externas
(pessoais, regras sociais ou normas...) que permitem ou obrigam o
participante a envolver-se na situação. Por último, a modalidade epistêmica
está relacionada com o domínio da incerteza, da probabilidade. (OLIVEIRA,
2003, p. 248)
Em texto publicado na Gramática do Português (RAPOSO et al. 2013) dez anos
mais tarde, a mesma autora, em pareceria com Mendes (cf. OLIVEIRA E MENDES,
2013, p. 623), reafirma que a modalidade “é a forma de exprimir, por meios
linguísticos, atitudes e opiniões dos falantes ou das entidades referidas pelo sujeito
sobre o conteúdo proposicional dos enunciados que produzem.” De acordo com as
autoras, o primeiro valor modal, a modalidade epistêmica, diz respeito aos graus de
certeza ou avaliação da probabilidade em relação ao conteúdo proposicional da frase,
como por exemplo:
(1)
É possível que chova amanhã.
O segundo valor modal diz respeito à capacidade ou à necessidade interna,
psicológica ou física, do sujeito de determinados predicadores, como saber, ser capaz,
precisar, como nos exemplos:
(2)
João pode/consegue correr bem rápido.
24
(3)
Maria precisa dormir muito.
O terceiro valor modal é o valor deôntico, que diz respeito aos atos de
permissão e de imposição de uma obrigação que envolvem participantes na situação
descrita pela frase, como por exemplo:
(4)
Você tem que devolver esses documentos hoje.
O quarto valor modal é chamado de externo aos participantes, porque a
possibilidade ou necessidade de um determinado evento podem ser resultado de
fatores externos aos participantes, não sendo controláveis por estes, como em:
(5)
É necessário que as pessoas esperem outro metrô devido à lotação deste.
O último valor modal explicitado por elas é o valor desiderativo, que diz respeito
à volição ou ao desejo, e não interessa a este trabalho, como no seguinte exemplo:
(6)
A menina quer sair de casa.
As autoras, assim como outros autores, citam as diversas formas de se
expressar a categoria modalidade nas línguas, como: verbos semiauxiliares modais
(poder, dever, ter de etc.); verbos plenos que veiculam valores modais (saber, permitir,
obrigar etc.); advérbios (possivelmente, necessariamente, talvez etc.); adjetivos
(provável, possível, certo etc.); nomes (possibilidade, necessidade etc.), entre outros.
Resumindo, a modalidade epistêmica está ligada aos graus de certeza ou
avaliação da probabilidade em relação ao conteúdo proposicional da frase; a
modalidade deôntica diz respeito aos atos de permissão e de imposição de uma
obrigação que envolvem participantes na situação descrita pela frase; a modalidade
interna ao participante envolve a capacidade ou a necessidade interna, psicológica ou
física, do sujeito e, por último, a modalidade externa ao participante está relacionada
ao fato de a possibilidade ou necessidade de um determinado evento serem resultado
de fatores externos aos participantes, não sendo controláveis por estes.
Nas gramáticas descritivas brasileiras, destacamos Neves (2006) e Ilari e
Basso (2008). Neves (2006, p. 153) diz que “Conceituar modalidade é uma tarefa
25
complexa exatamente porque esse conceito envolve não apenas o significado das
expressões modalizadas, mas, ainda, a delimitação das noções inscritas no domínio
conceptual implicado.” A autora, baseando-se em Klinge (1996), separa a categoria
em dois tipos: epistêmica e não-epistêmica (que se subdivide em deôntica e
dinâmica), o que também retoma Palmer. Segundo essa perspectiva, a modalidade
epistêmica “é a força com que o falante acredita na veracidade de uma proposição”
(op. cit: p. 161), como podemos ver em:
(7)
Lá em cima é tudo bem fechado e é mais fácil de se esconder. E deve ser mais
quente, porque não venta. (NEVES, 2006, p. 162)
(8)
Você pode ter estranhado eu chamar Ângela de velha. (NEVES, 2006, p. 162)
A modalidade deôntica “é a maneira como um ato é socialmente ou legalmente
circunscrito” (op.cit: p. 162), como nos exemplos:
(9)
Assim é que você deve fazer. (NEVES, 2006, p. 162)
(10)
Bem, você pode usar a minha sala. (NEVES, 2006, p. 162)
Por fim, a modalidade dinâmica “é a maneira pela qual referentes de sintagmas
nominais de função sujeito são dispostos em direção a um ato, em termos de
habilidade e intenção4” (op.cit: p. 162), como é possível constatar em:
(11)
Eu posso resolver isso para você. (NEVES, 2006, p. 162)
(12)
Mas eu te amo e quero te ver sempre. (NEVES, 2006, p. 162)
Em relação ao terceiro tipo de modalidade, a dinâmica, este trabalho focará nos
casos que denotam habilidade, como no exemplo (9), e não intenção, como no
exemplo (10).
4
Neste trabalho, utilizarei apenas a ideia de habilidade/capacidade expressa pela modalidade dinâmica. Isso
ocorre pelo fato de trabalhar com estruturas que denotam apenas essa ideia, e não a de intenção.
26
Ilari e Basso (2008, p. 312-313) afirmam que a palavra modo indica aquilo que
se altera nas sentenças, se opondo a “dictum”, ou seja, o conteúdo proposicional que
não se altera, o que retoma Lyons. Para os autores, os modos: a) distinguem ações;
b) ajudam na distinção entre o real e o irreal; c) aparecem como parte de certos
automatismos sintáticos. Um dos eixos da “área do modo” compreende a modalização
(consideração simultânea de vários mundos possíveis). De acordo com os eles, há
modalidades de vários tipos:
a) as que tratam da possibilidade e da necessidade lógicas (modalidade alética), como
em:
(13)
É impossível que um objeto seja diferente de si mesmo. (Ilari e Basso, 2008,
p.319)
b) As que tratam de permissões e obrigações (modalidade deôntica), como no
seguinte exemplo:
(14)
Na ética dos católicos, o aborto é proibido.
c) as que tratam de opiniões e crenças (modalidade epistêmica.) (op.cit: p. 319), como
em:
(15)
A vida dos indígenas brasileiros, antes da chegada dos portugueses, só podia
ser muito feliz.
Uma questão de extrema importância neste trabalho levantada pelos autores é
que “Modalizar é uma forma de evocar e reafirmar esses limites, e isso explica, ao
menos em parte, a forte repercussão que a modalização tem nas relações
interpessoais” (op. cit: p. 320). Para eles, ao analisarmos exemplos de modalidade
nas línguas naturais, devemos ter em mente que eles precisam ser analisados
levando em consideração seu vínculo com a realidade. Ao modalizar, o falante
considera um determinado estado de coisas a partir de conhecimentos, valores ou
obrigações que são estabelecidos e compartilhados com seu interlocutor em um
determinado momento.
27
Como vimos, não há divergência entre os autores das gramáticas aqui
brevemente revistas. Embora possam incluir classificações diversas, na essência não
divergem. Como é possível perceber, colocar a categoria modalidade dentro de limites
perfeitamente demarcados não é uma tarefa fácil; por isso, é importante delimitar bem
as escolhas e parâmetros que se pressupõem, principalmente no que diz respeito ao
tipo de estrutura utilizado e ao tipo de modalidade que ele expressa/veicula. Neste
estudo, serão analisadas apenas estruturas com verbos auxiliares modais,
predicadores verbais e predicadores adjetivais. Já em relação ao tipo de modalidade,
seguiremos a classificação de Neves (2006), que classifica a categoria em modalidade
epistêmica e modalidade não-epistêmica (que engloba as modalidades deôntica e
dinâmica).
1.4 A expressão da modalidade em estudos empíricos e teóricos
Além das gramáticas descritivas, que incorporam os estudos linguísticos e se
preocupam em descrever e analisar a categoria modalidade, também é possível
encontrar diversos estudos empíricos, que buscam, através da coleta e análise de
dados, observar como se realiza efetivamente no português a modalidade, ampliando,
assim, o que se conhece sobre o assunto.
Um importante estudo a respeito do tema é o de Rigoni (1995). Em seu
trabalho, a autora faz um estudo empírico da “modalização discursiva” com base na
amostra NURC-RJ associado a uma perspectiva teórica funcional-cognitiva. A autora
concentrou sua análise na expressão do valor modal da possibilidade e analisou 786
ocorrências: 406 com o verbo poder, 280 com o verbo dever e 100 com o advérbio
talvez. Além desses auxiliares e do advérbio, também analisou 468 ocorrências de
formas de subjuntivo, outro recurso gramatical para expressar esse valor de hipótese,
possibilidade.
Um dos resultados a que a autora chega é que, no português falado, há um
gradativo desuso das formas do subjuntivo para a expressão da categoria irrealis (que
denota justamente os valores mencionados anteriormente: hipótese, possibilidade,
dúvida, condição, virtualidade), sendo preferidos recursos lexicais e marcadores
discursivos. Para ela, dessa maneira, a língua portuguesa estaria, por mecanismos
compensatórios, procedendo à gramaticalização de verbos modais e à cristalização
de marcadores discursivos co-responsáveis pela expressão do irrealis. Segundo
28
Rigoni, os dados observados em seu corpus parecem representar uma tendência mais
geral por que passa o português oral: redução da complexidade frasal a estruturas
com baixo índice de subordinação formal; ampliação do campo de significação de
certos vocábulos; baixa produtividade de vocábulos muito específicos; cristalização
de marcadores que passam a substituir sentenças completas, entre outros, o que
responde a questões de um trabalho de cunho funcionalista. Neste estudo,
buscaremos verificar se nas peças mais recentes é possível constatar uma
concentração de usos dos verbos poder e dever para veicular a noção de
possibilidade, assim como constatou a autora.
Enquanto Rigoni (1995) analisa a categoria em um corpus oral, Andrade (2008)
analisa a modalização como estratégia argumentativa em textos de vestibulandos. A
autora segue uma perspectiva semântico-pragmática e uma perspectiva semânticodiscursiva, buscando, através de uma análise qualitativa, demonstrar o emprego de
estratégias discursivas para construção da argumentação e observar as variadas
formas de lexicalização e os efeitos que essas estratégias produzem para a
construção de sentido. Em seus resultados, Andrade revela que predominaram no
corpus os verbos auxiliares modais poder e dever, os mesmos encontrados por Rigoni
para a fala culta, tanto com valor deôntico como com valor epistêmico. No caso
específico do verbo dever, o valor deôntico foi mais recorrente. É possível ver
exemplos dos verbos dever e poder com sentido deôntico, respectivamente em:
(16)
Essa ideia deveria restringir-se apenas a objetos, mas infelizmente esse
conceito já chegou em nossos lares. (Andrade, 2008, p.114)
(17)
É fundamental sim, cuidar de nossos jovens, porém, não podemos abandonar
nossos idosos em um sofá de frente à televisão. (Andrade, 2008, p.141)
Em relação ao uso desses verbos com valor epistêmico, podemos destacar um
exemplo do verbo poder, a seguir:
(18)
Aprender a conviver com idosos, num “país de jovens” pode ser bastante
complicado. Pode parecer incompreensível alguns conselhos que recebemos
desses velhos experientes (...) (Andrade, 2008, p.131)
29
Para a autora, o alto número de ocorrências do verbo dever com valor deôntico
tem relação com o tema proposto, que requeria um posicionamento acerca da velhice,
envolvendo valores, opiniões formadas e crenças do mundo social. Alguns outros
tipos de modalidade são destacados pela autora, mas a que nos interessa e que,
segundo ela, também ocorreu em grande número, é a modalidade epistêmica. Nas
redações analisadas, esse tipo de modalidade se encontra em modalizadores que
expressam possibilidade, dúvida, não-certeza, principalmente quando o autor do texto
não quer se comprometer com a veracidade das informações.
Por fim, Duarte (2012a), em um estudo recente que utilizou como base teórica
o modelo de estudo da mudança apresentado por Weinreich, Labov e Herzog (2006
[1968]), conhecido como Teoria da Variação e Mudança Linguística, associado à
Teoria de Princípios e Parâmetros de Chomsky (1981), afirma que a preferência por
determinadas formas para a expressão da modalidade está ligada a uma mudança
por que passa o Português Brasileiro: a tendência a evitar sentenças impessoais, em
decorrência do preenchimento predominante dos sujeitos de referência definida; em
outras palavras, estruturas impessoais sofreriam algum tipo de consequência dessa
mudança. A autora, que analisa a fala espontânea (amostra NURC-RJ) e a escrita
veiculada em jornais veiculados no Rio de Janeiro, levanta as seguintes hipóteses: (a)
o elenco de formas encontradas na fala seria consideravelmente diferente do
encontrado na escrita? (b) entre as formas de expressão da modalidade na fala, as
que permitem a projeção de um sujeito referencial com o preenchimento da posição
do sujeito ou mesmo com um sujeito referencial nulo, como os verbos auxiliares,
seriam preferidas?
Pelos resultados da autora, constata-se que a expressão da modalidade
deôntica através de verbos predicadores plenos (cumpre, urge) é praticamente nula,
o que provavelmente está ligado ao fato de eles não projetarem um sujeito. Na fala,
os verbos auxiliares se mostram predominantes (99%), seguidos dos adjetivos (1%).
Na escrita, o resultado é parecido, embora o percentual de adjetivos (17%) seja
superior ao índice encontrado para a fala; os verbos auxiliares alcançam 83%. É digno
de destaque o fato de que se encontra apenas uma diferença quantitativa; pode-se
pensar que a mudança atestada na fala já atingiu a escrita. Já em relação à
modalidade epistêmica, há a uma diferença considerável, sobretudo na fala. Nessa,
os verbos plenos aparecem, totalizando 20% dos dados, mas se note que todas as
30
ocorrências se referem a uma “estrutura inovadora” com o verbo “dar” seguido de uma
oração infinitiva regida de preposição, como em:
(19)
então Øexpl não dá [pra ter uma referência, mas, Brasília é uma cidade muito
mais, organizada] (Duarte, 2012a, p.88)
Os verbos auxiliares se mostram novamente os mais recorrentes (70%) e os
predicadores adjetivais são a forma menos utilizada para expressar a categoria (10%).
Na escrita de jornais, os verbos auxiliares continuam aparecendo em maior número
(87%), seguidos dos adjetivos (12%). Os verbos plenos, também restritos a duas
ocorrências de “dar pra”, alcançam apenas (1%). Nota-se, portanto, que para a
expressão da modalidade epistêmica, os verbos auxiliares aparecem em maior
quantidade na escrita, enquanto os adjetivos e verbos plenos têm número
considerável na fala, principalmente, ao serem comparados à modalidade deôntica.
Em relação ao verbo pleno “dar”, que apresenta um expletivo nulo (ou seja, é
uma estrutura impessoal), sua ocorrência poderia contradizer a hipótese da autora.
Entretanto, estruturas com “dar”, com valor de possibilidade permitem o alçamento do
sujeito da oração subordinada, o que pode explicar sua implementação na fala,
substituindo o auxiliar “poder” e o adjetivo “possível”. Na fala popular, Duarte (2007)
encontra numerosos casos de “alçamento” do sujeito da subordinada para a posição
do expletivo nulo, o que a flexão verbal deixa evidente, como se vê em (17):
(20)
[Elesi já não davam mais [pra [ti] viver juntos]]. (Duarte, 2007, p. 43)
(em vez de: [Øexpl Não dava mais [pra eles viverem juntos)
Uma construção com o verbo “ser”, seguido de uma infinitiva, que não foi
atestada na amostra de fala analisada por Duarte (2012a), mas de largo emprego na
fala popular (Amostra PEUL), permite expressar a modalidade deôntica, exibindo
estruturas paralelas às que se veem com “dar”, com o expletivo nulo em variação com
o alçamento do sujeito da subordinada:
(21)
A moça disse [que Øexpl era [pra mim telefonar quinta-feira]]. (Duarte, 2007,
p.43)
31
(22)
[Essa ruai era [pra [ti] ter sido calçada há muito tempo]]. (Duarte, 2007, p.43)
(em vez de: [Øexpl Era [ pra essa rua ter sido caçada há muito tempo)
Diante desses resultados, é possível sugerir que há a preferência no português
do Brasil pelas construções com verbos auxiliares tanto na fala quanto na escrita. Para
a autora, essa inclinação tem relação com uma mudança maior por que passa o
Português Brasileiro, que passa de língua de sujeito nulo “consistente” para língua de
sujeito nulo “parcial”. As construções com predicadores verbais e predicadores
adjetivais, por se tratar de sentenças impessoais, tendem a ser evitadas, sobretudo
na fala. A motivação para o presente estudo vem desta hipótese, assim, minha análise
diacrônica buscará investigar se há mesmo uma tendência a reduzir o uso de
estruturas impessoais para expressar a modalidade epistêmica e não-epistêmica ao
longo do tempo.
32
CAPÍTULO 2:
PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E METODOLOGIA
Introdução
Neste capítulo, apresento o quadro teórico que orienta este estudo: o modelo
de estudo da variação e mudança proposto por Weinreich, Labov e Herzog (2006
[1968]), associado à Teoria de Princípios e Parâmetros. Focalizo três dos cinco
problemas para os quais um estudo da mudança busca respostas: o problema das
restrições, o problema da transição e o problema do encaixamento, além de alguns
conceitos básicos da Teoria de Princípios e Parâmetros (1981) – de modo particular,
o Parâmetro do Sujeito Nulo, que interessa a esta pesquisa – e retomo o tratamento
da modalidade, fenômeno investigado neste trabalho. A associação desses dois
modelos teóricos é bastante relevante para o estudo da mudança que envolve a
remarcação no valor de um parâmetro da Gramática Universal, postulado pela Teoria
Gerativa e os efeitos relacionados a uma determinada mudança, no presente caso, a
mudança em curso na remarcação do valor do Parâmetro do Sujeito Nulo. Em
seguida, serão retomados e refinados os objetivos e hipóteses que conduzem esta
pesquisa. Por último, apresentarei a metodologia adotada, que compreende: (a)
descrição da amostra utilizada, (b) o estabelecimento dos grupos de fatores e (c) os
procedimentos na seleção e codificação dos dados, que serão processados com a
utilização do Programa Goldvarb-X.
2.1 A Teoria da Variação e a Teoria Gerativa
Este trabalho utiliza o modelo de estudo da mudança proposto por Weinreich,
Labov e Herzog (2006 [1968]) no que diz respeito à concepção da variação como
inerente ao sistema e passível de sistematização. Para pôr em prática a aplicação
desse modelo, faz-se necessária uma teoria linguística. Neste estudo, utilizo como
sustentação teórica o tratamento da modalidade dentro da teoria linguística e o
modelo de Princípios e Parâmetros de Chomsky (1981), de onde vem a hipótese
central deste trabalho. Com essa associação, é possível levantar hipóteses sobre a
mudança nas formas de expressão da modalidade e sua relação com a remarcação
do valor do Parâmetro do Sujeito Nulo. Em outras palavras, essa associação permite
33
observar o encaixamento do fenômeno em estudo no sistema linguístico, confirmando
ou não a hipótese de que o quadro revelado para a expressão da modalidade está
atrelado a uma mudança em curso mais ampla por que passa o PB.
2.1.1 O modelo teórico de estudo da mudança adotado - A Sociolinguística
Variacionista
O modelo de estudo da mudança proposto por Weinreich, Labov e Herzog
(2006 [1986]) entende a língua como um sistema heterogêneo e ordenado, rompendo
com a dicotomia sincronia/diacronia, uma vez que sua bandeira é o reconhecimento
de que a língua está sempre em movimento, com mudanças ocorrendo
constantemente em diferentes pontos da estrutura gramatical. Assim, não se pode
pensar que um recorte sincrônico é capaz de nos mostrar um sistema invariável. Pelo
contrário, de acordo com a teoria, a língua está em constante mudança, o que é
inerente ao sistema, e a competição entre formas não é desestruturada, pelo contrário,
é passível de sistematização.
