PSIQUÊ E PSICHÊ: NO ENCONTRO DOS ESPELHOS DE MACHADO E ROSA José Miguel Wisnik O objeto subjetivo Os contos “O espelho – Esboço de uma nova teoria da alma humana” (Papeis avulsos, 1882), de Machado de Assis, e “O espelho” (Primeiras estórias, 1962), de Guimarães Rosa, tratam sabidamente de um mesmo núcleo problemático: a constituição e a desconstituição do eu através da imagem.1 Neles, os dois autores sondam a “natureza da alma” figurando-a, pode-se dizer, como psiquê (sopro de vida, alento, sede dos desejos, espírito, na antiga acepção grega) e psichê (grande espelho modulável segundo o ângulo de quem olha).2 Rosa dá à sondagem da alma-espelho um destino próprio, introduzindo nela o viés metafísico neutralizado em Machado. Não é descabido postular que ele tenha escrito o conto homônimo para enfrentar a ironia cósmica do Bruxo do Cosme Velho no limite entre as figurações da crença e da descrença. E que tenha continuado o serão filosofante de Santa Teresa ao criar um personagem-narrador que conta a sua experiência de desaparição do espelho que o reflete, em contraposição à do Jacobina de Machado. Se em ambos os contos o imaginário, entendido como o jogo de imagens através do qual se constitui 1 Uma análise pioneira desse tema, de base lacaniana, é a realizada por Maria Lucia Homem, “Reflexos de espelhos. Machado de Assis e Guimarães Rosa: um estudo comparativo de dois contos”, que pode ser encontrada na internet. 2 Os dois termos, psiquê e psichê, são variantes de uma mesma origem, e convergem no nome mitológico da amada de Eros. Houaiss aventa a hipótese de que o nome dado ao espelho provenha do fato de a mulher que nele se olha sentir-­‐se bela como Psiquê/Psyché. a função do eu, sofre o impacto de um real que o desarma,3 cada um deles leva a mesma síndrome a consequências distintas, senão opostas, no percurso simbólico da sua narratividade. Ao introduzir, junto com o tema, as categorias real, imaginário e simbólico, não estou pretendendo reduzir os dois contos a categorias lacanianas, mas cotejar as suas semelhanças e diferenças com esse vértice psicanalítico, a teoria da etapa do espelho como formadora da função do eu.4 Sem pensar, evidentemente, em termos de influência, mas em estabelecer relações entre paradigmas, o contraponto pode iluminar, talvez, o modo enviesado e singular pelo qual a literatura participa da história das ideias, guiada por um tempo próprio. É no contexto da sua teoria da etapa do espelho que Lacan postula a imago como o objeto constitutivo da psicologia, “na mesma medida em que a noção galileana de ponto material inerte fundou a física”. A “paixão da alma por excelência”, o narcisismo – vale dizer, o ponto escapadiço e instável sobre o qual se constitui o sujeito – , investe-se aí de um caráter fundacional, já que “impõe sua estrutura a todos os seus desejos, mesmo os mais elevados”.5 Uma análoga centralidade das síndromes narcísicas, tendo em “O espelho” seu foco de convergência, pode ser observada nos escritos machadianos por ocasião da sua famosa virada em torno de 1880 e na 3 Toma-se aqui o real, em primeira instância, como um perturbador esvaziamento da representação, no sentido contrário do que se costuma entender por realidade. Luciana Serrano Pereira analisa o mesmo fenômeno como efeito de vertigem, em O conto machadiano – Uma experiência de vertigem, Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2008. 4 Jacques Lacan, “Le stade du miroir como formateur de la fonction du Je telle qu’elle nous est révélée dans l’expérience psychanalytique”, Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 93-­‐100. Observação: “Communication faite ao XVIe. Congrés International de Psychanalyse, a Zürich, le 17 Juillet 1949”. As primeiras intervenções sobre o tema datam de 1936 e 1938. A questão é estendida em “L’agressivité em psychanalyse” (Écrits, p. 101-­‐124, apresentada ao XI Congresso de Psicanalistas de Língua Francesa, em 1948), “Propos sur la causalité psychique” (Écrits, p. 151-­‐ 193) e retomada em O Seminário Livro 3 As Psicoses (Rio, Jorge Zahar, 1985). 5 Jacques Lacan, “Propos sur la causalité psychique”, op. cit., p. 188. própria estrutura do livro Papeis avulsos. Neles, a fixação em objetos que se constituem em verdadeiros complementos ortopédicos da insuficiência narcísica, indo da farda de Jacobina ao Emplasto Brás Cubas, aparece como uma espécie de ponto arquimédico da alma, como sua muleta e alavanca imaginária. A necessidade inerente ao sujeito, pode-se dizer doentia, de se ver confirmado pelo olhar do outro, necessidade que se reflete e se entranha na autoimagem através de múltiplas modalidades da ilusão, pulula em situações conhecidas de “O alienista”, “Teoria do medalhão”, “D. Benedicta”,“Verba testamentária”. São variações agudas sobre “este móvel profundo e inescapável de toda e qualquer ação”, a fome de reconhecimento, que está no miolo da vertente analítica impiedosa dos moralistas clássicos franceses dos quais Machado de Assis se alimenta.6 Mas a demanda de reconhecimento como demanda estrutural do sujeito investe-se nele, também, de uma dimensão nova, porque Machado a submete ao crivo desse singular objeto subjetivo, a um tempo externo e interno, que é o espelho, graças ao qual a análise, para além de uma alegoria moral, penetra de maneira cerrada nas configurações propriamente psíquicas da subjetividade. Com seu ceticismo radical quanto à estrutura imaginária inescapável que constitui os sujeitos, os contos em torno de “O espelho” atualizam os filósofos moralistas do século XVII pela via de uma premonitória filosofia do inconsciente, na qual podemos reconhecer antecipatoriamente questões da psicanálise e, em particular, da primeira teoria lacaniana do imaginário. 