ESTADO, CAPITALISMO E REPRODUÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO: NOTAS INTRODUTÓRIAS Mossicléia Mendes da Silva Universidade Estadual do Rio de Janeiro [email protected] Maria Clara de Arruda Barbosa Universidade Estácio de Sá [email protected] INTRODUÇÃO O objetivo do presente artigo é fazer uma discussão inicial acerca da importância do Estado na garantia das condições de reprodução ampliada do capital, abordando sinteticamente tal processo no Brasil e a importância que a política de assistência social assume como importante mecanismo de reprodução da força de trabalho. A problematização está estruturada em três partes. Na primeira, problematizamos a funcionalidade do Estado na reprodução do capital. Na sequência, particularizamos esta discussão abordando a importância e centralidade do Estado na formação e dinamização do capitalismo no Brasil. A terceira parte é constituída por reflexões acerca da política social brasileira, com enfoque para os governos petistas e a centralidade assumida pela política de assistência social. É evidente que o objetivo da discussão é amplo e por isso destacamos seu caráter aproximativo e inicial, uma vez que prospectamos seu aprofundamento na tese de doutorado. O Estado e sua funcionalidade na reprodução do capital Ainda que Marx não tenha elaborado uma teoria sistemática sobre o Estado, é certamente a partir dele, que encontramos a inflexão teórica que fundamenta uma visão crítica do Estado. E é sobre esse fundamento básico que importantes marxistas puderam elaborar produções consistentes acerca do Estado e da sociedade civil. O grande mérito de Marx foi explicitar o caráter de classe do Estado. Para o autor alemão, o Estado expressa as relações materiais de produção engendradas na sociedade civil, não é, portanto, uma entidade universal, que paira acima da humanidade ou conduzindo-a como dotado de vida própria. Em verdade, o Estado, sua dinâmica e direção social, expressa o movimento geral da sociedade e suas relações sociais, processadas na vida concreta. Na esteira dessa tradição, Mandel (1982), afirma que o Estado “é o produto da divisão social do trabalho. Surgiu da anatomia crescente de certas atividades superesturutrais, mediando a produção material, cujo papel era sustentar uma estrutura de classe e relações de produção” (p. 333). O autor destaca que, a partir da divisão social do trabalho, o Estado desempenha importantes funções: criar as condições gerais de produção que não podem ser asseguradas pelas atividades privadas; reprimir quaisquer ameaças da classe dominada ao modo de produção corrente através do aparato coercitivo; integrar as classes dominadas, garantindo a reprodução e legitimação da ideologia dominante. O Estado tem um evidente caráter histórico, e, se sua existência é anterior ao capitalismo e a hegemonia da dominação burguesa, seu papel no modo de produção capitalista tem características particulares historicamente determinadas. Ainda de acordo com Mandel (1982), o Estado burguês se diferencia das formas anteriores de dominação de classe por uma peculiaridade da sociedade burguesa que é própria do modo de produção capitalista: “o isolamento das esferas pública e privada da sociedade, que é consequência da generalização sem igual da produção de mercadorias, da propriedade privada e da concorrência de todos contra todos” (p. 336). A intensa concorrência capitalista requer, assim, um aparato autônomo que, ao coadunar os interesses dos capitalistas individuais, pudesse funcionar como um ‘capitalista total ideal’, servindo aos interesses de proteção, consolidação e expansão do modo de produção capitalista como um todo, acima e ao contrário dos interesses conflitantes do ‘capitalista total real’ constituído pelos muitos capitais do mundo real (MANDEL, 1982, p. 336). De acordo com Behring (2009), o conceito de “capitalista total ideal” de Mandel é muito importante para a compreensão do Estado burguês, já que o Estado seria o “corolário das relações sociais de produção, mas não elemento que explica sua dinâmica” (p. 27). Ou seja, há claros limites a autonomia do Estado como ente que condensa os diferentes interesses de classe (quando a classe operária entra na cena política) ou de frações de uma mesma classe (burguesia comercial, industrial e financeira). Em última instância, tal autonomia não pode atingir a estrutura básica da produção capitalista, isto é, “a autonomização do poder do Estado na sociedade burguesa é decorrência da predominância da propriedade privada e da concorrência capitalista; mas essa mesma predominância impede que essa autonomização deixe de ser relativa” (MANDEL, 1982, p. 337). É a partir dessa compreensão que discutiremos, brevemente, algumas características do Estado no modo de produção capitalista. É evidente que não daremos conta de abarcar o rol de determinações que sedimenta a atuação do Estado nesta sociabilidade, nem é nosso objetivo fazer um levantamento histórico da intervenção do Estado neste modo de organização das relações sociais, mas abordar sinteticamente o papel crucial e o elenco de funções novas que ele assume na fase “madura” ou tardia do capitalismo, nos termos de Mandel (1982). Mandel (apud BEHRING e BOSCHETTI, 2011) desenvolve uma periodização histórica do capitalismo que tomamos por base. Em tal periodização Mandel aponta um período concorrencial (a partir de 1848), o imperialismo clássico (demarcado entre fins do século XIX até os anos 1930), cuja particularidade é a monopolização do capital; e capitalismo tardio ou maduro, que abarca o período do final da Segunda Guerra até os dias de hoje. Nos termos de Mandel (1982), a era do capitalismo tardio não é uma nova época do desenvolvimento capitalista; constitui unicamente um desenvolvimento ulterior da época imperialista de capitalismo monopolista. Por implicação, as características da era do imperialismo enunciadas por Lênin permanecem, assim, plenamente válidas para o capitalismo tardio (p. 05). A intervenção do Estado burguês na dinâmica econômica sempre foi recorrente, sobretudo atuando como “cioso guardião das condições externas de produção capitalista” (NETTO, 2011, p. 24). Entretanto, a transição do capitalismo concorrencial para o capitalismo dos monopólios concretizando o estágio imperialista, ao colocar em novos patamares a organização da produção social de riqueza, elucidando ao limite as contradições deste modo de produção, passou a demandar “mecanismos de intervenção extra-econômicos”, donde a necessidade veemente de “refuncionalização e redimensionamento da instância por excelência do poder extra-econômico, o Estado (IBIDEM, p. 24). As profundas transformações que estão na base desse processo de transição implicaram em mudanças substantivas na atitude da classe burguesa em relação a ação estatal. O objetivo precípuo de auferir altas taxas de lucros, o que pressupõe, necessariamente, a realização da mais-valia