Meu propósito é justamente sistematizar as formas variantes para a expressão
da modalidade epistêmica e não-epistêmica. Para guiar um estudo da mudança os
autores propõem cinco problemas para os quais devemos buscar respostas: o
problema das restrições, o problema da transição, o problema do encaixamento, o
problema da implementação e o problema da avaliação, dentre os quais focalizarei:
a) A restrição (constraints): está ligada aos condicionamentos e restrições
linguísticas e sociais que agem favorecendo ou desfavorecendo uma mudança e
condicionando seu percurso. Esse aspecto tem grande relevância para este trabalho,
já que busco refinar e analisar os contextos em que ocorrem construções com cada
uma das três formas de expressão da modalidade estudadas. Através desse princípio,
poderei verificar se há contextos que inibem ou restringem determinados usos. Este
trabalho se concentra nas restrições estruturais ou linguísticas. O autor, o perfil social,
o gênero e a presumível idade do personagem poderão ser analisados em pesquisa
futura.
b) A transição (transition): com esse princípio, procuro observar quando ocorre a
passagem de uma estrutura para outra. Essa questão é de grande relevância para
34
esta análise, porque busco verificar se há indícios de mudança na linha do tempo real
– um período de dois séculos. Acredito que as estruturas com sujeitos expletivos,
como as construções com predicadores verbais e predicadores adjetivais, cairão em
desuso ao longo do tempo. Será interessante analisar em que momento ocorrerá a
diminuição ou o desaparecimento dessas estruturas. Além disso, objetivo constatar a
coincidência da queda de frequência dessas estruturas e dos sujeitos nulos, levando
em consideração o estudo de Duarte (1993).
c) O encaixamento (embedding): diz respeito à relação entre um fenômeno
específico e outras mudanças que acontecem ou que acontecerão no sistema. Nesta
pesquisa, a noção de encaixamento é essencial, já que acredito que a escolha do
falante por certas formas de expressão da modalidade em detrimento de outras está
atrelada à remarcação do valor do Parâmetro do Sujeito Nulo (PSN), por que passa o
PB, que passa de língua de sujeito nulo para língua de sujeito nulo parcial – com este
termo, os estudos sobre essa mudança se referem ao estágio atual do PB; outros
preferem utilizar “mudança em curso”, como a orientadora deste trabalho. Esse
processo de mudança é observado em Duarte (1993), numa análise da expressão dos
sujeitos referenciais utilizando a mesma amostra que serve de base à amostra aqui
utilizada e revela que os sujeitos de referência definida começam a ser
preferencialmente expressos nas peças escritas nos anos 1930, justamente quando
o paradigma verbal começa a se reduzir em consequência da entrada de novos
pronomes em, nosso sistema (como você e a gente, que se combinam com a forma
não marcada de terceira pessoa do singular, graças à sua origem nominal). Segundo
W,L&H, nenhuma mudança no sistema é acidental – ela é consequência de outras e
sempre leva a outras mudanças.
O problema da implementação – que conjuga a origem e a propagação da
mudança (actuation) – bem como o problema da avaliação (evaluation) – que leva em
conta a percepção do falante de uma forma inovadora ou conservadora e tem grande
importância no progresso ou no refreamento da mudança – fogem ao escopo deste
trabalho.
35
2.1.2 A teoria linguística adotada – o tratamento da modalidade e o modelo de
Princípios e Parâmetros
Neste estudo, investigo a expressão da modalidade dentro de uma perspectiva
paramétrica, levando em conta uma importante mudança que se dá no português do
Brasil, que passa de língua de sujeito nulo para língua de sujeito nulo parcial,
apresentando sujeitos pronominais referenciais preferencialmente expressos.
Torna-se necessário, dessa forma, descrever a teoria linguística adotada, a
Teoria de Princípios e Parâmetros, e a proposta de tratamento da modalidade, dentre
as várias possíveis, que utilizarei.
2.1.2.1 O tratamento da modalidade
Conforme visto no capítulo 1, linguisticamente, modalidade é a categoria que
serve para expressar a atitude do falante, denotando permissão, obrigação,
possibilidade, crenças, entre outros (Neves, 2000; Oliveira, 2003, entre outros). Há
diversas formas de expressá-la. Meu trabalho focalizará os predicadores verbais
(como cumprir e convir), os predicadores adjetivais (como possível, preciso,
necessário, obrigatório) em construções com o verbo ser (como é possível e é
necessário) e os verbos auxiliares modais (como poder, dever e ter de/ ter que).
Embora os advérbios sejam importantes modalizadores, o interesse desta pesquisa
está na posição do sujeito, que os modais mencionados vão permitir observar: os
predicadores verbais e adjetivais, por projetarem sentenças impessoais deverão dar
lugar às construções perifrásticas, que, em geral, projetam um sujeito referencial.
Entre as várias classificações que a categoria recebe, as mais comuns são: a)
deôntica (quando indica obrigação ou permissão) e b) epistêmica (quando está ligada
às crenças e opiniões do falante, indicando possibilidade/probabilidade). No entanto,
ao analisar os dados de expressão da modalidade coletados, percebi que somente
essas duas classificações não dariam conta de abarcar todos os exemplos
encontrados. Por esse motivo, optei por seguir a proposta de classificação da
modalidade de Neves (2006), que propõe dois tipos: epistêmica e não-epistêmica
(que se subdivide em deôntica e dinâmica), o que retoma, de alguma forma, a
classificação pioneira de Palmer (1986). Segundo essa perspectiva, a modalidade
epistêmica está relacionada à crença do falante em relação ao conteúdo da sentença,
36
expressando possibilidade. A modalidade deôntica está ligada ao campo da conduta,
expressando permissão e obrigação, enquanto a modalidade dinâmica diz respeito à
capacidade/vontade do indivíduo em questão em relação ao conteúdo proposicional.
Por esse motivo, a partir desse momento, classificarei a modalidade nas seções e
capítulos seguintes em epistêmica e não-epistêmica, e esta posteriormente será
subdividida em deôntica e dinâmica.
É preciso enfatizar que um mesmo valor modal pode ser expresso por formas
diferentes, enquanto uma mesma forma pode veicular diferentes valores modais. Isso
pode ser visto nos exemplos a seguir:
(1)
Magali: O Arnaldo, o meu filho, tá com vinte anos. Fica doido prá pegar o carro.
Edmundo não deixa. Sobra prá mim, porque sou eu quem tem que esquentar
o carro, toda tarde.
(Como encher um biquíni selvagem, Miguel Falabella, 1992)
(2)
Henrique: Øexpl É preciso que a todo o transe se levante uma barreira entre ti e
o filho da Ilha Grande. Vê se achas um meio, anda, inspira-me.
(O tipo brasileiro, França Júnior, 1872)
(3)
Eduardo, tocando sempre com entusiasmo: Sublime! Sublime! Bravo! Bravo!
Fabiana, batendo com o pé, raivosa: Irra!
Eduardo, deixando de tocar: Acabou-se. Agora Ø2ps pode falar.
(Quem casa, quer casa, Martins Pena, 1845)
(4)
Manfredo: Sabe o que eu pensei?
Dorinha: Que é?
Manfredo: Que seu padrasto bem podia nos dar um automóvel como
presente de núpcias.
(O troféu, Armando Gonzaga, 1933)
Como é possível ver, nos exemplos (1) e (2), o verbo ter (que) e o predicador
adjetival
preciso,
formas
diferentes,
expressam
a
mesma
ideia
de
necessidade/obrigação. Já nos exemplos (3) e (4), notamos que o mesmo verbo
37
auxiliar modal pode veicula valores diferentes, de permissão e possibilidade,
respectivamente.
2.1.2.2 O modelo de Princípios e Parâmetros
De acordo com a Teoria Gerativa, todo indivíduo é dotado de um dispositivo
inato que lhe permite adquirir uma gramática, desde que exposto aos dados primários,
que não são apresentados a ele de maneira ordenada. Graças à faculdade da
linguagem, toda pessoa é capaz de “construir” sua gramática durante a infância. De
acordo com pressupostos gerativistas, o papel da Teoria Gerativa é desenvolver um
modelo teórico que permita descrever e explicar o funcionamento dessa faculdade. O
modelo teórico gerativista utilizado neste estudo é a Teoria de Princípios e
Parâmetros, desenvolvido a partir dos anos 1980. Enquanto os princípios dizem
respeito às propriedades gramaticais válidas para todas as línguas naturais, os
parâmetros são responsáveis pela possibilidade de variação entre as línguas, sempre
marcados de forma binária, [+] positivo e [-] negativo. Foge aos limites deste trabalho
discutir o estágio atual em que se encontram as discussões sobre o Parâmetro do
Sujeito Nulo, mas é importante frisar que hoje se fala em parâmetros, distribuídos em
hierarquias, sempre mantendo a distribuição binária. O PB seria, segundo essas
discussões, um sistema de sujeito nulo parcial, que permite sujeitos referenciais nulos
a depender a posição do antecedente (uma posição acessível sintaticamente (sujeito
ou tópico discursivo) e sujeitos expletivos nulos (cf. ROBERTS e HOLMBERG, 2010)).
Segundo a orientadora deste trabalho, esta é apenas uma etapa no processo de
mudança. O PB apresenta muito mais sujeitos expressos do que nulos nos mesmos
contextos acima citados e exibe uma competição entre expletivos nulos e constituintes
movidos ou inseridos na posição estrutural do sujeito (cf. trabalhos em Duarte
(2012b)).
Um exemplo de princípio que interessa a esta pesquisa é o de que todas as
línguas manifestam uma posição para a representação do sujeito. Um parâmetro da
GU que diz respeito a esse princípio é a possibilidade em algumas línguas de deixar
o sujeito nulo enquanto em outras o sujeito é obrigatoriamente preenchido. Esse
parâmetro é denominado Parâmetro do Sujeito Nulo (PSN). Línguas como o espanhol,
o português europeu e o italiano, que permitem esse tipo de sujeito, exibem uma
marcação positiva [+ pro-drop] em relação a esse parâmetro. Línguas como o inglês
38
e o francês, que apresentam sujeitos obrigatoriamente expressos, possuem uma
marcação negativa para esse mesmo parâmetro [- pro-drop].
Um importante estudo no que diz respeito ao Parâmetro do Sujeito Nulo no
português brasileiro (PB) é o de Duarte (1993), que considerou, para a constituição
de sua amostra, peças de teatro de caráter popular distribuídas ao longo de sete
períodos entre os séculos XIX e XX, organização que também foi utilizada por mim
para a organização da minha amostra, como mostrarei em seção posterior. Através
desse estudo, podemos perceber que o PB apresenta um comportamento diferente
de outras línguas românicas, como o italiano e o português europeu (PE), no que diz
respeito à representação dos sujeitos pronominais de referência definida. Enquanto
nessas línguas, como mencionado anteriormente, há uma preferência pelo
apagamento da posição de sujeito para a representação dos sujeitos de referência
definida, a autora mostrou que no PB há um aumento progressivo no preenchimento
dessa posição ao longo dos períodos contemplados.
Essa análise indica que o PB está passando por um processo de mudança no
valor da marcação do PSN (uma mudança paramétrica) – de uma língua
positivamente marcada em relação ao parâmetro do sujeito nulo [+pro-drop] para uma
língua marcada negativamente em relação ao mesmo parâmetro. [-pro-drop]. Umas
das principais motivações para que essa mudança acontecesse foi, segundo a autora,
a redução no paradigma flexional do verbo – uma redução causada principalmente
pela entrada de você e a gente no quadro pronominal, que se combinam com a forma
não marcada de 3ª. pessoa, dada a sua origem nominal. Além disso, observamos uma
queda de desinência canônica <-s> na forma que se combina com o pronome tu, sem
considerar eventuais perdas de marcas de concordância na segunda e terceira
pessoas do plural. De acordo com a autora, esses dois fenômenos – redução no
paradigma flexional e sujeito expresso - têm estreita relação. Isso se justifica pelo fato
de que, entre as línguas românicas, a principal característica de uma língua marcada
positivamente para o parâmetro do sujeito nulo é a possibilidade de recuperação do
sujeito através das flexões verbais, como se vê no italiano, espanhol e português
peninsulares ou da sua indexação com o tópico, mesmo que não haja flexão na
morfologia verbal, como é o caso do chinês (HUANG, 1984). Dessa forma, se há uma
redução no número de oposições no paradigma flexional, é natural que se identifique
o sujeito de outra forma, seja através da presença de um antecedente sintaticamente
acessível, seja através de seu preenchimento.
39
Assim, fica evidente a importância de um estudo empírico como esse para esta
dissertação, já que analisamos a expressão da modalidade dentro de uma perspectiva
paramétrica, ou seja, que investiga a preferência de algumas formas em detrimento
de outras, relacionada a essa mudança mais ampla que se dá no PB, que passa de
língua de sujeito nulo para língua de sujeito nulo parcial. É interessante notar como as
mudanças no sistema estão encaixadas. Uma mudança como a redução do
paradigma flexional trouxe como efeito o preenchimento da posição de sujeito, que,
por sua vez, como busca confirmar esta dissertação, trouxe como consequência a
escolha por verbos auxiliares para a expressão da modalidade epistêmica e nãoepistêmica. Outras evidências do encaixamento da mudança podem ser vistas na
preferência por sujeitos indeterminados expressos, alçamento de constituintes para a
posição do sujeito expletivo em construções com verbos de alçamento, a substituição
de haver existencial por ter, que permite sentenças pessoais (cf. os trabalhos
diacrônicos em Duarte, 2012a)
Graças aos trabalhos empíricos, realizados em diferentes países e continentes,
ficou clara a complexidade da própria formulação dos parâmetros. Daí, não se falar
hoje apenas em línguas [+] ou [-] sujeito nulo.
2.2 Objetivos e hipóteses
O objetivo geral deste estudo é analisar como se comportam as formas de
expressão da modalidade epistêmica e não-epistêmica, por meio de predicadores
verbais, adjetivais e verbos auxiliares, ao longo do tempo no PB.
As minhas hipóteses são:
a) quanto às formas de expressar a modalidade, acredito que os verbos
auxiliares serão predominantes em todas as sincronias, por projetarem uma posição
de sujeito referencial, seja ele nulo ou expresso, e também por se tratar de uma
tentativa de aproximação da língua oral, mas que aumentarão ao longo do tempo;
b) levando em conta os índices encontrados para a fala contemporânea em
Duarte (2012a) (cf. seção XX), é possível que os predicadores adjetivais alcancem
índices razoáveis, ainda que seu uso diminua ao longo do tempo;
c) em relação ao uso de predicadores verbais mais tradicionais, como convir,
urgir e cumprir, acredito que podem surgir nas peças mais antigas, mas de forma
bastante restrita, e que tendam a desaparecer nas mais recentes. O uso reduzido
40
desses predicadores verbais, mesmo em peças mais antigas, indica que esse tipo de
estrutura já não devia fazer parte da fala mais espontânea, que as peças que
compõem minha amostra procuram representar, que é justamente objeto do meu
interesse. A insistência dos gramáticos tradicionais em prescrever esse tipo de
estrutura é um indicativo de que ela talvez aparecesse nos gêneros mais formais,
como cartas oficiais, editoriais, entre outros. No entanto, com base em Duarte (2012a),
espero encontrar em peças mais recentes as estruturas inovadoras com os verbos ser
e dar seguidos de uma oração infinitiva regida de preposição, para expressar a
modalidade epistêmica e a não-epistêmica, respectivamente. Lembremos que esses
verbos permitem o alçamento do sujeito da subordinada para evitar um expletivo nulo;
d) considerando as construções com verbos auxiliares que possuem sujeitos
pronominais referenciais, espero que haja um aumento na ocorrência de sujeitos
expressos nas peças mais recentes, tal como mostrou Duarte (1993) em seu estudo
a respeito do tema.
2.3 Procedimentos Metodológicos
Nesta seção, descrevo a amostra e apresento os grupos de fatores e o
programa estatístico de análise de dados utilizado. Os procedimentos metodológicos
seguem uma perspectiva diacrônica, ou seja, de um estudo de mudança em tempo
real de longa duração. Assim, considero os processos de mudança que ocorrem ao
longo do tempo, neste caso, ao longo dos séculos XIX e XX. Busco analisar o percurso
das formas para expressão da modalidade epistêmica e não-epistêmica contempladas
nesta pesquisa: predicadores verbais, predicadores adjetivais e verbos auxiliares.
A metodologia variacionista, de base quantitativa, consiste no levantamento de
dados, codificados segundo os fatores linguísticos levantados a partir do quadro
teórico que foi descrito em 2.1. Naturalmente, não é possível elencar fatores
estruturais sem um quadro teórico de onde venham as descrições relevantes à
pesquisa e muito menos interpretar o percurso da mudança sem a perspectiva ali
descrita. Os dados foram coletados, através de cuidadosa leitura das peças,
codificados segundo os grupos a serem apresentados em 2.3.2, e ao programa
Goldvarb-X, que permite o tratamento estatístico dos dados.
41
2.3.1 A amostra
A amostra utilizada neste trabalho é composta por 16 peças teatrais de cunho
popular escritas no Rio de Janeiro e distribuídas em sete períodos ao longo dos
séculos XIX e XX, tendo como base a amostra de Duarte (1993). Ao contrário dessa
pesquisa, que utilizou uma peça por período de tempo, tivemos de usar duas peças
para obter um número razoável de dados; para os dois primeiros períodos, como se
verá no quadro 1, a seguir, foram usadas três peças, para obter uma amostra
equilibrada.
As peças analisadas são do gênero comédias de costumes (as mais antigas)
ou comédias dramáticas (as mais recentes), que se caracterizam pela representação
de tipos e situações de época, com uma sátira social. Através desses textos, é
possível fazer uma análise dos comportamentos humanos e dos costumes em um
determinado contexto social. Apesar de saber que esses textos não representam
fielmente a fala de um determinado período, creio que eles se aproximam bastante da
linguagem oral presente em cada contexto social. Dessa forma, acredito que as
características linguísticas presentes nessas peças podem ser tomadas como
tendências de uso de uma dada época. (A esse propósito, os resultados de Duarte
(1993) para a peça escrita em 1992 são muito próximos dos resultados para a fala
culta espontânea obtidos pela autora em sua tese de 1995.) A seguir, apresento o
quadro com todas as peças analisadas neste trabalho, suas datas de publicação e
autoria:
42
Período
1845-1846
Período I
1872-1883
Período II
Peças
O noviço (1845)
Quem casa, quer casa (1845)
O tipo brasileiro (1872)
Como se fazia um deputado (1882)
França Júnior
Caiu o ministério (1883)
O simpático Jeremias (1918)
Período III
Onde canta o sabiá (1920)
1933-1937
O troféu (1933)
Período IV
O hóspede do quarto nº 2 (1937)
1955
Um elefante no caos (1955)
Período V
Pigmaleoa (1955)
Período VI
Martins Pena
O Judas em sábado de aleluia (1846)
1918-1920
1975-1986
Autor
A mulher integral (1975)
Confidências de um espermatozoide
careca (1986)
1992
No coração do Brasil (1992)
Período VII
Como encher um biquíni selvagem (1992)
Gastão Tojeiro
Armando Gonzaga
Millôr Fernandes
Carlos Eduardo
Novaes
Miguel Falabella
Quadro 1: Relação das peças teatrais (PB) e sua distribuição em períodos de tempo
Através do quadro, é possível constatar que a periodização das peças não é a
mesma nos séculos XIX e XX. O primeiro inclui apenas dois períodos, o que se deve
ao fato de dois grandes autores do século, Martins Pena e França Júnior, terem
produzido a partir dos anos 1830, o primeiro, e a partir dos anos 1870, o segundo. O
século XX, por contar com um maior número de autores do gênero, possibilita uma
maior periodização. Enquanto os dois primeiros períodos representam a primeira e
segunda metade do século XIX, os demais representam o primeiro quartel do século
XX, anos 1920, seguindo-se os anos 1930, 1950, 1970 e 1990, respectivamente.