6 Pedro Meira Monteiro, “Machado de Assis e Pascal: um contraponto”, em Marta de Senna e Hélio de Seixas Guimarães (orgs.), Machado de Assis e o outro: diálogos possíveis, Rio de Janeiro, Móbile, 2012, p. 62.Alfredo Bosi trata do mesmo tema, de maneira abrangente, em Machado de Assis: O enigma do olhar, São Paulo, WMF Martins Fontes, 2007. Guimarães Rosa inclui a mesma questão moderna que vemos se desenhar em Machado, mas glosando-a simultaneamente com uma outra concepção de espelho, corrente numa certa tradição místico-filosófica, a do instrumento capaz de dar a ver no fundo sem fundo de suas imagens, pelo viés de uma teologia negativa, a face resplandecente de uma dimensão invisível. Por ora, cabe apenas dizer que o primeiro paradigma, o machadiano-lacaniano, - se se permite a expressão -, desnuda provocativamente a ilusão da identidade, desvelando-lhe o vazio subjacente como marca de uma falta, enquanto o segundo, esotérico-rosiano, desvela nesse mesmo vazio subjacente o vislumbre de uma presença inominável que ganha aí um viés epifânico. Um discutível e estimulante livrinho, Lacan e o espelho sofiânico de Boehme, de Dany-Robert Dufour, carreia elementos reveladores para o entendimento do modo como essas duas concepções de espelho se cruzam.7 O autor sustenta que entre as influências presentes na elaboração da etapa do espelho em Lacan (o narcisimo freudiano, a neotonia neodarwinista, com a ideia do nascimento prematuro e fetalizado do ser humano, a psicologia da Gestalt e a dialética de senhor e escravo), é preciso reconhecer o papel da teosofia de Jacob Boehme tal como recuperada e pensada por Alexandre Koyré. 8 Lacan mantinha sólida amizade filosófica com Alexandre Koyré e com Alexandre Kojève nos anos 1930 e 1940, os mesmos anos em que lança e afirma sua litigiosa teoria da etapa do espelho no campo psicanalítico. Os cursos de Kojève sobre a Fenomenologia do Espírito, decisivamente influentes na construção da teoria, constituíram-se num núcleo filosófico em torno do qual gravitaram, entre outros, Henry Corbin, Georges Bataille, Raymond Queneau. Estudando as conexões entre 7 Dany-­‐Robert Dufour, Lacan e o espelho sofiânico de Boehme, tradução de Procopio Abreu, Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 1999. 8 La philosophie de Jacob Boehme, Paris, J. Vrin, 1929. ciências e concepções religiosas, nos séculos XVI e XVII, Alexandre Koyré “reintegrou na história do pensamento uma coorte de místicos especulativos, teósofos e outros sábios como Nicolau de Cusa, Paracelso, Giordano Bruno, Jacob Boehme”.9 No pensamento deste último a ideia de espelho sofiânico ocupa o lugar central: o espelho é pensado como o olho da Sabedoria divina que contém, sobre um fundo nadificante, as imagens de todos os seres individuais, engendrando a passagem do Um, indizível e invisível, para a multiplicidade visível do mundo. É através do espelho, assim concebido, que o humano e o divino se deixariam entrever. Henry Corbin, por sua vez, teria partido do ensinamento de Koyré para formular o conceito de imaginal.10 Neste, a visão essencial de si depende de um processo de iniciação em que o sujeito, atravessando o vazio especular, chega a se mirar no espelho transparente de sua pura presença, que se autoengendra ao superar tanto a abstração intelectual quanto a concretude sensível.11 Diferentemente de Dufour, não estamos propondo hipóteses de influência ao relacionar o núcleo Lacan-Koyré-Corbin ao caso Machado-Rosa. Em vez disso, propondo paradigmas, de efeito comparativo, da exploração das possibilidades cambiantes do espelho como objeto subjetivo capaz de dar a ver, quando fracassa ou se ultrapassa o automatismo da sua função mimética, os efeitos ilusórios por meio dos quais se constitui a identidade, por um lado, e o vislumbre epifânico de uma alma-corpo para além da aparência, por outro. A acreditar na hipótese de Dufour, Lacan teria tomado a concepção teosófica do espelho como uma das matrizes sugestivas de sua teoria do imaginário, revertida no entanto, é preciso frisar (o que Dufour não faz), a uma perspectiva materialista e psicanalítica. Corbin, ao 9 Dufour, op. cit., p. 29. 10 Dufour, op. cit., p. 41. 11 Ver Henry Corbin, En Islam iranien – Aspects spirituels et philosophiques, Tome II Sohrawardî et les Platoniciens de Perse, Paris, Gallimard, 1971. contrário, teria explorado a concepção teosófica do espelho no simbolismo do seu conceito de imaginal, metafísico e iniciático. No primeiro caso, profana-se a ideia da unicidade da alma, desvelando-se o caráter alienante da sua constituição, na linha da desmitificação moderna. Machado segue agudamente nessa direção. No segundo caso, resgata-se a ideia ancestral do poder do espelho como instrumento de acesso a um real indivisível e divinizado, para além da sua representação em imagens. Rosa joga com essa segunda concepção, sem abdicar da primeira. Os espelhos O conto machadiano é mais do que conhecido, já foi parafraseado muitas vezes, mas não há como não retomá-lo, mesmo que sumariamente. Num amável serão filosofante em Santa Teresa, o casmurro Jacobina, que de início se recusava a opinar sobre os temas em debate, apresenta a certa altura a sua teoria da alma, definida como um caminho de mão dupla onde “cada criatura traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro...”. Dividida numa alma interna e noutra externa, a constituição oscilante do eu é inseparável dos objetos com os quais o seu desejo o confunde, e nos quais se aliena: “há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc.”. Entre os aspectos escandalosos da teoria, apresentada com a petulância de uma autoridade que não admite refutação, estão os fatos de a alma ser concebida em parte decisiva como estando fora do sujeito, e de se constituir numa coisa. Quebra-se sem maior cerimônia tanto o preceito da sua unicidade metafísica como o da sua imaterialidade, apontando para a tendência reificante, alienada e regressiva que lhe é dada como inerente. O modelo literário dessa operação parece estar no “cavalinho-de-pau” do Tristram Shandy de Sterne: em inglês Hobby-Horse, “significa tanto o brinquedo conhecido entre nós por ‘cavalinho-de-pau’ (...) quanto uma distração ou assunto favorito”, assumindo, em sentido figurado, a acepção de uma dedicação excessiva a um assunto, um passatempo (hobby) ou um objeto,12 ao modo da compulsão ou da machadiana ideia fixa.13 “Conquanto eu não possa dizer que um homem e seu CAVALINHO DE PAU ajam e reajam exatamente da mesma maneira que a alma e o corpo entre si, existe indubitavelmente comunicação de alguma espécie entre eles”. Essa comunicação, explica-se no livro de Laurence Sterne, é da ordem dos corpos eletrificados, como se uma espécie de fricção anímica continuada acabasse por infundir as propriedades do objeto no sujeito que se apega a ele, fazendo com que a descrição de um