produzida, continua a ser o fundamento deste modo de produção, mas as formas de concretizá-lo, dado a alto grau de complexificação da economia capitalista mundializada, passa a requerer novas estratégias e mediações que extrapolam o âmbito do “livre jogo do mercado”. Para Mandel (1982), o processo de transição do capitalismo concorrencial para o imperialismo e para o capitalismo monopolista provocou alterações “tanto a atitude subjetiva da burguesia em relação ao Estado, quanto a função objetiva desempenhada pelo Estado ao realizar suas tarefas centrais”. O Estado passa a desempenhar papel fundamental frente a tais transformações, sendo completamente capturado pela lógica monopólica do capital, imbricando organicamente as funções políticas com suas funções econômicas, conforme importante assertiva de Netto (2011). De acordo com Netto (2011), são muitas as funções econômicas diretas do Estado: inserção como empresário nos setores básicos não rentáveis, a assunção do controle de empresas capitalistas em dificuldades, a entrega aos monopólios de complexos construídos com dinheiro público, subsídios imediatos e garantia de lucro pelo Estado. Entre as indiretas, destaca: encomendas/compras do Estado aos grupos monopolistas, subsídios indiretos, investimento em infra-estrutura e meios de transporte, preparação institucional da força de trabalho, gastos e investimentos em pesquisa. No estágio tardio do capitalismo monopolista processa-se um adensamento e expansão ainda maiores das funções estatais na dinâmica econômica e na reprodução e controle da força de trabalho. Segundo Mandel (1982), a ampliação das funções do Estado, no estágio tardio do capitalismo monopolista, se dão em função de três importantes características do capitalismo neste estágio: a redução da rotação do capital fixo, a aceleração da inovação tecnológica e aumento enorme do custo dos principais projetos de acumulação de capital. O resultado dessas pressões é uma tendência do capitalismo tardio a aumentar não só o planejamento econômico do Estado, como também a aumentar a socialização estatal dos custos (riscos) e perdas em um número constantemente crescente de processos produtivos. Portanto, há uma tendência inerente ao capitalismo tardio à incorporação pelo Estado de um número sempre maior de setores produtivos e reprodutivos às ‘condições gerais de produção’ que financia. Sem essa socialização dos custos, esses setores não seriam nem mesmo remotamente capazes de satisfazer as necessidades do processo capitalista de trabalho (MANDEL, 1982, p. 339). Isto posto, fica patente que o Estado, a partir do referido momento histórico do capitalismo, é elemento crucial para fazer frente às contradições exponenciadas do capital, atuando de modo a “equilibrar” os efeitos contraditórios do livre mercado, dado que a determinada altura do processo histórico do capitalismo, apenas a dinâmica econômica, exclusivamente, é incapaz de suplantar tais “desequilíbrios”, de modo a garantir os superlucros almejados pelo capital.77 As dificuldades cada vez maiores de valorização do capital, expressas na supercapitalização e superacumulação, também caracteriza o capitalismo tardio. Neste sentido, o Estado resolve essas dificuldades em parte, proporcionando oportunidades adicionais, numa escala sem precedentes, par investimentos ‘lucrativos’ desse capital na indústria de armamentos, na ‘indústria de proteção ao meio ambiente’, na ‘ajuda’ a países estrangeiros, e obras de infra-estrutura (onde ‘lucrativo’ significa tornado lucrativo por meio da garantia e subsídio do Estado (MANDEL, 1982, p. 340). Ademais, a suscetibilidade às crises econômicas e políticas torna-se cada vez mais crescente, o que requer, necessariamente, que o Estado assuma a função vital de “administração das crises”, o que inclui imenso arsenal de políticas governamentais anticíclicas. (IBIDEM). Nisto, é pertinente a análise de Behring (2009), de que há no capitalismo tardio uma verdadeira hipertrofia dos orçamentos Estatais, visando criar “contratendências necessárias às crises” (p. 138). 77 É evidente que o Estado também não pode suplantar os “desequilíbrios de mercado” uma vez que tais “desequilíbrios” nada mais são do que expressão das contradições que são inerentes à produção capitalista e, portanto, insuperáveis nos marcos do capital. O que procuramos aludir é que o Estado é elemento central para contrarrestar as tendências de crise e suas implicações, mesmo que temporariamente. Outra questão fundamental é que a essa quadra histórica a classe trabalhadora já despontara no cenário sóciopolítico como sujeito coletivo, como “classe para si”, o que implicará na necessidade de mecanismos mais sofisticados de controle e reprodução da força de trabalho. Desse modo, o Estado desenvolve uma vasta maquinaria de manipulação ideológica para ‘integrar’ o trabalhador à sociedade capitalista tardia como consumidor, ‘parceiro social’ ou ‘cidadão’ (e, ipso-facto, sustentáculo da ordem social vigente) etc. Mandel constata que o capitalismo tardio comporta uma fase de expansão (nos anos pós-1945) e o seu esgotamento a partir dos anos 1960, iniciando um longo período de estagnação. É evidente que, mantidas as características estruturais do modo de produção capitalista – sua busca desenfreada pelos superlucros e o papel do Estado como ente fundamental na garantia da reprodução do capital –, transformações importantes se processam a partir da eclosão da crise do capital, cujo ápice vem a cume em 1974. Se na primeira fase (expansionista), as relações sociais capitalistas comportam um modo de regulação que auferiu ganhos significativos sociais e cívicos aos trabalhadores, principalmente nos países de capitalismo central e as taxas de lucro foram satisfatórias, permitindo uma larga expansão do capital sobre vários domínios, a fase que se segue (de estagnação) implicará em mudanças importantes no discurso e atuação das classes dominantes em relação ao Estado e a economia. Desde a culminância desta crise, o capital – na personificação de suas classes representantes – buscou implementar um intenso movimento de retomada de crescimentos. Em todo o mundo, novas diretrizes e orientações macroeconômicas foram desencadeadas e colocadas em prática no sentido de concretizar um movimento de convergência de novas estratégias para alcance de um patamar aceitável de crescimento. Nos países centrais, tais diretrizes encontraram solo propício à sua implementação. Destes, são mais evidentes os governos Thatcher e Reagan, na Inglaterra e EUA, respectivamente. De acordo com Netto (2010), o projeto restaurador do capital “se pautava no tríplice mote da flexibilização (da produção, das relações de trabalho), “desregulamentação” (das relações comerciais e dos circuitos financeiros) e da “privatização” (do patrimônio estatal)” (p.11), implicando um redimensionamento da economia capitalista, possibilitando que “o capitalismo monopolista