43
Considerando as hipóteses levantadas, os objetivos desta pesquisa e os
estudos anteriormente citados, na próxima seção, apresentarei os grupos de fatores
estipulados para a análise das formas de expressão da modalidade epistêmica e nãoepistêmica. Tais grupos são de ordem linguística e extralinguística.
2.3.2 O envelope da variação
Para definir os grupos de fatores estruturais levantados nesta pesquisa, foram
levados em consideração fatores considerados por Duarte (1993), Duarte (2012b) e
outros relacionados ao tema da pesquisa. Minha análise contempla separadamente
cada tipo de modalidade – epistêmica e não-epistêmica. Entretanto, os grupos de
fatores são os mesmos.
2.3.2.1 A variável sociolinguística
A variável dependente é constituída pelo tipo de estrutura utilizada para a
expressão da modalidade, ou seja, uma das três formas consideradas neste trabalho:
predicadores verbais, predicadores adjetivais e verbos auxiliares. Essa variável foi
examinada em relação aos demais grupos de fatores. Para cada tipo de modalidade,
é possível verificar as três formas contempladas neste estudo, como podemos ver nos
exemplos de modalidade epistêmica e não–epistêmica (nesse caso, todos
expressando modalidade deôntica), respectivamente, em (5) e (6):
(5)
a. Predicador verbal
Carlos: Øexpl Não convém [mexer mais nessa história]. Já está tudo explicado.
(O hóspede do quarto nº 2, Armando Gonzaga, 1937)
b. Predicador adjetival
Fabiana: Olha, minha filha, e não tornes a culpa a mim. Øexpl É impossível
[haver em uma casa mais de uma senhora]. Havendo, é tudo confusão...
(Quem casa, quer casa, Martins Pena, 1845)
44
c. Verbo auxiliar
Paulo: Que obsessão! É claro que vou trabalhar. Mas que emprego eu posso
arranjar? Auxiliar de escritório?
(A mulher integral, Carlos Eduardo Novaes, 1975)
(6)
a. Predicador verbal
Øexpl Cumpre [que não faltes a essa reunião.]
(Adaptado de RL p.265)
b. Predicador adjetival
Teodoro: Øexpl Não é necessário [escrever], eu ouvi tudo.
(O tipo brasileiro, França Júnior, 1872)
c. Verbo auxiliar
Jeremias: Como elas se atropelam! Ø1psTenho que organizar um horário para
cada uma.
(O simpático Jeremias, Gastão Tojeiro, 1918)
2.3.2.2 Os grupos de fatores
Foram estipulados dez grupos de fatores para dados de expressão da
modalidade não-epistêmica e da modalidade epistêmica, que, conforme mencionado
anteriormente, serão analisados separadamente. São eles:
● Tipo de predicador verbal
Esse grupo reúne todos os verbos predicadores pesquisados. Ele é importante
para controlar que formas de expressão da modalidade epistêmica e não-epistêmica
através de predicadores verbais são mais utilizadas e como é o seu comportamento
ao longo do tempo. De acordo com as minhas hipóteses, esse tipo de construção não
será muito frequente, por não projetar posição de sujeito referencial. Alguns dos
verbos desse grupo são: convir, urgir, constar, bastar, dar pra e ser pra, entre outros,
como podemos verificar nos exemplos a seguir:
45
(7)
Inácia: Afinal, vocês resolvem-se ou não a ir à casa do dr. Amarante?
Justino: Que pressa, filha! Deixa primeiro o Ernani chegar.
Fabrino: Eu vou por ir, porque minha presença não adianta nada. Øexpl Bastava
[que fossem o Ernani e sêo Justino]. → modalidade epistêmica
(Onde canta o sabiá, Gastão Tojeiro, 1920)
(8)
Ismênia: Faz o que quiser, menina. Você aqui é livre. Vou pedir ao Evandro
para lhe acompanhar, tá? Ainda Øexpl dá [pra aproveitar a tarde]. Pede a ele
pra te levar ao Arpoador. → modalidade epistêmica
(Pigmaleoa, Millôr Fernandes, 1955)
(9)
Cristina: Que humilhação, que vergonha... vá, vá seu crápula, e não me
apareça mais aqui, vá logo, aproveite e lhe entregue esses livros e diga a ela
que Øexpl é [pra enfiar... ela sabe onde]. → modalidade deôntica
(A mulher integral, Carlos Eduardo Novaes, 1975)
● Tipo de predicador adjetival
O grupo em questão reúne todos os predicadores adjetivais pesquisados.
Através dele, posso monitorar quais as formas de expressão da modalidade através
de predicadores adjetivais são mais utilizadas e como é o seu comportamento ao
longo do tempo. Segundo minhas hipóteses, esse tipo de construção também não
será muito frequente, ainda que seja mais expressiva, sobretudo nas peças mais
antigas, do que as construções com verbos predicadores, Espero uma maior
variedade de adjetivos em sincronias mais remotas. Alguns dos adjetivos desse grupo
são: possível, necessário, importante, preciso, certo, entre outros, como é possível
ver em:
(10)
Ambrósio: Teu filho também vai a crescer todos os dias e Øexpl será preciso
[por fim dar-lhe a sua legítima]... → modalidade deôntica
(O noviço, Martins Pena, 1845)
(11)
Teodoro: Øexpl É impossível [que eu não esteja sonhando].
→ modalidade epistêmica (Como se fazia um deputado, França Júnior, 1882)
46
(12)
Félix: Mas isso não é decente. Øexpl É necessário [arranjar um pretexto
plausível, uma maneira digna]... → modalidade deôntica
(O simpático Jeremias, Gastão Tojeiro, 1918)
● Tipo de verbo auxiliar
Esse grupo reúne todos os verbos auxiliares pesquisados. Assim como os
anteriores, ele é relevante para verificar quais as formas de expressão da modalidade
epistêmica e não-epistêmica através de verbos auxiliares são mais utilizadas e como
é o seu comportamento ao longo do tempo. Alguns dos verbos desse grupo são:
poder, dever, ter que/ter de, entre outros, como em:
(13)
Eu acho que a Neiva devia jogar água fervendo no ouvido dele e depois fugia.
→ modalidade deôntica (No coração do Brasil, Miguel Falabella, 1992)
(14)
É o que resta como? Eu tenho que dar satisfação desse dinheiro. Você tem
de prestar contas a mim. → modalidade deôntica
(Um elefante no caos, Millôr Fernandes, 1955)
(15)
Maricota: O que espero? Não tens ouvido dizer que as primeiras paixões são
eternas? Pois bem, este menino pode ir para S. Paulo, voltar de lá formado e
arranjar eu alguma coisa no caso de estar ainda solteira.
→ modalidade epistêmica (O Judas em sábado de aleluia, Martins Pena, 1846)
● Referência e forma do sujeito
Esse grupo investiga a referência e a forma do sujeito e é extremamente
importante para este trabalho. Isso se explica porque uma de minhas hipóteses é que
as formas de expressão da modalidade que projetam um sujeito expletivo nulo, como
os predicadores verbais e os predicadores adjetivais, serão muito menos frequentes
do que as construções com verbos auxiliares, que usualmente projetam um sujeito
referencial. Analiso as duas formas de expressão do sujeito no PB: nulo ou
preenchido. Considerando os estudos de Duarte (1993) e de Cyrino, Duarte e Kato
(2000), acredito que, ao longo do tempo, as construções com verbos auxiliares, que,
47
na sua maioria, pressupõem um sujeito referencial, mostrarão a mudança por que
passa o PB. Dessa forma, creio que as peças mais antigas terão um maior número de
dados de sujeito nulo, em oposição às peças mais recentes, que terão um maior
número de dados de sujeito preenchido. Em relação à referencialidade, esse grupo
reúne sujeitos expletivos (sem referência), sujeitos de referência arbitrária e sujeitos
de referência definida:
a. Sujeito Expletivo
Segundo Duarte (2012a), devido à mudança em curso na marcação
paramétrica por que passa o português, esse tipo de sujeito, típico de sentenças
impessoais, que, no fenômeno aqui estudado, normalmente ocorre em construções
com predicadores verbais ou adjetivais, mas que também pode ocorrer nos casos de
locuções verbais com o verbo principal impessoal (pode chover amanhã; deve haver
greve), tende a ser evitado no português, por isso, acredito que será o menos
frequente. De acordo com a hierarquia referencial de Cyrino, Duarte e Kato (2000), os
expletivos estão no ponto extremo da não-referencialidade. Quanto à forma, são
sempre nulos, mas há como evitar a posição vazia através do alçamento de
constituinte de dentro da oração, como veremos mais à frente. Podemos visualizar
alguns exemplos de construções com sujeito expletivo em:
(16)
Julia: Øexpl É necessário também [que a senhora preencha um formulário
respondendo sobre a sua vida sexual]. → modalidade deôntica
(A mulher integral, Carlos Eduardo Novaes, 1975)
(17)
Laura: Era isso mesmo o que eu queria. Øexpl Não te convém [ficar aqui].
Vamos. → modalidade epistêmica
(O simpático Jeremias, Gastão Tojeiro, 1918)
b. Sujeito de Referência Arbitrária
As construções com verbos auxiliares podem ter sujeitos referenciais
definidos ou arbitrários. Através desse grupo, é possível analisar qual a frequência da
indeterminação do sujeito nas peças e sua forma preferencial – se nula, se expressa,
48
no decorrer dos períodos. Exemplos de sujeito de referência arbitrária nulo e expresso
podem ser vistos, respectivamente em (18) e (19):
(18)
øarb Tinha que estudar fonética com um médico ao lado.
→ modalidade deôntica
(Confidências de um espermatozoide careca, Carlos Eduardo Novaes, 1986)
(19)
Ismênia: Neste mundo não há felicidade. Portanto a gente tem que ser feliz
assim mesmo. → modalidade deôntica (Pigmaleoa, Millôr Fernandes, 1955)
c. Sujeito de Referência Definida
Através desse grupo, posso analisar qual a frequência do sujeito de referência
definida nas peças no decorrer dos períodos e sua forma preferencial – se nula, se
expressa. Com base em Cyrino, Duarte e Kato (2000), que afirmam que a
referencialidade do sujeito se mostra altamente significativa para processos de
mudanças e de sua proposta de que itens [+referenciais] favorecem o preenchimento,
acredito que esse tipo de sujeito, além de ser o mais frequente no tipo de amostra
analisada, exibirá mais preenchimento ao longo do tempo. É possível ver alguns
exemplos de sujeitos de referência definida nulo e expresso, respectivamente em:
(20)
Chiquinha – Casa-te com ele.
Maricota – E por que não, se ele quiser? Os oficiais dos Permanentes têm bom
soldo. Ø2ps Podes te rir. → modalidade deôntica
(O judas em sábado de aleluia, Martins Pena, 1846)
(21)
Menelau: A cousa, como já lhe disse, deve andar prestes a arrebentar. Mas
como ainda talvez seja possível desviar o curso dos acontecimentos, seria
conveniente nada revelar até o momento decisivo. → modalidade epistêmica
(O troféu, Armando Gonzaga, 1933)
49
● Tipo de estrutura com sujeitos expletivos
Esse grupo analisa as construções em que o sujeito expletivo aparece, que
podem ou não ter alçamento de constituinte. Espero que haja um número pequeno de
estruturas com alçamento de constituinte, por se tratar de fenômeno mais recente (cf.
Henriques, 2012), mas acreditamos que podem ocorrer, sobretudo nas peças mais
recentes, pela tendência ao preenchimento da função de sujeito no PB. Exemplos de
construções sem alçamento e com alçamento podem ser vistos, respectivamente, em
(22) e (23):
(22)
Ismênia: Ainda Øexp dá pra [aproveitar a tarde]. Pede a ele pra te levar ao
Arpoador. É um pouco longe, mas você vai adorar. → modalidade epistêmica
(Pigmaleoa, Millôr Fernandes, 1955)
(23)
Issoi é possível [perceber [ti] até na prática]. → modalidade epistêmica
(em vez de: Øexp É possível [perceber isso até na prática]. - alçamento do
complemento da encaixada).
(Confidências de um espermatozoide careca, Carlos Eduardo Novaes, 1986)
● Tipo de sujeito de referência arbitrária
Considero as seguintes estratégias de indeterminação do sujeito de referência
arbitrária: se, a gente, nós, você, eles e zero. A forma de indeterminação zero diz
respeito às construções com verbo na terceira pessoa do singular sem qualquer
pronome vinculado ao verbo. Com base nos estudos de Duarte (1993) e de Vargas
(2010; 2012), espero que as estratégias de indeterminação com a terceira pessoa do
plural e o pronome se indefinido sejam mais recorrentes nas peças mais antigas, tal
como descrevem as gramáticas tradicionais, e que as outras estratégias de
indeterminação, sobretudo você e a gente sejam as mais produtivas em peças mais
recentes. Alguns exemplos dos diversos tipos de realização da indeterminação do
sujeito podem ser vistos a seguir:
50
(24)
Paulo: Mamãe, tudo se faz. Não ø1pp podemos ficar muito presos a uma moral
só. Temos de experimentar várias. Pragmatismo, mãezinha.
→ modalidade deôntica
(Um elefante no caos, Millôr Fernandes, 1955)
(25)
Dona Irene: Mas tem que ter! Meu pai sempre me dizia que a paciência é uma
das maiores virtudes do homem. A gente tem que aprender a esperar pelo
futuro. → modalidade deôntica
(No coração do Brasil, Miguel Falabella, 1992)
(26)
Melanie: Tem uma outra técnica, que é muito usada, hoje em dia. O segredo é
não se importar. Se você não se importar, você acaba dormindo. Mas você
precisa não se importar de verdade. → modalidade deôntica
(Como encher um biquíni selvagem, Miguel Falabella, 1992)
● Tipo de sujeito de referência definida
Com esse grupo, é possível controlar quais os tipos de realização do sujeito de
referência definida são mais utilizados e como é o seu comportamento ao longo do
tempo. Considerei os seguintes tipos de sujeitos de referência definida: sujeito de 1ª
pessoa singular, sujeito de 1ª pessoa plural, sujeito de 2ª pessoa singular, sujeito de
2ª pessoa plural, sujeito de 3ª pessoa singular (pronome), sujeito de 3ª pessoa singular
(SN), sujeito de 3ª pessoa plural (pronome) e sujeito de 3ª pessoa plural (SN), como
podemos observar em (27) – (29) abaixo:
(27)
Gabriel: Não posso mais ficar aqui a tarde toda, não. Tirei quatro notas
vermelhas. Ø1ps Preciso dar um jeito na minha vida. → modalidade deôntica
(No coração do Brasil, Miguel Falabella, 1992)
(28)
Filipe: E essas dificuldades devem ter sido bem grandes; porque há quinze
dias que o ministério está organizado, e ainda não se pôde achar um ministro
para a Marinha. → modalidade epistêmica
(Caiu o ministério, França Júnior, 1882)
51
(29)
Ventura: É essa a minha intenção. Mas nem tudo que a gente deseja pode ser
alcançado. → modalidade epistêmica
(O hóspede do quarto nº 2, Armando Gonzaga, 1937)
● Tipo sintático de oração
Esse grupo leva em consideração os três tipos de contexto em que é possível
encontrar o sujeito de uma construção com verbo auxiliar: inicial, que diz respeito às
orações matrizes ou às primeiras orações coordenadas, encaixado, que se refere às
orações subordinadas, e coordenado, que se refere às segundas ou terceiras orações
coordenadas. Relacionarei a forma de expressão do sujeito (nulo ou expresso) com o
tipo de contexto em que se encontra, pois acredito que as orações subordinadas com
um sujeito correferente na matriz e as segundas ou terceiras orações coordenadas
propiciam sujeito nulo. Alguns exemplos desses diferentes contextos podem ser vistos
em:
(30)
Júlia: Sobre mim, titia?... Que é que eu posso contar? Em Vitiligo não acontece
nada, nunca. Os dias são brancos e as noites são pretas... É tudo.
→ modalidade epistêmica (Pigmaleoa, Millôr Fernandes, 1955)
(31)
Lise: Por exemplo, eu vi uma senhora entrando hoje, não sei onde ela está
sentada, mas para mim, ela se chama Magali Santoro. Elai é gordinha e Ø3ps
deve ter uns cinquenta anos. → modalidade epistêmica
(Como encher um biquíni selvagem, Miguel Falabella, 1992)
(32)
Elei estava tirando as camisas do armário quando Øi foi avisado que Ø3ps
deveria se apresentar a base para viajar ao Japão. → modalidade deôntica
(Confidências de um espermatozoide careca, Carlos Eduardo Novaes, 1986)
Enquanto o exemplo (30) ilustra um caso de contexto inicial, por se tratar de
oração matriz, na qual, em peças mais recentes, há uma tendência ao preenchimento
do sujeito, os exemplos (31) e (32) ilustram casos de segunda coordenada e
subordinada com correferente na matriz, respectivamente, que propiciam um
apagamento do sujeito.
52
● Período de Tempo
Por se tratar de uma análise diacrônica, esse grupo de fatores é o que orientará
a apresentação dos resultados. As peças foram distribuídas em sete períodos de
tempo conforme já foi mencionado anteriormente (cf. seção 2.3.1). Estipulei esse
grupo para averiguar as hipóteses que norteiam essa pesquisa, como: a) em peças
mais antigas poderá haver casos de sujeito expletivo nulo em construções com
predicadores verbais, como convir e bastar e predicadores adjetivais, como possível
e necessário, que tendem a desaparecer em peças mais recentes; deverá haver ainda
mais sujeitos pronominais referenciais nulos; b) com o passar do tempo, deverá
ocorrer a diminuição de expletivos e aumento de sujeitos referenciais expressos.
53
CAPÍTULO 3:
ANÁLISE DE RESULTADOS
Neste capítulo apresento e interpreto os resultados obtidos na análise dos
dados coletados em peças teatrais cariocas distribuídas em sete períodos ao longo
do tempo. Os resultados foram investigados levando em consideração a Teoria de
Princípios e Parâmetros (CHOMSKY, 1981) associada ao modelo de estudo da
mudança linguística proposto por Weireinch, Labov e Herzog (2006 [1968]),
principalmente no que diz respeito aos problemas ou questões que devem ser
respondidos pelos que estudam a mudança, relativos ao “encaixamento”, às
“restrições” e à “transição”. Primeiramente, apresentarei a distribuição geral dos
resultados para a expressão da modalidade através das três formas aqui
consideradas. Posteriormente, apresentarei o quadro de expressão da modalidade
epistêmica e o quadro de expressão da modalidade não-epistêmica, que contempla
dois tipos: a) deôntica; b) dinâmica.