denuncie de maneira “bem precisa” o “gênio e o caráter do outro”.14 Voltando à alma externa machadiana, o sujeito é apegado necessariamente a um objeto material ou imaterial do qual não pode prescindir, que lhe serve de suporte eternamente infantil, como o cavalinho de pau, e de complemento ortopédico da insuficiência narcísica, a ponto de se confundir com ele no uso continuado. É nesse ponto que entrará o espelho, na figuração machadiana: ele é, no reino das coisas, o meta-objeto do desejo como desejo do outro, o correspondente por excelência desse dispositivo psíquico em que o auto-reconhecimento depende do apoio em um 12 Laurence Sterne, A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy, tradução, introdução e notas José Paulo Paes, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 603, nota 17b. 13 No romance de Sterne pergunta-se, a certa altura: “não tiveram os homens mais sábios de todas as épocas, sem exceção do próprio Salomão – seus CAVALINHOS DE PAU; - seus cavalos de corrida, - suas moedas e seus barquinhos, seus tambores e suas cornetas, seus violinos, suas paletas, - suas larvas e suas borboletas?”. Sterne, op.cit., p. 53. 14 Sterne, op.cit., p. 103. equivalente externo visível e ao mesmo tempo reversível – que dá a ver, vendo. Submetida à lógica do imaginário, a alma externa se tornará dominante, no processo, e a interna, recessiva e caudatária da externa. A exposição teórica é seguida de um depoimento autobiográfico de cunho exemplar sobre como a alma interna da personagem, formada por seus difusos impulsos infantis e juvenis, no tempo em que era conhecido como Joãozinho, veio a ser eclipsada depois de sua nomeação como alferes da Guarda Nacional e a consequente identificação generalizada de sua pessoa através do novo status conferido pela patente e pela farda. Esta constitui-se, afinal, numa alma externa com a qual ele descobre ter-se identificado irreversivelmente. O móvel da descoberta é o grande espelho vindo para o Brasil com a corte de D. João VI, que a tia Marcolina colocara especialmente para ele no quarto do sítio onde o hospeda, e no qual ele descobrirá, em situação extrema, que não vê a si mesmo se não estiver apoiado na ótica do outro. A peripécia que o faz defrontar-se com a radical dependência do olhar do outro para o reconhecimento de si mesmo é dada pelo fato de que a tia Marcolina, que até então o mimava e nele se mirava narcisicamente, ocupando nisso a posição do imaginário da mãe, é obrigada a se retirar inesperadamente do sítio em que estavam, exigida pela súbita doença da filha e, assim, pelo real da sua maternidade. Os escravos da propriedade, na ausência da senhora, adulam de dia o alferes e fogem na calada da noite, relegando-o à solidão social em que o homem livre na ordem escravocrata, sem o anteparo de proprietários nem de escravos (a “alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos”), se vê literalmente como um ninguém. Sugiro aqui uma ponte com a leitura clássica de Roberto Schwarz.15 As questões psicanalíticas que estamos privilegiando nesse momento são inseparáveis de questões sociais brasileiras de largo alcance, sendo umas inseparáveis de outras, em Machado de Assis. Vale notar que a patente de alferes era a mais baixa na hierarquia da Guarda Nacional, que esta mesma instituição monárquica conferia, sob o manto aparente da simbologia militar, o estatuto político de coronel, major e capitão a proprietários rurais, sacramentando-lhes o poder local na falta de uma representação da lei de Estado, e contribuindo para consumar a conhecida labilidade brasileira entre interesses públicos e interesses privados. O golpe da sorte que faz do jovem Jacobina um alferes da Guarda Nacional, abrindo-lhe perspectivas de ascensão ao lugar do “capitalista astuto e cáustico” que ele ocupará vinte anos mais tarde, desfazendo dos escravos como “espíritos boçais”, entre seus pares, participa implicitamente da dinâmica do favor e do arbítrio, em que o mercado da imagem tem um papel destacado. Esse pano de fundo dá um caráter ironicamente derrisório e de mascarada ao embate em cena, no conto, mas faz, por isso mesmo, entende-lo como uma análise aguda dos mecanismos do imaginário entranhados na constituição do sujeito e na vida coletiva, em que batalhas tremendas pelo reconhecimento são travadas em cima de ninharias. Destituído da reciprocidade especular do jogo social, no sítio abandonado, Jacobina vê a paisagem familiar transformar-se num pesadelo, e ele mesmo, sentindo-se um autômato, defrontado com o espelho que não lhe devolve senão rastros perdidos e vagos da sua figura. A terapia dessa síndrome de esgarçamento e anulação da autoimagem se faz através da reiteração especular da imagem-objeto com que é visto, desejado e invejado pelos outros: ele posa dias seguidos para o espelho, durante horas, 15 Ao vencedor as batatas. São Paulo, Duas Cidades, 1977. vestido da farda, e opera assim uma espécie de recomposição narcísica a olhos nus. Tal tratamento desnuda escandalosamente o caráter alienado da alma, num strip-tease ao contrário em que ela aparece não como uma essência una e eterna, mas como a imagem deslocada de um outro. A exposição descarada (e subversiva) do real da própria ilusão é seguida pelo ato da retirada final de cena, sem comentários nem complementos simbólicos: “Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas”.16 Temos aqui motivos clássicos do conto fantástico do século XIX (a aparição ou desaparição do duplo, a perda da imagem ou da sombra), tratados não mais segundo a hesitação entre o caráter natural ou sobrenatural de um acontecimento (que definiria o gênero, segundo Todorov), mas como o radicalmente estranho que veremos teorizado por Freud em Das Umheilich, e que confina com o real lacaniano. Em suma, o gênero fantástico, que deu largas à sondagem das esquisitices do sujeito ao longo do século XIX, cede vez ao campo desnudado do psiquismo: “A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições (...). Mas tal não foi a minha sensação”. A imagem perdida se recompõe na forma cínica de um emplastro imaginário, que espelha incomodamente, por sua vez, o serão metafísico em que se insere. Guimarães Rosa chega ao mesmo núcleo (a perda da imagem ao espelho) por uma via inversa: se Jacobina está como que