transitasse para o seu estágio contemporâneo, marcado pela financeirização” (p.14). A consolidação do processo de financeirização da economia traz uma série de implicações para a ordem capitalista mundial, como por exemplo, certa margem de predominância da fração financeira do capital na coordenação dos macroprocessos sócioeconômicos e políticos. Na base desse movimento de consolidação da hegemonia financeira internacional sob as demais frações do capital, estão os processos de liberalização ou desregulamentação monetária e financeira, a desintermediação e abertura dos mercados financeiros nacionais. Antes de discutir as implicações da crise sobre os Estados e impactos na política social no Brasil, abordaremos, brevemente, o papel do Estado no desenvolvimento do capitalismo no Brasil. O Estado e a consolidação do capitalismo no Brasil A inserção do Brasil no cenário mundial capitalista se deu sob formas peculiares, de modo dependente, num contexto em que o capital, face à sua intrínseca necessidade acumulativa, expandia seus domínios além dos países de industrialização avançada. Tal inserção se realizou num cenário em que o capital mundial efetivava a transição do capitalismo concorrencial para o monopolista sob a égide do imperialismo norteamericano. Momento crucial na mudança do padrão de acumulação em que insurge um circuito mundializado de competição capitalista, cuja necessidade de escoamento do excedente produtivo para outros locais, bem como a necessidade de mão de obra barata, criaram condições objetivas para a inserção de países como o Brasil nesse circuito. Esse movimento do capital assinala uma inflexão em que a totalidade concreta que é a sociedade burguesa ascende à sua maturidade histórica, realizando as possibilidades de desenvolvimento que, objetivadas, tornam mais amplos e complicados os sistemas de mediação que garantem a sua dinâmica (NETTO, 2011, p. 5). Tal inserção hipertardia (CHASIN apud MARANHÃO, 2009) no capitalismo industrial mundializado acarretou implicações importantes para a constituição capitalista do Brasil e forjou peculiares determinações na formação da classe burguesa brasileira. Fernandes (apud BEHRING, 2008), afirma que a marca da nossa formação social é a heteronomia e a dependência. Aqui, a revolução burguesa não logrou concretizar uma revolução nacional democrática burguesa nas suas características clássicas, donde a ideologia e utopia liberal-democrática-burguesa não chegou a se consolidar essencialmente, mas pela via de torpes adaptações tornando-se uma espécie de “comédia ideológica” (IDEM, p. 93). As condições do desenvolvimento capitalista no Brasil comportam três processos fundamentais, conforme (FERNANDES apud BEHRING, 2008): “a incapacidade de romper com a associação dependente com o exterior (heteronomia); a incapacidade de desagregar completamente os setores arcaicos e a incapacidade de superar o subdesenvolvimento gerado pela concentração da riqueza”(p.102) A constituição de um mercado determinado por fatores externos, bem como a incapacidade da burguesia brasileira de efetuar processos de autonomização em relação aos países de capitalismo avançado são marcas que impactam diretamente na inserção do Brasil no capitalismo mundializado. Se no período colonial o escravismo e a monocultura da grande propriedade foram importantes mecanismos de acumulação originárias de capital para o desenvolvimento do capitalismo nos países centrais, a constituição da República e consolidação do capitalismo periférico serão largamente determinados pelas necessidades do capital mundial em abarcar novos domínios de expansão do capital, do que se conclui a importante ligação entre a consolidação do capitalismo brasileiro e o imperialismo. É importante destacar essa relação – entre a consolidação do capitalismo dependente brasileiro e o imperialismo – não apenas pela importância do capital externo na dinamização econômica do país, mas por que a inserção tardia do Brasil no capitalismo mundializado não é um fenômeno que responde apenas a processualidade socioeconômica e político-cultural interna, mas também ao contexto de transformações operadas na totalidade concreta do capital mundializado. Portanto, o processo de formação e consolidação do capitalismo brasileiro se insere em um contexto mais amplo, em que o capitalismo internacional redefine sua política em relação ao Brasil, entre outras nações, tanto para assegurar o papel periférico e dependente destas economias, garantindo, portanto, a subordinação de tais economias aos países centrais, como para firmar uma via de desenvolvimento econômico capitalista em detrimento do perigo “socialista”. Se no capitalismo central o papel do Estado foi essencial para assegurar as condições de reprodução do capital em seu processo de monopolização, no Brasil ele foi fundamental e elemento decisivo para o desenvolvimento do capitalismo e para coadunar os interesses das classes dirigentes. “O Estado brasileiro nasceu sob o signo de forte ambiguidade entre um liberalismo formal como fundamento e o patrimonialismo como prática no sentido da garantia dos privilégios estamentais” e na direção dos interesses dominantes o Estado figura como orientador do desenvolvimento econômico, sendo envolvido “em ‘obrigações’ que deveriam ser assumidas pela inciativa privada, segundo o liberalismo sui generis corrente” (BEHRING, 2008, p. 95). Ianni (1989) discute sobre a formação do capitalismo no Brasil destacando o papel fundamental que o Estado assume no desenvolvimento capitalista no país, de modo a assegurar a expansão controlada das forças produtivas, pois “as insuficiências da produção e os desequilíbrios estruturais não podem ser resolvidos pelo ‘livre embate das forças do mercado’, o governo adota diversas modalidades de ação, a fim de garantir e revigorar a empresa privada” (p. 28). O autor é categórico ao precisar a importância da intervenção estatal na criação das condições de desenvolvimento econômico capitalista no Brasil, assegurando que no país “o Estado se manifesta em termos ‘agressivos’ sem o que o sistema não se constituiria” (p.195 grifos nossos). A constituição de relações tipicamente capitalistas no país encontrou sérias dificuldades entre elas a disponibilidade de mão de obra qualificada, a permanência do ideário conservador oligárquico, pouco permeável a “modernização industrializante”, o que redundou em peculiar conciliação de interesses no cerne da dominação política entre diferentes frações de classe, o montante de capitais necessários para os amplos investimentos necessários ao processo de industrialização etc. A transição de uma economia de base agrícola-exportadora em um contexto onde os países centrais já tinham uma industrialização avançada foi extremamente complexa. Segundo Ianni (1989), países que ingressam ‘tardiamente’ na fase de produção industrial, como o Brasil, precisam desde o início inserir-se em unidades de grandes