3.1. Distribuição geral das estratégias
No total, foram computadas 1311 ocorrências das estruturas analisadas neste
trabalho para a expressão da modalidade. Como já foi referido no capítulo 2, a amostra
desta pesquisa se assemelha à utilizada por Duarte (1993), com o acréscimo de uma
peça por período, com exceção dos dois primeiros períodos, que tiveram o acréscimo
de duas peças cada, o que foi motivado pela baixa frequência de dados em
comparação com os outros períodos. Busquei equilibrar o número de dados de cada
período para que fosse possível uma análise estatística com razoável grau de
confiabilidade dos resultados. A distribuição dos dados segundo o tipo de modalidade
pode ser vista na tabela abaixo:
Tabela 1. Distribuição dos dados levantados segundo o tipo de modalidade
Modalidade
Predicador
verbal
Predicador
adjetival
Verbo
auxiliar
Total
Epistêmica
40 (8,5%)
34 (7%)
398 (84,5%)
472 (100%)
Não-epistêmica
6 (0,7%)
96 (11,5%)
737 (87,8%)
839 (100%)
54
Observando a tabela 1, pode-se ver, de início, que o verbo auxiliar é de longe
a estratégia preferida para veicular ambos os tipos de modalidade. A análise
diacrônica permitirá observar como se dá essa distribuição ao longo do tempo.
3.2 A análise da modalidade epistêmica
Das 1311 ocorrências encontradas, 472 expressam modalidade epistêmica,
indicando possibilidade/probabilidade. Esse número de dados consideravelmente
menor do que os que expressam modalidade não-epistêmica já era esperado, pois há
mais possibilidades na língua de verbos auxiliares que expressam a modalidade nãoepistêmica do que de verbos auxiliares que expressam modalidade epistêmica, como
veremos na próxima seção.
3.2.1 As formas de expressão da modalidade epistêmica
Os exemplos a seguir ilustram, respectivamente, diferentes estratégias de
expressão da modalidade, predicadores verbais (1a,b), predicadores adjetivais (2a,b)
e verbos auxiliares (3a,b):
(1)
a. Doroteia: Com o Ventura não há exagero nenhum. Øexpl Basta [dizer que o
menos que ele faz é não pagar as pensões onde ele se hospeda]. Só isso define
um caráter. (O hóspede do quarto nº 2, Armando Gonzaga, 1937)
b. Laura: Era isso mesmo o que eu queria. Øexpl Não te convém [ficar aqui]
Vamos. (O simpático Jeremias, Gastão Tojeiro, 1918)
(2)
a. Inácia: Øexpl Será possível [que você não encontra outra coisa mais útil a
fazer]? (Onde canta o sabiá, Gastão Tojeiro, 1920)
b. Paula: Eu acho que Øexpl seria interessante você se aprofundar mais na
relação com a Magda. (Como encher um biquíni selvagem, Miguel Falabella,
1992)
55
(3)
a. Ambrósio: No mundo a fortuna é para quem sabe adquiri-la. Pintam-na
cega... Que simplicidade! Cego é aquele que não tem inteligência para vê-la e
a alcançar. Todo homem pode ser rico, se atinar com o verdadeiro caminho da
fortuna. (O noviço, Martins Pena, 1845)
b. Henrique — Não te assustes, sou eu. Teu pai não está em casa?
Henriqueta — Saiu, mas Ø3ps não deve tardar. O que vieste aqui fazer?
(O tipo brasileiro, França Júnior, 1872)
A Tabela 2 mostra a distribuição desses três tipos de estruturas ao longo do
tempo. Esta é a variável sociolinguística que orienta a pesquisa, já que busco
confirmar a hipótese de que os verbos auxiliares serão predominantes para a
expressão da modalidade, seguidos dos predicadores adjetivais e dos predicadores
verbais.
Tabela 2: Formas de expressão da modalidade epistêmica ao longo do tempo
Período
Período I
1845-1846
Período II
1872-1883
Período III
1918-1920
Período IV
1933-1937
Período V
1955
Período VI
1975-1986
Período VII
1992
Predicador
verbal
Predicador
adjetival
Verbo
auxiliar
Total
8 (14%)
4 (7%)
46 (79%)
58 (100%)
1 (2%)
4 ( 6%)
63 (92%)
68 (100%)
7 (9%)
8 (10%)
63 (81%)
78 (100%)
4 (6%)
9 (13%)
55 (81%)
68 (100%)
3 (7%)
2 (5%)
37 (88%)
42(100%)
4 (6%)
3 (4%)
65 (90%)
72 (100%)
13 (15%)
4 (5%)
69 (80%)
86 (100%)
Dentre os 472 dados que veiculam a modalidade epistêmica, 398 dados são
expressos por verbos auxiliares, o que corresponde a 85%. Essa profusão de
auxiliares para a expressão da modalidade epistêmica bem como a preferência pelos
verbos dever e poder para veicular a noção de possibilidade, inclusive nas últimas
sincronias, tal como constatou Rigoni (1995), já eram esperadas. Observando a
56
distribuição pelos períodos, vemos que esta é bastante regular, com o predomínio
constante dos auxiliares e pequena oscilação entre o uso de predicadores verbais e
adjetivais. O Gráfico 1, a seguir, permite visualizar os resultados percentuais da
Tabela 2 na linha do tempo:
100%
80%
92%
81%
79%
81%
88%
90%
80%
60%
40%
20%
0%
14%
10%
6%
7%
I
II
2%
9%
III
pred. verbal
13%
6%
IV
pred. adjetival
7%
6%
5%
V
VI
15%
4%
5%
VII
auxiliar
Gráfico 1. A trajetória das estratégias para a expressão
da modalidade epistêmica ao longo do tempo
Conforme é possível observar, de acordo com o esperado, as frequências de
uso dos verbos auxiliares são bastante altas em todos os períodos, alcançando
índices acima de 79% dos dados. Segundo minhas hipóteses, o uso predominante
dessa estratégia se justifica pelo fato de esse tipo de estrutura poder projetar uma
posição de sujeito referencial, seja ele nulo ou expresso, enquanto as outras duas
estruturas projetam uma posição de sujeito não-referencial. Como já mencionado em
capítulo anterior, a preferência por sujeitos referenciais no PB está ligada a uma
mudança maior por que passa a nossa língua, a mudança na marcação do valor do
Parâmetro do Sujeito Nulo (PSN). Dessa forma, vemos que uma mudança
desencadeou outra, que interfere na escolha dos falantes por determinada estrutura
para expressão da modalidade em detrimento de outras. Não se pode negar, contudo,
que a preferência pelos auxiliares é anterior ao período em que se observa uma
mudança na marcação do valor do PSN.
Entretanto, nos períodos iniciais, podemos notar a presença de predicadores
adjetivais, que variam entre 6% e 13% nos períodos I, II, III e IV. A partir do período
V, o uso, que já é restrito, dessa estratégia para a expressão da modalidade fica ainda
menor, alcançando apenas 4% no período VI e 5% nos períodos V e VII. Já em relação
57
aos predicadores verbais, também como o esperado, é possível perceber uma
diminuição do seu já restrito uso, que alcança índices entre 14% no período I, 7% no
período V e 6% nos períodos IV e VI. No período VII, notamos um aumento no uso
dessa estrutura, mas, como veremos em sub-seção posterior, todos os dados
encontrados, na verdade, tratam de uma estrutura inovadora e não dos predicadores
verbais tradicionais, como convir e bastar.
3.2.2 Tipos de predicador verbal
Com a análise desse grupo, é possível verificar quais os predicadores verbais
mais utilizados para expressar a modalidade epistêmica e como é o seu
comportamento ao longo do tempo. Dos 40 dados de expressão da modalidade
epistêmica através de verbos predicadores, 13 foram expressos pelo verbo convir, 7
pelo verbo bastar, 1 pelo verbo constar, e 19 pela estrutura inovadora, que consiste
no uso do verbo “dar” seguido de uma oração reduzida de infinitivo regida de
preposição, aqui referida como “dar pra”. Vejamos exemplos das formas
conservadoras em (4) e da forma inovadora em (5):
(4)
a. Ismênia: Øexpl Convém [não exagerar]. Quando você chegar aos
trinta, verá que ainda é cedo.
(Um elefante no caos, Millôr Fernandes, 1955)
b. Carlos: Tia, Øexpl basta [que saiba que era uma comédia]. E antes de
principiar o ensaio o tio deu-me a sua palavra que eu não seria frade. Não é
verdade, tio? (O noviço, Martins Pena, 1845)
c. Basílio: Passarinho lá na estação? Øexpl Não me consta [Ø].
(Onde canta o sabiá, Gastão Tojeiro, 1920)
(5)
a. Cristina: Você não acha que estou mais cheinha, que engordei um
pouquinho, fiquei como você gosta?
Armando: Não sei... Øexpl Não dá [pra perceber].
(A mulher integral, Carlos Eduardo Novaes, 1975)
58
b. Dolores: Se eu correr, Øexpl dá [pr’eu fazer os dois papéis]. Mas aí, Madalena
não ia poder acompanhar a procissão.
(No coração do Brasil, Miguel Falabella, 1992)
O percurso dessas diferentes formas dos predicadores verbais ao longo do
tempo pode ser visto na tabela abaixo:
Tabela 3: Tipos de predicadores verbais para a expressão
da modalidade epistêmica ao longo do tempo
Período
Período I
1845-1846
Período II
1872-1883
Período III
1918-1920
Período IV
1933-1937
Período V
1955
Período VI
1975-1986
Período VII
1992
Convir
Bastar
Constar
Dar pra
Total
5 (63%)
3 (27%)
0 (0%)
0 (0%)
8 (100%)
0 (0%)
1 ( 100%)
0 (0%)
0 (0%)
1 (100%)
4 (57%)
2 (29%)
1 (14%)
0 (0%)
7(100%)
3 (75%)
1 (25%)
0 (0%)
0 (0%)
4 (100%)
1 (33%)
0 (0%)
0 (0%)
2 (67%)
3 (100%)
0 (0%)
0 (0%)
0 (0%)
4 (100%)
4 (100%)
0 (0%)
0 (0%)
0 (0%)
13 (100%)
13 (100%)
Como podemos ver acima, os dois predicadores verbais mais utilizados são o
convir e o dar pra. Enquanto aquele se mostra produtivo nas primeiras sincronias,
representando aproximadamente 60% dos dados dessa forma de expressão da
modalidade nos períodos I e III, 75% dos dados no período IV e desaparece nas
últimas, correspondendo a 33% no período V e 0% nos períodos VI e VII, este se
mostra produtivo apenas nas últimas sincronias, totalizando 67% dos dados no
período V e 100% nos períodos VI e VII. Com essa tabela, é possível pensar que,
talvez, o “dar pra” esteja competindo com cada uma dessas formas, e assumindo seus
valores discursivos específicos.
59
3.2.3 Tipos de predicador adjetival
Como visto anteriormente, os predicadores adjetivais correspondem a 7% dos
dados, totalizando 34 ocorrências. Destas, 27 foram expressas pelo predicador
adjetival possível/impossível, ilustrado em (6), seguido dos predicadores interessante
e capaz, como em (7), com 2 dados cada, e de certo, conveniente e crível, mostrados
em (8a-c), com 1 dado cada.
(6)
Pimenta: Não, senhor. Desde quinta-feira que andam dois guardas atrás dele,
e Øexpl ainda não foi possível [encontrá-lo]. Mandei-os que fossem escorar à
porta da repartição e também lá não apareceu hoje. Creio que teve aviso.
(O Judas em sábado de aleluia, Martins Pena, 1846)
(7)
Dolores: Com a minha experiência, Øexpl era bem capaz [de eu conseguir o
serviço]. (No coração do Brasil, Miguel Falabella, 1992)
(8)
a. Leocádio: Então Øexpl é certo [que a senhora nos deixará amanhã?]
(O hóspede do quarto nº 2, Armando Gonzaga, 1937)
b. Menelau: A cousa, como já lhe disse, deve andar prestes a arrebentar. Mas
como ainda talvez seja possível desviar o curso dos acontecimentos, talvez
Øexpl seja conveniente [nada revelar até o momento decisivo] ...
(O troféu, Armando Gonzaga, 1933)
c. Arminda: Um casamento a capucho, sem nenhuma pompa. Øexpl Não é crível
[que eles pretendam atrair atenção pública com um casamento espaventoso].
(O troféu, Armando Gonzaga, 1933)
A Tabela 4 mostra a distribuição dos predicadores adjetivais ao longo do tempo:
60
Tabela 4: Tipos de predicadores adjetivais para a expressão
da modalidade epistêmica ao longo do tempo
Período
Período I
1845-1846
Período II
1872-1883
Período III
1918-1920
Período IV
1933-1937
Período V
1955
Período VI
1975-1986
Período VII
1992
Possível/
Impossível
Capaz
Interessante
Certo
Crível
Convenient
e
4 (100%)
0 (0%)
0 (0%)
0 (0%)
0 (0%)
0 (0%)
4 (100%)
0 (0%)
0 (0%)
0 (0%)
0 (0%)
0 (0%)
7 (88%)
0 (0%)
1 (12%)
0 (0%)
0 (0%)
0 (0%)
6 (67%)
0 (0%)
1 (11%)
1
(11%)
1
(11%)
1 (0%)
2 (33%)
0 (0%)
0 (0%)
0 (0%)
0 (0%)
0 (0%)
3 (100%)
0 (0%)
0 (0%)
0 (0%)
0 (0%)
0 (0%)
1 (25%)
2 (50%)
1 (25%)
0 (0%)
0 (0%)
0 (0%)
Total
4
(100%)
4
(100%)
8
(100%)
9
(100%)
2
(100%)
3
(100%)
4
(100%)
Diante do exposto, é possível perceber que o predicador adjetival
possível/impossível foi o mais frequente na amostra analisada. Ainda assim, em
conformidade com as minhas hipóteses, houve uma queda considerável em seu uso
ao longo do tempo. Assim como os verbos predicadores, as estruturas com
predicadores adjetivais não projetam posição de sujeito referencial, o que pode
justificar essa diminuição, já que, conforme explicitado anteriormente, há uma
tendência no PB a evitar sentenças impessoais.
Um aspecto interessante a respeito dos predicadores adjetivais e também dos
predicadores verbais é a possibilidade de alçamento de constituinte. Conforme
exposto em seção anterior, em minha metodologia, criei um grupo de fatores que
analisa o tipo de estrutura com sujeitos expletivos. Embora esse tipo de construção
seja frequente na fala contemporânea popular de acordo com Duarte (2007), nos
textos teatrais, conforme esperado por minhas hipóteses, não houve um número
relevante desse tipo de construção. Há apenas 1 dado de alçamento do complemento
da oração subordinada entre as 34 estruturas com predicadores adjetivais e nenhum
dado entre as 40 estruturas com predicadores verbais. O exemplo de predicador
adjetival em que ocorre alçamento de constituinte pode ser visto a seguir:
(9)
Issoi é possível [perceber [ti] até na prática].
(em vez de: Øexp É possível [perceber isso até na prática]).
(Confidências de um espermatozoide careca, Carlos Eduardo Novaes, 1986)
61
3.2.4 Tipos de verbo auxiliar
Como no caso dos predicadores verbais e adjetivais, por meio desse grupo, é
possível investigar quais verbos auxiliares são mais empregados e como eles se
comportam ao longo do tempo. Os verbos auxiliares modais poder e dever são
exemplos de que uma mesma forma pode denotar mais de um sentido, já que ambos
podem expressar modalidade epistêmica e modalidade não-epistêmica. Enquanto no
primeiro caso esses modais denotam uma ideia de eventualidade/possibilidade, no
segundo caso, o verbo poder tem sentido de permissão ou capacidade, e o verbo
dever tem sentido de obrigação, como mostrarei em seção posterior. Ilustramos em
(10a,b)
ocorrências
de
poder
e
em
(11),
de
dever,
expressando
possibilidadade/eventualidade:
(10) a. Paulina: De hoje em diante espero que assim será. Não levantarei a voz nesta
casa sem vosso consentimento. Não darei uma ordem sem vossa permissão...
Enfim, serei uma filha obediente e submissa.
Fabiana: Só assim Ø1ps poderemos viver juntos. Dá cá um abraço. És uma
boa rapariga... Tens um bocadinho de gênio; mas quem não o tem.
(Quem casa, quer casa, Martins Pena, 1845)
b. Mr. James: Mim estar em ajuste com a companhia. Mas quando pretende
compra estrada e que tem promessa de governo para privilégia, maldita
governa cai, e mim deixa de ganhar muita dinheira.
Raul: Mas Ø2ps pode obter o privilégio com esta gente.
(Caiu o ministério, França Júnior, 1882)
(11) a. Limoeiro: Quanto a ti, Ø2ps deves estar estafado da viagem, apesar de que
vieste montado no Diamante, que é o primeiro burro destas dez léguas em
redor. Vai mudar de roupa. (Como se fazia um deputado, França Júnior, 1882)
b. Sergio: Eu vim trazer uns papéis para o Armando. Ele está lá dentro?
Cristina: Não. Armando foi almoçar na Torre Eiffel, mas pelo tempo Ø3ps já deve
estar voltando. Quer esperar. (A mulher integral, Carlos Eduardo Novaes, 1975)
62
A tabela a seguir apresenta a distribuição desses dois verbos ao longo do
tempo:
Tabela 5: Tipos de verbos auxiliares para a expressão
da modalidade epistêmica ao longo do tempo
Período
Período I
1845-1846
Período II
1872-1883
Período III
1918-1920
Período IV
1933-1937
Período V
1955
Período VI
1975-1986
Período VII
1992
Poder
Dever
Total
43 (93%)
3 (6%)
46 (100%)
52 (82%)
11 (18%)
63 (100%)
43 (68%)
20 (32%)
63 (100%)
35 (64%)
20 (36%)
55 (100%)
27 (73%)
10 (27%)
37(100%)
49 (75%)
16 (25%)
65 (100%)
46 (67%)
23 (33%)
69 (100%)
Através da tabela, é possível notar que o verbo poder se mostra muito mais
produtivo para a expressão da modalidade epistêmica, do que o verbo dever. Nos
períodos I, II, V e VI alcança índices acima de 70%, chegando a 93% no período I. Ao
longo do século XX, entretanto, embora predomine o auxiliar poder, há um sensível
aumento do uso de dever, ficando em torno de 30%.
No gráfico abaixo, podemos visualizar melhor o predomínio do verbo poder ao
longo do tempo, mas também o crescimento do verbo dever no século XX, o que
sugere uma concorrência mais acirrada entre os dois auxiliares:
63
100%
93%
82%
80%
68%
64%
32%
36%
III
IV
73%
75%
27%
25%
V
VI
67%
60%
40%
18%
20%
33%
6%
0%
I
II
Poder
VII
Dever
Gráfico 2. A trajetória dos verbos poder e dever para a expressão
da modalidade epistêmica ao longo do tempo
3.2.5 A referência do sujeito
Outro fator importante para este trabalho é a referência do sujeito. De acordo
minhas hipóteses, as formas de expressão da modalidade que projetam um sujeito
expletivo nulo, como os predicadores verbais e os predicadores adjetivais, seriam
muito menos frequentes do que as construções que projetam um sujeito referencial, o
que só é possível com os auxiliares. Como visto na metodologia, distingui o sujeito
expletivo (sem referência) dos referenciais (que incluem a referência definida e a
arbitrária). Embora não se possa dizer que tenha havido aumento do uso de auxiliares
ao longo do tempo, vemos que dentre os 472 dados, apenas 96 contêm sujeitos
expletivos, e 376 são referenciais. Entre os dados de sujeito referencial estão os de
referência definida, cujo número de ocorrências foi 337, e os de referência arbitrária,
que totalizaram 39 dados. Exemplos de sujeitos expletivos podem ser vistos em 12 (a,
b, c), definidos em 13 (a,b) e arbitrários em 14 (a,b):
(12)
a. Ismênia: Faz o que quiser, menina. Você aqui é livre. Vou pedir ao Evandro
para lhe acompanhar, tá? Ainda Øexp dá [pra aproveitar a tarde].