hipnotizado pela alma externa que ele e os outros conspiram para preservar contra a queda 16 Sobre as várias modalidades do real, incluída entre elas o “real da ilusão”, ver Slavoj Zizek, “O Real da ilusão cristã: notas sobre Lacan e a religião”, em Vladimir Safatle (org.), Um limite tenso – Lacan entre a filosofia e a psicanálise, São Paulo, UNESP, 2003, p. 181. Ver também Slavoj Zizek, “Le devenir-­‐lacanien de Deleuze”, tradução de Paulo Pimenta Marques, em Iannini, Rocha, Pinto e Safatle (org.), O tempo, o objeto e o avesso – Ensaios de Filosofia e Psicanálise, Belo Horizonte, Autêntica, 2004, p. 39-­‐40. nadificante do real, o personagem-narrador rosiano empenha-se obsessivamente na busca vã de um imaginário sem cisão, depois de ter-se abalado com a sua figura entrevista casualmente no jogo de espelhos refletidos de um banheiro público como sendo a de um monstruoso outro. O estranhamento da autoimagem está no ponto de partida da sua estória, e não no ponto de chegada, como na de Jacobina. Um jogo de espelhos revela a sua identidade, a partir de então, como um jogo não confiável, feito de um ilusório efeito-cascata de imagens em que nada garante a certeza do olho-no-olho. A partir do impacto angustiante desse estranhamento, passa a procurar o impossível espelho perfeito que repare a falha, na busca obsessiva e tresloucada de um registro do imaginário em estado puro que pudesse ser atestado como real, e que o fizesse voltar a se sentir como coincidindo consigo próprio. Pondo espelhos à prova, e desmascarando um a um na sua falta de fidedignidade, o personagem narrador inicia uma série mirabolante de experimentos em que lança mão da filosofia e da para-ciência de almanaque, de técnicas de medição e meditação, de testes demonstrativos do caráter contingente da imagem, de táticas astuciosas para tentar driblar as camadas de ilusão (“fintas de pálpebras”), para neutralizar as excrescências da herança fisiognômica, da bagagem genética e seus padrões totêmicos, dos traços atávicos, até chegar ao inconclusivo limiar em que a percepção se reduz a formas de onda, nas quais não se distingue mais o caráter receptivo ou emissivo do olhar (“meu esquema perspectivo clivava-se, em forma meândrica, a modos de couveflor ou bucho de boi, e em mosaicos, e francamente cavernoso, como uma esponja”). À beira da desagregação, e depois de ter decidido suspender as experiências, guiado pela imagem da Prudência, produz-se um efeito inesperado: o narrador não se enxerga mais no espelho vazio, como se figurasse ali como “o transparente contemplador” invisível. A busca de sua imagem plena, na forma da ideia fixa, “confundindo o físico, o hiperfísico e o transfísico”, o conduz afinal, justamente quando desiste dela, à contemplação involuntária e paradoxal de uma imagem zerada: “partindo para uma figura gradualmente simplificada, despojara-me, ao termo, até à total desfigura”. No processo frenético e obsessivo em que decalca os traços inessenciais do rosto para extirpá-los, na tentativa vã de chegar a uma redução essencial, despojada de todo atributo, chega à liquidação imagética de uma face em que não sobra nada. A visão o leva à constatação perturbadora de ser (ou de sermos) uma junção mal ajambrada de acidentes, tendo ao centro um nada, “o espírito do viver não passando”, como nos infantes, “de ímpetos espasmódicos, relampejados entre miragens: a esperança e a memória”. Se a imagem especular falta a Jacobina porque ele investiu demais naquela que os outros lhe devolviam, e que não comparece sem a fiança deles, a imagem falta ao personagem-narrador rosiano porque ele mesmo a submeteu a uma série implacável de provas, na ideia fixa de chegar à visão definitiva e apaziguadora de si mesmo, em que o aparente coincidisse com alguma essência. Um paga o preço real de ter investido no caráter imaginário do imaginário, que se desnuda. Outro paga o preço de ter cobrado do imaginário uma veracidade que aquele não pode dar. Por uma via ou por outra, ambos estão expostos e regredidos, nesse ponto, a uma identidade em farrapos, reduzidos a uma condição inconsistente que não tem como se fixar numa autoimagem. O sentimento de si que não forma figura, mas que só se percebe como um feixe de impulsos desconexos, descrito nos dois textos, tem paralelo com as vicissitudes identitárias que estão na base da já citada teoria lacaniana da etapa do espelho como formadora da função do eu (ver nota 4). Segundo Lacan, a etapa do espelho, que se desenrola entre seis meses e um ano e meio, manifesta na criança “o dinamismo afetivo pelo qual o sujeito se identifica primordialmente à Gestalt visual de seu próprio corpo”, isto é, à “unidade ideal” e à “imago salutar” que a descoberta do espelho lhe oferece em contraposição “à descoordenação (ainda) profunda da sua própria motricidade, à discordância intraorgânica e relacional da criança, com os signos da sua prematuração natal fisiológica”.17 Em outras palavras, esse neonato prematuro e fetal, que é o humano, todo feito de “ímpetos espasmódicos, relampejados entre miragens”, para usar os termos rosianos, encontra no objeto espelho, durante um período larvar da sua identidade, a prefiguração exultante de um corpo próprio que lhe escapa, de uma unidade figurada que não emana de si mesmo. Nesse sentido, a imagem ao espelho comparece como um “complemento ortopédico (e funcionalmente essencial no homem) dessa insuficiência nativa, desse desconcerto, ou desacordo constitutivo, ligado à sua prematuração no nascimento” (o destaque é meu). Como parte essencial e complicadora do processo o infante não sabe que o objeto-imagem que lhe promete semelhante unidade mágica é um reflexo dele mesmo, com o que “sua unificação não será jamais completa porque é feita precisamente por uma via alienante, sob a forma de uma imagem estranha, que constitui uma função psíquica original”.18 Assim, “o eu humano é (...) originalmente coleção incoerente de desejos – corpo espedaçado”, e sua “primeira síntese é (...) essencialmente alter ego”, projeção alienada numa imagem outra. “O sujeito humano desejante se constitui em torno de um centro que é o outro na medida em que ele lhe dá 17 Jacques Lacan, “L’agressivité en psychanalyse”, p. 113. 