dimensões de modo a possibilitar alguma capacidade competitiva no mercado. As dimensões dos capitais necessários a certos tipos de empreendimentos, a longa maturação desses capitais além do tipo de experiência técnica e empresarial, das condições do mercado consumidor, incipiente, a sua proteção das pressões externas, etc. impõem a intervenção estatal como condição sine qua non da transição para uma estrutura apoiada na indústria (p.58). O Estado é instituição básica do processo de industrialização brasileiro e da consolidação das relações capitalistas no país. Ainda tomando como suporte as análises de Ianni (1989), tal processo tem como componentes principais o capital nacional, o capital externo, a empresa privada e a assistência estatal direta e indireta. Quanto à intervenção estatal, seus objetivos, entre outros, seriam: propiciar a conversão do excedente econômico, especialmente agrícola, em capital industrial; estimular a entrada de capitais externos; intensificar as poupanças espontâneas e forçadas; disciplinas e estímulo aos investimentos; controle e seleção dos recursos cambiais; concessão de favores monetários e creditícios, cambiais e fiscais, inclusive assistência técnica ampla; desenvolvimento equilibrado (IANNI, 1989, p. 160). É possível indicar que, no Brasil, o Estado passa a intervir nas atividades econômicas em duas orientações distintas. Em uma primeira fase, age no sentido de preservar certos níveis de renda e emprego em setores dominantes da produção. “Ele atua como regulador da produção e cria instrumentos de defesa de setores com nível de renda ameaçado por desajustes ou crises geradas interna ou externamente” (p.37). Nisto, pode-se exemplificar, as medidas de proteção ao setor cafeeiro, dado sua importância na economia nacional, mas sem desprezo para outras áreas, o que se pode observar na criação dos Institutos de sal, pinho, cacau, mate, açúcar e álcool. A orientação que caracteriza a segunda fase se destaca, principalmente, na década de 1950 “produzindo a criação de órgãos e instrumentos destinados a estimular a expansão e diversificação das atividades produtivas” (p. 40). Há, a partir desta orientação, o ingresso ativo do Estado “nas diversas esferas da vida econômica, colaborando, incentivando e realizando a criação de riqueza”78 (IDEM). 78 Aqui, o destaque é para a Companhia Siderúrgica Nacional, a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia, a Companhia Hidroelétrica do Vale do São Francisco, a Comissão do Vale do São Francisco, o Banco do Nordeste do Brasil, a PETROBRÁS, a ELETROBRÁS, a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, o Banco Nacional do Desenvolvimento do Nordeste, o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico, o Plano SALTE, o Programa de Metas, o Plano trienal. Ainda nos valendo da análise de Ianni (1989), é possível afirmar que “dois milagres” econômicos assinalam a concretização do desenvolvimento industrial e consequente aprofundamento das relações capitalistas no Brasil, para o que a intervenção estatal foi crucial e determinante: o Programa de Metas do governo Kubitschek (1956-1960) e a ditadura militar, mas especificamente o período 1967-1973). A conjugação de forças sócio-políticas que culminou no golpe militar de 1964, longe de modificar o padrão de atuação do estado frente à economia, aprofundou-o ainda mais. O elemento militar reforça um pouco mais a importância econômica do Estado na formação e estrutura do capitalismo brasileiro. Desde a década de [19]60 desenvolve-se o complexo industrial-militar, articulado no e pelo Estado. Desde o golpe de Estado de [19]64 reforçou-se e desenvolveu-se a aliança entre as Forças Armadas, e não apenas o Exército, com a indústria, a burguesia industrial (p.253). O período ditatorial compreendeu um intenso processo de dinamização econômica, apoiado em intensiva associação ao capital estrangeiro e ostensiva repressão aos movimentos sociais, cuja culminância foi a restrição dos direitos civis e políticos combinados a uma conservadora e limitada expansão de direitos sociais. Nos dizeres de Behring e Boschetti (2011), em uma aparente falta de sincronia com os tempos históricos internacionais, em que o padrão fordista começa a ser abalado, é no período pós-1964 que o Brasil vive, por meio do chamado “milagre econômico”, a consolidação do padrão de produção em massa, com significativa ampliação do parque industrial, da urbanização etc. Em fins da década de 1970, as contradições da Ditadura Militar se complexificam de modo tal, que o esgotamento do padrão de acumulação da autocracia burguesa não detém poder suficiente para evitar seu declínio. A crise estrutural do capital mundial ressoa na economia brasileira e o padrão “compósito” da acumulação no país, intrinsecamente dependente do capital estrangeiro e baseado no endividamento interno e externo culminou na eclosão de uma crise político-econômica que derruíra as bases de sustentação da autocracia burguesa. A intensa mobilização social de vários segmentos sociais e, sobretudo, a massiva participação dos trabalhadores no cenário político das lutas coletivas desencadearam o processo de redemocratização do país. Ao fim do regime militar e na entrada dos anos 1980, o país vivencia uma profunda crise social, econômica e política e o Estado absorveu 70% da dívida externa, corroborando sua função vital para assegurar a reprodução do capital, por meio da socialização dos custos, além da adoção de inúmeras outras políticas de estabilização econômica. Mesmo diante de toda envergadura estatal coloca a serviço do “salvamento” da economia brasileira, o Brasil via aprofundada a crise. Assim, na entrada dos anos 1990 o país encontra-se derruído pela inflação [...] e que será o fermento para a possibilidade histórica da hegemonia neoliberal; paralisado pelo baixo nível de investimento privado e público; sem solução consistente para o problema do endividamento, e com uma questão social gravíssima (BEHRING e BOSCHETTI, 2011, p. 140-141). A hegemonia neoliberal se consolidará ao longo dos anos 1990 implicando em um profundo reordenamento da intervenção Estatal. No entanto, ainda que se processe a privatização de importantes setores estatais, diminuindo a atuação do Estado diretamente como setor produtivo, sua intervenção no sentindo de garantir as condições de reprodução do capital no país continuarão recorrentes. Ainda que o discurso neoliberal se fundamente na perspectiva do livre mercado e da não intervenção do Estado na economia, preconizando um Estado mínimo, ao fim e ao cabo, a consolidação do projeto neoliberal no país demonstrou que o Estado não diminuiu sua intervenção na dinâmica societária, ele, de fato, reordenou o sentido e canalização do fundo público para garantir a rentabilidade do capital internacional financeiro, sem desprezar os interesses da burguesia nacional. E, no limite, a assertiva de Netto (2010) é primorosa: o Estado