(Pigmaleoa, Millôr Fernandes, 1955)
64
b. Paulo: Øexp Deve haver [um objetivo melhor]. Depois de nos casarmos,
usaremos os meses seguintes escolhendo uma palavra carinhosa para
designá-la. (Um elefante no caos, Millôr Fernandes, 1955)
c. Ismênia: Você me cansa com seu brilho. Como Øexpl deve ser bom [ter um
filho burro]! (Pigmaleoa, Millôr Fernandes, 1955)
(13)
a. Ambrósio: No mundo a fortuna é para quem sabe adquiri-la. Pintam-na
cega... Que simplicidade! Cego é aquele que não tem inteligência para vê-la e
a alcançar. Todo homem pode ser rico, se atinar com o verdadeiro caminho da
fortuna. (O noviço, Martins Pena, 1845)
b. Jeremias: Esqueça o escorregão que ela deu no passado, do qual, como sua
homônima na Bíblia, Ø3ps deve estar sinceramente arrependida.
(O simpático Jeremias, Gastão Tojeiro, 1918)
(14)
a. Corina: De mais a felicidade não consiste apenas em ser rico. Póde-se ser
feliz na pobreza, do mesmo modo Øarb pode-se ser infeliz na opulência.
(O troféu, Armando Gonzaga, 1933)
b. Pimenta: É boa! Querem todos ser dispensados das paradas! Agora é que o
sargento anda passeando. Lá ficou o capitão à espera. Ficou espantado com o
que eu lhe disse a respeito da música. Tem razão, que se souberem, Øarb
podem-lhe dar com a demissão pelas ventas. Quem é?
(O Judas em sábado de aleluia, Martins Pena, 1846)
É possível observar a distribuição dos dados segundo a referência do sujeito
ao longo do tempo na tabela e no gráfico abaixo:
65
Tabela 6: Referência do sujeito ao longo do tempo (modalidade epistêmica)
Período
Expletivo
Arbitrário
Definido
Total
Período I
1845-1846
Período II
1872-1883
Período III
1918-1920
Período IV
1933-1937
Período V
1955
Período VI
1975-1986
Período VII
1992
13 (22%)
4 (7%)
41 (71%)
58 (100%)
5 (7%)
9 (13%)
54 (80%)
68 (100%)
18 (23%)
8 (10%)
52 (67%)
78 (100%)
19 (28%)
9 (12%)
40 (59%)
68 (100%)
8 (19%)
4 (10%)
30 (71%)
42 (100%)
12 (17%)
3 (4%)
57 (79%)
72 (100%)
21 (25%)
2 (2%)
62 (73%)
85 (100%)
100%
80%
80%
20%
67%
71%
60%
40%
79%
59%
23%
22%
13%
7%
28%
19%
10%
12%
III
IV
10%
7%
0%
I
73%
71%
II
expletivo
arbitrário
V
17%
25%
4%
VI
2%
VII
definido
Gráfico 3: Distribuição das estruturas para a expressão da modalidade
epistêmica segundo a referência do sujeito ao longo do tempo
Como é possível observar, a curva dos sujeitos de referência definida é a mais
alta, variando entre 59% e 80%. Esperávamos que esse tipo de referência do sujeito
fosse cada vez maior ao longo do tempo, pela preferência no PB por evitar sentenças
impessoais. No entanto, o número de predicadores verbais com a estrutura inovadora
“dar pra” nas últimas sincronias é bastante relevante, o que contribui para que haja
índices consideráveis de sujeitos expletivos e para que o percentual de sujeitos
definidos não seja ainda maior. Nos períodos V e VI, as alterações percentuais se
devem (a) ao número reduzido de dados e (b) ao fato de parecer haver concorrência
entre o “dar pra” e os outros verbos predicadores. Além dos sujeitos expletivos com a
66
construção “dar pra”, também há os casos de sujeitos expletivos com verbos
auxiliares, em construções com o haver existencial, como em (12b) acima, o verbo ser
indicando tempo, como em (12c), entre outros.
3.2.6 Os sujeitos de referência arbitrária
Conforme exposto no capítulo 2, espero que as estratégias de indeterminação
com a terceira pessoa do plural e o pronome se indefinido sejam mais utilizadas nas
peças mais antigas e que as outras estratégias de indeterminação, sobretudo você e
a gente sejam as mais recorrentes em peças mais recentes. Dos 39 dados de sujeito
de referência arbitrária, 31 apresentam a construção com “se” genérico (incluindo o
se nominativo e passivo), o equivalente a 79%, seguidos de 6 dados de 3ª. pessoa do
plural, o que corresponde a 15%, apenas 1 dado da estratégia “você” e 1 dado da
estratégia “a gente”, o que equivale a 3% cada, exemplificados, nessa ordem, em (15)(18):
(15)
a. Filipe: E essas dificuldades devem ter sido bem grandes; porque há quinze
dias que o ministério está organizado, e ainda não se pôde achar um ministro
para a Marinha. (Caiu o ministério, França Júnior, 1882)
b. Bernardo: Deixar para amanhã?! Pois se estamos de pleno acôrdo sôbre as
condições e o preço da venda, para, que deixar para amanhã? O que se pode
fazer hoje, não se deixa para amanhã.
(O simpático Jeremias, Gastão Tojeiro, 1918)
(16)
a. Faustino: Ah, com que o senhor capitão assusta-se, porque Øarb podem
saber que mais de metade dos guardas da companhia pagam para a música!...
E quer mandar-me para os Provisórios! Com que escreve cartas,
desinquietando a uma filha-família, e quer atrapalhar-me com serviço? Muito
bem! Cá tomarei nota. (O Judas em sábado de aleluia, Martins Pena, 1846)
b. Capitão: Que o leve o demo! Mas procure-o bem até que o ache, para
arrancar-lhe a carta. Øarb Podem-na achar, e isso não me convém.
(O Judas em sábado de aleluia, Martins Pena, 1846)
67
(17)
Nilson: Margareth fala como se a gente pudesse comprar a felicidade a quilo.
(No coração do Brasil, Miguel Falabella, 1992)
(18)
Na verdade há um mundo de sensações a serem exploradas no corpo humano.
Para excitar um parceiro você pode trabalhar com as mãos, os pés, os lábios
e a língua.
(Confidências de um espermatozoide careca, Carlos Eduardo Novaes, 1986)
A tabela abaixo mostra a distribuição dessas estratégias ao longo do tempo:
Tabela 7: Realizações dos sujeitos de referência arbitrária
ao longo do tempo (modalidade epistêmica)
Período
Se
3ª.p.p
A gente
Você
Total
Período I
1845-1846
Período II
1872-1883
Período III
1918-1920
Período IV
1933-1937
Período V
1955
Período VI
1975-1986
Período VII
1992
1 (25%)
3 (75%)
0 (0%)
0 (0%)
4 (100%)
8 (89%)
1 (11%)
0 (0%)
0 (0%)
9 (100%)
7 (88%)
1 (12%)
0 (0%)
0 (0%)
8 (100%)
8 (89%)
1 (11%)
0 (0%)
0 (0%)
9 (100%)
4 (100%)
0 (0%)
0 (0%)
0 (0%)
4 (100%)
2 (67%)
0 (0%)
0 (0%)
1 (33%)
3 (100%)
1 (50%)
0 (0%)
1 (50%)
0 (0%)
2 (100%)
Apesar do pequeno número de dados, fica evidente o desuso do “se” indefinido
ao longo do tempo. Ao contrário do esperado, entretanto, encontrei apenas um dado
com as estratégias “você” e “a gente”, nos períodos VI e VII. Como mostrarei a seguir,
a grande concentração de dados revela sujeitos de referência definida.
3.2.7 Os sujeitos de referência definida
Na análise desse grupo, reuni singular e plural, mas esclareço que o singular é
amplamente superior aos sujeitos no plural. Apenas na terceira pessoa distingui,
naturalmente, os sujeitos pronominais de SNs lexicais. Dos 336 dados de referência
68
definida, o tipo que se mostrou mais frequente foi o SN lexical, com 125 dados,
seguido da 1ª pessoa, com 101 dados, dos sujeitos pronominais de 3ª pessoa, com
63 dados, e a 2ª pessoa, com 47 dados. Podemos ver em (19a,b) exemplos de 1ª
pessoa (do singular e do plural), em (20) de 2ª pessoa (do singular e do plural); em
(21) de 3ª pessoa (do singular e do plural) e, finalmente, em (22), os exemplos de SN
lexical no singular e plural:
(19)
a. Rosa: Quando lhe dei eu a minha mão, Ø1ps poderia prever que ele seria um
traidor? E vós, senhora, quando lhe désteis a vossa, que vos uníeis a um
infame? (O noviço, Martins Pena, 1845)
b. Filomena: Este inglês possui uma fortuna de mais de quinhentos contos,
parece gostar de Beatriz... Se nós soubermos levá-lo, Ø1pp poderemos fazer a
felicidade da menina. (Caiu o ministério, França Júnior, 1882)
(20)
a. Ismênia: É costume do Padre. Já já, pega. Você deve estar doida pra tomar
um banho e trocar de roupa. Seu quarto é aquele.
(Pigmaleoa, Millôr Fernandes, 1955)
b. Margareth: Vocês podem falar o que quiserem. Eu vou no Pathé. A gente
começa a melhorar de algum lugar. Não tem tantas histórias de artistas
famosas que saíram do nada? (No coração do Brasil, Miguel Falabella, 1992)
(21)
a. Cristina: Ensino, ensino tudo, mas depois. Agora é melhor você ir que ele já
deve estar chegando. Sai pela porta dos fundos.
(A mulher integral, Carlos Eduardo Novaes, 1975)
b. Domingos: Falei ontem com o seu tenente-coroné, sim sinhô, dei o recado de
meu sinhô, e ele disse-me que havia de vir com sinhá Dona Perpétua e com
sinhá moça Rosinha.
Limoeiro: Já Ø3pp deviam estar cá. O rapaz não tarda. Retirem-se a seus
postos. Hoje e amanhã não se pega na enxada. Exemplo de 3ª.pp
(Como se fazia um deputado, França Júnior, 1882)
69
(22)
a. Minha mãe deve estar tecendo uma análise, apavorada com o fato de eu
gostar do peito da crioula e acabar na cama com um negão.
(Como encher um biquíni selvagem, Miguel Falabella, 1992)
b. Faustino: Então podem chover sobre mim os avisos, como chovia o maná
no deserto! Não te deixarei um só instante. Quando for às paradas, irás comigo
para me veres manobrar.
(O Judas em sábado de aleluia, Martins Pena, 1846)
A Tabela 8, a seguir, apresenta a distribuição dessas ocorrências de sujeitos
de referência definida segundo a pessoa gramatical.
Tabela 8: Distribuição dos sujeitos de referência definida
ao longo do tempo (modalidade epistêmica)
5
Período
1ª pessoa
2ª pessoa
3ª pessoa
SN5
Total
Período I
1845-1846
Período II
1872-1883
Período III
1918-1920
Período IV
1933-1937
Período V
1955
Período VI
1975-1986
Período VII
1992
12 (29%)
2 (5%)
6 (15%)
21 (52%)
41 (100%)
18 (33%)
11 (20%)
9 (17%)
16 (30%)
54 (100%)
14 (27%)
7 (14%)
11 (21%)
20 (38%)
52 (100%)
15 (36%)
1 (3%)
2 (5%)
23 (56%)
41 (100%)
13 (45%)
3 (10%)
3 (10%)
10 (35%)
29 (100%)
9 (16%)
16 (28%)
14 (25%)
18 (31%)
57 (100%)
20 (32%)
7 (11%)
18 (29%)
17 (28%)
62 (100%)
Ocorreram dois casos de sujeitos que fogem ao padrão SN lexical. Trata-se de um sujeito oracional
posposto, representado por uma relativa livre e um sujeito representado por um demonstrativo
modificado por uma relativa. São eles:
(1) Maricota: Ora dize-me, quem compra muitos bilhetes de loteria não tem mais probabilidade de tirar
a sorte grande do que aquele que só compra um? Não pode do mesmo modo, nessa loteria do
casamento, [quem tem muitos amantes] ter mais probabilidade de tirar um para marido?
(em vez de: [Quem tem muitos amantes] não pode do mesmo modo ter mais probabilidade de tirar
um para marido, nessa loteria do casamento?) (O Judas em sábado de aleluia, Martins Pena,
1845)
(2) Pimenta: Assim é, sr. capitão. [Os [que não pagam para a música]], devem sempre estar prontos.
Alguns são muito remissos. (O Judas em sábado de aleluia, Martins Pena, 1845)
70
3.2.8 A forma de realização do sujeito
A análise desse grupo tem grande valor para esta pesquisa. Acredito que a
escolha do falante por determinadas estruturas para a expressão da modalidade está
encaixada em uma mudança maior por que passa o PB no que diz respeito à
marcação do PSN. Como visto em capítulo anterior, há uma tendência no PB ao
preenchimento do sujeito e a evitar sentenças impessoais. Dessa forma, creio que,
além da preferência por verbos auxiliares para expressão da modalidade, justamente
por eles projetaram em geral uma posição de sujeito referencial, haverá, nesses
casos, uma preferência pelo sujeito preenchido de referência definida nas últimas
sincronias. A tabela a seguir leva em conta os dados de sujeitos da Tabela 8 acima,
excluindo, naturalmente os sujeitos representados por um SN lexical. Vejamos a
distribuição dos tipos de sujeitos de referência definida em relação à forma nula de
expressão do sujeito ao longo do tempo:
Tabela 9: A expressão dos sujeitos de referência definida
referenciais nulos (vs plenos) ao longo do tempo (modalidade epistêmica)
Período
1ª p.
2ª p.
3ª p.
Período I
1845-1846
Período II
1872-1883
Período III
1918-1920
Período IV
1933-1937
Período V
1955
Período VI
1975-1986
Período VII
1992
9/12 (75%)
2/2 (100%)
3/6 (50%)
11/18 (61%)
10/11 (90%)
5/9 (55%)
12/14 (86%)
6/7 (86%)
10/11(90%)
11/15 (73%)
0/1 (0%)
2/2 (100%)
7/13 (54%)
1/3 (33%)
2/3 (67%)
5/9 (55%)
3/16 (19%)
8/14 (57%)
4/20 (20%)
1/7 (14%)
6/18 (33%)
O Gráfico 4 a seguir nos permite observar a queda do sujeito nulo nas
estruturas com sujeitos definidos:
71
100%
80%
100%
75%
90%
61%
90%
86%
50%
67%
73%
60%
40%
100%
54%
55%
57%
55%
33%
33%
20%
19%
0%
0%
I
II
III
1ª p.
IV
2ª p.
V
VI
20%
14%
VII
3ª p.
Gráfico 4: A realização dos sujeitos referenciais nulos (vs plenos) para
a expressão da modalidade epistêmica ao longo do tempo
Através análise da tabela e do gráfico acima, é possível confirmar a hipótese
de que a tendência ao preenchimento do sujeito pronominal pode ser observada nas
construções que expressam a modalidade epistêmica. Entretanto, é preciso destacar
que apenas para a 1ª. pessoa temos um número mais expressivo de dados (101);
além disso, estão bem distribuídos por período, apesar de o Período VI contar com
apenas 9 dados. Essa melhor distribuição nos mostra uma curva descendente sem
picos. Percebemos que os sujeitos são preferencialmente nulos até o período IV,
alcançando índices de 75%, 61%, 86% e 73%, nessa ordem. Nos períodos V e VI,
ainda que haja pouco mais de 50% de sujeitos nulos, notamos uma importante queda
em comparação com os períodos anteriores, o que ocorre na análise de Duarte (1993)
para tais sujeitos. No período VII, vemos claramente a preferência pelo
preenchimento, com apenas 20% dos dados de sujeito nulo. Os exemplos em (23)
mostram ilustram o sujeito de 1ª. pessoa nulo e pleno:
(23) a. Maricota: Estou conhecida! Ø1ps Posso morrer solteira... Um marido é
sempre um marido... Meu pai, farei a sua vontade.
(O Judas em sábado de aleluia, Martins Pena, 1846)
b. Margareth: Não interessa. Eu vou lá e pronto! Se o seu Oscar deixar, eu
posso até vender na bomboniêre.
(No coração do Brasil, Miguel Falabella, 1992)
72
A mesma tendência de queda de sujeitos nulos é observada na 2ª. pessoa,
mas a distribuição dos dados é bastante irregular. Tal como em Duarte (2012b),
podemos perceber que nos três primeiros períodos, os sujeitos são preferencialmente
nulos, alcançando índices de 100%, 90% e 86%, respectivamente. No período IV,
esse quadro muda: só há um caso de 2ª pessoa, que aparece preenchido. A partir
desse momento, podemos ver a mesma direção da mudança do estudo de Duarte
(1993), no qual a autora mostra que, motivado pela substituição do pronome “tu” por
“você” na amostra analisada6 e a redução do paradigma flexional, o preenchimento do
sujeito torna-se a forma mais natural para a sua identificação. Nos períodos V, VI e
VII os índices de sujeito nulo são bem baixos, alcançando 33%, 19% e 14%, nessa
ordem. Podemos visualizar os exemplos de sujeito de 2ª pessoa nulo e preenchido,
respectivamente, em (24a-b):
(24)
a. Ambrósio: Que dúvida! E eu julgo que Ø2ps podes conciliar esses dous
pontos, fazendo Emília professar em um convento. Sim, que seja freira. Não
terás nesse caso de dar legítima alguma, apenas um insignificante dote - e
farás ação meritória. (O noviço, Martins Pena, 1845)
b. Ventura: É o diabo isso... Estou aqui sem um niquel... Você não tem aí
algum?
Carlos: Quanto quer você?
Ventura: No minimo, o maximo que você possa me emprestar.
(O hóspede do quarto nº 2, Armando Gonzaga, 1937)
Em relação à 3ª. pessoa, o sujeito pronominal e o nulo estão em competição
nos dois primeiros períodos. Nos períodos seguintes, há uma queda no apagamento,
mas essa não é tão brusca. Nos períodos V e VI, por exemplo, ainda alcançam os
índices razoáveis de 67% e 57%. No período VII, no entanto, fica evidente a
preferência pelo sujeito preenchido, já que o percentual de sujeitos nulos é de 33%
somente. É preciso destacar que nesta análise incluí casos em que um sujeito
pronominal se encontra num contexto sintático que favorece o sujeito nulo e também
6
Nas peças analisadas por Duarte, quando o pronome tu reaparece, nos anos 1990, já se encontra em variação
com você, ou seja, é usado com a forma verbal sem a desinência canônica <-s>.
73
aqueles em que seu antecedente tem outra função ou retoma dois SNs, favorecendo
o sujeito preenchido, o que será visto posteriormente. Exemplos de sujeitos de 3ª
pessoa pronominal nulo e preenchido, nessa ordem, podem ser vistos em (25) e (26).
Observemos que, em sincronias mais antigas, o sujeito nulo ocorre mesmo com mais
de um antecedente, como em (25c); o mesmo contexto estrutural leva ao
preenchimento no último período (26b):
(25)
a. Basilio: Ah! É por isso que quando ele desaparece da estação dizem logo
que Ø3ps deve estar na casa onde canta o sabiá...