18 Idem, O Seminário Livro 3, p. 113. a sua unidade, e o primeiro acesso que ele tem do objeto, é o objeto enquanto objeto do desejo do outro”.19 Machado de Assis intui e analisa essas síndromes, em seus próprios termos, como quem ilumina, surpreendendo-a, a precária lógica da identidade através do imaginário. Não precisamos colocar ênfase, aqui, no caráter “antecipatório” de suas formulações em relação a posteriores “descobertas” psicanalíticas. O mais importante é que ele fere cordas que ressoavam e continuam ressoando numa interrogação de longo curso sobre a subjetividade, com extraordinário poder de observação e com a potência não de um saber que se deposita, mas que desloca. O interesse da relação com a psicanálise é o de nos ajudar a reconhecer o quanto a situação narrada não se limita ao plano da alegoria moral, na qual se mostraria o grau extremo com que o nosso ser é influenciado pela opinião dos outros, a ponto de as máscaras esconderem a nossa verdadeira face. O que não temos no conto é justamente o assentamento da dicotomia moral entre uma face autêntica e uma face inautêntica, não porque ela não se coloque, mas porque é lançada para um outro e mais vertiginoso plano problemático. Entre a alma interna que se esboça e se esfuma junto com os jogos infantis, e a alma externa que se consuma na farda, há um corpo próprio cuja inconsistência busca se garantir na mímese mimante, no efeito narcísico que resulta da imitação de si dada pela confirmação do olhar do outro. A retirada desse dispositivo ilusório, em situação psicossocial precisa, expõe a nudez cósmica do sujeito e a debilidade constitutiva do eu. Temos aí a descrição de um processo psíquico em que o sujeito entra em angústia pânica num huis clos escravista em que o tempo se arrasta e se nulifica, pendulando inutilmente entre o instante e a eternidade, “diálogo do abismo, cochicho do nada”, destituído dos ritmos de espera e resolução que 19 Idem, ibidem, p. 50. enformam as relações identificatórias do indivíduo com o seu semelhante e que dão espessura ao tempo. Ao contrário do conto de Guimarães Rosa, em que a busca de si está concentrada no rosto e no olhar, a busca pela identidade através da imagem n’” O espelho” de Machado de Assis não se concentra em nenhum momento no rosto, mas na perda do corpo, reduzido a uma imagem “vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra”, resíduo de um gesto “disperso, esgaçado, mutilado”. Para atestar o alcance desse deslocamento e dessa inversão, vale lembrar que, ao contrário do clássico de von Chamisso, “Peter Schlemihl”, em que o protagonista aliena sua sombra, no conto de Machado não se trata de um corpo que perdeu a sombra, mas de uma sombra que perdeu o corpo.20 Guimarães Rosa vai, à sua maneira, ao mesmo núcleo onde estamos. Mas Rosa o faz como que para ultrapassá-lo, ao núcleo: a sua narrativa guarda uma peripécia a mais, em que, por obra de uma série de experiências de passagem – o “amor”, a “conformidade” e a “alegria” – o sujeito volta a se reconhecer no espelho através de uma radiância que transparece como a face de uma criança, a “flor pelágica” e abissal de um quase-rosto que renasce. A pseudo anagnórisis produzida artificialmente em Machado pela reposição do imaginário, com ironia corrosiva, se contrapõe à anagnórisis espectral em Rosa, com o renascimento de um quase-rosto infantil e luminoso que se deixa entrever no espelho. Aqui chegamos a um ponto de inflexão no nosso roteiro: se o giro, digamos, epifânico, acontece em Guimarães Rosa, é porque a narrativa 20 Remeto aqui a uma página fulgurante de “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, em que Marx sintetiza as contradições paralisantes da França imediatamente posterior ao período da Monarquia de Julho, dizendo que “os homens e os acontecimentos aparecem como Schlemihl invertidos, como sombras que perderam seus corpos”. As consequências dessa percepção para o caso brasileiro ficam por desenvolver. Karl Marx, Manuscritos econômico-­‐filosóficos e outros textos escolhidos, Seleção por José Arthur Gianotti, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1974, p. 352. rosiana glosa secretamente uma tradição metafísica e esotérica, que também tem o espelho como seu núcleo, e que, numa coincidência curiosamente significativa, para prosseguirmos no paralelo, tinha vindo à tona como questão filosófica no mesmo campo intelectual em que Lacan produzia sua teoria inicial, em contato com Koyré e Corbin. O espelho como complemento ortopédico da alma Antes de voltarmos a esse ponto, no entanto, vejamos ainda como a perspectiva machadiana é aparentada com o materialismo dessacralizador de Lacan. Em Lacan, a etapa do espelho se processa em três movimentos: A. O infante prematurado é um feixe desconexo de impulsos ao qual falta uma imagem totalizante; B. O espelho (que, mais que o objeto literal, é o olhar do outro, e, em especial, a mãe que o mima) prefigura como imagem gestáltica a figura exultória de alguma coisa que a criança não sabe que a é a imagem dela mesma; C. O eu não se constitui se não for pela identificação desse outro como ele próprio (quando se apagam ou rasuram as marcas sofridas do processo). Em outros termos, o eu é primeiro um nenhum, depois é dois, e só depois um, embora assombrado, na constituição paranoide do seu tecido sempre apto a se desfazer, pelos fantasmas do duplo e do nada. Quando sozinho no sítio de tia Marcolina, Jacobina experimenta a passagem a um real em que o tempo se converte em “diálogo do abismo” e “cochicho do nada”, e em que ele mesmo, mais do que pelo medo, é tomado pela angustiosa “sensação inexplicável” de ser “um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico”. Mas a “coisa pior” transparece na sua relação com o espelho, que ele primeiro evitava olhar, num “impulso inconsciente”, por “receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias, deu-me na veneta olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo: não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra”. Em suma, Machado lê a “etapa do espelho na constituição do eu” a contrapelo, pelo avesso do seu desmonte: se o infante lacaniano é primeiro nenhum, depois dois e depois um, no relato de Jacobina ele é primeiro um, depois dois e daí nenhum. Desvela-se a constituição dupla do imaginário, remetendo-o ao nenhum do real. No seu tratamento