tornou-se mínimo para o social e máximo para o capital. Na sequencia, faremos uma breve discussão acerca das mudanças processadas na dinâmica de intervenção Estatal com o neoliberalismo. O neoliberalismo e as mudanças no Estado brasileiro Face ao processo de crise do capital e perante o exorbitante endividamento dos países periféricos, o centro capitalista desenvolve, através das agências multilaterais como o banco Mundial e o FMI, um conjunto de medidas/diretrizes que deveriam ser implementadas pelos países latino-americanos, os famosos “planos de ajustes”, inscritos no chamado “Consenso de Washington”.79 De acordo com Carcanholo (2010), o programa de ajustes neoliberal compreende três componentes. O primeiro seria a estabilização marcoeconômica, com o objetivo de reduzir a inflação e controlar as contas governamentais; o segundo, as reformas estruturais de abertura comercial, desregulamentação dos mercados, privatização de estatais e serviços públicos, a eliminação da maior parte dos subsídios forma o segundo elemento; por fim, esses primeiros garantiriam o terceiro componente do programa “com a retomada dos investimentos e o crescimento econômico associado à distribuição de renda para os países periféricos” (p. 131). O neoliberalismo foi largamente assimilado nos governos desta região, como fundamento precípuo de modernização do Estado e como caminho tanto para a superação do “subdesenvolvimento” como para a retomada do “equilíbrio do livre mercado”. 79 O Consenso de Washington designava “um conjunto abrangente de regras de condicionalidade aplicadas de forma cada vez mais padronizada aos diversos países e regiões do mundo para obter o apoio político e econômico dos governos centrais e dos organismos internacionais. Tratava-se também de políticas macroeconômicas de estabilização acompanhadas de reformas estruturais liberalizantes” (TAVARES E FIORI apud NETTO, 2010). A consolidação do ideário neoliberal no Brasil comportou uma série de mudanças no Estado brasileiro, contrariando as expectativas populares que mobilizaram o país no processo de redemocratização ao longo dos anos 1980. A adesão tardia do Brasil ao neoliberalismo em relação aos países de capitalismo central nos anos 1990 foi desastroso do ponto de vista das conquistas inscritas na Constituição Federal de 1988 e de um projeto de democracia mais amplo para a sociedade brasileira. Combinando-se a reestruturação produtiva, com sua patente empreitada de desregulamentação das leis trabalhistas, o neoliberalismo se consolida no Brasil no governo Fernando Henrique Cardoso (FHC).80 Desse processo, são elucidativas as medidas do governo FHC, sobretudo com a criação do real e as privatizações, que, combinadas a outras estratégias, implicaram na adequação de seu governo aos ditames do mercado financeiro internacional. A suposta reforma do Estado está no centro das proposições neoliberais. Behring (2008) traz elementos elucidativos para demonstrar que na verdade o que se processou foi um intenso movimento de contrarreforma, com patentes retrocessos no campo dos direitos e garantias sociais. A autora aponta que no âmbito do Estado a contrarreforma teve seus princípios basilares no Plano Diretor da Reforma do Estado do Ministério da Administração e da Reforma do Estado (PDRE-Mare). A defendida “reforma” deveria seguir alguns caminhos básicos: ajuste fiscal, reformas econômicas para o mercado, abertura comercial e privatizações, reforma da previdência social, inovação dos instrumentos de política social, reforma do aparelho do Estado. A autora explicita que se propõe, com tanto, uma total redefinição do papel do Estado que implicaria em passar para o setor privado atividades que pudessem ser controladas pelo mercado e a publicização, que nada mais seria que a transferência de responsabilidades do Estado, sobretudo com os serviços sociais, para organizações da sociedade civil. Nesta direção, a autora destaca que o processo de contrarreforma do Estado se processou através de três direções essenciais. Primeiro, pela flexibilização das relações de trabalho. Se propugna a retirada do Estado da regulação das relações de trabalho, cujo objetivo é flexibilizar as relações contratuais de trabalho como meio de acentuar os níveis de exploração aumentando assim, os patamares de mais-valia auferidos pelo capital. Segundo, as privatizações e a relação do Brasil com o capital estrangeiro. Por essa via, se processou a reprodução da subalternidade do Brasil em relação aos países centrais, recolocando em novos patamares as relações de favores para com o capital estrangeiro sempre em detrimento dos próprios interesses nacionais, impossibilitando a superação da trajetória de heteronomia e dependência de nossa economia, efetivando 80 Behring (2008) aponta que foi de suma importância a composição de uma aliança partidária de centrodireita e a chantagem eleitoral do Plano Real para a chegada de Fernando Henrique à Presidência da República e consequente implementação do programa governamental de sua agenda, que objetivava dar sustentação ao programa de estabilização do Fundo Monetário Internacional. A autora enfatiza, ainda, que o Plano Real, passada a vitalidade inicial, não foi capaz de incidir sobre os níveis de desigualdade social, de produtividade da indústria, e ainda, seu ônus recaiu sobre o Estado na forma de crise fiscal. um intenso deslocamento da propriedade nacional para a estrangeira, aumento da dívida pública, desestabilização do real etc. E, por fim, a ofensiva contra a seguridade social. A configuração de padrões universalistas e redistributivos de proteção social é fortemente tensionada pela contrarreforma, sendo tendência geral a redução de direitos sob justificativa da crise fiscal, prevalecendo o trinômio do ideário neoliberal: privatização, focalização e a descentralização. Apesar do reordenamento proposto pelo ideário neoliberal, o Estado brasileiro continua sendo indispensável à reprodução do capital. Os governos FHC foram de larga importância para a conjugação das condições necessárias para o domínio do capital financeiro no país, sobretudo no que diz respeito aos processos de liberalização e/ou desregulamentação monetária e financeira. A transição para os anos 2000 e o início de um novo governo, apesar das expectativas em contrário, não logrou em mudanças substantivas quanto a ação estatal de modo a assegurar determinadas condições essenciais para reprodução ampliada do capital. Os governos do PT e a importância da política de assistência social na reprodução da força de trabalho Pautado em projeto que se propunha congregar crescimento econômico com desenvolvimento social, é evidente que os Governos do PT engendraram características novas às políticas sociais, do qual destacaremos uma particularidade que parece comportar determinações importantes e que diferencia tais governos: o papel central da política de assistência social na reprodução da