sem diplomacia um mundo de equilíbrios

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SEM DIPLOMACIA – UM MUNDO
DE EQUILÍBRIOS PRECÁRIOS
Luis Fernando Ayerbe
(Org.)
Organizador
Luis Fernando Ayerbe
Revisão
Adalton César Oliveira
Capa
Marcelo Carneiro
Ilustração retirada do site blog.sucessoclub.com.br
Diagramação
Gianfrancesco Afonso Cervelin
SEM DIPLOMACIA – UM MUNDO
DE EQUILÍBRIOS PRECÁRIOS
Luis Fernando Ayerbe
(Org.)
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
S47
Sem diplomacia [recurso eletrônico] : um mundo de equilíbrios precários /
organização Luis Fernando Ayerbe. - 1. ed. - São Paulo : Ed. da UNESP, 2015.
recurso digital
Formato: epdf
Requisitos do sistema: adobe acrobat reader
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-85-7983-645-9 (recurso eletrônico)
1. Brasil - Relações exteriores - História. 2. América Latina Política e governo. 3. Estados Unidos - Política e governo. 4. Ciências
políticas. 5. Livros eletrônicos. I. Ayerbe, Luis Fernando.
15-24602
14/07/2015
CDD: 327.81
CDU: 327(81)
14/07/2015
Organizador
Luis Fernando Ayerbe
Revisão
Adalton César Oliveira
Capa
Marcelo Carneiro
Ilustração retirada do site blog.sucessoclub.com.br
Diagramação
Gianfrancesco Afonso Cervelin
SEM DIPLOMACIA – UM MUNDO
DE EQUILÍBRIOS PRECÁRIOS
Luis Fernando Ayerbe
(Org.)
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
S47
Sem diplomacia [recurso eletrônico] : um mundo de equilíbrios precários /
organização Luis Fernando Ayerbe. - 1. ed. - São Paulo : Ed. da UNESP, 2015.
recurso digital
Formato: epdf
Requisitos do sistema: adobe acrobat reader
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-85-7983-645-9 (recurso eletrônico)
1. Brasil - Relações exteriores - História. 2. América Latina Política e governo. 3. Estados Unidos - Política e governo. 4. Ciências
políticas. 5. Livros eletrônicos. I. Ayerbe, Luis Fernando.
15-24602
14/07/2015
CDD: 327.81
CDU: 327(81)
14/07/2015
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
Luis Fernando Ayerbe .............................................................................. 7
Um mundo de equilibrios precários
Luis Fernando Ayerbe ............................................................................11
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
Ariel Finguerut ......................................................................................53
Os Libertários
Ariel Finguerut e Marco Aurélio Dias de Souza .......................................99
Da primavera ao outono: as narrativas discursivas da The National Interest
sobre as crises na Ucrânia e na região entre a Síria e o Iraque (2013-2014)
Roberto Moll ...................................................................................... 137
A esquerda latino-americana no poder: principais embates e debates do
biênio 2013-2014 e análise do caso venezuelano
Carolina Pedroso ................................................................................ 167
Democracia e polarização na Argentina kirchnerista
Matheus de Oliveira Pereira ................................................................ 207
Polarização política e política externa nas eleições brasileiras de 2014
Sara Basilio de Toledo e Lucas Mesquita ............................................... 227
Obsessiva desigualdade
Adalton Oliveira................................................................................. 253
Rumo aos futuros mais próximo e distante
Oscar D’Ambrosio, Daniel Patire e Cínthia Leone ................................ 271
5
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
Luis Fernando Ayerbe .............................................................................. 7
Um mundo de equilibrios precários
Luis Fernando Ayerbe ............................................................................11
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
Ariel Finguerut ......................................................................................53
Os Libertários
Ariel Finguerut e Marco Aurélio Dias de Souza .......................................99
Da primavera ao outono: as narrativas discursivas da The National Interest
sobre as crises na Ucrânia e na região entre a Síria e o Iraque (2013-2014)
Roberto Moll ...................................................................................... 137
A esquerda latino-americana no poder: principais embates e debates do
biênio 2013-2014 e análise do caso venezuelano
Carolina Pedroso ................................................................................ 167
Democracia e polarização na Argentina kirchnerista
Matheus de Oliveira Pereira ................................................................ 207
Polarização política e política externa nas eleições brasileiras de 2014
Sara Basilio de Toledo e Lucas Mesquita ............................................... 227
Obsessiva desigualdade
Adalton Oliveira................................................................................. 253
Rumo aos futuros mais próximo e distante
Oscar D’Ambrosio, Daniel Patire e Cínthia Leone ................................ 271
5
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
Luis Fernando Ayerbe .............................................................................. 7
Um mundo de equilibrios precários
Luis Fernando Ayerbe ............................................................................11
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
Ariel Finguerut ......................................................................................53
Os Libertários
Ariel Finguerut e Marco Aurélio Dias de Souza .......................................99
Da primavera ao outono: as narrativas discursivas da The National Interest
sobre as crises na Ucrânia e na região entre a Síria e o Iraque (2013-2014)
Roberto Moll ...................................................................................... 137
A esquerda latino-americana no poder: principais embates e debates do
biênio 2013-2014 e análise do caso venezuelano
Carolina Pedroso ................................................................................ 167
Democracia e polarização na Argentina kirchnerista
Matheus de Oliveira Pereira ................................................................ 207
Polarização política e política externa nas eleições brasileiras de 2014
Sara Basilio de Toledo e Lucas Mesquita ............................................... 227
Obsessiva desigualdade
Adalton Oliveira................................................................................. 253
Rumo aos futuros mais próximo e distante
Oscar D’Ambrosio, Daniel Patire e Cínthia Leone ................................ 271
5
APRESENTAÇÃO
O presente livro é resultado das atividades de pesquisa e divulgação do projeto Sem Diplomacia, parceria entre o Instituto de
Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI-Unesp) e a Assessoria
de Comunicação e Imprensa da Unesp (ACI).
Buscando contribuir para a análise, a informação e o debate
sobre a conjuntura internacional, a pesquisa no interior do projeto objetiva compreender a racionalidade de atores que são decisivos na geração de acontecimentos ou intervenção neles, tomando
como fontes principais visões de teor mais ideologizado e partidarizado, muitas vezes relegadas pelos grandes meios de comunicação
por seu “descuido” com o “politicamente correto”, porque vão direto ao ponto, sem rodeios, Sem Diplomacia.
Na pista das razões e interesses de grandes protagonistas, nossa escolha metodológica busca submeter ao contraditório eventos e
processos. A partir dessa perspectiva, a equipe do projeto concentra
o foco da análise em duas vertentes temáticas: 1) razões e interesses da atuação internacional dos EUA, especialmente na América
Latina, evidenciando polarizações internas entre posições vinculadas ao “conservadorismo”, “liberalismo”, “direita” e “esquerda”; 2)
razões e interesses que alimentam polarizações políticas na América
Latina, estruturadas em torno de posições associadas ao “neoliberalismo”, “populismo”, “esquerda” e “direita”.
Os resultados, divulgados no site http://www.unesp.br/semdiplomacia, contemplam três modalidades de produtos: 1) Artigos,
em que são postadas matérias selecionadas de meios de comunicação, levando o mesmo título da fonte de origem, acompanhada
de síntese explicativa sobre seu conteúdo, dispensando comentários opinativos, e o link para acesso à versão completa; 2) Análises
7
oriundas da equipe ou de colaboradores externos, veiculadas nas
seções Opinião, Podcast e Videocast; 3) Programa em vídeo Em
Debate, com convidados que discutem em cada edição um tema
relevante na área de relações internacionais.
Com a publicação deste livro inauguramos uma nova modalidade de divulgação, apresentando ao público leitor nove capítulos
elaborados pela equipe do projeto a partir do acompanhamento
da conjuntura internacional iniciado em 2013, ano de criação do
Sem Diplomacia.
O primeiro capítulo, “Um mundo de equilíbrios precários”,
toma como base a temática central do livro, analisando eventos e
posicionamentos de atores de diferentes espectros políticos e ideológicos que evidenciam uma preocupação de crescente destaque
nos debates sobre as relações internacionais: a “ordem”, a “desordem”, e o lugar dos Estados Unidos no mundo. Retomando o título de uma das obras do historiador Eric Hobsbawm, coloca-se a
questão que desafia a análise: estamos frente a uma nova Era de
Extremos?
Os três capítulos seguintes tomam como foco exclusivo os
Estados Unidos. Em “Conservadorismo nos EUA, um conceito
fora de lugar?”, Ariel Finguerut discute a trajetória conservadora
a partir da segunda metade do século XX, procurando demonstrar
sua peculiaridade e suas diferentes formas de articulação para, na
sequência, construir elementos para aprofundar o debate contemporâneo em torno do neoconservadorismo, da Nova Direita, e das
polarizações ideológicas dos anos recentes. Em “Os Libertários”,
Ariel Finguerut e Marco Aurélio Dias de Souza abordam as principais ideias, formas de mobilização e impacto desse movimento,
apresentando o contexto histórico e ideológico da sua emergência
nos EUA, sua relação com o espectro conservador mais amplo, as
ideias, conceitos, contradições e desafios internos enfrentados na
atualidade, situando os principais contornos que permitem discutir algumas das propostas libertárias diante da sucessão de Barack
Obama. Em “Da primavera ao outono: as narrativas discursivas da
The National Interest sobre as crises na Ucrânia e na região entre a
Síria e o Iraque (2013-2014)”, Roberto Moll aborda o debate sobre
8
o posicionamento do governo Obama com relação às duas crises,
tomando como referência o polo conservador, especificamente o
site nationalinterest.org. A análise busca responder a algumas perguntas que ajudam a iluminar aspectos relevantes sobre a política
interna e externa do país: como é narrado o desenrolar desses processos de crise em diferentes regiões do Oriente? Nessas narrativas,
como se descreve o “outro”? Como é avaliado o papel dos Estados
Unidos? Quais ações são propostas?
Perspectivas conservadoras presentes nos EUA aparecem também em alguns dos cenários de polarização da América Latina
abordados nos três capítulos dedicados à região. Em “A esquerda
latino-americana no poder: principais embates e debates do biênio
2013-2014 e análise do caso venezuelano”, Carolina Silva Pedroso
faz um acompanhamento das eleições presidenciais em Equador,
Venezuela, Paraguai, Honduras, Chile, El Salvador, Costa Rica,
Panamá, Colômbia, Bolívia, Brasil e Uruguai a partir de um recorte metodológico baseado em fontes que se apresentam como parte da esquerda e/ou do progressismo. Temas como neoliberalismo,
tratados de livre-comércio, política externa e estratégias de inserção
regional e internacional foram foco comum dos debates, tendo na
Venezuela a principal referência regional em termos de disputa. Em
“Democracia e polarização na Argentina kirchnerista”, Matheus de
Oliveira Pereira traça um panorama dos embates políticos no período de doze anos de governos de Néstor e Cristina Kirchner. O
foco do texto está especialmente direcionado às posições da oposição, frequentemente vocalizadas em veículos como os jornais
Clarín e La Nación, os principais do establishment midiático argentino, e de portais online como o Infobae, a partir de uma crônica
pautada em temas específicos: a lei de meios, a política externa e a
questão dos “fundos abutres”. Em “Polarização política e política
externa nas eleições brasileiras de 2014”, Sara Basilio de Toledo e
Lucas Mesquita analisam os embates em torno do PT e do PSDB,
que ganhou fôlego com as eleições presidenciais de 1994 e vem se
intensificando até alcançar seu ápice em 2014. Diferentemente de
algumas políticas domésticas que não se radicalizaram de maneira
tão pontual em suas propostas, a política externa polarizou posi9
oriundas da equipe ou de colaboradores externos, veiculadas nas
seções Opinião, Podcast e Videocast; 3) Programa em vídeo Em
Debate, com convidados que discutem em cada edição um tema
relevante na área de relações internacionais.
Com a publicação deste livro inauguramos uma nova modalidade de divulgação, apresentando ao público leitor nove capítulos
elaborados pela equipe do projeto a partir do acompanhamento
da conjuntura internacional iniciado em 2013, ano de criação do
Sem Diplomacia.
O primeiro capítulo, “Um mundo de equilíbrios precários”,
toma como base a temática central do livro, analisando eventos e
posicionamentos de atores de diferentes espectros políticos e ideológicos que evidenciam uma preocupação de crescente destaque
nos debates sobre as relações internacionais: a “ordem”, a “desordem”, e o lugar dos Estados Unidos no mundo. Retomando o título de uma das obras do historiador Eric Hobsbawm, coloca-se a
questão que desafia a análise: estamos frente a uma nova Era de
Extremos?
Os três capítulos seguintes tomam como foco exclusivo os
Estados Unidos. Em “Conservadorismo nos EUA, um conceito
fora de lugar?”, Ariel Finguerut discute a trajetória conservadora
a partir da segunda metade do século XX, procurando demonstrar
sua peculiaridade e suas diferentes formas de articulação para, na
sequência, construir elementos para aprofundar o debate contemporâneo em torno do neoconservadorismo, da Nova Direita, e das
polarizações ideológicas dos anos recentes. Em “Os Libertários”,
Ariel Finguerut e Marco Aurélio Dias de Souza abordam as principais ideias, formas de mobilização e impacto desse movimento,
apresentando o contexto histórico e ideológico da sua emergência
nos EUA, sua relação com o espectro conservador mais amplo, as
ideias, conceitos, contradições e desafios internos enfrentados na
atualidade, situando os principais contornos que permitem discutir algumas das propostas libertárias diante da sucessão de Barack
Obama. Em “Da primavera ao outono: as narrativas discursivas da
The National Interest sobre as crises na Ucrânia e na região entre a
Síria e o Iraque (2013-2014)”, Roberto Moll aborda o debate sobre
8
o posicionamento do governo Obama com relação às duas crises,
tomando como referência o polo conservador, especificamente o
site nationalinterest.org. A análise busca responder a algumas perguntas que ajudam a iluminar aspectos relevantes sobre a política
interna e externa do país: como é narrado o desenrolar desses processos de crise em diferentes regiões do Oriente? Nessas narrativas,
como se descreve o “outro”? Como é avaliado o papel dos Estados
Unidos? Quais ações são propostas?
Perspectivas conservadoras presentes nos EUA aparecem também em alguns dos cenários de polarização da América Latina
abordados nos três capítulos dedicados à região. Em “A esquerda
latino-americana no poder: principais embates e debates do biênio
2013-2014 e análise do caso venezuelano”, Carolina Silva Pedroso
faz um acompanhamento das eleições presidenciais em Equador,
Venezuela, Paraguai, Honduras, Chile, El Salvador, Costa Rica,
Panamá, Colômbia, Bolívia, Brasil e Uruguai a partir de um recorte metodológico baseado em fontes que se apresentam como parte da esquerda e/ou do progressismo. Temas como neoliberalismo,
tratados de livre-comércio, política externa e estratégias de inserção
regional e internacional foram foco comum dos debates, tendo na
Venezuela a principal referência regional em termos de disputa. Em
“Democracia e polarização na Argentina kirchnerista”, Matheus de
Oliveira Pereira traça um panorama dos embates políticos no período de doze anos de governos de Néstor e Cristina Kirchner. O
foco do texto está especialmente direcionado às posições da oposição, frequentemente vocalizadas em veículos como os jornais
Clarín e La Nación, os principais do establishment midiático argentino, e de portais online como o Infobae, a partir de uma crônica
pautada em temas específicos: a lei de meios, a política externa e a
questão dos “fundos abutres”. Em “Polarização política e política
externa nas eleições brasileiras de 2014”, Sara Basilio de Toledo e
Lucas Mesquita analisam os embates em torno do PT e do PSDB,
que ganhou fôlego com as eleições presidenciais de 1994 e vem se
intensificando até alcançar seu ápice em 2014. Diferentemente de
algumas políticas domésticas que não se radicalizaram de maneira
tão pontual em suas propostas, a política externa polarizou posi9
ções na medida em que os modelos apresentados de inserção internacional brasileira na região e no mundo se distinguiram significativamente. Entre as fontes da análise destacam-se os Programas
de Governo, discursos, entrevistas, debates oficiais e materiais de
agências de notícias.
Em “Obsessiva desigualdade”, Adalton Oliveira trata de tema
que atravessa as polarizações dos diversos atores e processos analisados nos capítulos anteriores. Partindo do debate entre conservadores e progressistas a respeito do significado filosófico e econômico
da desigualdade, analisa seu desdobramento na política. Com um
acompanhamento ilustrado por gráficos sobre a evolução recente
nos Estados Unidos e na América Latina, mostra uma tendência
de aumento da inequidade no primeiro e de queda na América
Latina. Destacando os casos de Bolívia e Brasil, enfatiza-se o peso
dos programas sociais governamentais, objeto de forte polêmica
nas recentes eleições presidenciais, dado o peso decisivo nas respectivas continuidades de Evo Morales e Dilma Rousseff.
Fechando o livro, “Rumo aos futuros mais próximo e distante”,
de Oscar D’Ambrosio, Daniel Patire e Cínthia Leone, coloca em
relevo a parceria entre a ACI e o IEEI no Sem Diplomacia, analisando o conteúdo dos programas Em Debate. “Por que os EUA
espionam o Brasil?”, “Venezuela: Crise Política e Econômica”, “Os
Estados Unidos perderam influência na América Latina?”, “Guerra
contra o Estado Islâmico”, “O panorama político na América do
Sul em 2015”, “Conflitos armados internacionais e a radicalização
da violência contra civis”, “Ordem e Desordem Mundial”, “O reatamento diplomático entre Cuba e EUA”, são os títulos de algumas
das edições veiculadas até o momento, com pautas que atravessam
temas diretamente vinculados às linhas de pesquisa do projeto.
Finalmente, gostaríamos de agradecer à Cultura Acadêmica, selo
da Editora Unesp, pela inestimável oportunidade de publicar o livro.
Luis Fernando Ayerbe
São Paulo, julho de 2015
10
UM MUNDO DE
EQUILIBRIOS PRECÁRIOS
Luis Fernando Ayerbe*
O “breve século XX”, demarcado por Eric Hobsbawm (1995)
entre o início da Primeira Guerra Mundial em 1914 e a dissolução da União Soviética em 1991, foi palco de eventos expressivos
do conflito antagonista entre visões de mundo. “Era dos Extremos”
foi a designação distintiva do ilustre historiador para embates levados às últimas consequências entre impérios e nações, capitalismo
e socialismo, democracia e nazifascismo, para mencionar apenas os
de maior ambição e proporção.
Na década de 1990, parecia que o mundo transitava pelos trilhos da utopia evolucionista liberal do século XIX, conduzido por
quem estrearia em breve o título de única superpotência. Coube
a um ideólogo do establishment cunhar a famosa frase: trata-se do
“fim da história”, em que a derrota soviética estaria encerrando as
disputas sistêmicas com totalitarismos à “esquerda” e “direita” até
então enfrentadas pelo “capitalismo democrático”.
Passadas mais de duas décadas, e sem deixar de enaltecer o
protagonismo estadunidense nas mudanças trazidas pelo fim da
Guerra Fria e a globalização sem precedentes da economia de mercado, Henry Kissinger (2014) manifesta preocupação com a profusão de ameaças reveladoras de um novo momento de transição
no cenário internacional, em que a Ordem Mundial, título do seu
* Luis Fernando Ayerbe é coordenador do Instituto de Estudos Econômicos e
Internacionais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(IEEI-Unesp). Professor Titular do Departamento de Economia da Unesp,
campus Araraquara.
11
ções na medida em que os modelos apresentados de inserção internacional brasileira na região e no mundo se distinguiram significativamente. Entre as fontes da análise destacam-se os Programas
de Governo, discursos, entrevistas, debates oficiais e materiais de
agências de notícias.
Em “Obsessiva desigualdade”, Adalton Oliveira trata de tema
que atravessa as polarizações dos diversos atores e processos analisados nos capítulos anteriores. Partindo do debate entre conservadores e progressistas a respeito do significado filosófico e econômico
da desigualdade, analisa seu desdobramento na política. Com um
acompanhamento ilustrado por gráficos sobre a evolução recente
nos Estados Unidos e na América Latina, mostra uma tendência
de aumento da inequidade no primeiro e de queda na América
Latina. Destacando os casos de Bolívia e Brasil, enfatiza-se o peso
dos programas sociais governamentais, objeto de forte polêmica
nas recentes eleições presidenciais, dado o peso decisivo nas respectivas continuidades de Evo Morales e Dilma Rousseff.
Fechando o livro, “Rumo aos futuros mais próximo e distante”,
de Oscar D’Ambrosio, Daniel Patire e Cínthia Leone, coloca em
relevo a parceria entre a ACI e o IEEI no Sem Diplomacia, analisando o conteúdo dos programas Em Debate. “Por que os EUA
espionam o Brasil?”, “Venezuela: Crise Política e Econômica”, “Os
Estados Unidos perderam influência na América Latina?”, “Guerra
contra o Estado Islâmico”, “O panorama político na América do
Sul em 2015”, “Conflitos armados internacionais e a radicalização
da violência contra civis”, “Ordem e Desordem Mundial”, “O reatamento diplomático entre Cuba e EUA”, são os títulos de algumas
das edições veiculadas até o momento, com pautas que atravessam
temas diretamente vinculados às linhas de pesquisa do projeto.
Finalmente, gostaríamos de agradecer à Cultura Acadêmica, selo
da Editora Unesp, pela inestimável oportunidade de publicar o livro.
Luis Fernando Ayerbe
São Paulo, julho de 2015
10
UM MUNDO DE
EQUILIBRIOS PRECÁRIOS
Luis Fernando Ayerbe*
O “breve século XX”, demarcado por Eric Hobsbawm (1995)
entre o início da Primeira Guerra Mundial em 1914 e a dissolução da União Soviética em 1991, foi palco de eventos expressivos
do conflito antagonista entre visões de mundo. “Era dos Extremos”
foi a designação distintiva do ilustre historiador para embates levados às últimas consequências entre impérios e nações, capitalismo
e socialismo, democracia e nazifascismo, para mencionar apenas os
de maior ambição e proporção.
Na década de 1990, parecia que o mundo transitava pelos trilhos da utopia evolucionista liberal do século XIX, conduzido por
quem estrearia em breve o título de única superpotência. Coube
a um ideólogo do establishment cunhar a famosa frase: trata-se do
“fim da história”, em que a derrota soviética estaria encerrando as
disputas sistêmicas com totalitarismos à “esquerda” e “direita” até
então enfrentadas pelo “capitalismo democrático”.
Passadas mais de duas décadas, e sem deixar de enaltecer o
protagonismo estadunidense nas mudanças trazidas pelo fim da
Guerra Fria e a globalização sem precedentes da economia de mercado, Henry Kissinger (2014) manifesta preocupação com a profusão de ameaças reveladoras de um novo momento de transição
no cenário internacional, em que a Ordem Mundial, título do seu
* Luis Fernando Ayerbe é coordenador do Instituto de Estudos Econômicos e
Internacionais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(IEEI-Unesp). Professor Titular do Departamento de Economia da Unesp,
campus Araraquara.
11
Luis Fernando Ayerbe
último livro, seria o grande problema da atualidade: “proliferação
de armas de destruição em massa, a desintegração de estados, o
impacto da depredação ambiental, a persistência de práticas genocidas e a difusão de novas tecnologias que ameaçam conduzir conflitos fora do controle ou compreensão humana”. Agravando esse
quadro, inclui as crises políticas e econômicas que, na esteira das
guerras no Afeganistão e Iraque e da débâcle financeira deflagrada
em 2008, tendem a ser percebidas como produtos de concepções e
práticas ocidentais, erodindo o otimismo liberal do imediato pós-Guerra Fria de convergência virtuosa de mercados livres, democracia e paz mundial, dando lugar à incerteza, que sintetiza nas
seguintes indagações: “Estamos diante de um período em que forças além de qualquer tipo de restrições são as que determinam o
futuro?”. “É possível traduzir culturas divergentes em um sistema
comum?” (Kissinger, 2014).
Voz qualificada e representativa de poderes realmente existentes, Kissinger clama pela urgência de um ordenamento em que
a liderança estadunidense terá de ser componente inevitável. No
campo oposto dessa visão, o país é incorporado ao problema, não
à solução, como referência privilegiada das “forças além de qualquer tipo de restrições”. Em artigo no jornal mexicano La Jornada,
Noam Chomsky, voz qualificada e representativa dessa perspectiva,
faz um recorrido pela trajetória de intervenções no exterior desde
os inícios da Guerra Fria até o presente, concluindo que “Estados
Unidos é o maior Estado terrorista do mundo” (http://unesp.br/
semdiplomacia/artigos/2014/760).
Para além dos seus antagonismos, ambos os pontos de vista
ampliam e diversificam o universo de radicalismos que, voltando a Hobsbawm, parecem anunciar uma nova Era de Extremos.
Desenvolveremos essa hipótese nas próximas seções, tomando
como referência a pesquisa do projeto Sem Diplomacia, destacando
três temas em que contrastes de posições são especialmente reveladores: 1) a liderança estadunidense; 2) governos “pós-neoliberais”
e circulação de elites na América do Sul; 3) rebeldes, indignados e
missionários na paisagem internacional do poder.
12
Um mundo de equilibrios precários
Barack Obama: A liderança estadunidense em questão
Desde que assumiu a presidência em 2009, Barack Obama
enfrenta fortes críticas à sua atuação internacional, especialmente
de círculos conservadores próximos ao Partido Republicano e analistas de esquerda dentro e fora do país. Uma composição comparativa desses questionamentos dá uma ideia dos desencontros entre
visões que se situam em terrenos antagônicos da política, cujo
olhar, mesmo dirigido ao mesmo país e ao mesmo presidente, parece refletir realidades totalmente diferentes.
Em coletiva à imprensa do Secretário de Estado John Kerry
em 17 de abril de 2013, após a apresentação do orçamento da sua
pasta para 2014, frente à pergunta de um jornalista sobre as prioridades para a América Latina e Caribe, responde utilizando uma
terminologia considerada na região como pejorativa e preconceituosa: “O hemisfério ocidental é nosso quintal, é de vital importância
para nós” (http://unesp.br/semdiplomacia/opiniao/2013/1).