homeopático, pela identificação da sua imagem com a da farda, Jacobina reconstitui (ironicamente) a ilusória unidade do imaginário, mas sua narrativa (a narratividade é a intervenção do simbólico) deixa transparecer nela o real da ilusão. É com esse piparote suspensivo, como numa sessão curta lacaniana, que o conto termina. Uma coincidência curiosa, mas não menos significativa: o grupo do serão metafísico em Santa Teresa exibe o formato do cartel lacaniano. O cartel é um dispositivo de trabalho a partir de um desejo de saber sobre algum tema, clínico, teórico, político ou transdisciplinar, organizado em pequenos grupos, de três a cinco integrantes, acrescido de um Mais-um. Veja-se: ”Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência”, “quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo”. “Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação”.21 Sobre o lugar do Mais-um na formação do cartel, diz-se que trabalha na contramão dos efeitos imaginários a ele conferidos, e que, “impondo um obstáculo à soldagem imaginária do grupo, na medida em que lhe falta (pode ser contado como Menos-um), (...) o Mais-um revela que o sujeito (...) não é idêntico ao significante (um nome, uma obra) que o representa”.22 Nos Escritos de Lacan o texto sobre “A etapa do espelho” é desdobrado por ele, à maneira de um corolário, em “A agressividade em psicanálise”. A constituição da identidade sobre a imagem, a fragilidade de sua alienação, implica uma estrutura rivalitária em que o outro é objeto de admiração e inveja, de amor e de ódio. “A tensão agressiva desse eu ou outro está absolutamente integrada a toda espécie de funcionamento imaginário no homem”.23 Assim também “O espelho – Esboço de uma nova teoria da alma humana” pode ser visto como articulado, em Papeis avulsos, com o conto “Verba testamentária”. Neste, uma criança ataca e rasga a fardinha de alferes que um pequeno rival ganhou do pai, numa manobra onde entram os já citados esquemas do favor. Esse traço de inveja e agressão, associado à impressão de que o outro possui, no sucesso de sua imagem, algo que rouba de si, se estende por toda a biografia da personagem, e corre em contraponto com a história da constituição do Estado nacional.24 “A etapa 21 Encontro a observação sobre a semelhança entre o grupo d’ “O espelho” e a estrutura do cartel em um paper de Paulo Siqueira, “L’âme divisée em deux: un conte brésilien”, registrado na Biblioteca do Campo Freudiano em Salvador, sob o número INE-­‐0391, 1997. 22 Dicionário enciclopédico de Psicanálise – O legado de Freud e Lacan, editado por Pierre Kaufmann. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed. 1996. 23 Jacques Lacan, O Seminário Livro 3, p. 113. John Gledson já havia apontado para a conexão temática entre “O espelho” e “Verba 24 testamentária”, contos ligados a uma interpretação cifrada do Brasil, em Por um novo Machado de Assis, São Paulo, Companhia das Letras, 2006, p. 48-­‐49. As datas de publicação, 8 do espelho” está para “A agressividade em Psicanálise”, nos Escritos, assim como “O espelho” está para “Verba testamentária”, em Papeis avulsos, tudo girando, nos dois casos, em torno da mesma emblemática farda de alferes da Guarda Nacional. Os dois contos foram os últimos do livro a ser escritos, um logo depois do outro, como se fechassem o processo, dando-lhe um arremate interno. Rosa, Koyré e Corbin No pensamento de Jacob Boehme, em cuja figura Hegel reconheceu “o primeiro filósofo alemão”, Deus, o Absoluto livre de toda determinação, só pode conhecer-se a si mesmo opondo-se a si mesmo. Deus se exprime ou se espelha no homem, criado à sua imagem, num movimento jamais acabado, infinito, instável. O meio desse engendramento, em que se passa do Um, indizível e indivisível, à multiplicidade visível do mundo, não é outro senão o espelho, olho da sabedoria divina que contém as imagens de todos os seres individuais. “Para esse esquema de pensamento, o mundo percebido /construído pelo homem é um vasto teatro de espelhos” enquanto que o espelho funciona, por sua vez, “como o teatro de uma estranha operação, que faz surgir o infinitamente grande no pequeno e, logo, também o pequeno no grande e que converte o infinito em finito ao preço de uma aceleração, de uma precipitação (...)” vertiginosa.25 O espelho (chamado Sofia, ou espelho sofiânico) é o mediador reversível através do qual Deus se vê no homem e no qual o homem pode entrever o de setembro e 8 de outubro de 1882, na Gazeta de Notícias, reforçam a hipótese da proximidade intencional entre os dois contos. 25 Dufour, p. 50. divino.26 Deus não deixaria de experimentar, assim, uma espécie de síndrome narcisista, em que o desejo de completar-se e reconhecer-se depende de seu vislumbrar-se incessante no Outro. Essa dialética narcísica é notável na teofania cristã, como observa também Slavoj Zizek, em passagem em que comenta a religião à luz da teoria lacaniana: “É justamente porque Deus é um enigma EM SI E PARA SI MESMO, porque ele traz uma insondável Alteridade em Si mesmo, que Cristo precisou surgir para revelar Deus, e não apenas para a humanidade, mas PARA O PRÓPRIO DEUS – é somente através de Cristo que Deus realizou-se plenamente como Deus”.27 Dufour acredita que Lacan extraiu também dessa postulação filosófica do narcisismo divino, com sua alteridade constitutiva, a teoria do espelho, e que o espelho sofiânico habita no corpo dela, dando liga aos outros componentes da fórmula. A hipótese é plausível, mas se é verdade que a ideia do espelho sofiânico participa da formulação do espelho lacaniano, me parece mais que, ao identificar na teofania cristã o núcleo narcísico do sujeito, o espelho é programaticamente destituído por Lacan de qualquer transcendência unitiva, tornando-se o lugar em que se acusa uma cisão. Esse é um gesto diferencial inequívoco que Dufour não identifica, deixando a sua original sugestão genética num estado de certa confusão conceitual. A matriz conceitual do espelho sofiânico, tomada in natura, é próxima, mais propriamente, do modelo junguiano, e oposta ao modelo lacaniano que, se é que a absorve, é para invertê-la e neutralizar seu aporte místicoarquetípico. 26 Ver também “Pensées de Dieu, Images de l’Homme (Figures, Miroirs et engendrements selon J. Boehme, F. CH. Oetinger e F. von Baader)”, em Antoine Faivre, Accès de l’ésotérisme occidental II, (Paris, Gallimard, 1996, p. 220-­‐240). 