força de trabalho. Os governos do Presidente Lula, diferente do que se imaginava, não apresentou um projeto alternativo ao capital. Ao contrário, “é palco da conciliação de iniciativas aparentemente contraditórias: as diretrizes do receituário liberal e a pauta desenvolvimentista” (MOTA, 2012). Uma análise dos governos petistas permite inferir que tais governos, a despeito de sua histórica vinculação às demandas e ideário da classe trabalhadora no país, optaram politicamente por um projeto de macroestabilidade econômica, conciliado a um tímido projeto de “desenvolvimento social”, que não se mostrou alternativo à dominação burguesa vigente neste país. Na execução dessa política de estabilidade econômica, o compromisso com os serviços da dívida tem sido prioridade, ainda que sob patrocínio de largas parcelas do orçamento da seguridade social. A formação de superávits primários tem sido uma tarefa diária do governo nos últimos anos, do qual os intensos cortes orçamentários têm sido ilustrativos. Além disso, em contextos de crise, como a que culminou em 2008, e que, apesar do discurso inicial do governo brasileiro de que ela não afetaria o Brasil, se aprofunda nos anos subsequentes, o Estado também aciona todo seu aparato no sentido de garantir a reprodução ampliada do sistema capitalista, efetuando medidas como: liberalização de mais recursos ao sistema bancário, flexibilizando as exigências de depósitos compulsórios das instituições financeiras; redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI); leilões com dólar e linha de troca de moedas com o Federal Reserve (FED), totalizando, até 2009, o volume de recursos dependidos de R$ 475 bilhões (SALVADOR, 2010). Outro aspecto de larga importância são os grandes investimentos em infra-estrututura e “desenvolvimento”, principalmente a partir do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e da atuação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Ainda que muito suscintamente colocadas, as referidas estratégias de atuação estatal demonstram a importância crucial do Estado, através do fundo público, “como pressuposto geral das condições de produção e reprodução do capital”(BEHRING, 2008, p. 46). Além de atuar diretamente do processo de rotação do capital, o Estado também atua na reprodução da força de trabalho, principalmente através da política social, que se por um lado atende necessidades concretas dos trabalhadores, por outro, é importante também para o capital ao garantir qualificação, disciplinamento e controle da força trabalho, além de contribuir para que essa força de trabalho – ocupada e/ou excedente – se insira no mercado de consumo de alguma forma. A partir dos governos do PT a conjugação crescimento econômico e desenvolvimento social procura congregar em um mesmo projeto político-governamental medidas de intervenção direta na economia, com direcionamento de parcelas consideráveis do orçamento público para o capital financeiro, mas sem desprezo do agronegócio e da indústria, com estratégias de intervenção na questão social, centralizando a política de assistência social como principal mecanismo de alívio à pobreza, se configurando como indispensável à reprodução da força de trabalho (ocupada e excedente). O alívio à pobreza passa ao centro das proposições das políticas sociais, embora sob o viés focalista e seletivo. Daremos enfoque a centralidade da política de assistência social, via Programas de Transferência de Renda neste contexto. A expansão da política em questão tem se mostrado de larga relevância, no sentido da sua legitimação como política pública de responsabilidade estatal. São inegáveis os avanços em termos jurídico-normativos e na constituição de uma nova institucionalidade, respaldada em um intenso processo de regulamentação da área.81 81 A aprovação da Política Nacional de Assistência Social (PNAS, 2004), da Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social (NOB-SUAS, 2005, 2012), da Norma Operacional Básica de Recursos Humanos (NOB-RH/SUAS, 2006), são marcos expressivos desse “choque de gestão” (BEHRING, 2011, p.86) que se realiza na Política de Assistência Social. Com o SUAS, a política de assistência social brasileira é objeto do que Behring (2011) chama de “choque de gestão”, em um importante movimento de regulamentação e organização de uma área de proteção social historicamente marcada pelo casuísmo, fragmentação e descontinuidade. Se o movimento de regulamentação da área tem sido um avanço importante, o modo pelo qual o SUAS vem sendo implementado ainda é carregado de uma série de limitações que dificultam substancialmente a consolidação de uma rede de serviços sociassistenciais de fato pública e de qualidade. Tal fato é expressão da opção político-governamental por uma política social focalista, seletiva e residual incompatível com o investimento e consolidação de uma rede de serviços ampla, de qualidade e universal, tanto para o SUAS como para outras políticas sociais, como a saúde, por exemplo. Assim, o que prevalece e ganha envergadura são os Programas de Transferência de Renda (PTR), que a despeito do impacto real nos quadros de miséria do país, se configura como a modalidade de política social compatível com padrão de política social demandado pelos governos que permita intervir de alguma forma nas necessidades reais da classe trabalhadora e ainda contribuir com as necessidades do capital. Os PTR existentes no governo FHC são unificados, a partir de 2003 na transição do governo FHC para o Governo Lula, consolidando o Programa Bolsa Família (PBF),82 no âmbito do Programa Fome Zero. Estes Programas se utilizam do mecanismo de repasse monetário direto, sem contribuição prévia, para famílias pobres e apresentam em seus objetivos o incentivo ao acesso às políticas de educação, saúde e também de trabalho (SILVA e SILVA; YAZBEK; GIOVANNI, 2007). O PBF tem como foco de atuação famílias com renda per capita de R$ 70, 00 a R$ 140,00, selecionadas a partir da base de dados do Cadastro Único (CADúnico). De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS, 2012), o Programa atende atualmente mais de 13 milhões de famílias, cujos benefícios variam entre R$32,00 e R$ 306,00. Esta variação está relacionada ao modo como se estruturam os benefícios dentro do PBF, sendo o básico, o variável, o variável vinculado ao adolescente (BVJ), o variável gestante (BVG) e o benefício variável nutriz (BVN). O PBF integra o Plano Brasil sem Miséria. Este Plano lançado por meio do Decreto N° 7.492, em 2 de junho de 2011 pelo Governo Federal, tem como objetivo superar a extrema pobreza até 2014. O Plano se organiza em três eixos: um de garantia de renda, para alívio imediato da situação de extrema pobreza; outro de acesso a serviços públicos, para melhorar as condições de educação, saúde e cidadania 82 O objetivo principal do PBF é contribuir para a superação da pobreza extrema, tendo como eixos principais: diminuição