As reações críticas, como a publicada na agência de notícias Telesur, da Venezuela, denunciam o uso do termo “Quintal”
como atualização da Doutrina Monroe de 1823, início de uma
política dos Estados Unidos (EUA) para América Latina marcada pelo intervencionismo (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2013/1).
A mesma conotação, desta vez incorporando a caracterização
dos EUA como Império, aparece em artigo publicado no site de
esquerda Rebelión, em que se critica a parcialidade de Obama na
sua posição perante o resultado das eleições de abril na Venezuela,
evitando reconhecer a vitória de Nicolás Maduro e fazendo menções, na sua viagem ao México e Costa Rica no mês de maio, a
um quadro político que considera preocupante em termos de estabilidade, democracia e respeito aos direitos humanos, adotando
como próprios os argumentos da oposição liderada pelo candidato
derrotado Henrique Capriles (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2013/5).
Os discursos proferidos por Obama nessa viagem também
foram questionados por analistas conservadores, objetando o que
13
Luis Fernando Ayerbe
último livro, seria o grande problema da atualidade: “proliferação
de armas de destruição em massa, a desintegração de estados, o
impacto da depredação ambiental, a persistência de práticas genocidas e a difusão de novas tecnologias que ameaçam conduzir conflitos fora do controle ou compreensão humana”. Agravando esse
quadro, inclui as crises políticas e econômicas que, na esteira das
guerras no Afeganistão e Iraque e da débâcle financeira deflagrada
em 2008, tendem a ser percebidas como produtos de concepções e
práticas ocidentais, erodindo o otimismo liberal do imediato pós-Guerra Fria de convergência virtuosa de mercados livres, democracia e paz mundial, dando lugar à incerteza, que sintetiza nas
seguintes indagações: “Estamos diante de um período em que forças além de qualquer tipo de restrições são as que determinam o
futuro?”. “É possível traduzir culturas divergentes em um sistema
comum?” (Kissinger, 2014).
Voz qualificada e representativa de poderes realmente existentes, Kissinger clama pela urgência de um ordenamento em que
a liderança estadunidense terá de ser componente inevitável. No
campo oposto dessa visão, o país é incorporado ao problema, não
à solução, como referência privilegiada das “forças além de qualquer tipo de restrições”. Em artigo no jornal mexicano La Jornada,
Noam Chomsky, voz qualificada e representativa dessa perspectiva,
faz um recorrido pela trajetória de intervenções no exterior desde
os inícios da Guerra Fria até o presente, concluindo que “Estados
Unidos é o maior Estado terrorista do mundo” (http://unesp.br/
semdiplomacia/artigos/2014/760).
Para além dos seus antagonismos, ambos os pontos de vista
ampliam e diversificam o universo de radicalismos que, voltando a Hobsbawm, parecem anunciar uma nova Era de Extremos.
Desenvolveremos essa hipótese nas próximas seções, tomando
como referência a pesquisa do projeto Sem Diplomacia, destacando
três temas em que contrastes de posições são especialmente reveladores: 1) a liderança estadunidense; 2) governos “pós-neoliberais”
e circulação de elites na América do Sul; 3) rebeldes, indignados e
missionários na paisagem internacional do poder.
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Um mundo de equilibrios precários
Barack Obama: A liderança estadunidense em questão
Desde que assumiu a presidência em 2009, Barack Obama
enfrenta fortes críticas à sua atuação internacional, especialmente
de círculos conservadores próximos ao Partido Republicano e analistas de esquerda dentro e fora do país. Uma composição comparativa desses questionamentos dá uma ideia dos desencontros entre
visões que se situam em terrenos antagônicos da política, cujo
olhar, mesmo dirigido ao mesmo país e ao mesmo presidente, parece refletir realidades totalmente diferentes.
Em coletiva à imprensa do Secretário de Estado John Kerry
em 17 de abril de 2013, após a apresentação do orçamento da sua
pasta para 2014, frente à pergunta de um jornalista sobre as prioridades para a América Latina e Caribe, responde utilizando uma
terminologia considerada na região como pejorativa e preconceituosa: “O hemisfério ocidental é nosso quintal, é de vital importância
para nós” (http://unesp.br/semdiplomacia/opiniao/2013/1).
As reações críticas, como a publicada na agência de notícias Telesur, da Venezuela, denunciam o uso do termo “Quintal”
como atualização da Doutrina Monroe de 1823, início de uma
política dos Estados Unidos (EUA) para América Latina marcada pelo intervencionismo (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2013/1).
A mesma conotação, desta vez incorporando a caracterização
dos EUA como Império, aparece em artigo publicado no site de
esquerda Rebelión, em que se critica a parcialidade de Obama na
sua posição perante o resultado das eleições de abril na Venezuela,
evitando reconhecer a vitória de Nicolás Maduro e fazendo menções, na sua viagem ao México e Costa Rica no mês de maio, a
um quadro político que considera preocupante em termos de estabilidade, democracia e respeito aos direitos humanos, adotando
como próprios os argumentos da oposição liderada pelo candidato
derrotado Henrique Capriles (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2013/5).
Os discursos proferidos por Obama nessa viagem também
foram questionados por analistas conservadores, objetando o que
13
Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
consideram uma demonstração dos reiterados gestos de fraqueza, e até de falta de patriotismo, que marcam a trajetória da sua
política externa (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2013/4).
Essa visão é recorrente em setores próximos ao Partido
Republicano, que acusam o presidente de promover, por opção
ou inaptidão, o declínio da primazia conquistada pelos EUA após
a vitória na Guerra Fria.
Nessa perspectiva, ações dirigidas a gerar expectativas favoráveis
sobre a sua política externa para demarcar diferenças com o antecessor George W. Bush são apresentadas como sinal de humilhação. Em artigo no The Telegraph, Nile Gardiner chama a atenção
para a insistência de Obama nas suas viagens internacionais em
justificar-se por comportamentos nacionais “arrogantes” no passado (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2013/3). Para ele,
o discurso no México, atribuindo aos EUA parte da culpa pela
violência nesse país, retoma uma série que vem desde o início do
seu primeiro mandato, adotando a mesma postura com o mundo
muçulmano (entrevista à rede Al Arabiya, 27/01/2009), com os
aliados europeus (discurso na França, 03/04/2009) e latino-americanos (Cúpula de Trinidad y Tobago em 17/04/2009); reconhecendo e se desculpando frente ao Irã pela participação no golpe contra o Primeiro Ministro Mosaddek em 1953 (discurso no Egito,
04/06/2009); sua crítica a práticas de tortura a prisioneiros por
parte da CIA, que teriam sacrificado valores nacionais essenciais no
terreno dos direitos humanos (discurso aos funcionários da agência, Virginia, 20/04/2009). (Ayerbe, 2010).
Certamente não é essa a visão do governo sobre a sua política,
que vê o ativismo do período Bush como inadequado a um cenário
em que os EUA padecem as limitações impostas pelos ajustes para
lidar com a crise financeira, a ascensão de novas potências que no
campo econômico projetam um mundo multipolar, e a acentuada perda de legitimidade internacional de alocuções abertamente
hegemonistas. A liderança estadunidense projetada por Obama
se apresenta como resultado necessário de uma adequação realista entre objetivos e recursos nacionais disponíveis, combinando
a intromissão nos assuntos internos de países cujos governos são
situados no campo adversário ou inimigo, e a busca pragmática de
alianças com aqueles dispostos a cooperar.
Desde uma perspectiva próxima à administração Democrata,
Charles Kupchan situa essa postura como parte de uma racionalidade que concebe o engajamento com adversários como uma
das prioridades diplomáticas, em que transformar “inimigos em
amigos” torna-se uma aposta mais segura do que o confronto e
o isolamento. Apresentada em 2010, a abordagem de Kupchan
dá significado estratégico aos lineamentos da política externa de
Obama, que estaria
14
colocando a agenda de democratização em segundo plano e
baseando a diplomacia dos EUA com relação a outros Estados
no seu comportamento externo, não no seu tipo de regime.
Mesmo regimes repressivos podem ser confiavelmente cooperativos quando se trata da sua condução da política externa.
No longo prazo, trabalhando com autocratas recalcitrantes
pode enfraquecê-los muito mais eficazmente do que a contenção e o confronto (Kupchan, 2010).
Longe de qualquer idealismo altruísta, tratar-se-ia de uma escolha baseada em interesses, cujo cálculo inclui a possibilidade de que
alguns dos regimes contemplados não respondam na mesma direção, nesses casos, “Washington, depois de um intervalo prudente,
deve suspender a oferta de acomodação em favor de uma estratégia
de isolamento e contenção” (Kupchan, op. Cit.).
No segundo mandato de Obama adquirem maior dimensão as
sinalizações de abertura a históricos desafetos seguidas de negociação, ou punição quando as respostas não correspondem às expectativas. No discurso inaugural, em janeiro de 2013, anuncia o iminente final de uma década de guerra no Iraque e no Afeganistão, já
antecipada pelas suas decisões anteriores de paulatina retirada de
tropas desses países. Como vem afirmando desde a campanha da
primeira eleição, o Iraque não foi a sua opção, mas uma herança, não por ser contrário à guerra em si, senão porque a invasão
lhe pareceu uma decisão errada do uso do poder, contrariamente
à prioridade a operações cirúrgicas como a que matou Osama Bin
15
Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
consideram uma demonstração dos reiterados gestos de fraqueza, e até de falta de patriotismo, que marcam a trajetória da sua
política externa (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2013/4).
Essa visão é recorrente em setores próximos ao Partido
Republicano, que acusam o presidente de promover, por opção
ou inaptidão, o declínio da primazia conquistada pelos EUA após
a vitória na Guerra Fria.
Nessa perspectiva, ações dirigidas a gerar expectativas favoráveis
sobre a sua política externa para demarcar diferenças com o antecessor George W. Bush são apresentadas como sinal de humilhação. Em artigo no The Telegraph, Nile Gardiner chama a atenção
para a insistência de Obama nas suas viagens internacionais em
justificar-se por comportamentos nacionais “arrogantes” no passado (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2013/3). Para ele,
o discurso no México, atribuindo aos EUA parte da culpa pela
violência nesse país, retoma uma série que vem desde o início do
seu primeiro mandato, adotando a mesma postura com o mundo
muçulmano (entrevista à rede Al Arabiya, 27/01/2009), com os
aliados europeus (discurso na França, 03/04/2009) e latino-americanos (Cúpula de Trinidad y Tobago em 17/04/2009); reconhecendo e se desculpando frente ao Irã pela participação no golpe contra o Primeiro Ministro Mosaddek em 1953 (discurso no Egito,
04/06/2009); sua crítica a práticas de tortura a prisioneiros por
parte da CIA, que teriam sacrificado valores nacionais essenciais no
terreno dos direitos humanos (discurso aos funcionários da agência, Virginia, 20/04/2009). (Ayerbe, 2010).
Certamente não é essa a visão do governo sobre a sua política,
que vê o ativismo do período Bush como inadequado a um cenário
em que os EUA padecem as limitações impostas pelos ajustes para
lidar com a crise financeira, a ascensão de novas potências que no
campo econômico projetam um mundo multipolar, e a acentuada perda de legitimidade internacional de alocuções abertamente
hegemonistas. A liderança estadunidense projetada por Obama
se apresenta como resultado necessário de uma adequação realista entre objetivos e recursos nacionais disponíveis, combinando
a intromissão nos assuntos internos de países cujos governos são
situados no campo adversário ou inimigo, e a busca pragmática de
alianças com aqueles dispostos a cooperar.
Desde uma perspectiva próxima à administração Democrata,
Charles Kupchan situa essa postura como parte de uma racionalidade que concebe o engajamento com adversários como uma
das prioridades diplomáticas, em que transformar “inimigos em
amigos” torna-se uma aposta mais segura do que o confronto e
o isolamento. Apresentada em 2010, a abordagem de Kupchan
dá significado estratégico aos lineamentos da política externa de
Obama, que estaria
14
colocando a agenda de democratização em segundo plano e
baseando a diplomacia dos EUA com relação a outros Estados
no seu comportamento externo, não no seu tipo de regime.
Mesmo regimes repressivos podem ser confiavelmente cooperativos quando se trata da sua condução da política externa.
No longo prazo, trabalhando com autocratas recalcitrantes
pode enfraquecê-los muito mais eficazmente do que a contenção e o confronto (Kupchan, 2010).
Longe de qualquer idealismo altruísta, tratar-se-ia de uma escolha baseada em interesses, cujo cálculo inclui a possibilidade de que
alguns dos regimes contemplados não respondam na mesma direção, nesses casos, “Washington, depois de um intervalo prudente,
deve suspender a oferta de acomodação em favor de uma estratégia
de isolamento e contenção” (Kupchan, op. Cit.).
No segundo mandato de Obama adquirem maior dimensão as
sinalizações de abertura a históricos desafetos seguidas de negociação, ou punição quando as respostas não correspondem às expectativas. No discurso inaugural, em janeiro de 2013, anuncia o iminente final de uma década de guerra no Iraque e no Afeganistão, já
antecipada pelas suas decisões anteriores de paulatina retirada de
tropas desses países. Como vem afirmando desde a campanha da
primeira eleição, o Iraque não foi a sua opção, mas uma herança, não por ser contrário à guerra em si, senão porque a invasão
lhe pareceu uma decisão errada do uso do poder, contrariamente
à prioridade a operações cirúrgicas como a que matou Osama Bin
15
Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
Laden, sua resposta às críticas de Republicanos de que leva adiante
uma política externa apaziguadora com os inimigos.
Durante conferência de imprensa analisando os resultados da
viagem presidencial ao México e à Costa Rica, a Subsecretária do
Departamento de Estado para o Hemisfério Ocidental, Roberta
Jacobson, define as relações com a região como pragmáticas e não
ideológicas, utilizando argumentos que, já nesse início de segundo
mandato, antecipam decisões históricas posteriores como o reatamento de relações diplomáticas com Cuba e as negociações com o
Irã sobre seu programa nuclear:
lias, Obama recua. Pesaram a decisão de submeter ao Congresso
a iniciativa, desencadeando debate nos partidos Republicano e
Democrata cercado por pressões da opinião pública; a volta atrás
da Inglaterra de acompanhar os EUA por votação contrária do
parlamento; a falta de apoio em reunião do G20 em setembro de
2013 na Rússia, somada à proposta de Vladimir Putin, aliado de
Bashar al Assad, de obter o desarmamento unilateral da Síria, finalmente acatada. Na crítica da oposição Republicana, além da perda
de iniciativa para Putin, estaria sendo evidenciada falta de rumo de
Obama, com declarações contraditórias e sem posturas resolutas.
A anexação da Crimeia pela Federação Russa e as demonstrações de poder militar na fronteira com a Ucrânia, em apoio aos
setores separatistas pró-Rússia, reforçam a perspectiva que atribui
hesitação e fraqueza ao presidente perante um Vladimir Putin que
sabe o que quer e vai atrás, colocando os EUA e a Europa frente
a fatos consumados difíceis de reverter. O deputado Republicano
Louie Gohmert coloca de forma gráfica essa interpretação, comparando as experiências de negociação que formaram os líderes nacionais dos EUA e da Rússia: “é o que acontece quando um organizador da comunidade se depara com um agente da KGB... Ele não
vai bem” (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/787).
Frente à evolução dos acontecimentos em 2014, destacando-se a escalada do conflito entre Israel e Palestina na Faixa de Gaza
e o avanço do jihadismo sunita, com a repentina visibilidade do
Estado Islâmico (EI) declarando a fundação de um Califado em
territórios ocupados no Iraque e na Síria, analistas visualizam
cenário raras vezes enfrentado por um presidente estadunidense,
envolvendo crises simultâneas e interconectadas que colocam em
questão a capacidade de liderança do país (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/567).
Para Dick Cheney e Liz Cheney, respectivamente vice-presidente e subsecretária para Assuntos do Oriente Próximo da administração de George W. Bush, o avanço jihadista no Iraque revela a
falência da política externa de Obama, que deu por encerrada a
guerra nesse país, subestimou a emergência do EI e está se retirando do Afeganistão. Na direção contrária, apelam ao presidente para
A nossa abordagem é ser pragmático. A razão pela qual não
somos ideológicos, para ser honestos, é porque as antigas divisões e categorias ideológicas parecem-nos francamente sem
sentido neste momento. Elas não nos guiam porque não são
mais úteis. E assim encontramos que avançamos mais com
líderes que são igualmente pragmáticos e com os quais podemos conversar sobre como fazer as coisas que são do nosso
interesse mútuo (Zuniga; Jacobson, 2013).
Arrogância imperial, pusilanimidade impatriótica ou pragmatismo não ideológico? Todas as anteriores, dependendo se do outro
lado se usufrui ou se sofre dos efeitos diretos da política externa
estadunidense. Como analisaremos a seguir, nos contrastes se revela uma realidade mais complexa, colorindo o cenário para além dos
tons de cinza.
Múltipla escolha: fraqueza, realismo, imperialismo...
No acompanhamento do Sem Diplomacia da política externa
estadunidense, o foco das análises teve como palco privilegiado a
postura frente à guerra civil na Síria, o ativismo russo, a ofensiva
israelense na Faixa de Gaza, o avanço do jihadismo, as mudanças
na América Latina e o Irã.
No caso da Síria, após anúncio de emprego da força em retaliação ao uso de armas químicas contra opositores por parte do
presidente Bashar al Assad, cumprindo demarcação anterior de
uma linha vermelha que funcionaria como disparador de represá16
17
Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
Laden, sua resposta às críticas de Republicanos de que leva adiante
uma política externa apaziguadora com os inimigos.
Durante conferência de imprensa analisando os resultados da
viagem presidencial ao México e à Costa Rica, a Subsecretária do
Departamento de Estado para o Hemisfério Ocidental, Roberta
Jacobson, define as relações com a região como pragmáticas e não
ideológicas, utilizando argumentos que, já nesse início de segundo
mandato, antecipam decisões históricas posteriores como o reatamento de relações diplomáticas com Cuba e as negociações com o
Irã sobre seu programa nuclear:
lias, Obama recua. Pesaram a decisão de submeter ao Congresso
a iniciativa, desencadeando debate nos partidos Republicano e
Democrata cercado por pressões da opinião pública; a volta atrás
da Inglaterra de acompanhar os EUA por votação contrária do
parlamento; a falta de apoio em reunião do G20 em setembro de
2013 na Rússia, somada à proposta de Vladimir Putin, aliado de
Bashar al Assad, de obter o desarmamento unilateral da Síria, finalmente acatada. Na crítica da oposição Republicana, além da perda
de iniciativa para Putin, estaria sendo evidenciada falta de rumo de
Obama, com declarações contraditórias e sem posturas resolutas.
A anexação da Crimeia pela Federação Russa e as demonstrações de poder militar na fronteira com a Ucrânia, em apoio aos
setores separatistas pró-Rússia, reforçam a perspectiva que atribui
hesitação e fraqueza ao presidente perante um Vladimir Putin que
sabe o que quer e vai atrás, colocando os EUA e a Europa frente
a fatos consumados difíceis de reverter. O deputado Republicano
Louie Gohmert coloca de forma gráfica essa interpretação, comparando as experiências de negociação que formaram os líderes nacionais dos EUA e da Rússia: “é o que acontece quando um organizador da comunidade se depara com um agente da KGB... Ele não
vai bem” (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/787).
Frente à evolução dos acontecimentos em 2014, destacando-se a escalada do conflito entre Israel e Palestina na Faixa de Gaza
e o avanço do jihadismo sunita, com a repentina visibilidade do
Estado Islâmico (EI) declarando a fundação de um Califado em
territórios ocupados no Iraque e na Síria, analistas visualizam
cenário raras vezes enfrentado por um presidente estadunidense,
envolvendo crises simultâneas e interconectadas que colocam em
questão a capacidade de liderança do país (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/567).
Para Dick Cheney e Liz Cheney, respectivamente vice-presidente e subsecretária para Assuntos do Oriente Próximo da administração de George W. Bush, o avanço jihadista no Iraque revela a
falência da política externa de Obama, que deu por encerrada a
guerra nesse país, subestimou a emergência do EI e está se retirando do Afeganistão. Na direção contrária, apelam ao presidente para
A nossa abordagem é ser pragmático. A razão pela qual não
somos ideológicos, para ser honestos, é porque as antigas divisões e categorias ideológicas parecem-nos francamente sem
sentido neste momento. Elas não nos guiam porque não são
mais úteis. E assim encontramos que avançamos mais com
líderes que são igualmente pragmáticos e com os quais podemos conversar sobre como fazer as coisas que são do nosso
interesse mútuo (Zuniga; Jacobson, 2013).
Arrogância imperial, pusilanimidade impatriótica ou pragmatismo não ideológico? Todas as anteriores, dependendo se do outro
lado se usufrui ou se sofre dos efeitos diretos da política externa
estadunidense. Como analisaremos a seguir, nos contrastes se revela uma realidade mais complexa, colorindo o cenário para além dos
tons de cinza.
Múltipla escolha: fraqueza, realismo, imperialismo...
No acompanhamento do Sem Diplomacia da política externa
estadunidense, o foco das análises teve como palco privilegiado a
postura frente à guerra civil na Síria, o ativismo russo, a ofensiva
israelense na Faixa de Gaza, o avanço do jihadismo, as mudanças
na América Latina e o Irã.
No caso da Síria, após anúncio de emprego da força em retaliação ao uso de armas químicas contra opositores por parte do
presidente Bashar al Assad, cumprindo demarcação anterior de
uma linha vermelha que funcionaria como disparador de represá16
17
Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
manter tropas no terreno e agir combinando militarização com
diplomacia (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/515).
De fato, em entrevista à revista The New Yorker em janeiro de
2014, questionado sobre a presença de diversas facções radicais
no Iraque e na Síria, Obama subestimou sua gravidade, fazendo
a analogia com um time júnior de basquete, em que distingue “a
capacidade e alcance de um bin Laden e uma rede que está ativamente planejando grandes ataques terroristas contra a pátria, versus jihadistas que estão envolvidos em várias lutas e disputas locais
de poder, muitas vezes sectárias”. (http://unesp.br/semdiplomacia/
artigos/2014/786).
Sete meses depois, Obama anuncia que os EUA estão em guerra contra o EI, promovendo uma coalizão de mais de 60 países,
incluindo Arábia Saudita, Jordânia, Emirados Árabes e Egito. Ao
solicitar ao Congresso autorização para empregar força militar,
pontua que não haverá envolvimento de tropas no terreno.
O Partido Republicano apoia majoritariamente a iniciativa, ainda que argumente que sem efetivos em solo é impossível vencer
uma guerra, o que colocaria em risco o sucesso dessa estratégia. Em
linha oposta, a decisão de bombardear posições do EI no Iraque e
na Síria – sendo que neste último caso não se solicitará autorização do governo do país– leva analistas como Marcelo Cantelini a
questionar se não estaria sendo adotada postura equivalente à de
George W. Bush após os atentados do 11/09/2001, quando declarou guerra ao terrorismo e o governo estadunidense “se atribuía o
direito de atacar qualquer objetivo em qualquer lugar ante a mera
suposição de que poderia representar uma ameaça para seus interesses” (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/655).
Na América Latina, que trataremos com mais detalhe em seção
específica, o destaque da política externa de Obama é o surpressivo anúncio de 17 de dezembro de 2014, quando, juntamente
com o presidente de Cuba, declara o início da normalização diplomática, histórico acordo resultado de negociações secretas iniciadas em junho de 2013 no Canadá e sob os auspícios do Vaticano,
apontando na direção do fim da Guerra Fria nas relações bilaterais
(Ayerbe, 2015).
No caso do Irã, o presidente Hassan Rohani, que assume o
governo em agosto de 2013, em sintonia com sinalização de abertura na política externa, aceita negociar o programa nuclear do
seu país, obtendo resposta positiva de Obama, com os dois mandatários conversando ao telefone no primeiro contato direto desde a revolução islâmica de 1979. No lado crítico do campo mais
conservador, o ativismo de Rohani em favor de um entendimento
com os EUA é apresentado como combinação de fatores em que se
destacam a crise econômica pelo efeito das sanções internacionais
e a guerra civil na Síria, aliado do Irã e cujo apoio traz crescentes
custos políticos e materiais, incluindo um extremo conflito entre
xiitas e sunitas. Nessa perspectiva, a mudança de atitude seria um
simulacro desesperado e os EUA deveriam solicitar, além de gestos,
medidas concretas, especialmente no tema do programa nuclear
(http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2013/182).
Apesar das críticas, principalmente do governo israelense, é
instituído um processo de negociação envolvendo o Irã e os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU
(Estados Unidos, Rússia, China, França e Inglaterra), ao qual se
soma a Alemanha, que em 14 de julho de 2015 estabelece um
acordo para a limitação e supervisão do programa de enriquecimento de urânio iraniano em troca de levantamento das sanções
contra o país.
No lado conservador, o escritor oposicionista cubano Carlos
Alberto Montaner, radicado na Espanha, tece forte crítica às ações
de Obama com relação a Cuba e Irã, que atribui como parte de
uma estratégia cujo marco de referência analítica seria a abordagem
de Charles Kupchan, antes mencionada, sobre como atrair inimigos para o campo dos aliados. Montaner sintetiza da seguinte forma o que rotula como ‘tese absurda’:
18
a maneira de transformar os inimigos em amigos e de manter a
paz é lhes fazer grandes concessões unilaterais, não exigir nem
esperar nada em troca, cancelar toda conduta hostil, e não
tentar mudar a natureza desses governos adversários. (http://
unesp.br/semdiplomacia/artigos/2015/927)
19
Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
manter tropas no terreno e agir combinando militarização com
diplomacia (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/515).
De fato, em entrevista à revista The New Yorker em janeiro de
2014, questionado sobre a presença de diversas facções radicais
no Iraque e na Síria, Obama subestimou sua gravidade, fazendo
a analogia com um time júnior de basquete, em que distingue “a
capacidade e alcance de um bin Laden e uma rede que está ativamente planejando grandes ataques terroristas contra a pátria, versus jihadistas que estão envolvidos em várias lutas e disputas locais
de poder, muitas vezes sectárias”. (http://unesp.br/semdiplomacia/
artigos/2014/786).
Sete meses depois, Obama anuncia que os EUA estão em guerra contra o EI, promovendo uma coalizão de mais de 60 países,
incluindo Arábia Saudita, Jordânia, Emirados Árabes e Egito. Ao
solicitar ao Congresso autorização para empregar força militar,
pontua que não haverá envolvimento de tropas no terreno.