(Onde canta o sabiá, Gastão Tojeiro, 1920)
b. Dilermando: Um envelope lacrado! Ø3ps Deve ser o testamento do
Fagundes... (O troféu, Armando Gonzaga, 1933)
c. Domingos: Falei ontem com o seu tenente-coroné, sim sinhô, dei o recado
de meu sinhô, e ele disse-me que havia de vir com sinhá Dona Perpétua e
com sinhá moça Rosinha.
Limoeiro: Já Ø3pp deviam estar cá. O rapaz não tarda. Retirem-se a seus
postos. Hoje e amanhã não se pega na enxada.
(Como se fazia um deputado, França Júnior, 1882)
(26)
a. Neiva: Por mim, ele podia sumir que eu já nem ligava mais. O problema é a
menina. Que é que eu vou fazer com a menina?
(No coração do Brasil, Miguel Falabella, 1992)
b. Magali: A Magda tá no Egito. Tá de férias. Férias não sei de quê. Mas tão lá,
ela e o meu cunhado. Às vezes eu tenho inveja da Magda. Mas só às vezes,
ouviu? Uma hora dessas, eles devem estar tirando fotografia de tudo quanto é
jeito. (Como encher um biquíni selvagem, Miguel Falabella, 1992)
Quanto aos diferentes contextos sintáticos em que o sujeito pronominal de 3ªp.
pode estar, é possível analisar alguns deles através dos exemplos (27a,b), (28 a,b) e
(29a,b) a seguir:
74
(27)
a. Inácia: Mas é preciso que o esqueças. [Um mau brasileiro]. Não Ø3ps podia
ser um bom marido... Peste! (Onde canta o sabiá, Gastão Tojeiro, 1920)
b. Dolores: Vambora, Neiva, que uma hora dessas ônibus só de hora em hora.
Bem que [o meu namorado]i podia ter aparecido pra me dar uma carona. Elei
deve ter ficado preso.
(No coração do Brasil, Miguel Falabella, 1992)
Observando os dois exemplos em (27), vemos tendências diferentes – nos dois
casos, o antecedente é o tópico no contexto precedente, mas o sujeito aparece nulo
na peça de 1920 e expresso na de 1992.
(28)
a. Dolores: Mas que esse não é igual aos outros, não é mesmo! Bom, deixa eu
sair de fininho que ele deve ‘tar me esperando lá nos fundos. Segura as pontas
prá mim, tá?
(No coração do Brasil, Miguel Falabella, 1992)
b. De repente Ø3pp tornaram a balançar e desta vez ele devia ter penetrado
numa zona de turbulência porque logo se acenderam as placas.
(Confidências de um espermatozoide careca, Carlos Eduardo Novaes, 1986)
Nos exemplos em (28), temos mudança de referência no sujeito da subordinada
e da 2ª coordenada, o que em geral leva ao preenchimento.
(29)
a. Jeremias: Esqueça o escorregão que ela deu no passado, do qual, como sua
homônima na Bíblia, Ø3ps deve estar sinceramente arrependida.
(O simpático Jeremias, Gastão Tojeiro, 1918)
b. Lise: Por exemplo, eu vi uma senhora entrando hoje, não sei onde ela está
sentada, mas para mim, ela se chama Magali Santoro. Ela é gordinha e Ø3ps
deve ter uns cinquenta anos. (Como encher um biquíni selvagem, Miguel
Falabella, 1992)
75
Nos exemplos em (29), por sua vez, temos a manutenção da referência no
sujeito da subordinada e da 2ª coordenada, o que em geral leva ao apagamento. O
sujeito nulo na subordinada resiste nesse contexto inclusive na última sincronia, que
tem preferência pelo preenchimento. A coordenadas com manutenção do referente
podem ter sujeito nulo em línguas que não o admitem em outros contextos.
Por fim, sabemos que uma amostra mais ampla permitiria uma análise mais
refinada dos contextos que influenciam a expressão do sujeito de 3ª pessoa, embora
a tendência ao seu preenchimento se confirme.
3.3 A análise da modalidade não-epistêmica
3.3.1 Distribuição geral das estratégias por tipo de modalidade não-epistêmica
Das 1311 ocorrências encontradas, 839 expressam modalidade nãoepistêmica. Conforme visto na seção anterior, esse número de dados maior do que os
que expressam modalidade epistêmica era esperado, pois há maior variedade de
verbos auxiliares que expressam a modalidade não-epistêmica do que de verbos
auxiliares que expressam modalidade epistêmica. Como visto no capítulo 2, neste
estudo, baseando-nos em Neves (2006), consideramos que a modalidade nãoepistêmica pode subdividir-se em dois tipos: a) dinâmica; b) deôntica. Enquanto a
primeira exprime as noções de capacidade/habilidade, a segunda exprime as noções
de permissão ou obrigação, estando no eixo do dever, da conduta. Exemplos que
ilustram a modalidade dinâmica, expressando capacidade/habilidade podem ser
vistos em (30a,b), enquanto os que expressam a modalidade deôntica, exprimindo
obrigação e permissão, respectivamente, podem ser vistos em (31a,b):
(30)
a. Bernardo: Ora! Tu não entendes disso. Ø2ps Podes, quando muito, entender
de engenharia; mas de transações comerciais não pescas nada. E se eu fizer
o negócio, terás 50 contos para ires gastá-los na Europa.
(O simpático Jeremias, Gastão Tojeiro, 1918)
76
b. Nicolau: O caso não vai de zangar... Ouvir-te-ei, já que gritas. Sr. Bernardo,
tenha a bondade de esperar um momento. Vamos lá, o que queres? E em duas
palavras, se for possível.
Fabiana: Em duas palavras? Aí vai: Ø1ps já não posso aturar meu genro e
minha nora! (Quem casa, quer casa, Martins Pena, 1845)
(31)
a. Fabrino: Ô Elvidio, dispensa-me por um momento. Ø1ps Preciso ir lá dentro,
mas não demoro. Fica à vontade. Está em tua casa...
(Onde canta o sabiá, Gastão Tojeiro, 1920)
b. Doroteia: Eu pensava que as mulheres não pudessem entrar sozinhas nos
casinos. (O hóspede do quarto nº 2, Armando Gonzaga, 1937)
A distribuição dos dados segundo o tipo de modalidade não-epistêmica pode
ser vista na tabela abaixo:
Tabela 10. Distribuição dos dados levantados segundo o tipo de modalidade não-epistêmica
Modalidade
Predicador
verbal
Predicador
adjetival
Verbo
auxiliar
Total
Dinâmica
0 (0%)
0 (0%)
149 (100%)
149 (100%)
Deôntica
6 (1%)
96 (14%)
588 (85%)
690 (100%)
Analisando a Tabela 10, é possível ver que a modalidade dêontica é a mais
frequente, já que, dos 839 dados de modalidade não-epistêmica, 690 expressam esse
tipo, denotando permissão ou obrigação. Isso pode se dever à distribuição dos dados
ou ao fato de os contextos discursivos-pragmáticos no gênero analisado favorecerem
esse tipo de modalidade. Além disso, vemos que o verbo auxiliar é a estratégia
preferida para veicular ambos os tipos de modalidade não-epistêmica. Além disso, o
auxiliar poder é a única estratégia encontrada para expressão da modalidade
dinâmica.
Após essas considerações a respeito da modalidade não-epistêmica, em que
se buscou distinguir e verificar o comportamento dos dois tipos citados por Palmer
(1986) e Neves (2006), com o objetivo de fazer considerações mais gerais em relação
77
a esse tipo de modalidade em oposição à modalidade epistêmica, vista na seção
anterior, farei uma análise dos resultados gerais da modalidade não-epistêmica,
abarcando os dois tipos já mencionados.
3.3.2 As formas de expressão da modalidade não-epistêmica
As diferentes estratégias para a expressão da modalidade - o predicador verbal,
o predicador adjetival e o verbo auxiliar – se encontram, respectivamente, em (32),
(33a,b) e (34a,b):
(32)
Neiva: Eu me viro. Mas não foi por causa do pé, não. Foi por causa daquilo.
Margareth: Daquilo, o quê?
Neiva: Daquilo, né, Margareth? Ah... não vou contar, não!
Dolores: Se Øexpl não era [pra contar], porque começou?
(No coração do Brasil, Miguel Falabella, 1992)
(33)
a. Henrique — Esquecer-te? Tu não me amas!
Henriqueta — Já não te disse que o meu coração só pulsa por ti?
Henrique — Então Øexpl é necessário [que esse inglês desapareça].
(O tipo brasileiro, França Júnior, 1872)
b. Carlos: Não convém. Pode, por azar, Chegar aí a notícia de que o major
morreu. Øexpl É preciso [que seja alguém que nunca tivesse existido].
(O noviço, Martins Pena, 1845)
(34)
a. Paulo: Ótimo. Minha mãe vai ficar alegríssima. Ø3ps Não pode ver nenhum
parafuso fora da engrenagem da exploração do homem.
(Um elefante no caos, Millôr Fernandes, 1955)
b. Está sendo ótima a companhia de vocês por essa vida à fora, mas uma coisa
Ø1ps não posso negar: tenho saudade daqueles tempos.
A Tabela 11 mostra a distribuição desses três tipos de estruturas ao longo do
tempo. Conforme mencionado na seção anterior, esta é a variável sociolinguística que
78
orienta esta pesquisa; vimos que os auxiliares predominam ao longo do tempo, mas,
ainda assim, é possível observar um declínio no uso de predicadores adjetivais.
Tabela 11: Formas de expressão da modalidade não-epistêmica ao longo do tempo
Período
Período I
1845-1846
Período II
1872-1883
Período III
1918-1920
Período IV
1933-1937
Período V
1955
Período VI
1975-1986
Período VII
1992
Predicador
verbal
Predicador
adjetival
Verbo auxiliar
Total
0 (0%)
24 (23%)
80 (77%)
104 (100%)
0 (0%)
27 (28%)
71 (72%)
98 (100%)
0 (0%)
19 (14%)
118 (86%)
137 (100%)
0 (0%)
14 (16%)
75 (84%)
89 (100%)
0 (0%)
3 (2%)
124 (98%)
127 (100%)
4 (3%)
9 (7%)
119 (90%)
132 (100%)
2 (1%)
0 (0%)
150 (99%)
152 (100%)
Dentre os 839 dados que veiculam a modalidade não-epistêmica, 737 dados
são expressos por verbos auxiliares, o que equivale a 88%. Ao observarmos a
distribuição pelos períodos, notamos um aumento considerável no número de verbos
auxiliares e uma queda expressiva no número de predicadores adjetivais, em
consonância com as minhas hipóteses. O Gráfico 5, a seguir, permite visualizar os
resultados percentuais da Tabela 11 na linha do tempo:
120%
100%
98%
77%
72%
40%
23%
28%
20%
0%
0%
80%
86%
84%
14%
16%
0%
0%
III
IV
90%
99%
60%
0%
I
II
pred. verbal
pred. adjetival
7%
2%
0%
V
3%
VI
auxiliar
Gráfico 5. A trajetória das estratégias para a expressão
da modalidade não-epistêmica ao longo do tempo
1%
VII
0%
79
De acordo com o esperado, as frequências de uso dos verbos auxiliares são
muito altas em todos os períodos: nota-se, entretanto significativo aumento, de 77% a
99%, na última sincronia. Os predicadores adjetivais, por sua vez, alcançam índices
razoáveis
principalmente
nas
duas
primeiras
sincronias
(23%
e
28%,
respectivamente), porém sofrem uma queda significativa ao longo do tempo,
chegando a 2%, 7% e 0% nos períodos V, VI e VII, respectivamente. Quanto aos
predicadores verbais, diferentemente do que ocorreu na modalidade epistêmica, em
que podemos perceber o uso desse tipo de estratégia nas primeiras sincronias, não
encontramos dados entre os períodos I e V. Nos períodos VI e VII, contudo, temos a
presença de 6 dados, 4 no período VI e 2 no período VII, o que corresponde aos
percentuais 3% e 1%, respectivamente. Esses dados, em consonância com os
encontrados nos mesmos períodos para a expressão modalidade epistêmica, também
tratam de uma estrutura inovadora e não dos predicadores verbais tradicionais, como
cumprir e urgir, completamente ausentes na minha amostra, como veremos na subseção a seguir.
Em consonância com minhas hipóteses, o uso predominante dos verbos
auxiliares se justifica pelo fato de esse tipo de estrutura poder projetar uma posição
de sujeito referencial, enquanto as outras duas estruturas projetam uma posição de
sujeito não-referencial. Como já mencionado na seção anterior, a preferência por
sujeitos referenciais no PB está ligada a uma mudança maior por que passa a nossa
língua, a mudança na marcação do valor do Parâmetro do Sujeito Nulo (PSN). No
entanto, ao me deparar com altos índices de verbos auxiliares desde as primeiras
sincronias também para expressão da modalidade não-epistêmica, não posso deixar
de constatar que a preferência pelos auxiliares, pelo menos num gênero
presumivelmente mais próximo da fala, é anterior à segunda metade do século XIX.
3.3.3 O predicador verbal
A análise nos revelou que os 6 dados de expressão da modalidade nãoepistêmica através de verbos predicadores, o equivalente a apenas 1% do total de
dados, foram todos expressos pela estrutura inovadora, que consiste no uso do verbo
“ser” seguido de uma oração reduzida de infinitivo regida de preposição, aqui referida
como “ser pra”. Podemos ver exemplos desse tipo de predicador em (35a,b):
80
(35)
a. Cristina: Abrir a porta do carro? Sabe a última vez que você abriu?
Armando: Não.
Cristina: No dia do nosso casamento.
Armando: Teve ainda uma outra vez.
Cristina: Teve, mas Øexpl não foi [pra eu entrar.] Øexpl Foi [pra sair]. Você me
botou pra fora do carro. (A mulher integral, Carlos Eduardo Novaes, 1975)
b. Nilson: Uma hora dessas Øexpl era [pra ela já estar aqui].
(No coração do Brasil, Miguel Falabella, 1992)
Lembro novamente que não se pode pensar numa expressão gramaticalizada
porque é possível mover o sujeito da subordinada para a posição do expletivo na
oração principal (Uma hora dessas elai era [pra pra [t]i já estar aqui]). Tenho, portanto,
evidências de que se trata de duas orações.
3.3.4 Tipos de predicador adjetival
Encontrei 96 dados de expressão da modalidade não-epistêmica através de
predicadores adjetivais, o que corresponde a 11% dos dados. Destes, 89 foram
expressos pelo predicador adjetival preciso, como em (36a,b), o equivalente a 93%, e
7 pelo predicador necessário, o correspondente a 7%, como em (37a,b):
(36)
a. Maricota: Oh, que tola! Pois Øexpl é preciso [conhecer-se a pessoa a quem
se namora]? (O Judas em sábado de aleluia, Martins Pena, 1846)
b. Rosa, por favor, eu posso explicar tudo. Vamos pra casa que eu explico.
Acho que estou doente. Paulo, me ajude. Seja sensato. É uma casa. Uma casa
como as outras. Aceite. Øexpl É preciso [ter uma casa, seja de que jeito for].
Rosa, diga-lhe que aceite. Não estou querendo comprá-los, não. Aceite...
(Um elefante no caos, Millôr Fernandes, 1955)
81
(37)
a. Julia: Claro, muitos dos problemas conjugais são hereditários. Quanto aos
seus antecedentes, precisamos saber se a senhora nunca tentou esfaquear
seu marido, queimá-lo com ferro elétrico, jogá-lo pela janela. Øexpl É necessário
também [que a senhora preencha um formulário respondendo sobre a sua vida
sexual]. (A mulher integral, Carlos Eduardo Novaes, 1975)
b. Otávio: Øexpl É necessário [que o senhor se lembre, meu pai, que a jazida
do Rio Pequeno não lhe pertence].
(O simpático Jeremias, Gastão Tojeiro, 1918)
A Tabela 12 mostra a distribuição desses predicadores adjetivais ao longo do
tempo:
Tabela 12: Tipos de predicadores adjetivais para a expressão
da modalidade não-epistêmica ao longo do tempo
Período
Período I
1845-1846
Período II
1872-1883
Período III
1918-1920
Período IV
1933-1937
Período V
1955
Período VI
1975-1986
Período VII
1992
Preciso
Necessário
Total
24 (100%)
0 (0%)
24 (100%)
25 (93%)
2 (7%)
27 (100%)
15 (79%)
4 (21%)
19 (100%)
14 (100%)
0 (0%)
14 (100%)
3 (100%)
0 (0%)
3 (100%)
8 (89%)
1 (11%)
9 (100%)
0 (0%)
0 (0%)
0 (100%)
O predicador adjetival preciso foi o mais produtivo na amostra analisada.
Mesmo assim, em conformidade com as minhas hipóteses, houve uma queda
relevante em seu uso ao longo do tempo. Conforme já visto, isso pode se dever ao
fato de as estruturas com predicadores adjetivais, assim como as com predicadores
verbais, não projetarem posição de sujeito referencial, o que possivelmente justifica
essa diminuição, dado que, como já mencionado, há uma tendência no PB a evitar
sentenças impessoais.
82
3.3.5 Tipos de verbo auxiliar
Através desse grupo, posso averiguar quais verbos auxiliares são mais
empregados e como eles se comportam ao longo do tempo. Como visto na seção
anterior, os verbos auxiliares modais poder e dever podem expressar modalidade
epistêmica e modalidade não-epistêmica. Além desses verbos, que, no caso da
modalidade em questão, podem denotar permissão ou capacidade e obrigação,
respectivamente, há outros responsáveis por expressá-la, como ter que/ter de,
precisar e necessitar, todos veiculando a noção de obrigação. É possível ver exemplos
do verbo poder em (38a,b), de dever em (39a,b), de ter que em (40a,b), de precisar
em (41a,b) e de necessitar em (42)7:
(38)
a. Eduardo: Foi um grande mestre da rabeca... Mas aí, que estou a parolar
contigo, deixando a trovoada engrossar. Minha mulher está lá dentro com a
mãe, e os mexericos fervem... Não tarda muito que as veja em cima de mim.
Só tu podes desviar a tempestade e dar-me tempo para acabar de compor o
meu tremulório... (Quem casa, quer casa, Martins Pena, 1845)
b. Quando cheguei papai estava embarcado num submarino, combatendo os
alemães lá no Nordeste. Ele positivamente não seguia aquele preceito hippie...
Fazia o amor e a guerra também. Achei ótimo, assim Ø1ps pude dormir com a
mamãe na cama de casal.
(Confidências de um espermatozoide careca, Carlos Eduardo Novaes, 1986)
(39)
a. Cristina: Direção errada? E qual era a direção então? Por que você não botou
umas placas aí pra mim saber qual era a direção? Que caminho eu deveria
tomar para chegar ao seu coração, se é que você tem.
(A mulher integral, Carlos Eduardo Novaes, 1975)
b. Maria: Não pense, sargento. Os bravos centuriões do fogo não devem
pensar. Aja, sargento, aja. (Um elefante no caos, Millôr Fernandes, 1955)
7
Os verbos precisar e necessitar tem claramente o comportamento de auxiliares nessas estruturas.
83
(40)
a. Ismênia: O mal de sua geração é esse: não distingue o que é divino do que
é infernal. Minha profissão é chata como qualquer outra. E ainda Ø 1ps tenho
que jantar três vezes por noite. Pelo menos fingir.