imediata da pobreza pela transferência direta de renda às famílias; reforço ao acesso das famílias aos serviços básicos de saúde, educação e assistência social, por meio das condicionalidades; integração com ouras ações e programas do governo (MDS, 2010). das famílias; e um terceiro de inclusão produtiva, para aumentar as capacidades e as oportunidades de trabalho e geração de renda entre as famílias mais pobres do campo e das cidades (BRASIL SEM MISÉRIA, 2011). O Plano Brasil Sem Miséria coaduna as diferentes estratégias de enfrentamento à pobreza, desenvolvidos e implementados ao longo dos Governos Lula. O combate à pobreza foi central nos governos Lula e se reafirma com a presidenta Dilma, sendo o cerne de expansão da política de assistência social. A estruturação do Plano em três eixos – garantia de renda, acesso a serviços públicos e inclusão produtiva – denota a sua envergadura e ousadia, já que seu objetivo parece abarcar dimensões da intervenção Estatal que demandam a ampliação e altos investimentos em outras políticas sociais, o que evidentemente não vem ocorrendo. No plano concreto, a garantia de renda se realiza pelo Programa Bolsa Família (PBF), que por sua vez, tem garantido o acesso a determinados serviços como saúde, educação e assistência social, através, sobretudo do sistema de condicionalidades. A inclusão produtiva vem se consolidando pelo acesso ao crédito produtivo, as inciativas de formações em empreendedorismo, programas de geração de renda. Uma aproximação analítica as tendências da política de assistência social, no âmbito do Plano Brasil Sem Miséria, permite observar que há a prevalência dos PTR, com destaque para o PBF e inclusão produtiva, como perspectiva de alternativas individualizantes e focalistas de intervenção no quadro geral de pobreza no país. A ‘gestão estratégica da pobreza’, que supõe o fortalecimento da capacidade dos pobres para lutarem contra a pobreza como sujeitos desse processo, aposta no crescimento individual e na melhoria das condições de acesso à produção (incentivo a geração de renda), ao microcrédito e, consequentemente, à mobilidade social (por seus próprios esforços pessoais. [...] Isso significa, sob essa concepção de política social [conferir] aos pobres uma possibilidade de inserção precária, pois como não é possível construir saída de integração estrutural via trabalho regular em função do padrão de produção excludente, propõem-se essa forma de acomodação (MAURIEL, 2012, p. 187). A política de assistência social, ao centralizar os PTR, principalmente o Programa Bolsa Família,83 configura-se como importante mecanismo de intervenção estatal na reprodução da força de trabalho ocupada e excedente, pois garante certo patamar mínimo de transferência de renda, além de assegurar a sobrevivência material de importante contingente populacional que compõe o exército de reserva – além de gama importante de trabalhadores de ocupação informal e precarizada –, contribui com dinamização do mercado interno, garantindo de certo modo o consumo das mercadorias capitalistas, condição indispensável para a realização da mais-valia. 83 Não desconsideramos o impacto do Benefício de Prestação Continuada (BPC), mas enfatizamos o Programa Bolsa Família (PBF) por que ele se destaca no âmbito do Brasil sem miséria. É importante considerar que apesar de ter logrado alguma expansão nos últimos anos, o BPC não se aproxima do processo de expansão do PBF. Os critérios de elegibilidade do BPC continuam rígidos e seu acesso não é simples. É importante destacar que o BPC é consolidado na legislação como direito adquirido, além de ser um benefício com teto definido em um salário mínimo. Já o PBF, não é assegurado como direito regulamentado na Lei Orgânica de Assistência Social, não dispõe de controle social consolidado e, principalmente, os valores dos benefícios são bem menores. Isso significa uma política de baixo custo e alto impacto. É sabido que, na maioria dos casos, os benefícios pagos pela política de assistência social, através dos programas de transferência de renda, acabam assumindo um importante peso na renda, quando não, a única fonte de renda das muitas famílias nas localidades mais longínquas do Brasil (SITCOVSKY, 2010, p. 154). É importante destacar este aspecto da funcionalidade dos PTR como estratégia de “contrarrestar o subconsumo”. É evidente que estes programas não são capazes de conter os efeitos da crise global do capital, sobrepujando suas características de superprodução e superacumulação. Mas, no cenário brasileiro, elas são importantes mecanismos para fomentar a capacidade aquisitiva das camadas mais pobres, colocando parcelas significativas da população no âmbito do consumo, já que, como maior parte desse contingente é população excedente ao processo de trabalho capitalista e outras se inserem em setores informais e precarizados. Deste modo, a renda garantida pelos programas de transferência de renda “substitui” de certo modo os ganhos salariais e assume a função que estes teriam no consumo das mercadorias. Um Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2013), sobre a primeira década do Programa Bolsa Família traz elementos elucidativos acerca dos impactos do Programa no potencial de consumo das famílias beneficiadas e no PIB brasileiro. O estudo aponta que o PBF tem maior efeito multiplicador para a economia tanto comparado ao BPC quanto ao seguro-desemprego. De acordo com o estudo, para cada R$ 1,00 gasto com o PBF gira R$2,4 no consumo das famílias e adiciona R$1,78 no PIB. O Programa Bolsa Família é, de modo evidente, extremamente funcional à reprodução do capital e da força de trabalho. Seu custo é baixo e seu impacto social, econômico e político são altos. Eleva os indicadores de desenvolvimento social, ao “tirar da miséria” milhões de famílias pelo critério de renda per capta, além de garantir outros indicadores positivos em áreas como saúde e educação, além de remunerar o capital que porta juros através da bancarização dos benefícios monetários. Por esse viés, a política de assistência social assume cada vez mais a função de garantir a reprodução da população excedentária às necessidades do capital. Isto por que, dado o atual quadro de acumulação capitalista, em que cada vez mais a força de trabalho é expulsa dos processos produtivos, uma gama cada vez maior de indivíduos aptos para o trabalho são “assumidos” pela política de assistência social. Boschetti (2003) traz importantes análises acerca da relação entre assistência social e trabalho, apontando que, historicamente, tal relação foi de atração e rejeição, uma vez que a assistência social seria destinada àqueles inaptos ao trabalho (Idosos, deficientes, crianças etc.). Assim, a assistência social seria uma política em constante conflito com as formas de organização social do trabalho, já que os indivíduos inseridos no mercado de trabalho seriam “cobertos” pelos direitos