O Partido Republicano apoia majoritariamente a iniciativa, ainda que argumente que sem efetivos em solo é impossível vencer
uma guerra, o que colocaria em risco o sucesso dessa estratégia. Em
linha oposta, a decisão de bombardear posições do EI no Iraque e
na Síria – sendo que neste último caso não se solicitará autorização do governo do país– leva analistas como Marcelo Cantelini a
questionar se não estaria sendo adotada postura equivalente à de
George W. Bush após os atentados do 11/09/2001, quando declarou guerra ao terrorismo e o governo estadunidense “se atribuía o
direito de atacar qualquer objetivo em qualquer lugar ante a mera
suposição de que poderia representar uma ameaça para seus interesses” (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/655).
Na América Latina, que trataremos com mais detalhe em seção
específica, o destaque da política externa de Obama é o surpressivo anúncio de 17 de dezembro de 2014, quando, juntamente
com o presidente de Cuba, declara o início da normalização diplomática, histórico acordo resultado de negociações secretas iniciadas em junho de 2013 no Canadá e sob os auspícios do Vaticano,
apontando na direção do fim da Guerra Fria nas relações bilaterais
(Ayerbe, 2015).
No caso do Irã, o presidente Hassan Rohani, que assume o
governo em agosto de 2013, em sintonia com sinalização de abertura na política externa, aceita negociar o programa nuclear do
seu país, obtendo resposta positiva de Obama, com os dois mandatários conversando ao telefone no primeiro contato direto desde a revolução islâmica de 1979. No lado crítico do campo mais
conservador, o ativismo de Rohani em favor de um entendimento
com os EUA é apresentado como combinação de fatores em que se
destacam a crise econômica pelo efeito das sanções internacionais
e a guerra civil na Síria, aliado do Irã e cujo apoio traz crescentes
custos políticos e materiais, incluindo um extremo conflito entre
xiitas e sunitas. Nessa perspectiva, a mudança de atitude seria um
simulacro desesperado e os EUA deveriam solicitar, além de gestos,
medidas concretas, especialmente no tema do programa nuclear
(http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2013/182).
Apesar das críticas, principalmente do governo israelense, é
instituído um processo de negociação envolvendo o Irã e os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU
(Estados Unidos, Rússia, China, França e Inglaterra), ao qual se
soma a Alemanha, que em 14 de julho de 2015 estabelece um
acordo para a limitação e supervisão do programa de enriquecimento de urânio iraniano em troca de levantamento das sanções
contra o país.
No lado conservador, o escritor oposicionista cubano Carlos
Alberto Montaner, radicado na Espanha, tece forte crítica às ações
de Obama com relação a Cuba e Irã, que atribui como parte de
uma estratégia cujo marco de referência analítica seria a abordagem
de Charles Kupchan, antes mencionada, sobre como atrair inimigos para o campo dos aliados. Montaner sintetiza da seguinte forma o que rotula como ‘tese absurda’:
18
a maneira de transformar os inimigos em amigos e de manter a
paz é lhes fazer grandes concessões unilaterais, não exigir nem
esperar nada em troca, cancelar toda conduta hostil, e não
tentar mudar a natureza desses governos adversários. (http://
unesp.br/semdiplomacia/artigos/2015/927)
19
Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
A diversidade de frentes internacionais conflitivas, como as
exemplificadas acima, que muitas vezes envolvem o desatar simultâneo de crises, e as respostas diferenciadas da Casa Branca na caracterização de amigos e inimigos, colocam em relevo um desencontro
de percepções sobre o que de fato estaria acontecendo com a grande superpotência e seu governante de turno. O presidente dos EUA
seria alguém que, apesar das manifestações de preocupação tanto
da oposição como dentro do seu partido, aparentemente subestima
o conjunto de problemas que enfrenta o país? Seria expressão de
despreparo e de superação de sua capacidade decisória pela precipitação de acontecimentos? Ou um estilo de governar que assume
como perspectiva que o mundo não está em situação tão grave, o
que teria mudado é a proximidade maior do que acontece em função da instantaneidade gerada pelas redes sociais? (http://unesp.br/
semdiplomacia/artigos/2014/624). Ou como transparece em livros
autobiográficos de ex-ministros de Obama, como os Secretários da
Defesa Robert Gates e Leon Panetta e a Secretária de Estado Hilary
Clinton, de que a aparente insegurança e desconcerto frente a desafios como a intervenção na Síria ou a emergência do EI, deixaria
evidente a tensão entre certo distanciamento do professor universitário e o político necessariamente vocacionado para o exercício
do poder? (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/690). As
vicissitudes derivariam de uma combinação de inexperiência pela
trajetória meteórica de líder comunitário ao Senado e à presidência, e uma visão de mundo avessa ao envolvimento do país no exterior? Ou talvez o problema não seja Obama, mas a mudança do
peso relativo dos EUA no mundo e da sua capacidade de influência, o que delimita as possibilidades de ação de qualquer presidente? (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/731).
Esta última interpretação é reforçada por Thomas Friedman,
explícito defensor da atual administração, que ressalta a coerência
na resposta aos desafios da ordem mundial. Referindo-se à política para o Oriente Médio, pondera o que considera uma mudança de percepção sobre a importância estratégica dessa região para
os EUA a partir de três afirmações correntes que vê como predominantes: 1) as críticas de que “Tudo o que saia mal é culpa dos
Estados Unidos”; 2) os especialistas que afirmam que “Tudo o que
fez o presidente Obama saiu mal”, até 3) a opinião pública nacional dizendo que “Estamos totalmente fartos dessa parte do mundo
e o único que queremos é que comece o futebol americano”. Sem
negar a lógica das três posições, pondera que a experiência no pós-Guerra Fria mostrou os fracassos em tentar mudar de cima para
baixo regimes políticos nessa região a imagem e semelhança das
democracias ocidentais, dada a ausência de uma cultura política
propícia e de uma elite local interessada em que isso aconteça. No
momento em que a população dos EUA começa a se conscientizar
dos efeitos da mudança energética no país, em que a exploração
das grandes reservas de combustíveis não convencionais vai tornando cada vez menor a dependência externa, Friedman considera que
o Oriente Médio passou de “vício a distração” (http://unesp.br/
semdiplomacia/artigos/2013/124).
Para além de eventos em que há controvérsia sobre se a política
externa poderia ter sido melhor sucedida em termos de adequação
entre meios e fins, a trajetória da administração Obama evidencia
um perfil que nos parece coerente em dois aspectos antecipados nas
questões formuladas acima: 1) percepção dos condicionantes estruturais do poder estadunidense, especialmente no campo econômico, em um quadro de mudança na atribuição de periculosidade e
origem geográfica de ameaças à segurança nacional; 2) objetivos e
convicções do presidente em função de uma visão de mundo que
incorpora experiências de uma geração que deu seus primeiros passos intelectuais e políticos nos anos 1980, coincidindo com a decadência e desaparição da União Soviética e o convívio sem grandes
traumas com a tendência de paulatina ascensão da China.
Com relação ao primeiro ponto, vemos conexão lógica da política externa com o pragmatismo não ideológico para lidar com inimigos e desafetos enunciado pela Subsecretária de Estado para o
Hemisfério Ocidental, Roberta Jacobson, conforme já destacamos, e
com os argumentos de Thomas Friedman sobre mudanças de cenário político e econômico que acabam repercutindo na opinião pública nacional e na formulação de respostas aos desafios internacionais.
20
21
Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
A diversidade de frentes internacionais conflitivas, como as
exemplificadas acima, que muitas vezes envolvem o desatar simultâneo de crises, e as respostas diferenciadas da Casa Branca na caracterização de amigos e inimigos, colocam em relevo um desencontro
de percepções sobre o que de fato estaria acontecendo com a grande superpotência e seu governante de turno. O presidente dos EUA
seria alguém que, apesar das manifestações de preocupação tanto
da oposição como dentro do seu partido, aparentemente subestima
o conjunto de problemas que enfrenta o país? Seria expressão de
despreparo e de superação de sua capacidade decisória pela precipitação de acontecimentos? Ou um estilo de governar que assume
como perspectiva que o mundo não está em situação tão grave, o
que teria mudado é a proximidade maior do que acontece em função da instantaneidade gerada pelas redes sociais? (http://unesp.br/
semdiplomacia/artigos/2014/624). Ou como transparece em livros
autobiográficos de ex-ministros de Obama, como os Secretários da
Defesa Robert Gates e Leon Panetta e a Secretária de Estado Hilary
Clinton, de que a aparente insegurança e desconcerto frente a desafios como a intervenção na Síria ou a emergência do EI, deixaria
evidente a tensão entre certo distanciamento do professor universitário e o político necessariamente vocacionado para o exercício
do poder? (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/690). As
vicissitudes derivariam de uma combinação de inexperiência pela
trajetória meteórica de líder comunitário ao Senado e à presidência, e uma visão de mundo avessa ao envolvimento do país no exterior? Ou talvez o problema não seja Obama, mas a mudança do
peso relativo dos EUA no mundo e da sua capacidade de influência, o que delimita as possibilidades de ação de qualquer presidente? (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/731).
Esta última interpretação é reforçada por Thomas Friedman,
explícito defensor da atual administração, que ressalta a coerência
na resposta aos desafios da ordem mundial. Referindo-se à política para o Oriente Médio, pondera o que considera uma mudança de percepção sobre a importância estratégica dessa região para
os EUA a partir de três afirmações correntes que vê como predominantes: 1) as críticas de que “Tudo o que saia mal é culpa dos
Estados Unidos”; 2) os especialistas que afirmam que “Tudo o que
fez o presidente Obama saiu mal”, até 3) a opinião pública nacional dizendo que “Estamos totalmente fartos dessa parte do mundo
e o único que queremos é que comece o futebol americano”. Sem
negar a lógica das três posições, pondera que a experiência no pós-Guerra Fria mostrou os fracassos em tentar mudar de cima para
baixo regimes políticos nessa região a imagem e semelhança das
democracias ocidentais, dada a ausência de uma cultura política
propícia e de uma elite local interessada em que isso aconteça. No
momento em que a população dos EUA começa a se conscientizar
dos efeitos da mudança energética no país, em que a exploração
das grandes reservas de combustíveis não convencionais vai tornando cada vez menor a dependência externa, Friedman considera que
o Oriente Médio passou de “vício a distração” (http://unesp.br/
semdiplomacia/artigos/2013/124).
Para além de eventos em que há controvérsia sobre se a política
externa poderia ter sido melhor sucedida em termos de adequação
entre meios e fins, a trajetória da administração Obama evidencia
um perfil que nos parece coerente em dois aspectos antecipados nas
questões formuladas acima: 1) percepção dos condicionantes estruturais do poder estadunidense, especialmente no campo econômico, em um quadro de mudança na atribuição de periculosidade e
origem geográfica de ameaças à segurança nacional; 2) objetivos e
convicções do presidente em função de uma visão de mundo que
incorpora experiências de uma geração que deu seus primeiros passos intelectuais e políticos nos anos 1980, coincidindo com a decadência e desaparição da União Soviética e o convívio sem grandes
traumas com a tendência de paulatina ascensão da China.
Com relação ao primeiro ponto, vemos conexão lógica da política externa com o pragmatismo não ideológico para lidar com inimigos e desafetos enunciado pela Subsecretária de Estado para o
Hemisfério Ocidental, Roberta Jacobson, conforme já destacamos, e
com os argumentos de Thomas Friedman sobre mudanças de cenário político e econômico que acabam repercutindo na opinião pública nacional e na formulação de respostas aos desafios internacionais.
20
21
Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
Com relação ao segundo ponto, há de se levar em conta, conforme destaca James Mann (2012), o significado inaugural da
presença de Obama na Casa Branca em pelo menos três aspectos:
como “primeiro presidente desde a guerra de Vietnã cuja vida pessoal e sua carreira não eram totalmente afetadas por essa guerra”,
como “primeiro presidente americano na era moderna que não serviu nas forças armadas nem esteve sujeito ao serviço militar obrigatório”, e como “primeiro presidente a vir para a Casa Branca após a
intervenção de George W. Bush no Iraque”.
O espectro do Vietnã assombrou tanto Bill Clinton como
George W. Bush no momento em que se apresentaram como candidatos à presidência, tendo que lidar com questionamentos na
mídia ou de adversários sobre sua postura durante a guerra. No
caso de Clinton, que participou de manifestações pacifistas na
Inglaterra, onde se trasladou para estudar direito em Oxford, colocou-se em dúvida se a mudança de país não teria sido uma forma
de evitar o serviço militar obrigatório. No caso de Bush, que serviu
como tenente da Guarda Nacional em uma base aérea no Texas, foi
levantada a dúvida se ao permanecer nesse local não teria se esquivado de atuar diretamente no conflito, beneficiando-se da influência do seu pai, então importante deputado no Estado.
Quando George W. Bush apresentou a decisão de invadir o
Iraque, notórios senadores Democratas, como Hillary Clinton e
John Kerry, votaram favoravelmente no Congresso. Discursando
em uma manifestação contra a guerra em outubro de 2002,
Obama sentiu-se politicamente confortável para questionar abertamente a iniciativa, que caracterizou como
imediato, Obama assume protagonismo como expressão de uma
visão do lugar dos EUA no mundo pautada pela convicção de que,
diferentemente de contextos anteriores, não há disputas com inimigos existenciais. O terrorismo deixa de ser a marca de identidade
da agenda internacional do país, integrando uma lista de ameaças
transnacionais ao lado da disseminação de armas de destruição em
massa, tecnologias destrutivas e danos ambientais. Não há surpresas com a China, que continua uma já longa marcha de projeção
da sua economia sem, contudo, evidenciar ambições de alternância
global de poder. O repentino protagonismo russo sob a presidência
de Putin carece de fôlego econômico para ir além de uma limitada esfera regional. Não se trata de retirada estadunidense, mas de
mudança de prioridades.
Questionado em entrevista à rede CBS sobre o fato dos EUA
estarem assumindo um envolvimento muito maior do que seus
aliados na coalizão contra o EI, Obama sintetiza sua visão da liderança internacional do país:
guerra estúpida… baseada não na razão, mas na paixão, não
em princípios, mas em política (…) que só vai atiçar as chamas
do Oriente Médio, e incentivar o pior, ao invés do melhor, dos
impulsos do mundo árabe, e fortalecer o braço de recrutamento da Al-Qaeda (Mann, 2012).
Sem sofrer o constrangimento dos seus antecessores de debater
publicamente a determinação de colocar a vida em risco a serviço
da nação e sem compromissos com as guerras do seu antecessor
22
Esse é sempre o caso. América conduz. Somos a nação indispensável. Temos a capacidade que ninguém mais tem. Nosso
exército é o melhor na história do mundo. E quando surgem
os problemas em qualquer lugar do mundo, eles não chamam
Pequim. Eles não chamam Moscou. Eles nos chamam. Esse é o
trato (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/788).
A avaliação da natureza dos problemas determinará a contundência da resposta. No caso de Cuba e Irã, estaria em evidência o que o próprio presidente assume, em entrevista a Thomas
Friedman, como “Doutrina Obama”, em sintonia com a transformação de inimigos em amigos enunciada por Kupchan: “nos comprometemos, mas sem perder nenhuma das nossas capacidades”. A
partir de uma avaliação de que o isolamento desses países tornou-se
mais contraproducente do que suavizar as sanções, haveria margem
para experimentar caminhos negociadores. “Somos suficientemente poderosos como para provar essas possibilidades sem nos colocar em perigo”, caso se verifiquem desapontamentos na resposta de
ambos países, os EUA podem retomar sem problemas uma postura
23
Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
Com relação ao segundo ponto, há de se levar em conta, conforme destaca James Mann (2012), o significado inaugural da
presença de Obama na Casa Branca em pelo menos três aspectos:
como “primeiro presidente desde a guerra de Vietnã cuja vida pessoal e sua carreira não eram totalmente afetadas por essa guerra”,
como “primeiro presidente americano na era moderna que não serviu nas forças armadas nem esteve sujeito ao serviço militar obrigatório”, e como “primeiro presidente a vir para a Casa Branca após a
intervenção de George W. Bush no Iraque”.
O espectro do Vietnã assombrou tanto Bill Clinton como
George W. Bush no momento em que se apresentaram como candidatos à presidência, tendo que lidar com questionamentos na
mídia ou de adversários sobre sua postura durante a guerra. No
caso de Clinton, que participou de manifestações pacifistas na
Inglaterra, onde se trasladou para estudar direito em Oxford, colocou-se em dúvida se a mudança de país não teria sido uma forma
de evitar o serviço militar obrigatório. No caso de Bush, que serviu
como tenente da Guarda Nacional em uma base aérea no Texas, foi
levantada a dúvida se ao permanecer nesse local não teria se esquivado de atuar diretamente no conflito, beneficiando-se da influência do seu pai, então importante deputado no Estado.
Quando George W. Bush apresentou a decisão de invadir o
Iraque, notórios senadores Democratas, como Hillary Clinton e
John Kerry, votaram favoravelmente no Congresso. Discursando
em uma manifestação contra a guerra em outubro de 2002,
Obama sentiu-se politicamente confortável para questionar abertamente a iniciativa, que caracterizou como
imediato, Obama assume protagonismo como expressão de uma
visão do lugar dos EUA no mundo pautada pela convicção de que,
diferentemente de contextos anteriores, não há disputas com inimigos existenciais. O terrorismo deixa de ser a marca de identidade
da agenda internacional do país, integrando uma lista de ameaças
transnacionais ao lado da disseminação de armas de destruição em
massa, tecnologias destrutivas e danos ambientais. Não há surpresas com a China, que continua uma já longa marcha de projeção
da sua economia sem, contudo, evidenciar ambições de alternância
global de poder. O repentino protagonismo russo sob a presidência
de Putin carece de fôlego econômico para ir além de uma limitada esfera regional. Não se trata de retirada estadunidense, mas de
mudança de prioridades.
Questionado em entrevista à rede CBS sobre o fato dos EUA
estarem assumindo um envolvimento muito maior do que seus
aliados na coalizão contra o EI, Obama sintetiza sua visão da liderança internacional do país:
guerra estúpida… baseada não na razão, mas na paixão, não
em princípios, mas em política (…) que só vai atiçar as chamas
do Oriente Médio, e incentivar o pior, ao invés do melhor, dos
impulsos do mundo árabe, e fortalecer o braço de recrutamento da Al-Qaeda (Mann, 2012).
Sem sofrer o constrangimento dos seus antecessores de debater
publicamente a determinação de colocar a vida em risco a serviço
da nação e sem compromissos com as guerras do seu antecessor
22
Esse é sempre o caso. América conduz. Somos a nação indispensável. Temos a capacidade que ninguém mais tem. Nosso
exército é o melhor na história do mundo. E quando surgem
os problemas em qualquer lugar do mundo, eles não chamam
Pequim. Eles não chamam Moscou. Eles nos chamam. Esse é o
trato (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/788).
A avaliação da natureza dos problemas determinará a contundência da resposta. No caso de Cuba e Irã, estaria em evidência o que o próprio presidente assume, em entrevista a Thomas
Friedman, como “Doutrina Obama”, em sintonia com a transformação de inimigos em amigos enunciada por Kupchan: “nos comprometemos, mas sem perder nenhuma das nossas capacidades”. A
partir de uma avaliação de que o isolamento desses países tornou-se
mais contraproducente do que suavizar as sanções, haveria margem
para experimentar caminhos negociadores. “Somos suficientemente poderosos como para provar essas possibilidades sem nos colocar em perigo”, caso se verifiquem desapontamentos na resposta de
ambos países, os EUA podem retomar sem problemas uma postura
23
Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
menos conciliadora. Dada a desproporção de capacidades de retaliação, são esses países que devem temer os EUA e não o contrário.
(http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2015/917).
Nessa perspectiva, a diferenciação com relação a George W.
Bush é na definição de alcance e oportunidade do emprego da força, partilhando a defesa dos ataques preventivos como estratégia de
enfrentamento do terrorismo. Essa dimensão de continuidade é o
argumento central de setores que questionam o exercício do poder
duro estadunidense tomando como referência as regiões, países e
populações que sofrem seu impacto direto.
Criticando a solicitação da Casa Branca para que o Congresso
autorize ações armadas no Iraque e na Síria para combater o EI,
Glenn Greenwald ressalta o tom despreocupado típico dos impérios com que o presidente faz tal pedido, apontando que a violência contra países muçulmanos continua sendo a regra na política externa dos EUA. Apresentando alguns números desde 1980,
destaca: Irã (1980, 1987-1988), Líbia (1981, 1986, 1989, 2011),
Líbano (1983), Kuwait (1991), Iraque (1991-2011, 2014-),
Somália (1992-1993, 2007-), Bósnia (1995), Arábia Saudita
(1991, 1996), Afeganistão (1998, 2001-), Sudão (1998), Kosovo
(1999), Iêmen (2000, 2002-), Paquistão (2004-) e Síria (2014).
Para o analista “Que alguns cidadãos desse país (EUA) se dediquem primordial se não exclusivamente a denunciar a violência
e a selvageria de outros é mais uma prova de quão poderosa é
a auto cegueira do tribalismo como impulso humano” (http://
unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/732).
Nessa vertente crítica da decisão pela guerra, visualiza-se no
jihadismo uma resposta radical ao continuado intervencionismo,
que influencia processos de afirmação de identidades a partir dos
fundamentos da religião predominante na região. Isso não significa
ignorar as práticas do EI nos territórios que ocupa. Pepe Escobar
faz esse contraste, rejeitando a proibição de bandeiras, templos
e lugares sagrados com exceção dos que exaltam suas crenças, as
decapitações e crucifixões, a imposição da tradição islâmica na vestimenta das mulheres, entre os principais exemplos. Paralelamente,
inclui nos males de origem os desacertos da política externa estadu-
nidense, contrastando os anúncios desde a invasão ao Iraque com
os resultados alcançados:
24
Washington aplastou faz 13 anos a Al-Qaeda e os talibãs no
Afeganistão. Então renasceram os talibãs. Logo veio Choque
e Pavor. Depois veio “Missão Cumprida”. Então a Al-Qaeda
foi introduzida no Iraque. Logo Al-Qaeda tinha morrido porque Osama bin Laden estava morto. A continuação veio EIIL.
Agora é EI. E começamos tudo de novo… Com um novo
Osama (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/550).
Para Nick Alexandrov, a guerra contra o EI atualiza uma longa tradição estadunidense de encontrar “monstros” no exterior
para destruir. As reações iradas e de repúdio de Obama frente
às decapitações de prisioneiros e demais atos de violência seriam
“lágrimas de crocodilo”, dada a cegueira frente aos ataques de
Israel na Faixa de Gaza (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/609). Outros dois aspectos ressaltados na crítica ao
intervencionismo são as mortes de civis no Iraque, que atingem
o número de 114 mil ao longo da ocupação entre 2003 e 2011
(http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/761), e os bombardeios por meio de Veículos Aéreos não Tripulados (drones). Em
janeiro de 2013, o Huffington Posts repercutiu declarações do
Senador do Partido Republicano Lindsey Graham em que contabiliza em torno de 4700 pessoas mortas até então por esse tipo de
ação, reconhecendo que “Às vezes você acerta pessoas inocentes, e
eu odeio isso, mas estamos em guerra, e temos tirado de circulação alguns membros de alto escalão da Al-Qaeda” (http://unesp.
br/semdiplomacia/artigos/2013/774).
Conforme aponta o artigo, os números de Graham se referem a
Paquistão, Iêmen e Somália, países com os quais os EUA não estão
em guerra, o que torna explícita a continuidade do unilateralismo
na estratégia de “combate ao terror”, tema da próxima seção.
O mundo como campo de batalha
Na sua coluna no El Nuevo Herald, jornal de Miami de postura
opositora aos governos de Cuba e Venezuela, Andrés Oppenheimer
25
Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
menos conciliadora. Dada a desproporção de capacidades de retaliação, são esses países que devem temer os EUA e não o contrário.
(http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2015/917).
Nessa perspectiva, a diferenciação com relação a George W.
Bush é na definição de alcance e oportunidade do emprego da força, partilhando a defesa dos ataques preventivos como estratégia de
enfrentamento do terrorismo. Essa dimensão de continuidade é o
argumento central de setores que questionam o exercício do poder
duro estadunidense tomando como referência as regiões, países e
populações que sofrem seu impacto direto.
Criticando a solicitação da Casa Branca para que o Congresso
autorize ações armadas no Iraque e na Síria para combater o EI,
Glenn Greenwald ressalta o tom despreocupado típico dos impérios com que o presidente faz tal pedido, apontando que a violência contra países muçulmanos continua sendo a regra na política externa dos EUA. Apresentando alguns números desde 1980,
destaca: Irã (1980, 1987-1988), Líbia (1981, 1986, 1989, 2011),
Líbano (1983), Kuwait (1991), Iraque (1991-2011, 2014-),
Somália (1992-1993, 2007-), Bósnia (1995), Arábia Saudita
(1991, 1996), Afeganistão (1998, 2001-), Sudão (1998), Kosovo
(1999), Iêmen (2000, 2002-), Paquistão (2004-) e Síria (2014).
Para o analista “Que alguns cidadãos desse país (EUA) se dediquem primordial se não exclusivamente a denunciar a violência
e a selvageria de outros é mais uma prova de quão poderosa é
a auto cegueira do tribalismo como impulso humano” (http://
unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/732).
Nessa vertente crítica da decisão pela guerra, visualiza-se no
jihadismo uma resposta radical ao continuado intervencionismo,
que influencia processos de afirmação de identidades a partir dos
fundamentos da religião predominante na região. Isso não significa
ignorar as práticas do EI nos territórios que ocupa. Pepe Escobar
faz esse contraste, rejeitando a proibição de bandeiras, templos
e lugares sagrados com exceção dos que exaltam suas crenças, as
decapitações e crucifixões, a imposição da tradição islâmica na vestimenta das mulheres, entre os principais exemplos. Paralelamente,
inclui nos males de origem os desacertos da política externa estadu-
nidense, contrastando os anúncios desde a invasão ao Iraque com
os resultados alcançados:
24
Washington aplastou faz 13 anos a Al-Qaeda e os talibãs no
Afeganistão. Então renasceram os talibãs. Logo veio Choque
e Pavor. Depois veio “Missão Cumprida”. Então a Al-Qaeda
foi introduzida no Iraque. Logo Al-Qaeda tinha morrido porque Osama bin Laden estava morto. A continuação veio EIIL.