(Pigmaleoa, Millôr Fernandes, 1955)
b. Inácia: Quem lhe está perguntando alguma coisa? A senhora tem que perder
esse costume de se meter na conversa dos outros!
(Onde canta o sabiá, Gastão Tojeiro, 1920)
(41)
a. Dulce: Não, eu entendo, eu entendo. Mas a senhora precisa entender que
a solidão não é uma exclusividade sua. A senhora precisa sair mais, conhecer
gente nova!
(Como encher um biquíni selvagem, Miguel Falabella, 1992)
b. Doroteia: Bem. Não precisa o senhor se emocionar tanto. Si a cousa é
assim, está tudo explicado.
(O hóspede do quarto nº 2, Armando Gonzaga, 1937)
(42)
Ernani: Quem sabe se eu sou criado do ministro para ficar à espera até a hora
que ele resolver chegar?
Virginia: Mas você não necessita arranjar um emprego?
(Onde canta o sabiá, Gastão Tojeiro, 1920)
A tabela e o gráfico a seguir apresentam a distribuição desses verbos ao longo
do tempo:
84
Tabela 13: Tipos de verbos auxiliares para a expressão
da modalidade não-epistêmica ao longo do tempo
Período
Poder
Dever
Ter que/
Ter de
Precisar
Necessitar
Total
Período I
1845-1846
51 (63%)
16 (20%)
10 (13%)
3 (4%)
0 (0%)
80 (100%)
Período II
1872-1883
36 (51%)
21 (30%)
8 (11%)
6 (8%)
0 (0%)
71 (100%)
Período III
1918-1920
69 (59%)
12 (10%)
19 (16%)
17 (14%)
1 (1%)
118 (100%)
Período IV
1933-1937
30 (40%)
24 (32%)
9 (12%)
12 (16%)
0 (0%)
75(100%)
Período V
1955
69 (55%)
12 (10%)
31 (25%)
12 (10%)
0 (0%)
124 (100%)
Período VI
1975-1986
40 (34%)
17 (14%)
35 (29%)
27 (23%)
0 (0%)
119 (100%)
Período VII
1992
48 (32%)
21 (14%)
58 (39%)
23 (15%)
0 (0%)
150 (100%)
A representação dessa distribuição no gráfico 6 a seguir permite uma melhor
observação da evolução no uso dos auxiliares, excetuando a única ocorrência de
necessitar:
100%
80%
63%
51%
60%
59%
55%
40%
30%
40%
32%
20%
20%
11%
13%
0%
4%
I
8%
II
Poder
16%
16%
10%
34%
25%
14%
III
Dever
29%
23%
39%
32%
15%
12%
10%
14%
14%
IV
V
VI
VII
Ter que/ Ter de
Precisar
Gráfico 6. A trajetória dos verbos poder, dever, ter que/ter de e precisar
para a expressão da modalidade não-epistêmica ao longo do tempo
É possível notar que, para a expressão da modalidade não-epistêmica, o verbo
poder se mostra predominante até o período V, com índices de 63%, 61%, 59%, 40%
e 55%, respectivamente. Nos períodos VI e VII, começa a declinar, chegando a 32%
85
nos anos 1990 (Período VII). O auxiliar ter de/que, sai de discreto índice de 13% e
alcança 39%, superando, ainda que levemente, o uso de dever. Pode-se supor que
essa competição levará à vitória de ter que (já atestada na fala espontânea). Quanto
ao uso do auxiliar precisar, nota-se um uso marginal ao longo do tempo.
3.3.6 A referência do sujeito
A referência do sujeito tem grande importância para esta pesquisa.
Distinguimos o sujeito expletivo (sem referência) dos referenciais (que incluem a
referência definida e a arbitrária), conforme já visto. Dentre os 839 dados, apenas 108
contêm sujeitos expletivos (12,5%) e 734 são referenciais (87,5%). Entre os dados de
sujeito referencial estão os de referência definida, cujo número de ocorrências foi 693
(94%) e os de referência arbitrária, que totalizaram 41 dados (6%). É válido destacar,
no entanto, que essas três referências do sujeito (expletivos, de referência arbitrária e
de referência definida) não estão em variação, embora o tipo de modalidade que as
estruturas em que se encontram estejam. Exemplos de sujeitos expletivos podem ser
vistos em (43a,b), definidos em (44a,b) e arbitrários em (45a,b):
(43)
a. Maria: Ah, seu José, Dona Maria. A que horas o senhor vai ligar água hoje,
hein, seu José? (...) Só? Então é senhor manda me avisar, sim? Obrigada, pro
senhor também. A vida é breve. Øexp É preciso [não parar de falar]. Se paro,
quem dirá que poderei falar de novo?
(Um elefante no caos, Millôr Fernandes, 1955)
b. Ventura: Então Øexp não póde haver mais duvida.
Tiburcio: Não póde mais haver dvida de que?
Ventura: De que o senhor é mesmo meu pai.
(O hóspede do quarto nº 2, Armando Gonzaga, 1937)
(44) a. Júlia: Acredite ou não, Ø1ps não posso ver uma coisa de valor sem ter
vontade de roubá-la. Faço com tal naturalidade que ninguém percebe. Vê esse
relógio; eu e Evandro procuramos por toda a casa. Escondi sem saber onde.
(Pigmaleoa, Millôr Fernandes, 1955)
86
b. Inácia: Você precisa empregar-se. Isso não é vida! Está um homem feito,
com vinte anos, e não tem um emprego.
(Onde canta o sabiá, Gastão Tojeiro, 1920)
(45)
a. Henrique: Eu não pode fumar que cigarros de Havana.
Teodoro: Está como eu. Este é magnífico! Não sei como Øarb se possa tragar
charutos daqui. (O tipo brasileiro, França Júnior, 1872)
b. Um médico americano já disse que vivemos na era espacial mas deixamos
nossos órgãos sexuais na idade da pedra. Øarb Precisamos falar sobre sexo
abertamente, como discutimos política ou futebol.
(Confidências de um espermatozoide careca, Carlos Eduardo Novaes, 1986)
Podemos verificar a distribuição dos dados segundo a referência do sujeito ao
longo do tempo na tabela e no gráfico abaixo:
Tabela 14: Referência do sujeito ao longo do tempo (modalidade não-epistêmica)
Período
Período I
1845-1846
Período II
1872-1883
Período III
1918-1920
Período IV
1933-1937
Período V
1955
Período VI
1975-1986
Período VII
1992
Expletivo
Arbitrário
Definido
Total
24 (23%)
3 (3%)
77 (74%)
104 (100%)
27 (28%)
7 (7%)
64 (65%)
98 (100%)
20 (14%)
5 (4%)
112 (82%)
137 (100%)
16 (18%)
5 (6%)
68(76%)
89 (100%)
3 (2%)
5 (3%)
120 (95%)
128 (100%)
13 (10%)
6 (6%)
112 (84%)
131 (100%)
2 (1%)
10 (7%)
140 (92%)
152 (100%)
87
95%
100%
80%
82%
74%
92%
76%
84%
65%
60%
40%
20%
23%
3%
28%
7%
18%
14%
6%
4%
3%
0%
I
II
III
expletivo
IV
arbitrário
V
2%
10%
7%
6%
VI
VII
1%
definido
Gráfico 7: Distribuição das estruturas para a expressão da modalidade
não-epistêmica segundo a referência do sujeito ao longo do tempo
Conforme é possível perceber, a curva dos sujeitos de referência definida é a
mais alta, variando entre 74% e 92%, o que confirma a hipótese de que esse tipo de
referência do sujeito seria cada vez maior ao longo do tempo, pela preferência no PB
por evitar sentenças impessoais, foi confirmada. Além disso, vemos que os sujeitos
sem referência (ou expletivos), presentes em estruturas com predicadores verbais e
adjetivais ou com verbos auxiliares ligados a verbos impessoais, também como o
esperado, diminuíram consideravelmente ao longo do tempo, passando de 23% no
período I para apenas 1% no período VII. Os dois dados de sujeito expletivo desse
período tratam justamente das construções com a estrutura inovadora “ser pra”, que
se mostra menos produtiva nesta amostra do que a construção inovadora para a
expressão da modalidade epistêmica “dar pra”.
3.3.7 Os sujeitos de referência arbitrária
Como mencionado no capítulo 2 e na seção anterior, esperamos que as
estratégias de indeterminação com a terceira pessoa do plural e o pronome se
indefinido sejam mais utilizadas nas peças mais antigas e que as outras estratégias
de indeterminação, sobretudo você e a gente sejam as mais recorrentes em peças
mais recentes. Dos 41 dados de sujeito de referência arbitrária, 17 apresentam a
construção com “se” indefinido (incluindo o se nominativo e passivo), o equivalente a
42%, seguidos de 8 dados de 1ª. pessoa do plural (20%), de 7 dados da estratégia “a
gente” (17%), de 5 dados da estratégia “você” (12%), de 3 dados da estratégia “zero”
88
(7%) e de 1 dado de 3ªp. do plural, como podemos visualizar, nessa ordem, em (46)(51):
(46)
a. Corina: Você sempre diz que não se deve pensar no que passou, mas sim
no que há de vir. E afinal não segue seu próprio conselho...
.(O troféu, Armando Gonzaga, 1933)
b. Mr. James: Mim quer privilegia para introduzir minha sistema em Brasil, e
estabelecer primeira linha em Corcovada, com todas as favores de lei de Brasil
para empresa de caminha de ferro.
Brito: Mas o cachorro não está ainda classificado como motor na nossa
legislação de caminhos de ferro. . .
Dr. Monteirinho: Neste caso deve levar-se a questão ao poder legislativo. (Caiu
o ministério, França Júnior, 1882)
(47)
a. Custódio: Em nome da paz da freguesia, em nome de meus concidadãos,
em nome da nossa honra, em nome da tranqüilidade pública, Øarb devemos
respeitar o direito do cidadão.
(Como se fazia um deputado, França Júnior, 1882)
b. Paulo: Mamãe, tudo se faz. Øarb Não podemos ficar muito presos a uma
moral só. Øarb Temos de experimentar várias. Pragmatismo, mãezinha.
(Um elefante no caos, Millôr Fernandes, 1955)
(48)
a. Evandro: Só uma coisa ficou faltando na história: a mensagem.
Ismênia: Neste mundo não há felicidade. Portanto a gente tem que ser feliz
assim mesmo. (Pigmaleoa, Millôr Fernandes, 1955)
b. Margareth: Desde quando a gente precisa saber escrever prá vender
bala? (No coração do Brasil, Miguel Falabella, 1992)
89
(49)
a. Quase todo mundo sente um arrepio com uma linguazinha no ouvido. Mas é
preciso saber usá-la nas cavidades auriculares. Você não pode ir enfiando a
língua de qualquer maneira.
(Confidências de um espermatozoide careca, Carlos Eduardo Novaes, 1986)
b. Melanie: Tem uma outra técnica, que é muito usada, hoje em dia. O segredo
é não se importar. Se você não se importar, você acaba dormindo, mas você
precisa não se importar de verdade.
(No coração do Brasil, Miguel Falabella, 1992)
(50)
Vocês não sabem o que é preciso para botar um bloco na rua, um bloquinho
de carnaval? Øarb Precisa juntar mais papel que pra aquisição da casa
própria.
(Confidências de um espermatozoide careca, Carlos Eduardo Novaes, 1986)
(51)
Holly: Há anos que aqueles anões horrorosos vêm atirando madrastas do
penhasco. Eles deveriam ensinar amor às crianças. Já tem ódio demais no
mundo! (No coração do Brasil, Miguel Falabella, 1992)
A tabela abaixo mostra a distribuição dessas estratégias ao longo do tempo:
Tabela 15: Distribuição dos sujeitos de referência arbitrária
ao longo do tempo (modalidade não-epistêmica)
Período
Se
1ª.p.p
A gente
Você
Zero
3ª.p.p
Total
Período I
1845-1846
Período II
1872-1883
Período III
1918-1920
Período IV
1933-1937
Período V
1955
Período VI
1975-1986
Período VII
1992
3
(100%)
0 (0%)
0 (0%)
0 (0%)
0 (0%)
0 (0%)
3 (100%)
6 (86%)
1 (14%)
0 (0%)
0 (0%)
0 (0%)
0 (0%)
7 (100%)
1 (20%)
2 (40%)
2 (40%)
0 (0%)
0 (0%)
0 (0%)
5 (100%)
6
(100%)
0 (0%)
0 (0%)
0 (0%)
0 (0%)
0 (0%)
6 (100%)
1 (20%)
3 (60%)
1 (20%)
0 (0%)
0 (0%)
0 (0%)
5 (100%)
0 (0%)
2 (33%)
0 (0%)
3 (50%)
1 (17%)
0 (0%)
6 (100%)
0 (0%)
0 (0%)
4 (45%)
2 (22%)
2 (22%)
1 (11%)
9 (100%)
90
Ainda que haja um número pequeno de dados, assim como para a expressão
da modalidade epistêmica, fica evidente o desuso do “se” indefinido, que não aparece
nos dois últimos períodos, e da 3ª. pessoa do plural (embora esta continue a ser uma
forma de indeterminação muito produtiva no português contemporâneo). Conforme o
esperado, nas últimas sincronias, é possível perceber outras estratégias de
indeterminação que entram no lugar dessas formas mais conservadoras, como a 1ªp.
pessoa do plural e as estratégias “a gente” e “você”. Como mencionado na seção
anterior, esse número pequeno de dados mostra, naturalmente, que a grande
concentração de dados é de sujeitos com referência definida.
3.3.8 Os sujeitos de referência definida
Assim como na análise da modalidade epistêmica, nesse grupo, reuni singular
e plural, no entanto, o número de dados com sujeito no singular é largamente superior
aos dados com sujeito no plural. Apenas na terceira pessoa distingui os sujeitos
pronominais de SNs lexicais. Dos 693 dados de referência definida, o tipo que se
mostrou mais frequente foi a 1ª pessoa, com 329 dados, o correspondente a 47%,
seguido da 2ª pessoa, com 191 dados (28%), dos SNs lexicais, com 110 dados (16%)
e a 3ª pessoa pronominal, com 63 dados (9%). Temos em (52a,b) exemplos de 1ª
pessoa (do singular e do plural), em (53a,b) de 2ª pessoa (do singular e do plural); em
(54a,b) de 3ª pessoa (do singular e do plural) e, em (55a,b), os exemplos de SN lexical
no singular e plural:
(52)
a. Artur: Vou “fazer força” junto dela. Ao mesmo tempo, Ø1ps preciso livrar- me
do pai, que já deve andar a minha procura.
(O simpático Jeremias, Gastão Tojeiro, 1918)
b. Menelau: Fóra daí, não sei o que aconteceraá. Ou melhor, sei perfeitamente
o que vai acontecer. Ø1pp Teremos de entregar a nossa casinha ao bandido do
Zacharias e passar a outra de aluguel, que não sei onde nem como iremos
arranjar. (O troféu, Armando Gonzaga, 1933)
91
(53)
a. Jorge: Sinto o trabalho que tiveram... E como não é mais preciso, Ø2ps
podem-se retirar. (O noviço, Martins Pena, 1845)
b. Ernani: Hum! Parece-me que essa coisa de ensaiar a tal Serenata, não passa
de um pretexto que vocês arranjaram para Ø2pp poderem conversarem à
vontade. (Onde canta o sabiá, Gastão Tojeiro, 1920)
(54)
a. Arminda: Estou abismada!
Menelau: E eu zonzo. Mas isso não póde ficar assim. Ela tem que aceitar de
qualquer forma. (O troféu, Armando Gonzaga, 1933)
b. Jamais a mente humana imaginou que aqueles três, com cara de santo,
pudessem fazer tanta porcaria.
(Confidências de um espermatozoide careca, Carlos Eduardo Novaes, 1986)
(55)
a. Sabino: Que ela, que ela é desaver... desavergonhada... eu bem sei, sei
muito bem... e cá sinto, e cá sinto... mas em aten... em aten... em atenção a
mim... minha mãe... minha mãe devia ceder...
(Quem casa, quer casa, Martins Pena, 1845)
b. Espíquer: Atenção! Atenção! Com a decretação da Lei Marcial, às treze
horas e dezoito minutos de hoje, todos os elementos terroristas do país estão
sujeitos à pena de morte. Todas as pessoas pogonóforas, isto é, com barba
na cara, que não pertencerem ao Partido Terrorista, devem raspá-la
imediatamente para evitar equívocos fatais.
(Um elefante no caos, Millôr Fernandes, 1955)
A Tabela 16, a seguir, apresenta a distribuição dessas ocorrências de sujeitos
de referência definida segundo a pessoa gramatical.
92
Tabela 16: Distribuição dos sujeitos de referência definida
ao longo do tempo (modalidade não-epistêmica)
Período
1ª pessoa
2ª pessoa
3ª pessoa
SN8
Total
Período I
37 (48%)
21 (27%)
5 (7%)
14 (18%)
77 (100%)
Período II
32 (50%)
13 (20%)
4 (6%)
15 (24%)
64 (100%)
Período III
59 (53%)
34 (30%)
6 (5%)
13 (12%)
112 (100%)
Período IV
30 (45%)
17 (25%)
3 (5%)
17 (25%)
67 (100%)
Período V
63 (52%)
33 (28%)
10 (8%)
14 (12%)
120 (100%)
Período VI
45 (40%)
32 (29%)
19 (17%)
16 (14%)
112 (100%)
Período VII
63 (45%)
41 (29%)
16 (11%)
21 (15%)
141 (100%)
3.3.9 A forma de realização do sujeito
Como visto no capítulo e nas seções anteriores, há uma tendência no PB ao
preenchimento do sujeito. Assim, acredito que, além da preferência por verbos
auxiliares para expressão da modalidade, justamente por eles projetaram, em geral,
uma posição de sujeito referencial, haverá, nesses casos, uma preferência pelo sujeito
preenchido de referência definida nas últimas sincronias. A tabela a seguir leva em
conta os dados de sujeitos da Tabela 16 acima, excluindo os sujeitos representados
por um SN lexical, por serem categoricamente expressos, e os sujeitos de construções
com imperativo, por serem categoricamente nulos. Vejamos a distribuição dos tipos
de sujeitos de referência definida em relação à realização dos sujeitos pronominais ao
longo do tempo:
8
Assim como na análise da modalidade epistêmica, ocorreu um caso de sujeito representado por uma
relativa livre:
(3) Elvídio: Certamente. Só pode gostar disto [quem não conhece a Europa com toda a sua requintada
civilização]. (Onde canta o sabiá, Gastão Tojeiro, 1920)
93
Tabela 17: A expressão dos sujeitos de referência definida
nulos (vs plenos) ao longo do tempo (modalidade não-epistêmica)
Período
1ª p.
2ª p.
3ª p.
Período I
26/37 (70%)
11/12 (92%)
4/5 (80%)
Período II
20/32 (63%)
11/11 (100%)
3/4 (75%)
Período III
51/59 (86%)
17/26 (65%)
6/6 (100%)
Período IV
20/30 (67%)
3/11 (27%)
1/3 (33%)
Período V
41/63 (65%)
11/19 (58%)
7/10 (70%)
Período VI
23/45 (51%)
5/29 (17%)
15/19 (79%)
Período VII
14/63 (22%)
9/30 (30%)
9/16 (56%)
O Gráfico 8 a seguir nos permite observar a queda do sujeito nulo nas
estruturas com sujeitos definidos:
100%
80%
60%
92%
80%
70%
100%
75%
100%
86%
79%
67%
70%
65%
63%
65%
33%
40%
58%
56%
30%
17%
27%
20%
51%
22%
0%
I
II
III
1ª p.