27 Slavoj Zizek, “O Real da ilusão cristã: notas sobre Lacan e a religião”, em Vladimir Safatle (org.), Um limite tenso – Lacan entre a filosofia e a psicanálise, São Paulo, UNESP, 2003, p. 181. Se é para a transcendência unitiva que aponta o pensamento teosófico do espelho sofiânico, e é isso que Lacan desloca metodologicamente, é isso que reaparece, a seu modo e em seus próprios termos, na cartada rosiana. Para entendê-lo, é importante retornarmos ao imaginal de Henry Corbin, “que remete ao engendramento recíproco da imagem e de seu modelo”.28 Em contraposição às vicissitudes do imaginário, envolvido sempre com a cisão estrutural que constitui o sujeito, e, como vimos, com as ilusões decorrentes, o imaginal sonda, como via positiva, as possibilidades de um sujeito que, despindo-se das representações de si, entre em contato com dimensões ocultas, dando lugar a um virtual que quer entrar no mundo, e que só pode fazê-lo através de um espelho reversível em que dois lados que não se veem chegam a se entrever pela instância radiante de uma espécie de terceira margem. No caso do imaginal, trata-se do acesso ao não-cindido, só possível pelo caminho esotérico (que quer dizer viagem interior, viagem da alma em busca da alma interna) a um estado de graça onde o sujeito/objeto transparece não na sua representação mas como a pura presença da presença, singularidade ontológica livre de toda abstração lógica e de sua concretização num fenômeno sensível, só possível, por sua vez, tendo-se atravessado o vazio do espelho, a cifra em que, olhando-se o zero do seu fundo, se vê o fundo do olhar e não mais as imagens do mundo.29 A travessia do espelho esvaziado de imagens tem história na tradição mística. Diz Giorgio Agamben, em “Ideia da glória”: “Se eu pudesse verdadeiramente ver o ponto cego do meu olho, não veria nada (é esta a treva que, segundo os místicos, é a morada de Deus)”.30 Essa teologia 28 Dufour, op. cit., p. 41. 29 Cf. Ver Henry Corbin, op. cit., em especial, a parte denominada “La théosophie ‘orientale’”, p. 40-­‐80. 30 Giorgio Agamben, “Ideia da glória”, Ideia da prosa, Lisboa, Ed. Cotovia, 1999, p. 125. negativa encontra ressonância na tradição literária como ponto de passagem do processo criativo. Roberto Calasso mostra como o ter chegado a desverse no espelho veneziano de seu quarto é declarado em cartas, por Mallarmé, como um ponto de viragem capital para o desenvolvimento de sua obra poética.31 E Clarice Lispector, em Água viva: “Quem olha um espelho, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade consiste em ele ser vazio, quem caminha para dentro do seu espaço transparente sem deixar nele o vestígio da própria imagem – esse alguém então percebeu o seu mistério de coisa”.32 Para Corbin, no imaginal o ser e o conhecer, a substância e a visão, se iluminam reciprocamente: o imaginal “é a aurora da substância, mas também a própria substância da aurora; a visão da essência, mas também a essência da visão”.33 Rosa: “Por um certo tempo nada enxerguei. Só então, só depois: o tênue começo de um quanto como uma luz, que se nublava, aos poucos tentandose em débil cintilação, radiância. Seu mínimo ondear comovia-me, ou já estaria contido em minha emoção? Que luzinha, aquela, que de mim se emitia, para deter-se acolá, refletida, surpresa? Se quiser, infira o senhor mesmo.” Nessa passagem-chave do conto, em que uma cintilação desponta no espelho anteriormente esvaziado, podemos constatar aquele “engendramento recíproco entre a imagem e seu modelo” que dizíamos definir o imaginal, e que consiste aqui nessa espécie de jogo indiscernível entre quem vê e o que é visto, entre a onda luminosa e o ondear da emoção, entre o sujeito e o objeto, entre – literalmente – a aurora da substância (“o 31 Roberto Calasso, “Um aposento sem ninguém dentro”, A literatura e os deuses, São Paulo, Companhia das Letras, 2004, p. 82 e seguintes. 32 Clarice Lispector, Água viva, p. 79-­‐80. 33 Henry Corbin, op.cit. p. 66. tênue começo de um quanto como uma luz”, despontando esse quanto como a substância mínima) e a substância da aurora (“aos poucos tentandose em débil cintilação, radiância”), entre a visão da essência e a essência da visão, indivisas (“que luzinha, aquela, que de mim se emitia, para deter-se acolá, refletida, surpresa?”) (o destaque é meu). Como essa passagem depende de um certo salto mortale intransferível do ser no mundo, a questão é lançada sistematicamente pelo narrador para o outro que ocupa a dupla posição de ouvinte interno à narrativa e de leitor: “Se quiser, infira o senhor mesmo”. “São coisas que se não devem entrever, pelo menos, além de um tanto. São outras coisas, conforme pude distinguir, muito mais tarde – por último – num espelho. Por aí, perdoe-me o detalhe, eu já amava – já aprendendo, isto seja, a conformidade e a alegria. E... Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto – quase delineado, apenas – mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E era não mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino, só. Só. Será que o senhor nunca compreenderá?” Como dissemos antes, as vicissitudes da perda da alma em “O espelho” de Machado se colocam como a derrisão de um corpo próprio cuja imagem se esgarça e decompõe: uma sombra que perde um corpo. Em “O espelho” de Guimarães Rosa, em vez disso, temos uma sombra que ganha um rosto. E isso se dá porque em Machado de Assis a ênfase irônica está na anatomia material/imaterial do imaginário, submetido à angústia fundante da falta de um corpo próprio. Sofrendo o golpe do real, o mecanismo do imaginário se recompõe sabendo-se ilusório, como o real de uma ilusão em que se funda um sujeito espectral. O trabalho simbólico que permite o relato distanciado desse fato, a elaboração implícita pressuposta pela narração teorizante de Jacobina, fica posto estrategicamente em estado de suspensão, implícito na própria narratividade. Em Guimarães Rosa a ênfase irônica está na reparação espiritual que sobrevém à anatomia do imaginário na forma de uma inesperada dádiva simbólica. Metendo os pés pelas mãos, “pondo os bois atrás do carro e os chifres depois dos bois”, o sujeito faz sem saber um percurso iniciático e