Agora é EI. E começamos tudo de novo… Com um novo
Osama (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/550).
Para Nick Alexandrov, a guerra contra o EI atualiza uma longa tradição estadunidense de encontrar “monstros” no exterior
para destruir. As reações iradas e de repúdio de Obama frente
às decapitações de prisioneiros e demais atos de violência seriam
“lágrimas de crocodilo”, dada a cegueira frente aos ataques de
Israel na Faixa de Gaza (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/609). Outros dois aspectos ressaltados na crítica ao
intervencionismo são as mortes de civis no Iraque, que atingem
o número de 114 mil ao longo da ocupação entre 2003 e 2011
(http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/761), e os bombardeios por meio de Veículos Aéreos não Tripulados (drones). Em
janeiro de 2013, o Huffington Posts repercutiu declarações do
Senador do Partido Republicano Lindsey Graham em que contabiliza em torno de 4700 pessoas mortas até então por esse tipo de
ação, reconhecendo que “Às vezes você acerta pessoas inocentes, e
eu odeio isso, mas estamos em guerra, e temos tirado de circulação alguns membros de alto escalão da Al-Qaeda” (http://unesp.
br/semdiplomacia/artigos/2013/774).
Conforme aponta o artigo, os números de Graham se referem a
Paquistão, Iêmen e Somália, países com os quais os EUA não estão
em guerra, o que torna explícita a continuidade do unilateralismo
na estratégia de “combate ao terror”, tema da próxima seção.
O mundo como campo de batalha
Na sua coluna no El Nuevo Herald, jornal de Miami de postura
opositora aos governos de Cuba e Venezuela, Andrés Oppenheimer
25
Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
comenta o fato de que Obama não tenha mencionado a América
Latina no seu discurso na ONU em setembro de 2013, que associa
ao desinteresse demonstrado desde que assumiu a presidência. No
entanto, considera que o país não deve dar as costas à região, especialmente em um momento em que o predomínio do que rotula
como “populismo autoritário” estaria em declínio (http://unesp.br/
semdiplomacia/artigos/2013/183).
Dois meses depois, o Secretário de Estado John Kerry, na
Assembleia da OEA, declara o fim da Doutrina Monroe (Ayerbe,
2014). A declaração de Kerry assinalaria uma mudança na direção
de relações respeitosas da soberania da região? Ou sanciona uma
realidade de perda de interesse alimentada pela ausência de desafios
de segurança que exijam maior engajamento?
Há controvérsias sobre a efetiva validade desse anúncio, que parece se aplicar nas relações com Cuba mas não no caso da Venezuela,
que tende a ocupar o anterior lugar da Ilha como foco do intervencionismo direcionado a forçar uma mudança de regime.
Ángel Guerra Cabrera, em artigo no La Jornada, descreve a trajetória na CIA de Kelly Keiderling Franz, expulsa desse país sob a
acusação de espionagem e conspiração contra o governo de Nicolás
Maduro. Tendo passado anteriormente pela Seção de Interesses
dos EUA em Havana, quando houve denúncias de participação
ativa no financiamento de atividades da oposição ao governo de
Raul Castro, Cabrera mostra os vínculos de Keiderling Franz com
Henrique Capriles. Citando documentos filtrados por WikiLeaks
sobre financiamento da Agência de EUA para o Desenvolvimento
Internacional (Usaid) a projetos dos quais saíram candidatos opositores a Chávez e a Maduro, aponta encontros entre Keiderling
Franz e Capriles em que trataram do futuro da política externa da
Venezuela caso o último fosse eleito (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2013/195).
Na mesma direção, Eva Golinger, pesquisadora estadunidense-venezuelana de posições favoráveis ao governo bolivariano,
apresenta informações sobre os financiamentos que a National
Endowment for Democracy (NED) e a Usaid direcionam para
a oposição, com destaque, em termos de volume de recursos,
para Leopoldo López e os partidos Primero Justicia e Voluntad
Popular, e da ex-deputada Corina Machado e a Organização não
Governamental (ONG) Súmate, inclusive nas respectivas campanhas eleitorais (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/426).
Essa postura é reforçada em artigo do El Nuevo Herald, que
repercute análise da Associated Press comprovando que os EUA
financiam grupos opositores, violando lei aprovada pelo congresso da Venezuela proibindo esse tipo de ajuda, que atenta contra a
soberania nacional, porque caracteriza intervencionismo estrangeiro. O volume de recursos para ONG’s, principalmente por parte
do Departamento de Estado e da NED, aumentou em 2013 e há
no Senado um projeto de lei para elevar ainda mais o apoio material à oposição a Nicolás Maduro de 5 milhões de dólares, para 15
milhões (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/563).
Completando o quadro, em 9 de março de 2015, Barack
Obama anuncia ordem executiva declarando a Venezuela uma
ameaça à segurança nacional, com medidas punitivas contra sete
autoridades envolvendo bloqueio de ativos nos EUA e impedimento a que ingressem no país (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2015/888).
A perspectiva do mundo como um campo de batalha, combinando elasticamente “a cenoura e o porrete” exemplificados nos
casos de Cuba e Venezuela, tem adquirido destaque na crítica às
chamadas “guerras secretas de Obama”, levadas adiante de forma
clandestina, por meio de espionagem, com atuação de comandos
de forças especiais e o uso de drones. Embora não tenha começado
com o atual presidente, há uma escalada inédita a partir de 2009
dessas modalidades de intervenção pela força no mundo.
De acordo com Jeremy Scahill (2013), no processo de reação
ao 11 de setembro de 2001, o governo de George W. Bush liberalizou a autoridade do poder executivo para a eliminação física de
inimigos. Essa prática tinha sido banida em 1976 por uma Ordem
Executiva do presidente Gerald Ford, Republicano, e reincorporada como opção por Bill Clinton, embora cercando a “autoridade
letal” da presidência de um conjunto de mecanismos de controle legal, que tanto Bush como Obama flexibilizam até tornarem o
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Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
comenta o fato de que Obama não tenha mencionado a América
Latina no seu discurso na ONU em setembro de 2013, que associa
ao desinteresse demonstrado desde que assumiu a presidência. No
entanto, considera que o país não deve dar as costas à região, especialmente em um momento em que o predomínio do que rotula
como “populismo autoritário” estaria em declínio (http://unesp.br/
semdiplomacia/artigos/2013/183).
Dois meses depois, o Secretário de Estado John Kerry, na
Assembleia da OEA, declara o fim da Doutrina Monroe (Ayerbe,
2014). A declaração de Kerry assinalaria uma mudança na direção
de relações respeitosas da soberania da região? Ou sanciona uma
realidade de perda de interesse alimentada pela ausência de desafios
de segurança que exijam maior engajamento?
Há controvérsias sobre a efetiva validade desse anúncio, que parece se aplicar nas relações com Cuba mas não no caso da Venezuela,
que tende a ocupar o anterior lugar da Ilha como foco do intervencionismo direcionado a forçar uma mudança de regime.
Ángel Guerra Cabrera, em artigo no La Jornada, descreve a trajetória na CIA de Kelly Keiderling Franz, expulsa desse país sob a
acusação de espionagem e conspiração contra o governo de Nicolás
Maduro. Tendo passado anteriormente pela Seção de Interesses
dos EUA em Havana, quando houve denúncias de participação
ativa no financiamento de atividades da oposição ao governo de
Raul Castro, Cabrera mostra os vínculos de Keiderling Franz com
Henrique Capriles. Citando documentos filtrados por WikiLeaks
sobre financiamento da Agência de EUA para o Desenvolvimento
Internacional (Usaid) a projetos dos quais saíram candidatos opositores a Chávez e a Maduro, aponta encontros entre Keiderling
Franz e Capriles em que trataram do futuro da política externa da
Venezuela caso o último fosse eleito (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2013/195).
Na mesma direção, Eva Golinger, pesquisadora estadunidense-venezuelana de posições favoráveis ao governo bolivariano,
apresenta informações sobre os financiamentos que a National
Endowment for Democracy (NED) e a Usaid direcionam para
a oposição, com destaque, em termos de volume de recursos,
para Leopoldo López e os partidos Primero Justicia e Voluntad
Popular, e da ex-deputada Corina Machado e a Organização não
Governamental (ONG) Súmate, inclusive nas respectivas campanhas eleitorais (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/426).
Essa postura é reforçada em artigo do El Nuevo Herald, que
repercute análise da Associated Press comprovando que os EUA
financiam grupos opositores, violando lei aprovada pelo congresso da Venezuela proibindo esse tipo de ajuda, que atenta contra a
soberania nacional, porque caracteriza intervencionismo estrangeiro. O volume de recursos para ONG’s, principalmente por parte
do Departamento de Estado e da NED, aumentou em 2013 e há
no Senado um projeto de lei para elevar ainda mais o apoio material à oposição a Nicolás Maduro de 5 milhões de dólares, para 15
milhões (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/563).
Completando o quadro, em 9 de março de 2015, Barack
Obama anuncia ordem executiva declarando a Venezuela uma
ameaça à segurança nacional, com medidas punitivas contra sete
autoridades envolvendo bloqueio de ativos nos EUA e impedimento a que ingressem no país (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2015/888).
A perspectiva do mundo como um campo de batalha, combinando elasticamente “a cenoura e o porrete” exemplificados nos
casos de Cuba e Venezuela, tem adquirido destaque na crítica às
chamadas “guerras secretas de Obama”, levadas adiante de forma
clandestina, por meio de espionagem, com atuação de comandos
de forças especiais e o uso de drones. Embora não tenha começado
com o atual presidente, há uma escalada inédita a partir de 2009
dessas modalidades de intervenção pela força no mundo.
De acordo com Jeremy Scahill (2013), no processo de reação
ao 11 de setembro de 2001, o governo de George W. Bush liberalizou a autoridade do poder executivo para a eliminação física de
inimigos. Essa prática tinha sido banida em 1976 por uma Ordem
Executiva do presidente Gerald Ford, Republicano, e reincorporada como opção por Bill Clinton, embora cercando a “autoridade
letal” da presidência de um conjunto de mecanismos de controle legal, que tanto Bush como Obama flexibilizam até tornarem o
26
27
Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
assassinato de alvos terroristas uma marca registrada da sua política.
Para Scahill, “o sistema democrático de duzentos anos de controle
e equilíbrio estava firmemente na mira”. Como ilustração do que
isso significa, cita declaração do final de 2001 feita por dirigente da
CIA de que a guerra ao terror poderá ser “ganha em grande medida, por forças que não conhecemos, em ações que você não vai ver
e de maneiras sobre as quais você pode não querer saber”.
Passando ao largo do embate entre Republicanos e
Democratas, Scahill considera que o unilateralismo e o excepcionalismo representam uma instituição permanente e bipartidária
dos EUA, concluindo que “a pergunta que todos os estadunidenses devem se fazer permanece dolorosamente: como uma guerra
como essa alguma vez termina?”
A espionagem, uma das fases emblemáticas das guerras clandestinas sem fronteiras, adquiriu dimensão mais explícita a
partir dos vazamentos do soldado Bradley Manning para o site
WikiLeaks e do ex-consultor da CIA Edward Snowden ao jornalista Glenn Greenwald.
A partir dos anos 90, a diminuição na escala da beligerância
entre Estados tornou-se uma tendência. A grande maioria dos
conflitos corresponde a disputas por território ou poder no interior dos Estados (Ayerbe, 2010). Na superfície desse mundo de
relativa paz entre grandes potências, abundam relatos de época
patrocinados por governos sobre direitos, valores e princípios
dirigidos a dar credibilidade e legitimidade a um ordenamento
internacional em que as disputas de interesses se circunscrevam
ao campo da legalidade. Nas profundezas, opera o exercício pleno
da racionalidade dos fins, sem restrição de meios, adaptado apenas à lógica imperante em cada cenário.
Como na Guerra Fria, grandes e decisivas batalhas estão sendo travadas por aparatos de inteligência, com ações encobertas de
amplo espectro: violação de privacidade, prisão clandestina, tortura, assassinato direto ou por controle remoto.
Nessa lógica sem fronteiras entre o lícito e o ilícito, o Vigiar e
Punir adquire significados curiosos. No lado das potências atuais e
emergentes, uma corrida para fortalecer e sofisticar seus sistemas de
inteligência e suas práticas de ação encoberta para enfrentar a livre
concorrência das guerras clandestinas. No lado do império da lei,
o peso do castigo sobre os mensageiros da denúncia daquilo que
teoricamente não deveria ser prática de quem prega o respeito aos
direitos humanos: Bradley Manning preso sob acusação de traição
por tornar pública documentação oficial comprobatória de práticas
de violação de soberania de outros países; Julian Assange, fundador do WikiLeaks, exilado na embaixada do Equador em Londres;
Edward Snowden exilado na Rússia depois de assumir o vazamento
de dados sobre o monitoramento secreto de telefonemas, e-mails e
outras mensagens pelo governo de EUA.
Para além das reações de apoio ou de crítica ao governo estadunidense pelo uso da espionagem como forma de projeção dos
seus interesses, adquirem relevo os desdobramentos diplomáticos
e as coincidências à “direita” e à “esquerda” de que se trata de uma
disputa internacional de liderança.
Na perspectiva de analistas conservadores, as revelações de
Snowden, assim como as de WikiLeaks, tornam-se fator de fortalecimento de uma vasta “Rede antiamericana” de alcance internacional. Essa rede, de caráter informal, envolveria países alinhados
entre si pela sua oposição ao poder estadunidense que se projeta
após o fim da Guerra Fria, e seria liderada pela Rússia, envolvendo também China, Cuba, Equador, Irã, Coréia do Norte, Síria e
Venezuela. Tendo galvanizado a oposição à invasão ao Iraque promovida pela administração de George W. Bush, a rede se fortalece com as críticas que têm surgido à política de Obama de utilizar drones como principal arma de combate ao terrorismo (http://
unesp.br/semdiplomacia/artigos/2013/48).
A ex-Secretária de Estado no segundo mandato de George W.
Bush, Condoleezza Rice, se manifestou favorável à decisão do presidente Obama de cancelar sua reunião com Vladimir Putin na
cúpula do G20 na Rússia. Se bem considera que não se trata de
uma volta à Guerra Fria, avalia que a relação entre os dois países
passa por momento terrível, agravado pela concessão de asilo a
Snowden, que vê como um tapa na cara dos EUA (http://unesp.br/
semdiplomacia/artigos/2013/107).
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Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
assassinato de alvos terroristas uma marca registrada da sua política.
Para Scahill, “o sistema democrático de duzentos anos de controle
e equilíbrio estava firmemente na mira”. Como ilustração do que
isso significa, cita declaração do final de 2001 feita por dirigente da
CIA de que a guerra ao terror poderá ser “ganha em grande medida, por forças que não conhecemos, em ações que você não vai ver
e de maneiras sobre as quais você pode não querer saber”.
Passando ao largo do embate entre Republicanos e
Democratas, Scahill considera que o unilateralismo e o excepcionalismo representam uma instituição permanente e bipartidária
dos EUA, concluindo que “a pergunta que todos os estadunidenses devem se fazer permanece dolorosamente: como uma guerra
como essa alguma vez termina?”
A espionagem, uma das fases emblemáticas das guerras clandestinas sem fronteiras, adquiriu dimensão mais explícita a
partir dos vazamentos do soldado Bradley Manning para o site
WikiLeaks e do ex-consultor da CIA Edward Snowden ao jornalista Glenn Greenwald.
A partir dos anos 90, a diminuição na escala da beligerância
entre Estados tornou-se uma tendência. A grande maioria dos
conflitos corresponde a disputas por território ou poder no interior dos Estados (Ayerbe, 2010). Na superfície desse mundo de
relativa paz entre grandes potências, abundam relatos de época
patrocinados por governos sobre direitos, valores e princípios
dirigidos a dar credibilidade e legitimidade a um ordenamento
internacional em que as disputas de interesses se circunscrevam
ao campo da legalidade. Nas profundezas, opera o exercício pleno
da racionalidade dos fins, sem restrição de meios, adaptado apenas à lógica imperante em cada cenário.
Como na Guerra Fria, grandes e decisivas batalhas estão sendo travadas por aparatos de inteligência, com ações encobertas de
amplo espectro: violação de privacidade, prisão clandestina, tortura, assassinato direto ou por controle remoto.
Nessa lógica sem fronteiras entre o lícito e o ilícito, o Vigiar e
Punir adquire significados curiosos. No lado das potências atuais e
emergentes, uma corrida para fortalecer e sofisticar seus sistemas de
inteligência e suas práticas de ação encoberta para enfrentar a livre
concorrência das guerras clandestinas. No lado do império da lei,
o peso do castigo sobre os mensageiros da denúncia daquilo que
teoricamente não deveria ser prática de quem prega o respeito aos
direitos humanos: Bradley Manning preso sob acusação de traição
por tornar pública documentação oficial comprobatória de práticas
de violação de soberania de outros países; Julian Assange, fundador do WikiLeaks, exilado na embaixada do Equador em Londres;
Edward Snowden exilado na Rússia depois de assumir o vazamento
de dados sobre o monitoramento secreto de telefonemas, e-mails e
outras mensagens pelo governo de EUA.
Para além das reações de apoio ou de crítica ao governo estadunidense pelo uso da espionagem como forma de projeção dos
seus interesses, adquirem relevo os desdobramentos diplomáticos
e as coincidências à “direita” e à “esquerda” de que se trata de uma
disputa internacional de liderança.
Na perspectiva de analistas conservadores, as revelações de
Snowden, assim como as de WikiLeaks, tornam-se fator de fortalecimento de uma vasta “Rede antiamericana” de alcance internacional. Essa rede, de caráter informal, envolveria países alinhados
entre si pela sua oposição ao poder estadunidense que se projeta
após o fim da Guerra Fria, e seria liderada pela Rússia, envolvendo também China, Cuba, Equador, Irã, Coréia do Norte, Síria e
Venezuela. Tendo galvanizado a oposição à invasão ao Iraque promovida pela administração de George W. Bush, a rede se fortalece com as críticas que têm surgido à política de Obama de utilizar drones como principal arma de combate ao terrorismo (http://
unesp.br/semdiplomacia/artigos/2013/48).
A ex-Secretária de Estado no segundo mandato de George W.
Bush, Condoleezza Rice, se manifestou favorável à decisão do presidente Obama de cancelar sua reunião com Vladimir Putin na
cúpula do G20 na Rússia. Se bem considera que não se trata de
uma volta à Guerra Fria, avalia que a relação entre os dois países
passa por momento terrível, agravado pela concessão de asilo a
Snowden, que vê como um tapa na cara dos EUA (http://unesp.br/
semdiplomacia/artigos/2013/107).
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Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
O governo brasileiro, um dos alvos recorrentes dos documentos vazados por Snowden, envolvendo inclusive a conta de correio
eletrônico de Dilma Rousseff, decide o cancelamento de viagem
oficial já marcada da presidente aos EUA. Perguntando-se porque os EUA espionam o Brasil, Carlos Alberto Montaner reproduz declarações de ex-embaixador dos EUA que aceitou comentar
o assunto em off para sua coluna do El Nuevo Herald. A espionagem seria parte do tratamento a um país que não é considerado
amigo. Referindo-se aos setores que acederam ao poder por meio
do Partido dos Trabalhadores (PT), o diplomata menciona o Foro
de São Paulo como ponto de partida de uma postura sistemática
de apoio a governos inimigos dos EUA como Cuba, Venezuela,
Irã, Bolívia de Evo Morales, Líbia de Kadhafi e a Síria de Bashar
al Assad; um alinhamento internacional normalmente coincidente
com Rússia e China em detrimento dos EUA; estímulo declarado a
empresas para que invistam em Cuba e vários outros exemplos que
justificariam o estado de alerta dos serviços de inteligência com o
Brasil (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2013/172).
Para Raúl Zibechi, “a espionagem é parte da guerra total”. Por
trás do cancelamento da viagem da presidente Dilma Rousseff aos
EUA há um contexto de conflito entre os dois países envolvendo o
receio sobre a liderança do Brasil na América do Sul, sendo a espionagem a ponta do iceberg no interesse estadunidense em conhecer
as capacidades energéticas brasileiras (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2013/171).
As situações e abordagens apresentadas complementam o que
afirmamos na seção anterior sobre a coerência da política externa de Obama com relação ao objetivo permanente da liderança
internacional estadunidense. A despeito do grau de radicalidade
dos questionamentos oriundos da oposição mais conservadora e
de setores do seu próprio partido, não são os fins de supremacia
nacional que estão em questão, mas os meios privilegiados e a
eficiência do seu emprego.
Polarizações na América Latina: ideologia e pragmatismo
30
Visões controversas como as explicitadas frente aos vazamentos
de WikiLeaks e Edward Snowden emergem também na evolução da
conjuntura política latino-americana, em versões renovadas de embates do passado entre “liberalismos”, “populismos” e “socialismos”.
Em termos de impacto do fim da Guerra Fria e de projeção do
chamado Capitalismo Liberal promovido pelos EUA, depois do
Leste europeu, em que a transformação atingiu existencialmente o
que era conhecido como Socialismo Real, foi na América Latina
que a prédica do “fim da história” adquiriu status dominante nas
políticas de Estado das décadas de 1980 e 1990. O nome do receituário era autoexplicativo: Consenso de Washington.
Nas recomendações sobre como liberalizar a economia, dois
exemplos regionais eram valorizados, o Chile de Pinochet e a
Bolívia de Paz Estenssoro pós-1985, precursores da desregulamentação do mercado interno, privatização de empresas públicas e
abertura externa. Para impulsionar o processo, o presidente George
H. W. Bush lançou o Plano Brady, ao qual aderiram as três maiores
economias da região, com graves dificuldades para cumprir com os
compromissos das suas dívidas e qualificar-se para renegociá-las e
aceder novamente ao crédito internacional. O México foi o primeiro, seguido pela Argentina e finalmente o Brasil. A América Latina
adotava uma utopia evolucionista que sempre “teimou” em evitar,
insistindo em “populismos” distributivistas que, finalmente, pareciam tornar-se parte do passado.
A dificuldade dessa leitura é que transmite a ideia de que entre
1950 e 70 a região foi governada predominantemente por forças políticas nacionalistas ou socialistas. Seriam elas as responsáveis pela bomba relógio de pobreza, subdesenvolvimento, déficit
público, endividamento externo e inflação que explode concomitantemente à transição democrática, contaminando a percepção
dos anos 1980 com o rótulo de década perdida da economia. No
entanto, o que prevaleceu de fato nos trinta anos prévios foi a
imposição de regimes militares que buscaram legitimar-se pelo
discurso do combate ao comunismo e ao “populismo”. De quem
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Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
O governo brasileiro, um dos alvos recorrentes dos documentos vazados por Snowden, envolvendo inclusive a conta de correio
eletrônico de Dilma Rousseff, decide o cancelamento de viagem
oficial já marcada da presidente aos EUA. Perguntando-se porque os EUA espionam o Brasil, Carlos Alberto Montaner reproduz declarações de ex-embaixador dos EUA que aceitou comentar
o assunto em off para sua coluna do El Nuevo Herald. A espionagem seria parte do tratamento a um país que não é considerado
amigo. Referindo-se aos setores que acederam ao poder por meio
do Partido dos Trabalhadores (PT), o diplomata menciona o Foro
de São Paulo como ponto de partida de uma postura sistemática
de apoio a governos inimigos dos EUA como Cuba, Venezuela,
Irã, Bolívia de Evo Morales, Líbia de Kadhafi e a Síria de Bashar
al Assad; um alinhamento internacional normalmente coincidente
com Rússia e China em detrimento dos EUA; estímulo declarado a
empresas para que invistam em Cuba e vários outros exemplos que
justificariam o estado de alerta dos serviços de inteligência com o
Brasil (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2013/172).
Para Raúl Zibechi, “a espionagem é parte da guerra total”. Por
trás do cancelamento da viagem da presidente Dilma Rousseff aos
EUA há um contexto de conflito entre os dois países envolvendo o
receio sobre a liderança do Brasil na América do Sul, sendo a espionagem a ponta do iceberg no interesse estadunidense em conhecer
as capacidades energéticas brasileiras (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2013/171).
As situações e abordagens apresentadas complementam o que
afirmamos na seção anterior sobre a coerência da política externa de Obama com relação ao objetivo permanente da liderança
internacional estadunidense. A despeito do grau de radicalidade
dos questionamentos oriundos da oposição mais conservadora e
de setores do seu próprio partido, não são os fins de supremacia
nacional que estão em questão, mas os meios privilegiados e a
eficiência do seu emprego.
Polarizações na América Latina: ideologia e pragmatismo
30
Visões controversas como as explicitadas frente aos vazamentos
de WikiLeaks e Edward Snowden emergem também na evolução da
conjuntura política latino-americana, em versões renovadas de embates do passado entre “liberalismos”, “populismos” e “socialismos”.
Em termos de impacto do fim da Guerra Fria e de projeção do
chamado Capitalismo Liberal promovido pelos EUA, depois do
Leste europeu, em que a transformação atingiu existencialmente o
que era conhecido como Socialismo Real, foi na América Latina
que a prédica do “fim da história” adquiriu status dominante nas
políticas de Estado das décadas de 1980 e 1990. O nome do receituário era autoexplicativo: Consenso de Washington.
Nas recomendações sobre como liberalizar a economia, dois
exemplos regionais eram valorizados, o Chile de Pinochet e a
Bolívia de Paz Estenssoro pós-1985, precursores da desregulamentação do mercado interno, privatização de empresas públicas e
abertura externa. Para impulsionar o processo, o presidente George
H. W. Bush lançou o Plano Brady, ao qual aderiram as três maiores
economias da região, com graves dificuldades para cumprir com os
compromissos das suas dívidas e qualificar-se para renegociá-las e
aceder novamente ao crédito internacional. O México foi o primeiro, seguido pela Argentina e finalmente o Brasil. A América Latina
adotava uma utopia evolucionista que sempre “teimou” em evitar,
insistindo em “populismos” distributivistas que, finalmente, pareciam tornar-se parte do passado.