trabalhistas e aqueles alijados das condições de inserção no mercado de trabalho por inaptidão seriam objeto de intervenção da assistência social. A referida autora trata da tensão entre assistência social e trabalho, indicando a inovação da Constituição Federal ao reorganizar sob novas bases a relação entre trabalho e assistência social na construção do Estado Social, ao colocá-los no mesmo rol de direitos. Entretanto, “o reconhecimento legal da assistência social como direito retoma e mantém uma distinção entre assistência social e trabalho, entre capazes e incapazes que estrutura secularmente a organização social” (BOSCHETTI, 2003, p.46). O novo contexto que se consolida ao longo dos anos 2000, com o adensamento das contradições capitalistas, expressas na permanência e aprofundamento de sua crise estrutural, que além de expulsar cada vez mais mão-de-obra do mercado de trabalho, impacta nos Estados nacionais na direção da restrição de direitos, engendram processos sociais com rebatimentos importantes no campo da relação ente entre reprodução da força de trabalho e política social ou especificamente, para nossa análise, entre trabalho e assistência social. A centralidade e ampliação da política de assistência social, sobretudo pela via dos PTR, trazem novas determinações àquela relação. À política em questão não cabe mais apenas dar conta dos inaptos para o trabalho, mas ela assume a função primordial de atender, também, uma parcela dos aptos. Na impossibilidade de garantir direito ao trabalho[...] o Estado amplia seu campo de atuação na medida em que assume também os aptos. Ou seja, em tempos de crise, os pobre sobre os quais incide a assistência social são: os miseráveis, desempregados, desqualificados para o trabalho, os trabalhadores precarizados, além dos tradicionalmente considerados inaptos para as tarefas laborais (SITCOVSKY, 2010, p. 156). O Estado, através da política de assistência social, reitera sua indispensável função na reprodução da força de trabalhando, abarcando novas determinações, conforme as necessidades de reprodução do capital. Quando o capital demandava um exército de reserva amplo e disponível para sua reabsorção nos processos de trabalho capitalista, o ideário liberal tratava de socializar a ideologia da intervenção mínima, o que para a política de assistência social significava prestar uma modalidade de proteção social mínima aos completamente inabilitados para o trabalho. É evidente que quadro atual não muda essa característica inerente do modo de produção capitalista de demandar um amplo exército de reserva e, portanto, o primado liberal do trabalho se mantém. Mas, condições novas implicam na necessidade de reordenamento no campo das políticas sociais de modo a torná-la funcional a reprodução da força de trabalho e a manutenção de um mercado de consumo. Essas condições novas, entre outras, se expressam no fato de que ao expelir um número cada vez maior de trabalhadores do processo produtivo formal, o capital também perde um mercado consumidor em potencial: os assalariados. Mas, o capital, independente das características novas que assuma, não pode prescindir da venda de suas mercadorias para realizar a mais-valia. Assim, a intervenção do Estado continua sendo vital para garantir o processo de reprodução ampliada do capital. Através da política de assistência social, nos moldes como ela vem sendo efetivada – via PTR – o Estado canaliza o fundo público como um dos mecanismos para garantir a reprodução da força de trabalho e assegurar certa margem de legitimidade face às camadas mais pobres, garante uma mão de obra sempre disponível, além de influenciar diretamente o mercado de consumo. CONSIDERAÇÕES FINAIS A discussão aqui desenvolvida, mesmo que de caráter introdutório e aproximativo, permitiram a compreensão da importância vital do Estado para reprodução do modo de produção capitalista. O Estado, enquanto garantidor das condições gerais para reprodução do capital, assume funções elementares em países de inserção periférica e dependente no capitalismo mundializado, como o Brasil. No país, a intervenção Estatal na formação e desenvolvimento do capitalismo é vital. Ainda que determinações novas incidam sobre a intervenção do Estado e na sua relação com as classes sociais, a condição indispensável que ele assume para assegurar que as relações sociais capitalistas se mantenham é incontestável. É evidente que o Estado é arena de conflito e, portanto, permeável à ação coletiva da classe trabalhadora e precisa prover mecanismos que, além de atender as demandas reais destas classes lhes garanta certo patamar de legitimidade, o que é indispensável para tornar a ideologia dominante hegemônica. Nesta direção, ao longo da discursão procuramos esclarecer que a política social tem sido um dos principais mecanismos de intervenção do Estado sobre a reprodução da força de trabalho, a qual condensa um feixe de contradições, pois ao mesmo tempo em que acata necessidades reais da classe trabalhadora atendendo – ainda que parcial e fragmentariamente – suas demandas, responde, contraditoriamente, demandas do capital. Tentamos apontar indicações de que, no quadro atual, a política de assistência social assume centralidade em face das demais políticas que compõem a seguridade social, mormente pela via dos Programas de Transferência de Renda. No atual contexto a referida política vem se constituindo em um dos principais mecanismos de reprodução da força de trabalho, ocupada e excedente. Ainda que a política de assistência social e seus Programas de Transferência de Renda sejam indispensáveis face à realidade concreta de desemprego estrutural e pobreza extrema, também encerram muitas contradições e têm limites claros. É preciso não perder de vista sua funcionalidade à reprodução do capital, possibilitando a inserção – ainda que precarizada – dessa população no circuito do consumo. É preciso reiterar que nenhuma política social pode resolver a “questão social” e, no caso da política de assistência social, a pobreza, já que ela é inerente ao modo de produção capitalista, como Marx já demonstrara ao explicitar a lei geral de acumulação capitalista. REFERÊNCIAS BEHRING, Elaine Rossetti. Brasil em contra-reforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008. BEHRING, Elaine Rossetti; BOSCHETTI, Ivanete. Política Social, fundamentos e história. 8 ed. São Paulo: Cortez, 2011. __________. Política Social no capitalismo tardio. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2009. BEHRING, Elaine Rossetti. Balanço Crítico do SUAS e o Trabalho do/a Assistente Social. In: Conselho Federal de Serviço Social. Seminário Nacional O trabalho do/a Assistente Social no SUAS: Brasília: CFESS, 2011. p. 84-95. BOSCHETTI, Ivanete. Assistência Social no Brasil: um direito entre a originalidade e o conservadorismo. Brasília: Letras Livres Editora UNB, 2003. 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