IV
2ª p.
V
VI
VII
3ª p.
Gráfico 8: A realização dos sujeitos referenciais nulos (vs plenos) para
a expressão da modalidade não-epistêmica ao longo do tempo
Através da análise da tabela e do gráfico acima, é possível confirmar a
tendência ao preenchimento do sujeito pronominal nas construções que expressam a
modalidade não-epistêmica. Contudo, é preciso destacar que apenas para a 1ª.
pessoa temos um número mais expressivo de dados (329). Assim como na análise da
94
modalidade epistêmica, essa melhor distribuição nos mostra uma curva descendente.
É possível perceber que os sujeitos são preferencialmente nulos até o período V,
alcançando índices de 70%, 63%, 86%, 67% e 65%, nessa ordem. Nos períodos VI,
ainda que haja 51% de sujeitos nulos, notamos uma importante queda em
comparação com os períodos anteriores, o que, como já mencionado, ocorre na
análise de Duarte (1993) para tais sujeitos. No período VII, vemos claramente a
preferência pelo preenchimento, com apenas 22% dos dados de sujeito nulo. Os
exemplos em (56a,b) mostram ilustram o sujeito de 1ª. pessoa nulo e pleno:
(56) a. Ritinha: E já está na hora de irmos para o circo.
Justino: É verdade: Ø1pp temos que ir ver o desequilibrado do Ernani.
(Onde canta o sabiá, Gastão Tojeiro, 1920)
b. Glicério: É o que resta como? Eu tenho que dar satisfação desse dinheiro.
Você tem de prestar contas a mim.
(Um elefante no caos, Millôr Fernandes, 1955)
A mesma tendência de queda de sujeitos nulos é observada na 2ª. pessoa,
mas precisamos destacar que sua frequência é bem menor. Tal como em Duarte
(2012b) e na análise da expressão da modalidade epistêmica, podemos perceber que
nos três primeiros períodos, os sujeitos são preferencialmente nulos, alcançando
índices de 92%, 100% e 65%, respectivamente. No período IV, esse quadro muda,
apenas 27% dos dados são nulos. É possível ver, a partir desse momento, com
exceção do período V, a mesma direção da mudança do estudo de Duarte (1993), no
qual a autora mostra que, motivado pela substituição do pronome “tu” por “você” na
amostra analisada9 com a consequente redução do paradigma flexional, o
preenchimento do sujeito torna-se a forma preferencial para a sua identificação. Nos
períodos VI e VII os índices de sujeito nulo são bem baixos, alcançando 17% e 30%,
nessa ordem. Podemos visualizar os exemplos de sujeito de 2ª pessoa nulo e
preenchido, respectivamente, em (57a,b):
9
Nas peças analisadas por Duarte, quando o pronome tu reaparece, nos anos 1990, já se encontra em variação
com você, ou seja, é usado com a forma verbal sem a desinência canônica <-s>.
95
(57)
a. Fabrino: Ø2ps Precisas voltar imediatamente para o teu Paris.
(Onde canta o sabiá, Gastão Tojeiro, 1920)
b. Julia: A sua primeira experiência Cristina, é despertar o seu corpo para leválo a um grande desempenho. Assim como os ginastas, nadadores, atletas.
Você tem que ser uma atleta do amor. (A mulher integral, Carlos Eduardo
Novaes, 1975)
Em relação à 3ª. pessoa, diferentemente do que foi encontrado na análise da
modalidade epistêmica, o sujeito pronominal e o nulo não se mostram em grande
competição. Além da má distribuição dos dados, sei que, como destaca Duarte
(2012b), a 3ª. pessoa é a que se mostra mais resistente à mudança. Nos três primeiros
períodos, notamos a preferência pelo sujeito nulo, que alcança 80%, 76%, 100%,
respectivamente. No período IV, há apenas três dados, e dois deles aparecem
expressos – mas usar percentuais para um conjunto tão pequeno nos levaria a uma
interpretação equivocada. Nos períodos V e VI, os sujeitos nulos ainda alcançam
índices bem altos de 67% e 57%. No período VII, no entanto, apesar de o sujeito nulo
ser predominante, a tendência ao preenchimento se mostra mais evidente, já que há
uma queda considerável no número de sujeitos nulos, que passam de 80% no período
I para 56% no período VII. Devo destacar que nesta análise incluí casos em que um
sujeito pronominal se encontra num contexto sintático que favorece o sujeito nulo e
também aqueles em que seu antecedente tem outra função ou retoma dois SNs,
favorecendo o sujeito preenchido, o que será visto posteriormente. Exemplos de
sujeitos de 3ª pessoa pronominal nulo e preenchido, nessa ordem, podem ser vistos
em (58a,b).
(58)
a. Paulo: Ótimo. Minha mãe vai ficar alegríssima. Ø3ps Não pode ver nenhum
parafuso fora da engrenagem da exploração do homem.
(Um elefante no caos, Millôr Fernandes, 1955)
b. Melanie: Elai agride a crioula. As duas brigam que nem cão e gato. E eu
digo que elai tem que respeitar o seio que me amamentou.
(Como encher um biquíni selvagem, Miguel Falabella, 1992)
96
Em relação aos diferentes contextos sintáticos em que o sujeito pronominal de
3ªp. pode estar, podemos ver alguns deles através dos exemplos (59a,b), (60 a,b) e
(61a,b) a seguir:
(59)
a. Estei nasceu para poeta ou escritor, com uma imaginação fogosa e
independente, capaz de grandes cousas, Ø3ps i mas não pode seguir a sua
inclinação, porque poetas e escritores morrem de miséria, no Brasil...
(O noviço, Martins Pena, 1845)
b. Arnaldo: Desculpe. Achei que era uma amiga minha. Onde é que todo mundo
se meteu? Mariza? Abílio? Patrícia? Guto? Claudinho? Jane, cadê você?
Analice? Vítor? Beth? Cadê a Beth, meu Deus? E a Karlai? Elai tem que estar
por aqui, em algum lugar.
(Como encher um biquíni selvagem, Miguel Falabella, 1992)
Observando os dois exemplos em (59) acima, vemos tendências diferentes –
nos dois casos, o antecedente é o tópico no contexto precedente, mas o sujeito
aparece nulo na peça de 1845 e expresso na de 1992.
Nos exemplos em (60) a seguir, temos mudança de referência no sujeito da 2ª
coordenada e da subordinada, o que em geral leva ao preenchimento.
(60)
a. Fabiana: Ai que estalo! Isto assim não vai longe... Duas senhoras a
mandarem em uma casa... é o inferno! Duas senhoras? A senhora aqui sou eu;
esta casa é de meu marido, [e ela deve obedecer-me], porque é minha nora.
Quer também dar ordens; isso veremos...
(Quem casa, quer casa, Martins Pena, 1845)
b. Dona irene: Pois elei que sofra um pouco. Se o Cristo sofreu, [porque é que
elei não pode sofrer um pouquinho]. Vamos lá, Gabriel. Mais uma vez!
(No coração do Brasil, Miguel Falabella, 1992)
Nos exemplos em (61), por sua vez, temos a manutenção da referência no
sujeito da 2ª coordenada e na subordinada, o que em geral leva ao apagamento. O
97
sujeito nulo resiste nesses dois contextos inclusive na última sincronia, em que há
preferência pelo preenchimento em outros contextos sintáticos.
(61)
a. Arnaldo: Agora, vê, [a Patrícia]i trabalha a semana inteira [e, no fim de
semana, Ø3ps i vai ter que sair com quatro pessoas].
(Como encher um biquíni selvagem, Miguel Falabella, 1992)
b. Crioula: Eu já disse: Dona Paula, abre o olho que essa menina tá fumando
erva no quarto. Mas elai disse [que Ø3ps i tem que respeitar a intimidade da
filha]. Eu criei, mas sou empregada, né? Não posso falar nada.
(Como encher um biquíni selvagem, Miguel Falabella, 1992)
Como referido na seção anterior, sabemos que uma amostra mais ampla
permitiria uma análise mais refinada dos contextos que influenciam a expressão do
sujeito de 3ª pessoa, ainda que a tendência ao seu preenchimento se confirme.
3.4 O que dizem os resultados?
Um aspecto interessante após a análise é podermos fazer uma comparação
entre os resultados da última sincronia (1992) e a análise de fala e de escrita de Duarte
(2012a) que foi feita com base em uma das amostras NURC-RJ gravada no mesmo
ano e em textos de jornais da mesma década retirados do PEUL-RJ.
As peças nos revelam que tanto para a modalidade epistêmica, quanto para a
modalidade não-epistêmica houve um desaparecimento de construções com
predicadores adjetivais e predicadores verbais tradicionais. Estes foram substituídos,
de uma forma mais consistente, pela construção inovadora “dar pra” (15%) para a
expressão da modalidade epistêmica e, de uma forma menos produtiva, pela
construção inovadora “ser pra” (1%) para a expressão da modalidade não-epistêmica.
Foi possível notar também a preferência pelos verbos auxiliares para a expressão das
duas modalidades (80% - modalidade epistêmica e 99% - modalidade nãoepistêmica). Entre eles, os mais produtivos foram o verbo poder para expressão da
modalidade epistêmica e o verbo ter que/ter de para a expressão da modalidade nãoepistêmica. Além disso, foi possível perceber a tendência ao preenchimento do sujeito
98
referencial (77% de sujeitos preenchidos – modalidade epistêmica e 69% de sujeitos
preenchidos – modalidade não-epistêmica).
Esses resultados se aproximam bastante dos encontrados por Duarte (2012a)
para a fala, em que percebemos que os verbos auxiliares também são os preferidos
para a expressão da modalidade (70% - modalidade epistêmica e 99% - modalidade
deôntica). Entre eles, os mais produtivos também são poder e ter que/ter de. Quanto
ao preenchimento do sujeito, eles também revelam uma tendência ao preenchimento
(75% de sujeitos preenchidos - modalidade epistêmica e 69% de sujeitos preenchidos
- modalidade deôntica), sobretudo na expressão da modalidade epistêmica. A respeito
dos resultados encontrados para a escrita, não houve grandes diferenças. Os verbos
auxiliares seguem sendo os preferidos para a expressão de ambas as modalidades
(87% - modalidade epistêmica e 87% - modalidade deôntica). Os mais produtivos
continuam sendo poder e ter que/ter de, porém esse último se mostra em uma
distribuição mais equilibrada com dever. Por fim, em relação ao preenchimento do
sujeito, também mostram uma tendência ao preenchimento (78% de sujeitos
preenchidos - modalidade epistêmica e 61% de sujeitos preenchidos - modalidade
deôntica).
Através desses resultados, é possível confirmar que as peças teatrais são um
bom recurso para recuperar até certo ponto a gramática de sincronias passadas.
Com isso, passo agora às considerações finais.
99
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta pesquisa, meu principal objetivo foi investigar o comportamento das
formas de expressão da modalidade epistêmica e não-epistêmica analisadas
(predicador verbal, predicador adjetival e verbo auxiliar) ao longo do tempo, utilizando
como amostra peças teatrais cariocas distribuídas em sete períodos nos séculos XIX
e XX.
Utilizo uma perspectiva paramétrica, pois acredito que a escolha por
determinadas estruturas em detrimento de outras não é aleatória, mas está ligada a
uma mudança maior por que passa o PB, em que se nota a preferência por
construções que evitam sujeitos expletivos nulos, como mostram inúmeros trabalhos
sobre construções impessoais (cf. estudos empíricos em Duarte 2012a), preferindo
construções que projetem um sujeito referencial (definido ou arbitrário); além disso, o
PB mostra preferência pelo preenchimento desses sujeitos, estando o processo de
mudança mais avançado em relação à 1ª. e 2ª. pessoas. Com a 3ª. pessoa, a
mudança segue mais lentamente, mas sujeitos com o traço [+humano] já seguem de
perto a 1ª. e a 2ª. pessoas. É válido destacar que os sujeitos de 3ª. pessoa incluíam
os expressos por um SN, no entanto, como essa forma não compete com os sujeitos
pronominais quanto ao preenchimento, não foram levados em consideração na
análise feita para verificar o preenchimento do sujeito.
Entre as formas de expressão da modalidade investigadas, os predicadores
verbais e adjetivais projetam sentenças impessoais, enquanto os verbos auxiliares,
exceto nos casos em que se constroem com verbos impessoais, projetam uma
posição de sujeito referencial. Por esse motivo, minha hipótese principal era de que
as construções com verbos auxiliares seriam muito mais produtivas nos textos das
peças do que as estruturas com predicadores verbais e adjetivais. Estas deveriam
aparecer nas primeiras sincronias, mesmo que de uma forma parcimoniosa, mas
diminuiriam ao longo do tempo.
Como ponto de partida, busquei verificar como a categoria modalidade é
tratada nas gramaticais tradicionais, nos estudos linguísticos, nas gramáticas
descritivas, além de buscar resultados de estudos empíricos. Foi possível constatar
que se trata de uma categoria que passou a ser formalmente proposta e analisada a
partir do desenvolvimento dos estudos linguísticos (cf. Lyons, 1979 [1968]), de modo
muito especial pelo trabalho pioneiro de Palmer (2001[1986]), não aparecendo,
naturalmente, como uma categoria na tradição gramatical. Vimos também que
100
algumas gramáticas descritivas atuais, elaboradas com a sustentação de uma teoria
linguística, se importam em incluir a categoria, que, sendo tratada sob diferentes
perspectivas teóricas, acaba envolvendo inúmeros e diferentes aspectos, o que é
natural. Essas diversas perspectivas trazem algumas divergências quanto à sua
classificação, mas, de forma geral, consideram-se duas classificações: deôntica
(quando indica obrigação ou permissão) e epistêmica (quando está ligada às crenças
e opiniões do falante, indicando possibilidade/probabilidade), Entre as diversas
propostas revistas, utilizo a de Neves (2006), que separa a categoria em dois tipos:
epistêmica (que diz respeito às crenças e opiniões do falante, indicando
possibilidade/probabilidade) e não-epistêmica, que abarca as modalidades deôntica
(que expressa permissão e obrigação e está no eixo da conduta) e dinâmica (que
expressa habilidade e capacidade e está no eixo da habilidade).
Para verificar minhas hipóteses, utilizei os pressupostos teóricos da Teoria de
Princípios e Parâmetros (Chomsky (1981)), no que diz respeito à marcação do
Parâmetro do Sujeito Nulo (PSN), associada à Teoria da Mudança Linguística
(Weinreich, Labov e Herzog (2006 [1968])), levando em conta principalmente o
encaixamento da mudança.
Os resultados encontrados confirmam minhas expectativas. Embora os verbos
auxiliares predominem desde as primeiras sincronias, é possível verificar seu aumento
ao longo do tempo. Para a expressão da modalidade epistêmica, os predicadores
verbais mais convencionais como bastar e convir foram encontrados, ainda que de
forma bem reduzida, até o período V (anos 1950). A partir desse período, esses
predicados desaparecem, sendo substituídos por construções com a forma inovadora
“dar pra”, que alcança índices consideráveis na última sincronia. Os predicadores
adjetivais, por sua vez, mostram-se não muito produtivos desde as primeiras
sincronias e sofrem uma leve queda ao longo do tempo (7% no período I (1945) e 5%
no período VI (1992)). Quanto ao preenchimento dos sujeitos pronominais, como
esperado, foi possível notar uma tendência ao preenchimento nas últimas sincronias.
Enquanto no período I os índices de preenchimento eram de 25%, 0% e 50% para a
1ª, a 2ª e a 3ª pessoa, respectivamente, na última sincronia, esses índices são de
80%, 86% e 67%.
Para a expressão da modalidade não-epistêmica, o quadro não é muito
diferente. Os verbos predicadores convencionais não são encontrados em nenhuma
sincronia, enquanto a construção inovadora “ser pra” é encontrada, ainda que de
101
forma reduzida, nos períodos VI (1975) e VII (1992). Já os predicadores adjetivais,
como o esperado, diminuíram ao longo do tempo. Eles se mostraram relativamente
produtivos nos primeiros períodos, mas desapareceram no último (23% e 28% nos
períodos I e II, respectivamente e 0% no período VII). Em relação ao preenchimento
dos sujeitos pronominais, os resultados são um pouco diferentes dos encontrados na
análise da modalidade epistêmica. No período I, os índices de preenchimento eram
de 30%, 8% e 20% para a 1ª, a 2ª e a 3ª pessoa, nessa ordem, enquanto, no período
VII, esses índices são de 78%, 70% e 44%. Vemos que para a expressão da
modalidade a 3ª pessoa é bastante resistente ao preenchimento. Esse resultado deve,
entretanto, ser visto com cuidado porque incluí sujeitos representados por SNs novos,
que não poderiam ser incluídos numa análise de retomada pronominal de sujeitos
anafóricos. Assim, não foi feito o controle das estruturas sintáticas que podem ou não
levar ao preenchimento do sujeito de terceira pessoa.
Em uma comparação mais restrita entre a última sincronia (1992) e a análise
de fala espontânea (1992) e de escrita (década de 90) do estudo de Duarte (2012a),
obtivemos resultados muito próximos. As três análises detectaram que os verbos
auxiliares são predominantes; poder e ter que/ter de são os preferenciais para a
expressão da modalidade epistêmica e não-epistêmica, respectivamente. Também
mostraram que as construções com predicadores adjetivais e predicadores verbais
convencionais desapareceram.
Por fim,
juntando
os
sujeitos
pronominais,
encontramos índices bem parecidos de preenchimento: 77% de sujeitos preenchidos
para expressão da modalidade epistêmica e 69% de sujeitos preenchidos para a
expressão da modalidade não-epistêmica (Peça de 1992), 75% de sujeitos
preenchidos para a expressão da modalidade epistêmica e 69% de sujeitos
preenchidos para a expressão da modalidade deôntica (análise de fala - Duarte
(2012a)) e 78% de sujeitos preenchidos para a expressão da modalidade epistêmica
e 61% de sujeitos preenchidos para a expressão da modalidade deôntica (análise de
escrita – Duarte (2012a)).
Com todo o exposto, acredito que este trabalho pôde contribuir para uma
descrição de algumas formas de expressão da modalidade e sua relação com a
mudança paramétrica em curso no PB. Sei que o uso restrito dos predicadores verbais
mais conservadores e dos predicadores adjetivais nas primeiras sincronias e seu
desaparecimento nas últimas sincronias pode estar ligado a outros fatores, como o
gênero textual analisado. Dessa forma, acredito que se faz necessária uma
102
comparação com outros gêneros do PB em sincronias passadas, bem como analisar
amostras sincrônicas e diacrônicas do PE. Tenho, porém, algumas evidências, a partir
dos estudos aqui mencionados e elaborados com base em outras amostras, de que
estamos diante de uma mudança encaixada no conjunto de mudanças relacionadas
à remarcação do valor do Parâmetro do Sujeito Nulo pelo português brasileiro.
103
Peças utilizadas
FALABELLA, Miguel. No coração do Brasil. 1992.
____________, Miguel. Como encher um biquíni selvagem. 1992.
FERNANDES, Millôr. Pigmaleoa. Serviço Nacional do Teatro (SNT) Ministério da
Educação (MEC), 1973
___________, Millôr. Um elefante no caos. Porto Alegre: LPM editores, 1979.
FRANÇA JÚNIOR, Joaquim J. de. Teatro de França Júnior. Tomos I e II. Serviço
Nacional de Teatro, Fundação da Arte, 1980.
GONZAGA, Armando. O Troféu. 1933.
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