A dificuldade dessa leitura é que transmite a ideia de que entre
1950 e 70 a região foi governada predominantemente por forças políticas nacionalistas ou socialistas. Seriam elas as responsáveis pela bomba relógio de pobreza, subdesenvolvimento, déficit
público, endividamento externo e inflação que explode concomitantemente à transição democrática, contaminando a percepção
dos anos 1980 com o rótulo de década perdida da economia. No
entanto, o que prevaleceu de fato nos trinta anos prévios foi a
imposição de regimes militares que buscaram legitimar-se pelo
discurso do combate ao comunismo e ao “populismo”. De quem
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Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
era então a responsabilidade pelos descaminhos que o novo “consenso” prometia consertar?
A ideologia acabou solapando a perspectiva histórica, compondo a narrativa hegemônica do fim de século. O momento de auge
coincidiu com as administrações de Bill Clinton (1993-2001), que
passa a apregoar uma política externa de promoção da democracia e do livre-mercado, anunciando uma nova divisão do mundo – ainda vigente– em quatro categorias de países: o “Núcleo
Democrático”, correspondente aos Estados do capitalismo avançado, combinação “virtuosa” de liberdade política e econômica,
ponto de chegada da civilização; os “Estados em transição”, em
processo de adesão à ordem comandada pelo Núcleo; os “Estados
fora-da-lei”, patrocinadores da desestabilização e do terrorismo, e
os “Estados falidos”, em que a ausência de governabilidade os torna
santuários de atores ilícitos (Ayerbe, 2003).
Como parte do estímulo à ampliação dos “Estados em transição”, Clinton institui nas Américas uma diplomacia de Cúpulas
Presidenciais. Na primeira, realizada em dezembro de 1994 em
Miami, o mandatário estadunidense delimita os contornos políticos e econômicos da iniciativa: Cuba está excluída sob o argumento de que seu governo não é democrático, será criada uma Área
de Livre-Comércio das Américas (Alca). Aprovação unânime que
se mantém na segunda cúpula em Santiago do Chile, em abril de
1998. Na Cúpula de Quebec de abril de 2001, já na gestão George
W. Bush, houve uma voz dissonante, o presidente venezuelano
Hugo Chávez, que durante os dias do encontro questionou em
entrevistas à imprensa a exclusão de Cuba, e na assinatura da declaração final fez constar objeções aos prazos estabelecidos para a Alca.
O que naquele momento se apresentava como ruído isolado
que não compromete o conjunto da obra, transforma-se em pouco
tempo em discurso insistente de um crescente número de países,
principalmente na América do Sul.
No caso já mencionado da Venezuela, o governo de Hugo
Chávez, eleito em 1998, exercendo o poder em sucessivas reeleições até seu falecimento em março de 2013, institui um processo de mudanças que combina políticas sociais redistributivas no
plano interno e um protagonismo regional de oposição à arquitetura hemisférica proposta pelos EUA, que se materializa na criação da Aliança Bolivariana para as Américas (Alba) em 2004. No
Brasil, os governos comandados pelo PT, com dois mandatos de
Luiz Inácio Lula da Silva, a partir de 2003, e de Dilma Rousseff,
a partir de 2011, dão forte impulso à agenda interna de combate
à pobreza e no âmbito externo à promoção de mecanismos regionais de articulação. O país atua decisivamente na criação da União
Sul-Americana de Nações (Unasul) em 2008 e da Comunidade de
Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) em 2010, iniciativas que estabelecem equidistância com relação aos EUA. Na
Argentina, as presidências de Néstor Kirchner, que assume em
2003, e Cristina Kirchner, eleita em 2007 e reeleita em 2011, promovem a estabilização do país após a crise de 2001 que interrompeu o governo de Fernando De La Rua, iniciando um período de
recuperação econômica, diminuição da pobreza e de aproximação
ao entorno latino-americano, revendo o alinhamento automático
com os EUA que prevaleceu nos anos 1990. No Uruguai, a Frente
Ampla chega ao governo pela primeira vez com a eleição de Tabaré
Vázquez em 2004, que disputa com êxito um segundo mandato
em 2014, na sequência do presidente José Mujica, do mesmo partido, marcando um ciclo de mudanças de conteúdo econômico-social, com amplo reconhecimento internacional pelos avanços
em temas valorativos como a legalização do aborto, o casamento de
pessoas do mesmo sexo e a descriminalização da maconha.
O novo cenário político regional se expressa na Cúpula das
Américas de Mar del Plata em novembro de 2005, quando
Argentina, Brasil e Venezuela lideram o bloqueio à proposta dos
EUA de inclusão da Alca nas discussões, o que na prática paralisou,
desde aquele momento, a iniciativa lançada por Clinton.
Um mês após a Cúpula, Evo Morales, do Movimento ao
Socialismo e liderança dos camponeses indígenas plantadores de
coca, torna-se presidente da Bolívia, sendo reeleito para dois novos
mandatos em 2009 e 2014. No Equador, Rafael Correa derrota em
2006 o candidato conservador Álvaro Noboa e se reelege em 2013,
interrompendo a trajetória de sucessivas crises que tornaram incon-
32
33
Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
era então a responsabilidade pelos descaminhos que o novo “consenso” prometia consertar?
A ideologia acabou solapando a perspectiva histórica, compondo a narrativa hegemônica do fim de século. O momento de auge
coincidiu com as administrações de Bill Clinton (1993-2001), que
passa a apregoar uma política externa de promoção da democracia e do livre-mercado, anunciando uma nova divisão do mundo – ainda vigente– em quatro categorias de países: o “Núcleo
Democrático”, correspondente aos Estados do capitalismo avançado, combinação “virtuosa” de liberdade política e econômica,
ponto de chegada da civilização; os “Estados em transição”, em
processo de adesão à ordem comandada pelo Núcleo; os “Estados
fora-da-lei”, patrocinadores da desestabilização e do terrorismo, e
os “Estados falidos”, em que a ausência de governabilidade os torna
santuários de atores ilícitos (Ayerbe, 2003).
Como parte do estímulo à ampliação dos “Estados em transição”, Clinton institui nas Américas uma diplomacia de Cúpulas
Presidenciais. Na primeira, realizada em dezembro de 1994 em
Miami, o mandatário estadunidense delimita os contornos políticos e econômicos da iniciativa: Cuba está excluída sob o argumento de que seu governo não é democrático, será criada uma Área
de Livre-Comércio das Américas (Alca). Aprovação unânime que
se mantém na segunda cúpula em Santiago do Chile, em abril de
1998. Na Cúpula de Quebec de abril de 2001, já na gestão George
W. Bush, houve uma voz dissonante, o presidente venezuelano
Hugo Chávez, que durante os dias do encontro questionou em
entrevistas à imprensa a exclusão de Cuba, e na assinatura da declaração final fez constar objeções aos prazos estabelecidos para a Alca.
O que naquele momento se apresentava como ruído isolado
que não compromete o conjunto da obra, transforma-se em pouco
tempo em discurso insistente de um crescente número de países,
principalmente na América do Sul.
No caso já mencionado da Venezuela, o governo de Hugo
Chávez, eleito em 1998, exercendo o poder em sucessivas reeleições até seu falecimento em março de 2013, institui um processo de mudanças que combina políticas sociais redistributivas no
plano interno e um protagonismo regional de oposição à arquitetura hemisférica proposta pelos EUA, que se materializa na criação da Aliança Bolivariana para as Américas (Alba) em 2004. No
Brasil, os governos comandados pelo PT, com dois mandatos de
Luiz Inácio Lula da Silva, a partir de 2003, e de Dilma Rousseff,
a partir de 2011, dão forte impulso à agenda interna de combate
à pobreza e no âmbito externo à promoção de mecanismos regionais de articulação. O país atua decisivamente na criação da União
Sul-Americana de Nações (Unasul) em 2008 e da Comunidade de
Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) em 2010, iniciativas que estabelecem equidistância com relação aos EUA. Na
Argentina, as presidências de Néstor Kirchner, que assume em
2003, e Cristina Kirchner, eleita em 2007 e reeleita em 2011, promovem a estabilização do país após a crise de 2001 que interrompeu o governo de Fernando De La Rua, iniciando um período de
recuperação econômica, diminuição da pobreza e de aproximação
ao entorno latino-americano, revendo o alinhamento automático
com os EUA que prevaleceu nos anos 1990. No Uruguai, a Frente
Ampla chega ao governo pela primeira vez com a eleição de Tabaré
Vázquez em 2004, que disputa com êxito um segundo mandato
em 2014, na sequência do presidente José Mujica, do mesmo partido, marcando um ciclo de mudanças de conteúdo econômico-social, com amplo reconhecimento internacional pelos avanços
em temas valorativos como a legalização do aborto, o casamento de
pessoas do mesmo sexo e a descriminalização da maconha.
O novo cenário político regional se expressa na Cúpula das
Américas de Mar del Plata em novembro de 2005, quando
Argentina, Brasil e Venezuela lideram o bloqueio à proposta dos
EUA de inclusão da Alca nas discussões, o que na prática paralisou,
desde aquele momento, a iniciativa lançada por Clinton.
Um mês após a Cúpula, Evo Morales, do Movimento ao
Socialismo e liderança dos camponeses indígenas plantadores de
coca, torna-se presidente da Bolívia, sendo reeleito para dois novos
mandatos em 2009 e 2014. No Equador, Rafael Correa derrota em
2006 o candidato conservador Álvaro Noboa e se reelege em 2013,
interrompendo a trajetória de sucessivas crises que tornaram incon-
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Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
clusas as presidências anteriores de Abdalá Bucaram, Jamil Mahuad
e Lucio Gutiérrez. Durante as administrações de Morales e Correa,
novas constituições institucionalizam formas de sociabilidade originárias do mundo andino pré-hispânico, e tanto Bolívia como
Equador se tornam membros da Alba.
Nas Cúpulas de Puerto España, em abril de 2009, e Cartagena
de Índias, em abril de 2012, já sem a Alca no horizonte, a exclusão de Cuba, segundo componente que destacamos das convocatórias presidenciais iniciadas por Clinton, torna-se tema extraoficial
inevitável imposto a Barack Obama. O presidente Juan Manuel
Santos, anfitrião da reunião em Colômbia, demandou que esse fosse o derradeiro encontro sem a inclusão da Ilha, o que acaba se
materializando na Cúpula de abril de 2015 na cidade de Panamá,
quando os mandatários cubano e estadunidense oficializam a nova
relação anunciada em 17 de dezembro de 2014.
Ao contrário do objetivo permanente das sucessivas administrações desde Dwight Eisenhower de afastar Cuba do seu entorno
regional, configura-se a tendência oposta, são os EUA que terminam isolados. Essa situação torna-se fator decisivo na avaliação da
Casa Branca sobre a necessidade de mudança de postura nas relações com a Ilha.
Os evolucionismos receiam do imponderável. Para os saudosos
dos consensos dos anos 1990, o que vem acontecendo na região há
mais de uma década seria um acidente de percurso na contramão
da história. Novamente, a ideologia tende a solapar a realidade. O
porquê do retorno ao topo da agenda das políticas sociais distributivas e da construção de autonomia decisória nas relações exteriores resiste a reducionismos do estilo “recaída populista tipicamente
latino-americana”.
Após breves anos de euforia, o dogmatismo sobre a virtuosa
desregulamentação dos mercados se chocou com uma realidade
internacional altamente desafiadora: o “efeito tequila” a partir de
dezembro de 1994, em que a desvalorização abrupta do peso mexicano leva Clinton a liberar empréstimo de mais de 50 bilhões de
dólares para conter a sangria de reservas do país; a crise financeira
asiática deflagrada no verão de 1997, com consequências amplia-
das na Rússia, que declara moratória em agosto de 1998; o “efeito samba” pela desvalorização da moeda brasileira em janeiro de
1999, com impacto direto na Argentina, fortemente dependente
das exportações ao Brasil, precipitando o colapso que em janeiro
de 2002 leva ao abandono do regime de câmbio fixo vigente desde 1991. Esse encadeamento de episódios, além de tornar explícita
a vulnerabilidade das economias latino-americanas, comprometeu
sua capacidade de crescimento, transformando os anos 1990 em
uma nova década perdida, com a consequente impopularidade dos
governos comprometidos com as reformas de mercado, que terminam incorporando o estigma do ajuste perpétuo, sem a contrapartida da prosperidade anunciada.
O decênio posterior, marcado pela ascensão à presidência em
vários países de lideranças de esquerda – ainda que de origens
e posições diversas – passa a ser apontado pelos seus defensores
como década ganha da América Latina. Sob a chancela do crescimento, da diminuição da pobreza, da desigualdade e da projeção
no cenário internacional, a região se revela menos vulnerável que
os EUA e a Europa aos impactos da crise de 2008, considerada a
mais grave desde 1929.
Certamente, os ganhos reconhecidos estão longe de instalar uma paz social conformista ou desativar projetos alternativos.
Assim como no passado, novos atores, com novas demandas, ideias
e projetos, desafiam o establishment, como deixou claro a mensagem de movimentos sociais como os que se espalharam pelo Brasil
a partir de junho de 2013.
34
Estabelecidos e outsiders
O acompanhamento da conjuntura latino-americana do Sem
Diplomacia repercutiu o contraste entre três posições: setores que
expressam otimismo com o que consideram um final de ciclo para a
hegemonia dos governos “populistas” na região; setores que na defesa desses governos se posicionam por uma continuidade com renovação; setores que desde a esquerda questionam esses governos pela
permanência de um modelo que perpetua e aprofunda o capitalismo.
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Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
clusas as presidências anteriores de Abdalá Bucaram, Jamil Mahuad
e Lucio Gutiérrez. Durante as administrações de Morales e Correa,
novas constituições institucionalizam formas de sociabilidade originárias do mundo andino pré-hispânico, e tanto Bolívia como
Equador se tornam membros da Alba.
Nas Cúpulas de Puerto España, em abril de 2009, e Cartagena
de Índias, em abril de 2012, já sem a Alca no horizonte, a exclusão de Cuba, segundo componente que destacamos das convocatórias presidenciais iniciadas por Clinton, torna-se tema extraoficial
inevitável imposto a Barack Obama. O presidente Juan Manuel
Santos, anfitrião da reunião em Colômbia, demandou que esse fosse o derradeiro encontro sem a inclusão da Ilha, o que acaba se
materializando na Cúpula de abril de 2015 na cidade de Panamá,
quando os mandatários cubano e estadunidense oficializam a nova
relação anunciada em 17 de dezembro de 2014.
Ao contrário do objetivo permanente das sucessivas administrações desde Dwight Eisenhower de afastar Cuba do seu entorno
regional, configura-se a tendência oposta, são os EUA que terminam isolados. Essa situação torna-se fator decisivo na avaliação da
Casa Branca sobre a necessidade de mudança de postura nas relações com a Ilha.
Os evolucionismos receiam do imponderável. Para os saudosos
dos consensos dos anos 1990, o que vem acontecendo na região há
mais de uma década seria um acidente de percurso na contramão
da história. Novamente, a ideologia tende a solapar a realidade. O
porquê do retorno ao topo da agenda das políticas sociais distributivas e da construção de autonomia decisória nas relações exteriores resiste a reducionismos do estilo “recaída populista tipicamente
latino-americana”.
Após breves anos de euforia, o dogmatismo sobre a virtuosa
desregulamentação dos mercados se chocou com uma realidade
internacional altamente desafiadora: o “efeito tequila” a partir de
dezembro de 1994, em que a desvalorização abrupta do peso mexicano leva Clinton a liberar empréstimo de mais de 50 bilhões de
dólares para conter a sangria de reservas do país; a crise financeira
asiática deflagrada no verão de 1997, com consequências amplia-
das na Rússia, que declara moratória em agosto de 1998; o “efeito samba” pela desvalorização da moeda brasileira em janeiro de
1999, com impacto direto na Argentina, fortemente dependente
das exportações ao Brasil, precipitando o colapso que em janeiro
de 2002 leva ao abandono do regime de câmbio fixo vigente desde 1991. Esse encadeamento de episódios, além de tornar explícita
a vulnerabilidade das economias latino-americanas, comprometeu
sua capacidade de crescimento, transformando os anos 1990 em
uma nova década perdida, com a consequente impopularidade dos
governos comprometidos com as reformas de mercado, que terminam incorporando o estigma do ajuste perpétuo, sem a contrapartida da prosperidade anunciada.
O decênio posterior, marcado pela ascensão à presidência em
vários países de lideranças de esquerda – ainda que de origens
e posições diversas – passa a ser apontado pelos seus defensores
como década ganha da América Latina. Sob a chancela do crescimento, da diminuição da pobreza, da desigualdade e da projeção
no cenário internacional, a região se revela menos vulnerável que
os EUA e a Europa aos impactos da crise de 2008, considerada a
mais grave desde 1929.
Certamente, os ganhos reconhecidos estão longe de instalar uma paz social conformista ou desativar projetos alternativos.
Assim como no passado, novos atores, com novas demandas, ideias
e projetos, desafiam o establishment, como deixou claro a mensagem de movimentos sociais como os que se espalharam pelo Brasil
a partir de junho de 2013.
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Estabelecidos e outsiders
O acompanhamento da conjuntura latino-americana do Sem
Diplomacia repercutiu o contraste entre três posições: setores que
expressam otimismo com o que consideram um final de ciclo para a
hegemonia dos governos “populistas” na região; setores que na defesa desses governos se posicionam por uma continuidade com renovação; setores que desde a esquerda questionam esses governos pela
permanência de um modelo que perpetua e aprofunda o capitalismo.
35
Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
Esses posicionamentos se explicitam de forma mais nítida na
América do Sul, em que damos destaque a Venezuela e Brasil, países que têm sido apresentados como emblemáticos, elogiosa ou criticamente, da emergência e projeção de uma nova esquerda.
Na Venezuela, a polarização entre governo e oposição se acentua após o falecimento de Hugo Chávez e a vitória eleitoral apertada de Nicolás Maduro sobre Henrique Capriles, paralela a um
processo de deterioro da economia marcada por elevação da inflação, desvalorização da moeda frente ao dólar, desabastecimento de
produtos de consumo cotidiano da população e restrição do acesso
a divisas em um país fortemente dependente das importações. O
problema cambiário tem impacto também no protagonismo regional da política externa chavista dos anos anteriores. Paralelamente
ao objetivo de fortalecer a economia interna e poupar divisas, programas internacionais associados à Alba tendem a ser afetados.
Assumindo uma crise que combina legitimidade política e
deterioro econômico, setores oriundos do campo oposicionista
conservador e ex-aliados de Hugo Chávez convergem na previsão
de que Maduro não chegará ao final do seu mandato em 2019.
Carlos Ortega, sindicalista exilado no Peru, explicita a perspectiva
mais dura em termos de radicalização das ações para derrubar o
governo. Argumentando que a crise econômica do país está sendo
instrumentalizada em termos de adotar um modelo semelhante
ao de Cuba, e que a atual liderança oposicionista tem priorizado
a competição eleitoral, apostando que a passagem do tempo levará a uma implosão interna do chavismo, chama a “tomar as ruas”:
“Há que se organizar, mas não para competir dentro de dois anos
em um processo eleitoral viciado, nem muito menos para ir às
urnas num longínquo 2018 ou 2019” (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/291).
Sem adotar o golpismo de Ortega, mas prevendo o final antecipado da atual administração, Heinz Dieterich, intelectual alemão
radicado no México, critica os rumos que está tomando o processo iniciado por Hugo Chávez. Tendo sido seu assessor na época
em que se deu o passo na definição do caráter socialista da revolução bolivariana, sob a denominação de “Socialismo do Século
XXI”, atribuída na origem ao próprio Dieterich, considera que “as
demonstrações de debilidade, imaturidade e falta de liderança” de
Nicolás Maduro, no contexto de crise econômica que vive o país,
estariam colocando em risco sua continuidade (http://unesp.br/
semdiplomacia/artigos/2013/208).
A preocupação com a permanência do governo também está
presente em setores que se situam dentro do campo bolivariano,
como o ex-ministro de Planejamento Felipe Pérez Martí, receoso
do destino da revolução caso não se produzam drásticas mudanças
na política econômica. Para ele, “Maduro não vai ser derrubado
pela classe média que hoje protesta, mas pelo povo chavista, quando se dê conta de que o que ocorre não é responsabilidade do setor
privado, mas do próprio governo” (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/377).
Na perspectiva de analistas que apontam para o aprofundamento da revolução, o desafio é ir além do capitalismo, cujo
esgotamento estaria na base dos problemas enfrentados, gerados pelo efeito positivo anterior da política econômica, expressa
no aumento do PIB, do gasto social per capita, do salário real,
com seus desdobramentos no aumento do bem-estar e do consumo da população mais pobre, complementado com políticas de
saúde, educação, moradia, entre outras, que permitiram um salto de qualidade no perfil da distribuição da renda no país. Essas
mudanças estariam causando impacto estrutural em um capitalismo com dificuldades para se adaptar às novas demandas da sociedade, o que exigiria uma profunda reforma institucional e melhoria da gestão, avançando na direção do socialismo (http://unesp.
br/semdiplomacia/artigos/2013/231).
A saída do Ministério de Planejamento de Jorge Giordani, em
junho de 2014, uma das figuras fundamentais da formulação e realização da estratégia econômica bolivariana de Hugo Chávez, e sua
carta aberta em que tece fortes críticas à administração de Nicolás
Maduro, questionando sua fidelidade à revolução, gerou acalorado
debate nas fileiras do governo entre aqueles que passam a tornar
mais explícitas restrições sobre os caminhos adotados desde 2013, e
a defesa desde setores de maior fidelidade ao oficialismo.
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Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
Esses posicionamentos se explicitam de forma mais nítida na
América do Sul, em que damos destaque a Venezuela e Brasil, países que têm sido apresentados como emblemáticos, elogiosa ou criticamente, da emergência e projeção de uma nova esquerda.
Na Venezuela, a polarização entre governo e oposição se acentua após o falecimento de Hugo Chávez e a vitória eleitoral apertada de Nicolás Maduro sobre Henrique Capriles, paralela a um
processo de deterioro da economia marcada por elevação da inflação, desvalorização da moeda frente ao dólar, desabastecimento de
produtos de consumo cotidiano da população e restrição do acesso
a divisas em um país fortemente dependente das importações. O
problema cambiário tem impacto também no protagonismo regional da política externa chavista dos anos anteriores. Paralelamente
ao objetivo de fortalecer a economia interna e poupar divisas, programas internacionais associados à Alba tendem a ser afetados.
Assumindo uma crise que combina legitimidade política e
deterioro econômico, setores oriundos do campo oposicionista
conservador e ex-aliados de Hugo Chávez convergem na previsão
de que Maduro não chegará ao final do seu mandato em 2019.
Carlos Ortega, sindicalista exilado no Peru, explicita a perspectiva
mais dura em termos de radicalização das ações para derrubar o
governo. Argumentando que a crise econômica do país está sendo
instrumentalizada em termos de adotar um modelo semelhante
ao de Cuba, e que a atual liderança oposicionista tem priorizado
a competição eleitoral, apostando que a passagem do tempo levará a uma implosão interna do chavismo, chama a “tomar as ruas”:
“Há que se organizar, mas não para competir dentro de dois anos
em um processo eleitoral viciado, nem muito menos para ir às
urnas num longínquo 2018 ou 2019” (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/291).
Sem adotar o golpismo de Ortega, mas prevendo o final antecipado da atual administração, Heinz Dieterich, intelectual alemão
radicado no México, critica os rumos que está tomando o processo iniciado por Hugo Chávez. Tendo sido seu assessor na época
em que se deu o passo na definição do caráter socialista da revolução bolivariana, sob a denominação de “Socialismo do Século
XXI”, atribuída na origem ao próprio Dieterich, considera que “as
demonstrações de debilidade, imaturidade e falta de liderança” de
Nicolás Maduro, no contexto de crise econômica que vive o país,
estariam colocando em risco sua continuidade (http://unesp.br/
semdiplomacia/artigos/2013/208).
A preocupação com a permanência do governo também está
presente em setores que se situam dentro do campo bolivariano,
como o ex-ministro de Planejamento Felipe Pérez Martí, receoso
do destino da revolução caso não se produzam drásticas mudanças
na política econômica. Para ele, “Maduro não vai ser derrubado
pela classe média que hoje protesta, mas pelo povo chavista, quando se dê conta de que o que ocorre não é responsabilidade do setor
privado, mas do próprio governo” (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/377).
Na perspectiva de analistas que apontam para o aprofundamento da revolução, o desafio é ir além do capitalismo, cujo
esgotamento estaria na base dos problemas enfrentados, gerados pelo efeito positivo anterior da política econômica, expressa
no aumento do PIB, do gasto social per capita, do salário real,
com seus desdobramentos no aumento do bem-estar e do consumo da população mais pobre, complementado com políticas de
saúde, educação, moradia, entre outras, que permitiram um salto de qualidade no perfil da distribuição da renda no país. Essas
mudanças estariam causando impacto estrutural em um capitalismo com dificuldades para se adaptar às novas demandas da sociedade, o que exigiria uma profunda reforma institucional e melhoria da gestão, avançando na direção do socialismo (http://unesp.
br/semdiplomacia/artigos/2013/231).
A saída do Ministério de Planejamento de Jorge Giordani, em
junho de 2014, uma das figuras fundamentais da formulação e realização da estratégia econômica bolivariana de Hugo Chávez, e sua
carta aberta em que tece fortes críticas à administração de Nicolás
Maduro, questionando sua fidelidade à revolução, gerou acalorado
debate nas fileiras do governo entre aqueles que passam a tornar
mais explícitas restrições sobre os caminhos adotados desde 2013, e
a defesa desde setores de maior fidelidade ao oficialismo.
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Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
Em resposta às críticas de Giordani, o dirigente do Partido
Socialista Unificado da Venezuela (PSUV), Rodolfo Sanz, pondera
o momento difícil enfrentado pelo governo pelo desaparecimento
do grande líder da revolução, afirmando que o rumo empreendido por Chávez se mantém, em uma perspectiva de transformação
socialista em que também há lugar para o setor privado, já que
“o Estado Socialista não pode, nem poderá sozinho construir um
modelo produtivo com capacidade para satisfazer amplamente as
necessidades da população venezuelana” (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/518).