chega a uma espécie de revelação à revelia, a inaudita contemplação da essência em sua luminosa face espectral. Duas aproximações ao real Podemos identificar n’”O espelho” de Machado, e no de Rosa, duas pegadas diferentes em termos de aproximação ao real, ambas passíveis de serem localizadas no campo teórico lacaniano, mas com consequências literárias diversas. Numa das formulações temos o real como buraco não-semiotizável, onde o imaginário e o simbólico fracassam, introduzindo estranheza radical na realidade, como negatividade. Numa outra formulação, que não contradiz a primeira, mas que diz respeito mais propriamente a uma teologia negativa do que a um pensamento crítico da negatividade, o real como “o absolutamente sem fissuras”,34 homólogo do Deus Absoluto indeterminado de Boehme, que não pode ser acessado senão pela via imaginal de um salto mortale no “desengonço e mundo (...) – intersecção de planos – onde se completam de fazer as almas”. Insisto: espelho reversível em que dois lados que não se veem chegam a se entrever pela instância radiante de uma 34 Jacques Lacan, O Seminário Livro 2, ver Bento Prado Junior, “Lacan: biologia e narcisismo ou A costura entre o real e o imaginário”, em Vladimir Safatle (org.), Um limite tenso – Lacan entre a filosofia e a psicanálise, São Paulo, UNESP, 2003, p. 242. espécie de terceira margem. A pergunta vertiginosa por esse real, em meio ao “vale de bobagens” em que vivemos, é : “você chegou a existir?” Se “O espelho – Uma nova teoria da alma humana”, de Machado de Assis, é um passo original na empreitada do Ocidente que postula a cisão constitutiva do sujeito concentrada na fórmula rimbaudiana eu é um outro, “O espelho” de Guimarães Rosa mobiliza o princípio igualmente vertiginoso, colhido em tradições diversas, ou naquela que o Ocidente esqueceu, de que outro é um eu (e o mundo a desencontrada interseção de planos “onde se completam de fazer as almas”). Um faz a anatomia crítica do imaginário, o outro toma o imaginário como transe da passagem ao imaginal. Um acusa a exterioridade da alma como estando no cerne do sujeito, outro visa a interioridade da alma como se completando de fazer no outro. Nos contos de Papeis avulsos, mais do que um pessimismo biológico, temos um ceticismo radical quanto à estrutura do imaginário que constitui os sujeitos. Machado satiriza o cientificismo de seu tempo, utiliza a antiga teoria hipocrática dos humores, revirada pelo humor, atualiza os filósofos moralistas do século XVII pela filosofia do inconsciente, e aponta para um análise do imaginário que ilumina questões que serão tratadas pela psicanálise – em particular, na perspectiva que elegemos aqui, numa passagem específica da psicanálise lacaniana. N’ “O espelho” machadiano, o protagonista ocupa o lugar onde se mostra de maneira flagrante o sintoma, mas na perspectiva implícita de um autoanalisado que assume atitude analítica, vertida sobre si mesmo e sobre o grupo, cujos expedientes imaginários desloca (de forma análoga à da posição do Mais-um no cartel lacaniano). A crítica do imaginário não se faz pela parábola moral, nem pela representação de uma saída dignificante da alienação especular exposta, mas pela elaboração inerente à própria narratividade, fazendo-a desembocar num ato de suspensão real, que também envolve o leitor. A verdade é que o jovem Jacobina, que perdeu e reconstituiu artificialmente a sua imagem ao espelho, não poderia narrar a própria história, como a narrou o Jacobina maduro, se não tivesse se descolado dela, em medida significativa, por um ato de autoanálise que está implícito na narração, e que implica o simbólico como um passo além das ilusões do imaginário. Jacobina vai além do ponto em que Simão Bacamarte estacou, o do psiquiatra às portas da autoanálise e da virada psicanalítica, emergindo na posição curiosa de uma espécie de Bacamarte analisado. Traços sócioculturais brasileiros não deixam de estar presentes nessa “dialética rarefeita entre não-ser e ser outro” que compõe a sua figura: a oscilação entre o silêncio evasivo e a truculência da autoridade que não admite réplica, análoga àquela pendulação da vida brasileira, apontada por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, entre a anomia política e a quartelada: a farda ou nada. De maneira análoga, embora por um caminho narrativo diferente, o pai que inicia o filho no método de cristalização da sua imagem, elevado ao absurdo, em “Teoria do medalhão”, não poderia dizer tudo aquilo que diz, explicitando as minúcias de um sintoma psíquico-ideológico a esconder, se não fosse pela ótica da ironia narrativa que ele recusa como o procedimento corrosivo máximo a ser evitado (“Somente não deves empregar a ironia, esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos céticos e desabusados”). Em nenhum lugar, como esse, Machado explicitou o programa levado a efeito nas obras do período, evidentemente que através de um salto mortale irônico e elíptico. Diferentemente de Machado, a narrativa de Guimarães Rosa faz ver no espelho esvaziado a quase-imagem que figura um renascimento metafísico, que não é da ordem nem do pensamento abstrato nem do reconhecimento empírico – em outras palavras, que não se deixa representar, mas que se apresenta, ainda assim, como a assunção limítrofe do ser no nada em que o existente vem a se reconhecer como espectral aparição (“o ainda-nemrosto – quase delineado, apenas – mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal...”). A imagem epifânica não deixa de ser problematizada como enigma e continuado objeto de dúvida, já que literatura, fique claro, não é religião nem doutrina. Desdobrando aquela perspectiva dialógica em que um narrador interpela seguidamente um ouvinte inaudível, à maneira da imensa sessão de análise que é o Grande sertão: veredas, temos n’ “O espelho” uma espécie de autoanalisandoselvagem que pergunta pelo quem é, e que envolve na sua pergunta o suposto analista-leitor. Debulhando grãos de sandice a granel, esse sujeito amalucado, tomado pela ideia fixa de ter de si a impossível visão cabal, acaba atravessando cabalisticamente o vazio do espelho e perfazendo sem saber um caminho iniciático desgovernado, que só se faz por obra da graça – palavra a ser tomada, em Rosa, com a ambivalência da ironia e da revelação.