A defesa de Sanz de um convívio estratégico entre socialismo
e capital privado é apontada por críticos no interior do bolivarianismo como expressão de um novo arranjo produzido pelo padrão
de desenvolvimento predominante, sustentado a partir de recursos
oriundos da renda da exportação de petróleo, que teve como efeito
colateral a emergência de uma elite filha da revolução, a chamada Boliburguesia (Burguesia bolivariana). De acordo com Roland
Denis, a saída de Giordani aprofunda uma trajetória que vem de
vários anos de “bloqueio do processo revolucionário socialista por
um modelo tendente a fortalecer a burocracia, o corporativismo
e o capitalismo de Estado... A total quebra moral de uma grande
parte… da direção revolucionária do governo (em que) ...evoluciona a criação de uma nova burguesia... E o aparecimento… de uma
autocracia imposta dentro do espaço político do chavismo” (http://
unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/517).
Para Víctor Álvarez, esse modelo mais estatizou do que socializou, o que se reflete também nas relações de trabalho nas empresas
incorporadas pelo Estado, que mantêm critérios de distribuição de
dividendos não compatíveis com seu baixo desempenho, dependendo de subsídios da renda petroleira. Isso só poderia ser superado “por meio de novas formas de propriedade social sob o controle dos trabalhadores diretos e da comunidade organizada” (http://
unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/729).
As restrições econômicas e orçamentárias do governo se agravam
a partir do segundo semestre de 2014 com a evolução dos preços
do petróleo, que sofrem redução de mais de 40%. Além da pressão
pelo baixo dinamismo da economia global, há um fator adicional
de impacto estrutural direto na estratégia econômica bolivariana: o
aumento da oferta associada à produção de óleo de xisto dos EUA,
que atinge em novembro o patamar de nove milhões de barris diários, um milhão a menos do que a da Arábia Saudita e seis milhões
e meio a mais do que a da própria Venezuela, que tem no mercado estadunidense seu principal destino exportador (http://unesp.
br/semdiplomacia/artigos/2014/778). Em um cenário político em
que se combinam a já instalada intransigência oposicionista com
a crescente explicitação de controvérsias no interior do chavismo
sobre os caminhos a seguir, acumulam-se ingredientes suscetíveis
de conduzir o país a uma calamitosa situação de impasse.
É na aposta do impasse que se situa a ordem executiva de
Obama antes mencionada declarando o país uma ameaça à segurança nacional. Um alvo destacado é a Boliburguesia, incorporando denúncias públicas tanto da oposição como de setores internos
ao chavismo de bilhões de dólares depositados por venezuelanos no
exterior sem certificação de origem (http://unesp.br/semdiplomacia/opiniao/2015/40). A medida estadunidense visa atingir o patrimônio e a liberdade de circulação fora do país de setor identificado
entre as partes responsáveis pela escassez de divisas, um dos problemas já apontados que incidem na limitação ao acesso de produtos pela população num país cujo consumo interno é fortemente
dependente das importações. Dado que parte substantiva da fuga
de capitais passa pelo sistema financeiro dos EUA, o bloqueio de
ativos torna-se uma vulnerabilidade explorada pela administração
estadunidense, afetando núcleos de poder, caso dos sete funcionários venezuelanos implicados. Num contexto de perda de popularidade de Maduro, o objetivo é aprofundar divisões no interior do
chavismo e precipitar a saída do presidente.
O conflito de posições esboçado a partir da crise na Venezuela
incorpora no Brasil dimensões peculiares associadas à emergência
de movimentos sociais que têm como estopim o aumento de tarifas
de transporte público em São Paulo e a repressão policial aos manifestantes, complicando a agenda de reeleição de Dilma Rousseff,
que nos primeiros meses de 2013 apresentava índices de populari-
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Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
Em resposta às críticas de Giordani, o dirigente do Partido
Socialista Unificado da Venezuela (PSUV), Rodolfo Sanz, pondera
o momento difícil enfrentado pelo governo pelo desaparecimento
do grande líder da revolução, afirmando que o rumo empreendido por Chávez se mantém, em uma perspectiva de transformação
socialista em que também há lugar para o setor privado, já que
“o Estado Socialista não pode, nem poderá sozinho construir um
modelo produtivo com capacidade para satisfazer amplamente as
necessidades da população venezuelana” (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/518).
A defesa de Sanz de um convívio estratégico entre socialismo
e capital privado é apontada por críticos no interior do bolivarianismo como expressão de um novo arranjo produzido pelo padrão
de desenvolvimento predominante, sustentado a partir de recursos
oriundos da renda da exportação de petróleo, que teve como efeito
colateral a emergência de uma elite filha da revolução, a chamada Boliburguesia (Burguesia bolivariana). De acordo com Roland
Denis, a saída de Giordani aprofunda uma trajetória que vem de
vários anos de “bloqueio do processo revolucionário socialista por
um modelo tendente a fortalecer a burocracia, o corporativismo
e o capitalismo de Estado... A total quebra moral de uma grande
parte… da direção revolucionária do governo (em que) ...evoluciona a criação de uma nova burguesia... E o aparecimento… de uma
autocracia imposta dentro do espaço político do chavismo” (http://
unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/517).
Para Víctor Álvarez, esse modelo mais estatizou do que socializou, o que se reflete também nas relações de trabalho nas empresas
incorporadas pelo Estado, que mantêm critérios de distribuição de
dividendos não compatíveis com seu baixo desempenho, dependendo de subsídios da renda petroleira. Isso só poderia ser superado “por meio de novas formas de propriedade social sob o controle dos trabalhadores diretos e da comunidade organizada” (http://
unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/729).
As restrições econômicas e orçamentárias do governo se agravam
a partir do segundo semestre de 2014 com a evolução dos preços
do petróleo, que sofrem redução de mais de 40%. Além da pressão
pelo baixo dinamismo da economia global, há um fator adicional
de impacto estrutural direto na estratégia econômica bolivariana: o
aumento da oferta associada à produção de óleo de xisto dos EUA,
que atinge em novembro o patamar de nove milhões de barris diários, um milhão a menos do que a da Arábia Saudita e seis milhões
e meio a mais do que a da própria Venezuela, que tem no mercado estadunidense seu principal destino exportador (http://unesp.
br/semdiplomacia/artigos/2014/778). Em um cenário político em
que se combinam a já instalada intransigência oposicionista com
a crescente explicitação de controvérsias no interior do chavismo
sobre os caminhos a seguir, acumulam-se ingredientes suscetíveis
de conduzir o país a uma calamitosa situação de impasse.
É na aposta do impasse que se situa a ordem executiva de
Obama antes mencionada declarando o país uma ameaça à segurança nacional. Um alvo destacado é a Boliburguesia, incorporando denúncias públicas tanto da oposição como de setores internos
ao chavismo de bilhões de dólares depositados por venezuelanos no
exterior sem certificação de origem (http://unesp.br/semdiplomacia/opiniao/2015/40). A medida estadunidense visa atingir o patrimônio e a liberdade de circulação fora do país de setor identificado
entre as partes responsáveis pela escassez de divisas, um dos problemas já apontados que incidem na limitação ao acesso de produtos pela população num país cujo consumo interno é fortemente
dependente das importações. Dado que parte substantiva da fuga
de capitais passa pelo sistema financeiro dos EUA, o bloqueio de
ativos torna-se uma vulnerabilidade explorada pela administração
estadunidense, afetando núcleos de poder, caso dos sete funcionários venezuelanos implicados. Num contexto de perda de popularidade de Maduro, o objetivo é aprofundar divisões no interior do
chavismo e precipitar a saída do presidente.
O conflito de posições esboçado a partir da crise na Venezuela
incorpora no Brasil dimensões peculiares associadas à emergência
de movimentos sociais que têm como estopim o aumento de tarifas
de transporte público em São Paulo e a repressão policial aos manifestantes, complicando a agenda de reeleição de Dilma Rousseff,
que nos primeiros meses de 2013 apresentava índices de populari-
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Um mundo de equilibrios precários
dade maiores que seus antecessores imediatos Fernando Henrique
Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva no mesmo período de governo.
No acompanhamento do Sem Diplomacia sobre a percepção em
mídias internacionais das Jornadas de junho, denominação que passa a identificar esses eventos no âmbito das esquerdas, encontramos
paradoxos reveladores dos novos tempos.
De um modo geral, a reação inicial foi de surpresa, afinal, nos
anos recentes foi consolidando-se uma imagem do Brasil como
exemplo de crescimento com inclusão social. Uma vez constatada
a ampliação das reivindicações para além dos preços das passagens
do transporte público, atingindo a atuação da classe política na
gestão do Estado, o foco das análises buscará resgatar fatores mais
profundos que anunciavam a crise. Nossa expectativa era que ao
tratar-se de um país governado há dez anos por presidentes oriundos do PT, as críticas mais radicais viriam do campo conservador,
forçando um paralelo da situação nacional com a Venezuela pós-Chávez, transformando ambas as crises em evidências derradeiras
do estado terminal de experiências cuja morte anunciam há mais
de uma década. Diferentemente, cogitávamos na esquerda uma
firme defesa da administração petista, com exaltação dos ganhos
obtidos pelos setores populares, parte de uma nova América Latina
marcada por governos em forte sintonia com seus povos.
Verificou-se viés diferente. Think Tanks conservadores tenderam a olhar os eventos no Brasil como parte de uma onda internacional mais ampla que inclui especialmente Europa, associada
a novas demandas que, embora afetem a governabilidade, não
colocam o sistema em questão (http://unesp.br/semdiplomacia/
opiniao/2013/5). As principais preocupações referem-se às ameaças para a manutenção da ordem econômica, com recomendações
aos governantes e à classe política de um árduo trabalho de conscientização da sociedade sobre o ajuste necessário entre expectativas e possibilidades.
No campo da esquerda, foi marcada a tendência em associar os
descontentamentos populares com os rumos de um governo acusado de conciliar com a herança neoliberal. De acordo com Juan
Luis Berterretche, os movimentos expressam os desdobramentos de
um modelo de desenvolvimento baseado na produção, extração e
exportação de matérias primas, e matriz energética que prioriza
combustíveis fósseis, com forte presença de empresas multinacionais. Como resultado das prioridades estabelecidas nesse modelo, multiplicam-se impactos ambientais e sociais negativos, que
afetam comunidades indígenas e camponesas, paralelamente ao
crescimento do gasto público na promoção de megaeventos como
a Copa do Mundo de 2014, com consequências distributivas na
territorialidade urbana. Dada a variedade e a amplitude de setores
afetados, que compõem boa parte dos descontentes que participam das manifestações, Berterretche faz um alerta sobre os riscos
de que o crescente compromisso com o capitalismo do governo
brasileiro termine erodindo sua base popular de apoio (http://
unesp.br/semdiplomacia/artigos/2013/33).
Esse tipo de percepção aponta para um descompasso entre as
expectativas prévias de transformação profunda e a evolução posterior da realidade. Paradoxalmente, embora desde pressupostos diferentes, há constatação similar no campo político oposto. A partir
do segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, amenizam-se
as opiniões negativas do conservadorismo, especialmente em veículos de comunicação mais ideológicos dos EUA. Dentro da projeção
latino-americana de presidentes “esquerdistas”, passou-se a cultivar a distinção entre lulismo e chavismo, em que o primeiro acaba
ganhando credibilidade no establishment como fator de contenção
da vertente radical bolivariana (Ayerbe, 2013).
A perda de popularidade do governo do PT gerada pelas mobilizações não implicou em transferência de apoios à oposição liderada pelo Partido da Socialdemocracia Brasileira (PSDB), ao qual
pertence o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Embora a
reeleição de Dilma Rousseff no segundo semestre de 2014 se deu
por pequena margem, a polarização PT-PSDB respondeu a dinâmicas diferentes, envolvendo um embate que ganhou contornos de
ideologização ao estilo venezuelano, com uma disputa de rótulos
supranacionais entre “esquerda bolivariana” e “direita neoliberal”
(http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/756).
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Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
dade maiores que seus antecessores imediatos Fernando Henrique
Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva no mesmo período de governo.
No acompanhamento do Sem Diplomacia sobre a percepção em
mídias internacionais das Jornadas de junho, denominação que passa a identificar esses eventos no âmbito das esquerdas, encontramos
paradoxos reveladores dos novos tempos.
De um modo geral, a reação inicial foi de surpresa, afinal, nos
anos recentes foi consolidando-se uma imagem do Brasil como
exemplo de crescimento com inclusão social. Uma vez constatada
a ampliação das reivindicações para além dos preços das passagens
do transporte público, atingindo a atuação da classe política na
gestão do Estado, o foco das análises buscará resgatar fatores mais
profundos que anunciavam a crise. Nossa expectativa era que ao
tratar-se de um país governado há dez anos por presidentes oriundos do PT, as críticas mais radicais viriam do campo conservador,
forçando um paralelo da situação nacional com a Venezuela pós-Chávez, transformando ambas as crises em evidências derradeiras
do estado terminal de experiências cuja morte anunciam há mais
de uma década. Diferentemente, cogitávamos na esquerda uma
firme defesa da administração petista, com exaltação dos ganhos
obtidos pelos setores populares, parte de uma nova América Latina
marcada por governos em forte sintonia com seus povos.
Verificou-se viés diferente. Think Tanks conservadores tenderam a olhar os eventos no Brasil como parte de uma onda internacional mais ampla que inclui especialmente Europa, associada
a novas demandas que, embora afetem a governabilidade, não
colocam o sistema em questão (http://unesp.br/semdiplomacia/
opiniao/2013/5). As principais preocupações referem-se às ameaças para a manutenção da ordem econômica, com recomendações
aos governantes e à classe política de um árduo trabalho de conscientização da sociedade sobre o ajuste necessário entre expectativas e possibilidades.
No campo da esquerda, foi marcada a tendência em associar os
descontentamentos populares com os rumos de um governo acusado de conciliar com a herança neoliberal. De acordo com Juan
Luis Berterretche, os movimentos expressam os desdobramentos de
um modelo de desenvolvimento baseado na produção, extração e
exportação de matérias primas, e matriz energética que prioriza
combustíveis fósseis, com forte presença de empresas multinacionais. Como resultado das prioridades estabelecidas nesse modelo, multiplicam-se impactos ambientais e sociais negativos, que
afetam comunidades indígenas e camponesas, paralelamente ao
crescimento do gasto público na promoção de megaeventos como
a Copa do Mundo de 2014, com consequências distributivas na
territorialidade urbana. Dada a variedade e a amplitude de setores
afetados, que compõem boa parte dos descontentes que participam das manifestações, Berterretche faz um alerta sobre os riscos
de que o crescente compromisso com o capitalismo do governo
brasileiro termine erodindo sua base popular de apoio (http://
unesp.br/semdiplomacia/artigos/2013/33).
Esse tipo de percepção aponta para um descompasso entre as
expectativas prévias de transformação profunda e a evolução posterior da realidade. Paradoxalmente, embora desde pressupostos diferentes, há constatação similar no campo político oposto. A partir
do segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, amenizam-se
as opiniões negativas do conservadorismo, especialmente em veículos de comunicação mais ideológicos dos EUA. Dentro da projeção
latino-americana de presidentes “esquerdistas”, passou-se a cultivar a distinção entre lulismo e chavismo, em que o primeiro acaba
ganhando credibilidade no establishment como fator de contenção
da vertente radical bolivariana (Ayerbe, 2013).
A perda de popularidade do governo do PT gerada pelas mobilizações não implicou em transferência de apoios à oposição liderada pelo Partido da Socialdemocracia Brasileira (PSDB), ao qual
pertence o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Embora a
reeleição de Dilma Rousseff no segundo semestre de 2014 se deu
por pequena margem, a polarização PT-PSDB respondeu a dinâmicas diferentes, envolvendo um embate que ganhou contornos de
ideologização ao estilo venezuelano, com uma disputa de rótulos
supranacionais entre “esquerda bolivariana” e “direita neoliberal”
(http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/756).
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Um mundo de equilibrios precários
No entanto, por trás da radicalização no discurso eleitoral, análises de perfil político antagônico demarcaram convergências de
fundo. Sob o sugestivo título “A centro-direita sul-americana se
reinventa para chegar ao poder”, Adriana M. Riva, do jornal conservador argentino La Nación, aponta a perspectiva de recuperação
dessas forças políticas frente à recente hegemonia da esquerda, atualizando seu discurso e apresentando-se com uma cara mais social
do que no passado, criticando a corrupção e os déficits de investimento em infraestrutura, educação e saúde, embora reconhecendo
que houve avanços na diminuição da pobreza. Seria o caso das candidaturas de Aécio Neves e Marina Silva no Brasil, Luis Lacalle Pou
no Uruguai e Samuel Doria Medina na Bolívia (http://unesp.br/
semdiplomacia/artigos/2014/670). Com o título também sugestivo “Brasil: vitória pírrica e despois”, no site Aporrea, vinculado ao
bolivarianismo venezuelano, Atilio Borón faz profundas críticas ao
PT, em que fora as políticas sociais de conteúdo assistencial dos
seus governos, vê pouca diferenciação com relação aos do PSDB.
Nesse caso, Lula e Dilma não representariam uma saída pós-neoliberal, como afirmam muitos dos seus defensores. A estreita margem da vitória seria expressão em parte dessa forte similitude entre
as duas propostas que se enfrentaram no segundo turno das eleições. Como recomendação, aponta para a necessidade de retorno
às fontes originais do petismo em termos de aproximação da burocracia governamental com os movimentos sociais e a instalação de
um programa efetivamente popular (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/717).
Em poucos meses, o otimismo no campo do PT pela conquista
de um quarto mandato transforma-se em desconcerto pela ofensiva de partidos políticos de oposição e movimentos sociais que
colocam na agenda o impeachment da presidenta, cuja popularidade cai a índices equivalentes aos piores momentos do período
Collor de Melo. Motorizada por denúncias de corrupção, especialmente na empresa estatal Petrobrás, e com crescente visibilidade
nas mídias, a crise se alimenta também de uma conjuntura econômica de ajuste que combina inflação alta com retração do PIB.
Configura-se um cenário de vertiginosa mudança de expectativas
em país percebido internacionalmente, inclusive entre críticos de
diverso signo ideológico, como liderança estabilizadora regional,
exemplo de convívio entre economia de mercado e reformas sociais
sob um governo encabeçado por partido oriundo da esquerda,
num ambiente político afastado da conflitividade na Venezuela.
A polarização das eleições de 2014 entre dois adversários contumazes parecia ter subsumido o ímpeto das Jornadas de junho em
uma pauta de reivindicações a ser tramitada dentro das prioridades e correlação de forças das instituições da ordem. Na crítica desde a esquerda, como vimos, são expostos os alcances e os limites
da agenda transformadora que anima os setores predominantes
no PT, que tendem a operar dentro da opção institucionalista de
um ordenamento que, após três administrações consecutivas e iniciando a quarta, está cristalizado. No entanto, a evolução dos fatos
mostra que o ativismo das ruas extrapola os significados valorizados por essas análises, evidenciando lideranças num amplo espectro que inclui a ação direta Black Bloc contra símbolos do capitalismo, partidários do liberalismo econômico como Vem pra Rua e
Movimento Brasil Livre, com participação de setores próximos ao
libertarianismo estadunidense, até o Revoltados Online, abertamente a favor da intervenção militar (http://unesp.br/semdiplomacia/
artigos/2015/932).
Como em tantas ocasiões na historia brasileira recente, a crise alimenta insatisfações que perpassam o conjunto da sociedade,
no entanto, a constituição de movimentos sociais com perspectivas
qualitativamente divergentes sobre democracia política, econômica
e social parece demarcar um antes e um depois. Instalam-se agendas expressivas de uma modernização em tempos de equilíbrios
precários.
42
“Velhos” e “novos” poderes
Apesar da alta periculosidade, a natureza dos principais contendores da Guerra Fria em termos da racionalidade entre meios e fins
outorgava razoável grau de previsibilidade à análise e prevenção de
conflitos. A profunda e veloz mudança de cenário a partir dos anos
43
Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
No entanto, por trás da radicalização no discurso eleitoral, análises de perfil político antagônico demarcaram convergências de
fundo. Sob o sugestivo título “A centro-direita sul-americana se
reinventa para chegar ao poder”, Adriana M. Riva, do jornal conservador argentino La Nación, aponta a perspectiva de recuperação
dessas forças políticas frente à recente hegemonia da esquerda, atualizando seu discurso e apresentando-se com uma cara mais social
do que no passado, criticando a corrupção e os déficits de investimento em infraestrutura, educação e saúde, embora reconhecendo
que houve avanços na diminuição da pobreza. Seria o caso das candidaturas de Aécio Neves e Marina Silva no Brasil, Luis Lacalle Pou
no Uruguai e Samuel Doria Medina na Bolívia (http://unesp.br/
semdiplomacia/artigos/2014/670). Com o título também sugestivo “Brasil: vitória pírrica e despois”, no site Aporrea, vinculado ao
bolivarianismo venezuelano, Atilio Borón faz profundas críticas ao
PT, em que fora as políticas sociais de conteúdo assistencial dos
seus governos, vê pouca diferenciação com relação aos do PSDB.
Nesse caso, Lula e Dilma não representariam uma saída pós-neoliberal, como afirmam muitos dos seus defensores. A estreita margem da vitória seria expressão em parte dessa forte similitude entre
as duas propostas que se enfrentaram no segundo turno das eleições. Como recomendação, aponta para a necessidade de retorno
às fontes originais do petismo em termos de aproximação da burocracia governamental com os movimentos sociais e a instalação de
um programa efetivamente popular (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/717).
Em poucos meses, o otimismo no campo do PT pela conquista
de um quarto mandato transforma-se em desconcerto pela ofensiva de partidos políticos de oposição e movimentos sociais que
colocam na agenda o impeachment da presidenta, cuja popularidade cai a índices equivalentes aos piores momentos do período
Collor de Melo. Motorizada por denúncias de corrupção, especialmente na empresa estatal Petrobrás, e com crescente visibilidade
nas mídias, a crise se alimenta também de uma conjuntura econômica de ajuste que combina inflação alta com retração do PIB.
Configura-se um cenário de vertiginosa mudança de expectativas
em país percebido internacionalmente, inclusive entre críticos de
diverso signo ideológico, como liderança estabilizadora regional,
exemplo de convívio entre economia de mercado e reformas sociais
sob um governo encabeçado por partido oriundo da esquerda,
num ambiente político afastado da conflitividade na Venezuela.
A polarização das eleições de 2014 entre dois adversários contumazes parecia ter subsumido o ímpeto das Jornadas de junho em
uma pauta de reivindicações a ser tramitada dentro das prioridades e correlação de forças das instituições da ordem. Na crítica desde a esquerda, como vimos, são expostos os alcances e os limites
da agenda transformadora que anima os setores predominantes
no PT, que tendem a operar dentro da opção institucionalista de
um ordenamento que, após três administrações consecutivas e iniciando a quarta, está cristalizado. No entanto, a evolução dos fatos
mostra que o ativismo das ruas extrapola os significados valorizados por essas análises, evidenciando lideranças num amplo espectro que inclui a ação direta Black Bloc contra símbolos do capitalismo, partidários do liberalismo econômico como Vem pra Rua e
Movimento Brasil Livre, com participação de setores próximos ao
libertarianismo estadunidense, até o Revoltados Online, abertamente a favor da intervenção militar (http://unesp.br/semdiplomacia/
artigos/2015/932).
Como em tantas ocasiões na historia brasileira recente, a crise alimenta insatisfações que perpassam o conjunto da sociedade,
no entanto, a constituição de movimentos sociais com perspectivas
qualitativamente divergentes sobre democracia política, econômica
e social parece demarcar um antes e um depois. Instalam-se agendas expressivas de uma modernização em tempos de equilíbrios
precários.
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“Velhos” e “novos” poderes
Apesar da alta periculosidade, a natureza dos principais contendores da Guerra Fria em termos da racionalidade entre meios e fins
outorgava razoável grau de previsibilidade à análise e prevenção de
conflitos. A profunda e veloz mudança de cenário a partir dos anos
43
Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
1990 tende a dificultar o caminho dos esforços interpretativos. Sob
o olhar pautado por desafios e ameaças do passado, eventos subestimados inicialmente como pontos fora da curva, exemplo das
mobilizações no Brasil, terminam dando voz a demandas, atores e
projetos que desafiam saberes e poderes convencionais.
No dia 1 de janeiro de 1994, coincidindo com a entrada em
vigor do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta),
assinado por EUA, Canadá e México, torna-se público um manifesto do até então desconhecido Exército Zapatista de Libertação
Nacional (EZLN), que desde o Estado de Chiapas declara a guerra
ao governo mexicano e suas políticas neoliberais.
A visibilidade mundial inusitada do EZLN, exemplo de dinâmicas emergentes que afetam agendas políticas e de segurança,
adquiriu crescente relevância como objeto de análise no âmbito de
Think Tanks e universidades.
Entre os primeiros, cabe destacar a Rand Corporation – organização privada que assessora as Forças Armadas dos EUA– que
publica, em 1998, estudo coordenado por David Ronfeldt (1998)
sobre a emergência das Guerras em Rede (Netwars), fenômeno
considerado característico da era da informação, em que os autores
incluem o terrorismo, o crime organizado e os movimentos sociais.
O levantamento Zapatista é associado à terceira modalidade. A
grande projeção de um movimento de raízes indígenas, localizado em uma região marginal do país, é atribuída à ação global de
ONG’s. Para Ronfeldt, as netwars colocam em operação redes descentralizadas que muitas vezes bloqueiam a capacidade de resposta
das instituições governamentais responsáveis pela manutenção da
ordem, baseadas em uma estrutura hierárquica.
Na mesma época, no âmbito das universidades e centros de
pesquisa, adquire notoriedade a abordagem de Manuel Castells
(1999) sobre a Sociedade em Rede, tornando-se uma das principais
referências das análises da “Economia informacional”, denominação do autor para caracterizar o modo de desenvolvimento da atual
fase do capitalismo, estruturada em torno de redes que integram
o mundo em tempo real em um inédito grau de abrangência e
velocidade possibilitado pelas tecnologias de informação e comu-
nicação. No caso dos Zapatistas, aos quais se refere como primeira
Guerrilha Informacional, Castells destaca a estratégia de comunicação como principal alavanca da sua projeção global.
A partir do final do século XX, diversos eventos irão aprofundar a tendência anunciada pelas “guerras em rede”, com a
emergência e o empoderamento de novos atores. Dois exemplos
emblemáticos: 1) a “batalha de Seattle”, em novembro de 1999,
quando acontecia a reunião da OMC para o lançamento da
Rodada de Negociações do Milênio para a liberalização comercial, inviabilizada por um forte movimento de protesto impulsionado por ONG’s, sindicatos e movimentos sociais de vários países; 2) os atentados de 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque e
Washington, executados pela rede Al-Qaeda, que provocam mais
de 3000 mortes e colocam a “guerra ao terror” no centro da agenda internacional da maior superpotência.
Em 2011, a utilização de redes sociais torna-se decisivo instrumento de comunicação na articulação de revoltas como a
Primavera Árabe, que em poucas semanas derruba os regimes de
Ben Ali na Tunísia e de Hosni Mubarak no Egito, respectivamente no poder desde 1987 e 1981. Nos EUA e na Europa, adquirem
notoriedade movimentos como Occupy Wall Street e Indignados,
em resposta à crise financeira mundial.
Em paralelo às dinâmicas sociais e políticas acima apontadas, as décadas recentes mostram que na esfera dos negócios as tendências caracterizam velozes circulações de elites.
Empreendimentos típicos da era informacional como Google e
Facebook, oriundos de outsiders ao mundo empresarial, ascendem
rapidamente a postos destacados do poder econômico, desafiando
fortalezas estabelecidas como Microsoft a ampliar ofertas de produtos, especialmente no mercado das comunicações sociais em
rede, sob o risco de decair (ou perecer).
Na avaliação de Moisés Naim (2013), estaríamos assistindo a
um processo contínuo, cada vez mais profundo e de alcance mundial marcado pelo declínio do poder. Não se trata, para ele, de um
novo ordenamento global em que os atores que o sustentam ou
questionam renunciaram à busca sistemática do poder e tenham
44
45
Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
1990 tende a dificultar o caminho dos esforços interpretativos. Sob
o olhar pautado por desafios e ameaças do passado, eventos subestimados inicialmente como pontos fora da curva, exemplo das
mobilizações no Brasil, terminam dando voz a demandas, atores e
projetos que desafiam saberes e poderes convencionais.
No dia 1 de janeiro de 1994, coincidindo com a entrada em
vigor do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta),
assinado por EUA, Canadá e México, torna-se público um manifesto do até então desconhecido Exército Zapatista de Libertação
Nacional (EZLN), que desde o Estado de Chiapas declara a guerra
ao governo mexicano e suas políticas neoliberais.
A visibilidade mundial inusitada do EZLN, exemplo de dinâmicas emergentes que afetam agendas políticas e de segurança,
adquiriu crescente relevância como objeto de análise no âmbito de
Think Tanks e universidades.
Entre os primeiros, cabe destacar a Rand Corporation – organização privada que assessora as Forças Armadas dos EUA– que
publica, em 1998, estudo coordenado por David Ronfeldt (1998)
sobre a emergência das Guerras em Rede (Netwars), fenômeno
considerado característico da era da informação, em que os autores
incluem o terrorismo, o crime organizado e os movimentos sociais.
O levantamento Zapatista é associado à terceira modalidade. A
grande projeção de um movimento de raízes indígenas, localizado em uma região marginal do país, é atribuída à ação global de
ONG’s. Para Ronfeldt, as netwars colocam em operação redes descentralizadas que muitas vezes bloqueiam a capacidade de resposta
das instituições governamentais responsáveis pela manutenção da
ordem, baseadas em uma estrutura hierárquica.
Na mesma época, no âmbito das universidades e centros de
pesquisa, adquire notoriedade a abordagem de Manuel Castells
(1999) sobre a Sociedade em Rede, tornando-se uma das principais
referências das análises da “Economia informacional”, denominação do autor para caracterizar o modo de desenvolvimento da atual
fase do capitalismo, estruturada em torno de redes que integram
o mundo em tempo real em um inédito grau de abrangência e
velocidade possibilitado pelas tecnologias de informação e comu-
nicação. No caso dos Zapatistas, aos quais se refere como primeira
Guerrilha Informacional, Castells destaca a estratégia de comunicação como principal alavanca da sua projeção global.
A partir do final do século XX, diversos eventos irão aprofundar a tendência anunciada pelas “guerras em rede”, com a
emergência e o empoderamento de novos atores. Dois exemplos
emblemáticos: 1) a “batalha de Seattle”, em novembro de 1999,
quando acontecia a reunião da OMC para o lançamento da
Rodada de Negociações do Milênio para a liberalização comercial, inviabilizada por um forte movimento de protesto impulsionado por ONG’s, sindicatos e movimentos sociais de vários países; 2) os atentados de 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque e
Washington, executados pela rede Al-Qaeda, que provocam mais
de 3000 mortes e colocam a “guerra ao terror” no centro da agenda internacional da maior superpotência.
Em 2011, a utilização de redes sociais torna-se decisivo instrumento de comunicação na articulação de revoltas como a
Primavera Árabe, que em poucas semanas derruba os regimes de
Ben Ali na Tunísia e de Hosni Mubarak no Egito, respectivamente no poder desde 1987 e 1981. Nos EUA e na Europa, adquirem
notoriedade movimentos como Occupy Wall Street e Indignados,
em resposta à crise financeira mundial.
Em paralelo às dinâmicas sociais e políticas acima apontadas, as décadas recentes mostram que na esfera dos negócios as tendências caracterizam velozes circulações de elites.
Empreendimentos típicos da era informacional como Google e
Facebook, oriundos de outsiders ao mundo empresarial, ascendem
rapidamente a postos destacados do poder econômico, desafiando
fortalezas estabelecidas como Microsoft a ampliar ofertas de produtos, especialmente no mercado das comunicações sociais em
rede, sob o risco de decair (ou perecer).
Na avaliação de Moisés Naim (2013), estaríamos assistindo a
um processo contínuo, cada vez mais profundo e de alcance mundial marcado pelo declínio do poder. Não se trata, para ele, de um
novo ordenamento global em que os atores que o sustentam ou
questionam renunciaram à busca sistemática do poder e tenham
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Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
abandonado ambições e rivalidades. Não há mudança nesse âmbito, o que seria novo é a diminuição de barreiras ao acesso, acompanhada do aumento de pessoas, grupos e organizações que se apresentam com possibilidades favoráveis de disputa.
Ao mesmo tempo em que se tornou mais fácil obter poder,
cresce a dificuldade para mantê-lo e a probabilidade de perdê-lo.
Nesse sentido, Naim chama a atenção para a capacidade de micros
poderes para desafiar grandes jogadores, seja no âmbito das empresas, dos Estados, dos movimentos sociais ou dos conflitos armados.
Conforme já apontamos no caso do terrorismo, se bem não
representa uma ameaça existencial aos EUA como foi em seu
momento a União Soviética, expressão de uma disputa antagônica
entre dois sistemas, consegue influenciar a redefinição de prioridades na agenda internacional do país, com consequências na percepção sobre os alcances e limites do seu poder. Três dimensões se destacam: 1) a opção do governo Bush pela invasão do Iraque – cujos
resultados implicaram entre os desdobramentos a perda de prestígio da política externa dentro e fora do país – complica a autonomia decisória do governo Obama para determinar quando e como
interferir em novos conflitos, como vimos no caso do uso de armas
químicas pelo governo de Bashar al Assad ou da escalada do EI; 2)
em um contexto de crise econômica, a forte elevação dos gastos
decorrentes da resposta aos atentados de 11/09/2001 em termos de
segurança interna, atividades de inteligência no exterior e ocupações do Afeganistão e do Iraque, tornou-se um ônus orçamentário
e político de penosa sustentabilidade; 3) explicita-se a percepção de
impotência para definir uma vitória conclusiva em uma guerra assimétrica frente a um inimigo que foi estrategicamente subestimado.
Os limites enfrentados pela maior superpotência do presente
não estavam colocados no momento do levantamento Zapatista
de 1994, quando, para beneplácito ou contrariedade de muitos,
se anunciava a chegada da Ordem Unipolar. A história não terminou e sempre “outro mundo é possível”, embora não necessariamente um paraíso.
Para Immanuel Wallerstein, estaríamos frente a uma onda de
continuidade das revoltas de 1968, em uma “transição estrutu-
ral que vai de uma economia-mundo capitalista que se desvanece
a um novo tipo de sistema. Mas esse novo tipo de sistema poderia resultar melhor ou pior” (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2013/69). Para James Petras, se bem se esboça um real declínio
dos EUA, o problema para a esquerda é que este não vem acompanhado pelo surgimento de alternativas ao seu império. Em paralelo a uma evolução negativa da economia do país, diminuição
da influência no Oriente Médio e na América Latina, emergência
de novas potências e peso crescente da Ásia, os novos movimentos anti-imperialistas centram-se em agendas étnicas, religiosas e
misóginas, diferentemente do socialismo e progressismo secular
que prevalecia no passado (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2013/261).
46
Uma nova era de extremos?
De Chiapas ao EI, colocamos em evidência e em uma mesma estrutura analítica diversos fenômenos contemporâneos que influenciam realidades e percepções sobre a “Ordem” e a
“Desordem” em escalas nacionais, internacional e global, chamando a atenção para dimensões de instabilidade, dispersão e diluição
do poder, em situações cujo caráter incomum ou imprevisto abre
portas a novos protagonistas ou antigos outsiders.
Nesse conjunto de eventos e atores, o principal foco de atenção situa-se no Oriente Médio, seja pelos conflitos recorrentes
entre palestinos e israelenses, as intervenções dos EUA e aliados, a
Primavera Árabe e seus desdobramentos em tensões mais profundas e duradouras como a guerra civil na Síria, e a emergência de
movimentos jihadistas como o EI.
Um elemento que se destaca na utopia universalista do
Califado, é a capacidade de atrair contingentes militantes internacionais, comparativamente maior do que em outras experiências
históricas como a Legião Estrangeira francesa ou causas muçulmanas no Afeganistão e na ex-Iugoslávia. O número de combatentes
poderia estar perto dos 17.000, oriundos de mais de 90 países e
incluindo, de acordo com o International Center for the Study of
47
Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
abandonado ambições e rivalidades. Não há mudança nesse âmbito, o que seria novo é a diminuição de barreiras ao acesso, acompanhada do aumento de pessoas, grupos e organizações que se apresentam com possibilidades favoráveis de disputa.
Ao mesmo tempo em que se tornou mais fácil obter poder,
cresce a dificuldade para mantê-lo e a probabilidade de perdê-lo.
Nesse sentido, Naim chama a atenção para a capacidade de micros
poderes para desafiar grandes jogadores, seja no âmbito das empresas, dos Estados, dos movimentos sociais ou dos conflitos armados.
Conforme já apontamos no caso do terrorismo, se bem não
representa uma ameaça existencial aos EUA como foi em seu
momento a União Soviética, expressão de uma disputa antagônica
entre dois sistemas, consegue influenciar a redefinição de prioridades na agenda internacional do país, com consequências na percepção sobre os alcances e limites do seu poder. Três dimensões se destacam: 1) a opção do governo Bush pela invasão do Iraque – cujos
resultados implicaram entre os desdobramentos a perda de prestígio da política externa dentro e fora do país – complica a autonomia decisória do governo Obama para determinar quando e como
interferir em novos conflitos, como vimos no caso do uso de armas
químicas pelo governo de Bashar al Assad ou da escalada do EI; 2)
em um contexto de crise econômica, a forte elevação dos gastos
decorrentes da resposta aos atentados de 11/09/2001 em termos de
segurança interna, atividades de inteligência no exterior e ocupações do Afeganistão e do Iraque, tornou-se um ônus orçamentário
e político de penosa sustentabilidade; 3) explicita-se a percepção de
impotência para definir uma vitória conclusiva em uma guerra assimétrica frente a um inimigo que foi estrategicamente subestimado.
Os limites enfrentados pela maior superpotência do presente
não estavam colocados no momento do levantamento Zapatista
de 1994, quando, para beneplácito ou contrariedade de muitos,
se anunciava a chegada da Ordem Unipolar. A história não terminou e sempre “outro mundo é possível”, embora não necessariamente um paraíso.
Para Immanuel Wallerstein, estaríamos frente a uma onda de
continuidade das revoltas de 1968, em uma “transição estrutu-
ral que vai de uma economia-mundo capitalista que se desvanece
a um novo tipo de sistema. Mas esse novo tipo de sistema poderia resultar melhor ou pior” (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2013/69). Para James Petras, se bem se esboça um real declínio
dos EUA, o problema para a esquerda é que este não vem acompanhado pelo surgimento de alternativas ao seu império. Em paralelo a uma evolução negativa da economia do país, diminuição
da influência no Oriente Médio e na América Latina, emergência
de novas potências e peso crescente da Ásia, os novos movimentos anti-imperialistas centram-se em agendas étnicas, religiosas e
misóginas, diferentemente do socialismo e progressismo secular
que prevalecia no passado (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2013/261).
46
Uma nova era de extremos?
De Chiapas ao EI, colocamos em evidência e em uma mesma estrutura analítica diversos fenômenos contemporâneos que influenciam realidades e percepções sobre a “Ordem” e a
“Desordem” em escalas nacionais, internacional e global, chamando a atenção para dimensões de instabilidade, dispersão e diluição
do poder, em situações cujo caráter incomum ou imprevisto abre
portas a novos protagonistas ou antigos outsiders.
Nesse conjunto de eventos e atores, o principal foco de atenção situa-se no Oriente Médio, seja pelos conflitos recorrentes
entre palestinos e israelenses, as intervenções dos EUA e aliados, a
Primavera Árabe e seus desdobramentos em tensões mais profundas e duradouras como a guerra civil na Síria, e a emergência de
movimentos jihadistas como o EI.
Um elemento que se destaca na utopia universalista do
Califado, é a capacidade de atrair contingentes militantes internacionais, comparativamente maior do que em outras experiências
históricas como a Legião Estrangeira francesa ou causas muçulmanas no Afeganistão e na ex-Iugoslávia. O número de combatentes
poderia estar perto dos 17.000, oriundos de mais de 90 países e
incluindo, de acordo com o International Center for the Study of
47
Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
Radicalization, vinculado ao King’s College de Londres, em torno
de 3.300 vindos da Europa Ocidental e 100 dos Estados Unidos.
(http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2015/968)
Revela-se nesse fenômeno a disseminação de um tipo de mal-estar com o estado do mundo que vai muito além das normalmente valorizadas agendas econômico-sociais, evidenciando
uma propensão latente ao jihadismo de complexa verificação em
termos de extensão e possibilidade de mutação para militância
organizada, sendo que a vigilância, o controle e a repressão vêm
obtendo resultados conjunturais.
Na polarização política entre esquerdas e direitas, a despeito das divergências já abordadas sobre raízes e culpabilidades
que estariam na origem da radicalização regional, há uma rejeição convergente aos meios e fins da estratégia jihadista do califado. Em artigo no The New Yorker, Jon Lee Anderson define o
EI como “Os novos bárbaros”. Fazendo um reconhecimento da
trajetória do colega jornalista James Foley, vê na sua decapitação
uma mensagem enfermiça, porém performática e coreografada, aos EUA e Ocidente, buscando tornar público o alcance dos
seus objetivos, capacidades e ausência de limites (http://unesp.br/
semdiplomacia/artigos/2014/610).
Richard Haas, que foi funcionário do Departamento de
Estado na administração de George W. Bush e atualmente preside o Council on Foreign Relations, faz um paralelo entre o conflito entre xiitas e sunitas com o cenário europeu durante a Guerra
dos Trinta Anos da primeira metade do século XVII, pautada no
enfrentamento entre católicos e protestantes. Focado nos interesses
dos EUA, assume que a gravidade do problema não abre espaço
para soluções baseadas em objetivos de outros contextos, como o
estabelecimento da democracia na região anunciada na invasão ao
Iraque, mas pela aceitação de possibilidades precárias de pacificação e dos regimes realmente existentes desde que sejam capazes de
manter um grau mínimo de ordem (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/566).
Assumindo similar estado de resignação frente à inevitabilidade e ao impacto do que denomina “Guerras do fim do mundo”,
Mario Vargas Llosa amplia o cenário, considerando desatualizada
a previsão de Francis Fukuyama em 1989 sobre o término da história e uma democracia liberal já livre de ameaças. Tomando como
exemplos o Oriente Médio e a Rússia, vê no caso do primeiro o
grande desafio que substituirá o comunismo, o jihadismo, e no
segundo o retorno de uma visão imperial que reascende a Guerra
Fria. Na América Latina, ao contrário, visualiza uma situação quase
“paradisíaca” se comparada aos demais: “Não há guerras, a maior
parte dos países tem eleições mais ou menos livres e na maioria
deles se pratica a convivência na diversidade”. Coerentemente com
suas conhecidas posições, as exceções seriam Cuba e Venezuela
(http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/638).
Em entrevista ao jornal chileno El Mercurio, Fukuyama revisa
o cenário internacional reafirmando sua tese de tendência universal
convergente na direção do chamado “capitalismo democrático liberal”. Além de debochar do EI, que reduz a “um punhado de jovens
sem namoradas e sem trabalho”, considera que o fôlego do governo
russo, que cataloga de autoritário e economicamente dependente
de petróleo, é limitado. No caso da China, apesar do sucesso de
desenvolvimento, vê a não sustentabilidade do seu sistema político. Como Vargas Llosa, elogia a América Latina, com exceção dos
países da Alba, pela diminuição da desigualdade e pela afirmação
de regimes políticos democráticos (http://unesp.br/semdiplomacia/
artigos/2015/893).
Deixando de lado o viés ideológico, os diagnósticos de Vargas
Llosa e Fukuyama apontam para especificidades regionais que
merecem ser consideradas. Se bem o acompanhamento que realizamos a partir da Venezuela e do Brasil indique um grau crescente
de polarização, no centro das disputas há projetos socioeconômicos
que se apresentam ao escrutínio do eleitorado como melhor alternativa aos desafios do progresso. A denominação poderá variar de
acordo com a perspectiva política, mas trata-se de suspeitos habituais: modernização e luta de classes.
Em qualquer disputa, rotulações tendem a simplificar e
estigmatizar as diferenças. “Esquerda-Direita” e “ConservadorProgressista” sintonizam mutáveis certezas e razões da vida mate-
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Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
Radicalization, vinculado ao King’s College de Londres, em torno
de 3.300 vindos da Europa Ocidental e 100 dos Estados Unidos.
(http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2015/968)
Revela-se nesse fenômeno a disseminação de um tipo de mal-estar com o estado do mundo que vai muito além das normalmente valorizadas agendas econômico-sociais, evidenciando
uma propensão latente ao jihadismo de complexa verificação em
termos de extensão e possibilidade de mutação para militância
organizada, sendo que a vigilância, o controle e a repressão vêm
obtendo resultados conjunturais.
Na polarização política entre esquerdas e direitas, a despeito das divergências já abordadas sobre raízes e culpabilidades
que estariam na origem da radicalização regional, há uma rejeição convergente aos meios e fins da estratégia jihadista do califado. Em artigo no The New Yorker, Jon Lee Anderson define o
EI como “Os novos bárbaros”. Fazendo um reconhecimento da
trajetória do colega jornalista James Foley, vê na sua decapitação
uma mensagem enfermiça, porém performática e coreografada, aos EUA e Ocidente, buscando tornar público o alcance dos
seus objetivos, capacidades e ausência de limites (http://unesp.br/
semdiplomacia/artigos/2014/610).
Richard Haas, que foi funcionário do Departamento de
Estado na administração de George W. Bush e atualmente preside o Council on Foreign Relations, faz um paralelo entre o conflito entre xiitas e sunitas com o cenário europeu durante a Guerra
dos Trinta Anos da primeira metade do século XVII, pautada no
enfrentamento entre católicos e protestantes. Focado nos interesses
dos EUA, assume que a gravidade do problema não abre espaço
para soluções baseadas em objetivos de outros contextos, como o
estabelecimento da democracia na região anunciada na invasão ao
Iraque, mas pela aceitação de possibilidades precárias de pacificação e dos regimes realmente existentes desde que sejam capazes de
manter um grau mínimo de ordem (http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/566).
Assumindo similar estado de resignação frente à inevitabilidade e ao impacto do que denomina “Guerras do fim do mundo”,
Mario Vargas Llosa amplia o cenário, considerando desatualizada
a previsão de Francis Fukuyama em 1989 sobre o término da história e uma democracia liberal já livre de ameaças. Tomando como
exemplos o Oriente Médio e a Rússia, vê no caso do primeiro o
grande desafio que substituirá o comunismo, o jihadismo, e no
segundo o retorno de uma visão imperial que reascende a Guerra
Fria. Na América Latina, ao contrário, visualiza uma situação quase
“paradisíaca” se comparada aos demais: “Não há guerras, a maior
parte dos países tem eleições mais ou menos livres e na maioria
deles se pratica a convivência na diversidade”. Coerentemente com
suas conhecidas posições, as exceções seriam Cuba e Venezuela
(http://unesp.br/semdiplomacia/artigos/2014/638).
Em entrevista ao jornal chileno El Mercurio, Fukuyama revisa
o cenário internacional reafirmando sua tese de tendência universal
convergente na direção do chamado “capitalismo democrático liberal”. Além de debochar do EI, que reduz a “um punhado de jovens
sem namoradas e sem trabalho”, considera que o fôlego do governo
russo, que cataloga de autoritário e economicamente dependente
de petróleo, é limitado. No caso da China, apesar do sucesso de
desenvolvimento, vê a não sustentabilidade do seu sistema político. Como Vargas Llosa, elogia a América Latina, com exceção dos
países da Alba, pela diminuição da desigualdade e pela afirmação
de regimes políticos democráticos (http://unesp.br/semdiplomacia/
artigos/2015/893).
Deixando de lado o viés ideológico, os diagnósticos de Vargas
Llosa e Fukuyama apontam para especificidades regionais que
merecem ser consideradas. Se bem o acompanhamento que realizamos a partir da Venezuela e do Brasil indique um grau crescente
de polarização, no centro das disputas há projetos socioeconômicos
que se apresentam ao escrutínio do eleitorado como melhor alternativa aos desafios do progresso. A denominação poderá variar de
acordo com a perspectiva política, mas trata-se de suspeitos habituais: modernização e luta de classes.
Em qualquer disputa, rotulações tendem a simplificar e
estigmatizar as diferenças. “Esquerda-Direita” e “ConservadorProgressista” sintonizam mutáveis certezas e razões da vida mate-
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Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
rial. “Santos-Demônios” e “Sagrado-Profano” sintonizam apelos
insondáveis e inquestionáveis da fé. “Quantas igrejas tem o céu?”,
inquiria Pablo Neruda no Livro das Perguntas.
De tempos em tempos, as grandes potências do autodenominado “ocidente”, que desde o século XVI, com inclusões e exclusões
de acordo com a emergência e declínio de alguns, tentam desenhar
e redesenhar o mundo e nos convocam a comprarmos suas guerras
em nome de eventual e oportuna dicotomia “civilização ou barbárie”. O alvo da hora é o também civilizacional Oriente Médio,
onde os extremos de todos os lados, internos ou externos à região,
combatem sem restrição de meios e alvos no emprego da violência. A América Latina se manter à margem de qualquer “choque
de civilizações” já é uma grande delimitação estratégica. Nem fiéis,
infiéis ou cruzados. Apenas seculares.
CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra,
1999.
Referências bibliográficas
AYERBE, Luis Fernando. O “Ocidente e o Resto”. América Latina e
Caribe na cultura do império. Buenos Aires: Clacso, 2003.
__________. “Da excepcionalidade unipolar às responsabilidades
compartilhadas. Barack Obama e a liderança internacional dos EUA”.
In: Revista Política Externa, São Paulo, v. 19, n.2, setembro-outubro,
2010.
__________. Os Estados Unidos e a América Latina na administração
Obama: mútua perda de relevância e projeção de autonomia do Brasil
e a América do Sul. In: XAVIER, Lídia Oliveira et. al. (Org.). Direitos
Humanos, Cidadania e Violência no Brasil. Curitiba: Editora CRV,
2013.
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
KISSINGER, Henry. World Order. New York: The Penguin Press,
2014.
KUPCHAN, Robert. “Enemies Into Friends. How the United States
Can Court Its Adversaries”. In: Foreign Affairs, New York, marçoabril, 2010.
MANN, James. The Obamians: The Struggle Inside the White House
to Redefine American Power. New York: Penguin Books, 2012.
NAIM, Moisés. The End of Power: From Boardrooms to Battlefields
and Churches to States, Why Being in Charge Isn’t What It Used to
Be. New York: Basic Books, 2013.
RONFELDT, David. et. al. The Zapatista Social Netwar in México.
Santa Monica: RAND, 1998.
SCAHILL, Jeremy. Dirty Wars: The World is a Battlefield. New York:
Nation Books, 2013.
ZUNIGA, Ricardo; JACOBSON, Roberta. Review of President
Obama’s Travel to Mexico and Costa Rica. Washington, DC, 15 de
maio de 2013 (http://fpc.state.gov/209463.htm)
__________. “O regionalismo latino-americano e a política
hemisférica dos Estados Unidos”. In: Revista Política Externa, São
Paulo, v. 22, n.4, abril-junho, 2014.
__________. “Estados Unidos-Cuba: fim da Guerra Fria?”. In: Revista
Política Externa, São Paulo, v. 23, n.3, jan/fev/mar, 2015.
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Luis Fernando Ayerbe
Um mundo de equilibrios precários
rial. “Santos-Demônios” e “Sagrado-Profano” sintonizam apelos
insondáveis e inquestionáveis da fé. “Quantas igrejas tem o céu?”,
inquiria Pablo Neruda no Livro das Perguntas.
De tempos em tempos, as grandes potências do autodenominado “ocidente”, que desde o século XVI, com inclusões e exclusões
de acordo com a emergência e declínio de alguns, tentam desenhar
e redesenhar o mundo e nos convocam a comprarmos suas guerras
em nome de eventual e oportuna dicotomia “civilização ou barbárie”. O alvo da hora é o também civilizacional Oriente Médio,
onde os extremos de todos os lados, internos ou externos à região,
combatem sem restrição de meios e alvos no emprego da violência. A América Latina se manter à margem de qualquer “choque
de civilizações” já é uma grande delimitação estratégica. Nem fiéis,
infiéis ou cruzados. Apenas seculares.
CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra,
1999.
Referências bibliográficas
AYERBE, Luis Fernando. O “Ocidente e o Resto”. América Latina e
Caribe na cultura do império. Buenos Aires: Clacso, 2003.
__________. “Da excepcionalidade unipolar às responsabilidades
compartilhadas. Barack Obama e a liderança internacional dos EUA”.
In: Revista Política Externa, São Paulo, v. 19, n.2, setembro-outubro,
2010.
__________. Os Estados Unidos e a América Latina na administração
Obama: mútua perda de relevância e projeção de autonomia do Brasil
e a América do Sul. In: XAVIER, Lídia Oliveira et. al. (Org.). Direitos
Humanos, Cidadania e Violência no Brasil. Curitiba: Editora CRV,
2013.
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
KISSINGER, Henry. World Order. New York: The Penguin Press,
2014.
KUPCHAN, Robert. “Enemies Into Friends. How the United States
Can Court Its Adversaries”. In: Foreign Affairs, New York, marçoabril, 2010.
MANN, James. The Obamians: The Struggle Inside the White House
to Redefine American Power. New York: Penguin Books, 2012.
NAIM, Moisés. The End of Power: From Boardrooms to Battlefields
and Churches to States, Why Being in Charge Isn’t What It Used to
Be. New York: Basic Books, 2013.
RONFELDT, David. et. al. The Zapatista Social Netwar in México.
Santa Monica: RAND, 1998.
SCAHILL, Jeremy. Dirty Wars: The World is a Battlefield. New York:
Nation Books, 2013.
ZUNIGA, Ricardo; JACOBSON, Roberta. Review of President
Obama’s Travel to Mexico and Costa Rica. Washington, DC, 15 de
maio de 2013 (http://fpc.state.gov/209463.htm)
__________. “O regionalismo latino-americano e a política
hemisférica dos Estados Unidos”. In: Revista Política Externa, São
Paulo, v. 22, n.4, abril-junho, 2014.
__________. “Estados Unidos-Cuba: fim da Guerra Fria?”. In: Revista
Política Externa, São Paulo, v. 23, n.3, jan/fev/mar, 2015.
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CONSERVADORISMO NOS EUA,
UM CONCEITO FORA DE LUGAR?
Ariel Finguerut*
Os EUA são conservadores na defesa de seus princípios mais
fundamentais, mas esses princípios são liberais e alguns
seriam até mesmo radicais1. Myrdal (p. 34, 1995)
Nossa proposta é discutirmos o conceito de conservadorismo
vigente a partir da segunda metade do século XX nos EUA procurando demonstrar sua peculiaridade e suas diferentes formas de
articulação para, com isso, apontar as dificuldades que essa corrente de pensamento vem enfrentando para se firmar historicamente. Entendemos que, a partir dessa discussão, construiremos
elementos para aprofundar o debate contemporâneo em torno
do neoconservadorismo, da Nova Direita, e das polarizações ideológicas do início do século XXI, conforme acompanhamos no
âmbito do projeto Sem Diplomacia.
A história das ideias e das tradições políticas nos Estados
Unidos é marcada por momentos de intensa mobilização e a tradição liberal certamente se sobrepõe aos momentos de reação e de
mobilização conservadora. Dessa forma, é compreensível o fato de
* Doutor em Ciência Política pela Unicamp, pesquisador do projeto Sem
Diplomacia e professor do Centro Universitário Senac, Campus Santo Amaro.
O presente capítulo retoma discussão iniciada em tese de doutorado defendida
em 03/2014 no programa de Ciência Política da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp).
No original: America is conservative in fundamental principles but the principles
are liberal and some, indeed, are radical.
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CONSERVADORISMO NOS EUA,
UM CONCEITO FORA DE LUGAR?
Ariel Finguerut*
Os EUA são conservadores na defesa de seus princípios mais
fundamentais, mas esses princípios são liberais e alguns
seriam até mesmo radicais1. Myrdal (p. 34, 1995)
Nossa proposta é discutirmos o conceito de conservadorismo
vigente a partir da segunda metade do século XX nos EUA procurando demonstrar sua peculiaridade e suas diferentes formas de
articulação para, com isso, apontar as dificuldades que essa corrente de pensamento vem enfrentando para se firmar historicamente. Entendemos que, a partir dessa discussão, construiremos
elementos para aprofundar o debate contemporâneo em torno
do neoconservadorismo, da Nova Direita, e das polarizações ideológicas do início do século XXI, conforme acompanhamos no
âmbito do projeto Sem Diplomacia.
A história das ideias e das tradições políticas nos Estados
Unidos é marcada por momentos de intensa mobilização e a tradição liberal certamente se sobrepõe aos momentos de reação e de
mobilização conservadora. Dessa forma, é compreensível o fato de
* Doutor em Ciência Política pela Unicamp, pesquisador do projeto Sem
Diplomacia e professor do Centro Universitário Senac, Campus Santo Amaro.
O presente capítulo retoma discussão iniciada em tese de doutorado defendida
em 03/2014 no programa de Ciência Política da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp).
No original: America is conservative in fundamental principles but the principles
are liberal and some, indeed, are radical.
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Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
um conceito como conservadorismo ser algo recente no âmbito
do pensamento, tanto político, como no da filosofia política dos
Estados Unidos. Contudo isso não quer dizer que ser conservador
é algo inoportuno de se buscar num estudo ideológico da historia
dos Estados Unidos. A independência dos EUA é por si um capítulo importante na história do liberalismo.
Como nos mostra Kuntz (1997), podemos pensar a discussão
do liberalismo dentro da filosofia política a partir da problemática entre igualdade e liberdade expressa na seguinte questão: seria a
igualdade inimiga da liberdade? A preocupação com essa questão
nos EUA tem uma longa tradição, que dialoga principalmente com
as ideias e com as interpretações em torno das reflexões de John
Locke (1632 – 1704). Locke, segundo Kuntz (1997), associou a
liberdade ao conceito de propriedade, sendo essa última um direito
natural dos homens e, ainda, inseparável da ideia de patrimônio,
de liberdade e da própria vida. O pensador entendia a liberdade
individual a partir da focalização em uma dada comunidade política na qual o outro é um semelhante. Assim, entre iguais existe a
possibilidade de haver uma jurisdição que seja recíproca, o que gera
igualdade dentro da comunidade política.
Conforme aponta Diggins (1986), a experiência histórica e
política estadunidense expressa o liberalismo de Locke, a partir
de quatro pressupostos que seriam direitos naturais do homem.
São eles: o direito à liberdade econômica, à liberdade política, à
obrigação do governo de proteger a propriedade e à busca da felicidade material.
Nos EUA, a influência dessa discussão é apresentada tendo em
vista dois pontos: a questão da existência de direitos invioláveis
que enfatiza, de um lado, a liberdade e, de outro lado, a igualdade presente no pressuposto de que “todos os homens foram criados
iguais2”. Esse pressuposto é reafirmado constantemente e é encontrado na Constituição americana e em outros documentos históricos.
Esse liberalismo lockeniano está enraizado na história dos EUA.
Influenciou e ainda influencia o debate, a história das ideias e das
ações e as mobilizações políticas. Perpassa temas, estratégias e conceitos, como, por exemplo, o de excepcionalidade americana, o de
puritanismo, o de modo de vida americano e o da própria ideia de
ser liberal/conservador ou de direita/esquerda nesse país.
Nesse sentido, poderíamos pensar que aqueles que se autoclassificam como conservadores priorizariam a liberdade em detrimento
da igualdade, o indivíduo em detrimento do coletivo e os direitos
naturais em detrimento dos direitos conquistados socialmente. Já
os atores que se identificam como de esquerda – ou como liberais,
no sentido atribuído a essa denominação nos EUA – enfatizariam
a formação da comunidade política e dos direitos conquistados.
A partir disso, priorizariam a igualdade em detrimento da liberdade como valor fundamental, com foco nas conquistas coletivas
para além das individuais. Tal raciocínio contrapõe dois autores:
Rousseau e Locke. O primeiro enfatiza a igualdade como meio de
atingir a liberdade, ideia que se apresenta contrária à de Locke.
Contudo, tal contraposição não é simples. Há autores conservadores que não deixam de ser liberais em uma visão de política
externa para os EUA. Autores como Harry V. Jaffa (1994), por
exemplo, partem da ideia de igualdade como o princípio moral
dos EUA, o que fundamentaria a expansão estadunidense no sistema internacional, promovendo mudanças de regime e expansão
de seus valores liberais. Jaffa entende que quando outros autores
conservadores não reconhecem ou não consideram o princípio da
igualdade como o fundamento da nação americana, estes estariam
lendo e interpretando os textos históricos de forma tendenciosa e
relativista. Por outro lado, há teóricos, dentro da tradição esquerdista americana, que debateram e defenderam a importância e
a tradição de valorizar a liberdade nos EUA. É o caso de Ralph
Waldo Emerson (1803 – 1883), Henry David Thoreau (1817 –
1862) e, mais recentemente, Abbie Hoffman (1936 – 1989).
No original: “All men are created equal”. Cf. Declaração de Independência,
disponível em: http://www.usconstitution.net/declar.html. Acessado em:
05/05/2012.
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Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
um conceito como conservadorismo ser algo recente no âmbito
do pensamento, tanto político, como no da filosofia política dos
Estados Unidos. Contudo isso não quer dizer que ser conservador
é algo inoportuno de se buscar num estudo ideológico da historia
dos Estados Unidos. A independência dos EUA é por si um capítulo importante na história do liberalismo.
Como nos mostra Kuntz (1997), podemos pensar a discussão
do liberalismo dentro da filosofia política a partir da problemática entre igualdade e liberdade expressa na seguinte questão: seria a
igualdade inimiga da liberdade? A preocupação com essa questão
nos EUA tem uma longa tradição, que dialoga principalmente com
as ideias e com as interpretações em torno das reflexões de John
Locke (1632 – 1704). Locke, segundo Kuntz (1997), associou a
liberdade ao conceito de propriedade, sendo essa última um direito
natural dos homens e, ainda, inseparável da ideia de patrimônio,
de liberdade e da própria vida. O pensador entendia a liberdade
individual a partir da focalização em uma dada comunidade política na qual o outro é um semelhante. Assim, entre iguais existe a
possibilidade de haver uma jurisdição que seja recíproca, o que gera
igualdade dentro da comunidade política.
Conforme aponta Diggins (1986), a experiência histórica e
política estadunidense expressa o liberalismo de Locke, a partir
de quatro pressupostos que seriam direitos naturais do homem.
São eles: o direito à liberdade econômica, à liberdade política, à
obrigação do governo de proteger a propriedade e à busca da felicidade material.
Nos EUA, a influência dessa discussão é apresentada tendo em
vista dois pontos: a questão da existência de direitos invioláveis
que enfatiza, de um lado, a liberdade e, de outro lado, a igualdade presente no pressuposto de que “todos os homens foram criados
iguais2”. Esse pressuposto é reafirmado constantemente e é encontrado na Constituição americana e em outros documentos históricos.
Esse liberalismo lockeniano está enraizado na história dos EUA.
Influenciou e ainda influencia o debate, a história das ideias e das
ações e as mobilizações políticas. Perpassa temas, estratégias e conceitos, como, por exemplo, o de excepcionalidade americana, o de
puritanismo, o de modo de vida americano e o da própria ideia de
ser liberal/conservador ou de direita/esquerda nesse país.
Nesse sentido, poderíamos pensar que aqueles que se autoclassificam como conservadores priorizariam a liberdade em detrimento
da igualdade, o indivíduo em detrimento do coletivo e os direitos
naturais em detrimento dos direitos conquistados socialmente. Já
os atores que se identificam como de esquerda – ou como liberais,
no sentido atribuído a essa denominação nos EUA – enfatizariam
a formação da comunidade política e dos direitos conquistados.
A partir disso, priorizariam a igualdade em detrimento da liberdade como valor fundamental, com foco nas conquistas coletivas
para além das individuais. Tal raciocínio contrapõe dois autores:
Rousseau e Locke. O primeiro enfatiza a igualdade como meio de
atingir a liberdade, ideia que se apresenta contrária à de Locke.
Contudo, tal contraposição não é simples. Há autores conservadores que não deixam de ser liberais em uma visão de política
externa para os EUA. Autores como Harry V. Jaffa (1994), por
exemplo, partem da ideia de igualdade como o princípio moral
dos EUA, o que fundamentaria a expansão estadunidense no sistema internacional, promovendo mudanças de regime e expansão
de seus valores liberais. Jaffa entende que quando outros autores
conservadores não reconhecem ou não consideram o princípio da
igualdade como o fundamento da nação americana, estes estariam
lendo e interpretando os textos históricos de forma tendenciosa e
relativista. Por outro lado, há teóricos, dentro da tradição esquerdista americana, que debateram e defenderam a importância e
a tradição de valorizar a liberdade nos EUA. É o caso de Ralph
Waldo Emerson (1803 – 1883), Henry David Thoreau (1817 –
1862) e, mais recentemente, Abbie Hoffman (1936 – 1989).
No original: “All men are created equal”. Cf. Declaração de Independência,
disponível em: http://www.usconstitution.net/declar.html. Acessado em:
05/05/2012.
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Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
Há também uma intensa disputa ideológica pela interpretação
do legado dos pais fundadores3. Historiadores e autores tentam
mostrar que os EUA nasceram preocupados e fundados em torno
do conceito de liberdade, propondo um governo mínimo que permitisse o desenvolvimento econômico sem perdas das liberdades
naturais4. Nessa perspectiva, Diggins (1986) estuda os pais fundadores e seu legado a partir do dilema virtude versus pecado. Esse
autor nos mostra que a ideia de república nos EUA não se propunha a ser uma experiência de homens virtuosos, mas o fundamento
de um governo que busca a virtude na sua dimensão pública. Em
síntese, uma vez que têm uma vida pública, os americanos poderiam, pois, ser menos egoístas, logo mais virtuosos. Ao governo
caberia o papel de assegurar liberdades negativas, garantindo novas
liberdades e novas possibilidades. Para Diggis, a experiência de tentar controlar, quando não substituir a autoridade, é a maior marca
do liberalismo, fruto da experiência americana dos pais fundadores. Nesse sentido, os pais fundadores, como argumenta Lippman
(2012), teriam proposto a Constituição não somente para proteger
a propriedade ou com foco em qualquer interesse de classe, mas
também para defender o país.
Já para outros autores, os pais fundadores mostraram como os
EUA nasceram preocupados com as diferenças e com as desigualdades, buscando, com isso, um governo genuinamente democrático.
Hofstadter (1976) nos mostra que os pais fundadores, muitos defendendo seus próprios interesses como especuladores de terra5, defen-
diam o direito à propriedade e tinham a preocupação de pensar os
EUA em termos constitucionais e dentro de uma ideia de nação. Por
esse motivo, tornaram-se referência para a história dos EUA.
Isto é, a geração que declarou a independência dos EUA e que propôs a
Federação e sua Constituição. Os nomes comumente associados à ideia de
pais fundadores são: Alexander Hamilton, Patrick Henry, Thomas Paine,
Samuel Adams, Benjamin Franklin, James Madison, Thomas Jefferson e John
Adams. Alguns autores mais à esquerda costumam dar a Abraham Lincoln o
mesmo status de pai fundador, mesmo que ele seja de outra geração.
3
4
O partido Libertário, considerado o terceiro maior partido dos EUA em muitas
campanhas, usa os pais fundadores como propaganda, argumentando que
nos dias de hoje seriam os libertários os mais próximos das ideias por eles
defendidas. Cf. http://www.lp.org/, acessado em: 04/05/2012.
5
Um dos casos mais emblemáticos é o de Thomas Jefferson, que, segundo
Hofstadter (1976), tinha cerca de dez mil acres de terras e dez mil escravos.
56
O pensamento conservador e o conservadorismo
O conceito de conservador e de conservadorismo é genuinamente europeu. Como nos mostra Nisbet (1987), eles surgem
como discurso político em 1830 e, praticamente, como sinônimos
um do outro para Edmund Burke, cuja principal obra é Reflexões
Sobre a Revolução em França, de 1790. O ponto central para
Burke era não só apresentar uma crítica à Revolução Francesa (RF),
como também fazer dessa crítica algo maior, produzindo o que
Nisbet chama de anti-iluminismo, que influenciou, entre outros,
pensadores como Hegel e Maistre, na Europa, e John Adams e
Hamilton, nos EUA.
O conservadorismo que surge inspirado em Burke, e em diálogo
com ele, não só critica a Revolução Francesa, bem como avança para
uma crítica também ao Iluminismo e ao racionalismo de filósofos
como Jean-Jacques Rousseau. Ao criticar a Revolução Francesa, passou a defender os atores que foram os principais alvos dela: a aristocracia e a Igreja. Atacou, igualmente, o modo de ação e a motivação
política do principal ator revolucionário, os jacobinos.
Apesar da crítica do conservadorismo europeu, a Revolução
Francesa marcou o início da era moderna com a Declaração
Universal dos Direitos dos Homens e com a perspectiva de olhar
para frente, deixando para trás uma era de trevas e de ignorância.
Essa relação entre RF e a modernidade foi também uma influência
decisiva na história e na ideia de nação nos EUA.
A partir dessa perspectiva, os conservadores europeus passam a
ter simpatia e a valorizar o passado, olhando para a Idade Média e
para o Feudalismo europeus como uma era de civilidade, de experiências sociais e comunitárias fincadas em tradições e aprendizados
que se perdem frente no Iluminismo. Isso, por sua vez, produziu
na perspectiva conservadora indivíduos utilitaristas, hedonistas e
57
Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
Há também uma intensa disputa ideológica pela interpretação
do legado dos pais fundadores3. Historiadores e autores tentam
mostrar que os EUA nasceram preocupados e fundados em torno
do conceito de liberdade, propondo um governo mínimo que permitisse o desenvolvimento econômico sem perdas das liberdades
naturais4. Nessa perspectiva, Diggins (1986) estuda os pais fundadores e seu legado a partir do dilema virtude versus pecado. Esse
autor nos mostra que a ideia de república nos EUA não se propunha a ser uma experiência de homens virtuosos, mas o fundamento
de um governo que busca a virtude na sua dimensão pública. Em
síntese, uma vez que têm uma vida pública, os americanos poderiam, pois, ser menos egoístas, logo mais virtuosos. Ao governo
caberia o papel de assegurar liberdades negativas, garantindo novas
liberdades e novas possibilidades. Para Diggis, a experiência de tentar controlar, quando não substituir a autoridade, é a maior marca
do liberalismo, fruto da experiência americana dos pais fundadores. Nesse sentido, os pais fundadores, como argumenta Lippman
(2012), teriam proposto a Constituição não somente para proteger
a propriedade ou com foco em qualquer interesse de classe, mas
também para defender o país.
Já para outros autores, os pais fundadores mostraram como os
EUA nasceram preocupados com as diferenças e com as desigualdades, buscando, com isso, um governo genuinamente democrático.
Hofstadter (1976) nos mostra que os pais fundadores, muitos defendendo seus próprios interesses como especuladores de terra5, defen-
diam o direito à propriedade e tinham a preocupação de pensar os
EUA em termos constitucionais e dentro de uma ideia de nação. Por
esse motivo, tornaram-se referência para a história dos EUA.
Isto é, a geração que declarou a independência dos EUA e que propôs a
Federação e sua Constituição. Os nomes comumente associados à ideia de
pais fundadores são: Alexander Hamilton, Patrick Henry, Thomas Paine,
Samuel Adams, Benjamin Franklin, James Madison, Thomas Jefferson e John
Adams. Alguns autores mais à esquerda costumam dar a Abraham Lincoln o
mesmo status de pai fundador, mesmo que ele seja de outra geração.
3
4
O partido Libertário, considerado o terceiro maior partido dos EUA em muitas
campanhas, usa os pais fundadores como propaganda, argumentando que
nos dias de hoje seriam os libertários os mais próximos das ideias por eles
defendidas. Cf. http://www.lp.org/, acessado em: 04/05/2012.
5
Um dos casos mais emblemáticos é o de Thomas Jefferson, que, segundo
Hofstadter (1976), tinha cerca de dez mil acres de terras e dez mil escravos.
56
O pensamento conservador e o conservadorismo
O conceito de conservador e de conservadorismo é genuinamente europeu. Como nos mostra Nisbet (1987), eles surgem
como discurso político em 1830 e, praticamente, como sinônimos
um do outro para Edmund Burke, cuja principal obra é Reflexões
Sobre a Revolução em França, de 1790. O ponto central para
Burke era não só apresentar uma crítica à Revolução Francesa (RF),
como também fazer dessa crítica algo maior, produzindo o que
Nisbet chama de anti-iluminismo, que influenciou, entre outros,
pensadores como Hegel e Maistre, na Europa, e John Adams e
Hamilton, nos EUA.
O conservadorismo que surge inspirado em Burke, e em diálogo
com ele, não só critica a Revolução Francesa, bem como avança para
uma crítica também ao Iluminismo e ao racionalismo de filósofos
como Jean-Jacques Rousseau. Ao criticar a Revolução Francesa, passou a defender os atores que foram os principais alvos dela: a aristocracia e a Igreja. Atacou, igualmente, o modo de ação e a motivação
política do principal ator revolucionário, os jacobinos.
Apesar da crítica do conservadorismo europeu, a Revolução
Francesa marcou o início da era moderna com a Declaração
Universal dos Direitos dos Homens e com a perspectiva de olhar
para frente, deixando para trás uma era de trevas e de ignorância.
Essa relação entre RF e a modernidade foi também uma influência
decisiva na história e na ideia de nação nos EUA.
A partir dessa perspectiva, os conservadores europeus passam a
ter simpatia e a valorizar o passado, olhando para a Idade Média e
para o Feudalismo europeus como uma era de civilidade, de experiências sociais e comunitárias fincadas em tradições e aprendizados
que se perdem frente no Iluminismo. Isso, por sua vez, produziu
na perspectiva conservadora indivíduos utilitaristas, hedonistas e
57
Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
violentos. Outro aspecto que preocupava o nascente pensamento conservador europeu diz respeito ao fato de que a Revolução
Francesa não se restringiu à França. Seus efeitos ultrapassaram as
fronteiras desse país justamente porque era uma ação que, realizada em nome da humanidade e seus revolucionários, a faziam em
nome da humanidade.
Nesse ponto, é interessante pensar nas diferenças entre a RF e a
Revolução Americana (RA) e notarmos certa simpatia por parte do
conservadorismo europeu à experiência americana. A RA, datada
de 1776, Burke (1982) entende como sendo a luta de um povo
buscando autonomia. Os primeiros colonos nos EUA faziam parte do Império Britânico e não queriam lutar pelo poder absoluto;
queriam, nessa leitura, liberdade, tanto religiosa, como econômica, social e cultural. No caso da Revolução Francesa, que começa
em 1789, os conservadores identificavam a luta por parte de uma
pequena fração da sociedade, os jacobinos, pelo poder absoluto,
não almejando a liberdade ou a autonomia de um povo, mas sim
querendo construir um novo homem. Segundo Burke, a lógica
da RF não justifica os meios conforme os fins, o que já seria uma
perversão, mas “eles não cometem crimes para obter seus fins. Eles
fabricam fins para cometerem crimes” (Burke, 1982, p. 85).
Partindo da experiência revolucionária na França, o pensamento conservador europeu chega ao século XX com quatro pontos
centrais de sustentação: (1) a importância da tradição, entendendo
que todos os direitos dos homens, assim como a própria vida, é
um legado, uma herança; (2) a importância da aristocracia, pressupondo que numa sociedade há uma ordem natural cuja atividade política funciona apenas com alternância de uma elite ou
de uma aristocracia, que não só garante a ordem como também
imprime um caráter moderado ao poder do soberano; (3) a persistência do espírito antirrevolução francesa, entendendo que a RF
foi uma experiência que, em nome da liberdade, produziu tirania
e opressão e que se trata de uma experiência política que não consegue conciliar liberdade com sujeição. Utilizando a metáfora de
um navio, Burke assevera que, sem essa conciliação, a nau tende a
afundar. Encontramos em Joseph de Maistre (apud Nisbet, 1988,
p. 76) uma boa síntese do que seria esse pensamento conservador
tributário de Edmund Burke e centrado na experiência da RF, a
saber: “Não queremos uma contrarrevolução, mas o oposto da
revolução”.
Quando discutimos ou falamos em pensamento conservador
nos EUA, questionamos o quanto há dessa tradição europeia? Ou
ainda, como e por que ela se diferencia e se transforma num conservadorismo com sentido totalmente diferente, com ideias e tradições totalmente estranhas ao legado de Edmund Burke, de Joseph
de Maistre? Essa é a proposta da discussão desta seção. Bem como
também é a de apresentar e discutir o pensamento conservador dos
EUA em suas articulações com seus diferentes atores e linhagens,
em seus momentos de articulação, mobilização e de articulação,
apresentando quem são seus defensores, articuladores, interlocutores e suas ideias, tal como a construção de sua argumentação e
forma de ação política.
Russel Kirk (1918 –1994) é o primeiro a levar ao debate nos
EUA, somente no século XX, as ideias e a visão conservadora, partindo de Edmund Burke e dentro de uma tradição que podemos
chamar de clássica do conservadorismo, isto é, respeitando e dialogando com a tradição europeia do pensamento conservador. A obra
principal de Kirk data de 1953 e chama-se The Conservative Mind.
Nela, ele argumenta que, mesmo sem raízes, as ideias conservadoras
tiveram e produziram bons frutos nos EUA. Dialogando com autores dos EUA como T.S. Eliot (1888 – 1965), John P. Marquand
(1893 – 1960), Walter Bagehot (1826 – 1877) e George Santayana
(1863 – 1952),6 Kirk mostra que o conservadorismo tem um ponto comum: a relação direta entre propriedade e liberdade e que ser
conservador nos EUA não se trata de defender um legado, uma
herança ou uma posição social, mas, sobretudo, de defender determinados valores, como, por exemplo, a propriedade, a livre iniciativa e os direitos constitucionais. O sentido de conservadoris-
58
6
Esse diálogo e essa busca por referências conservadoras na história dos EUA,
são aprofundados por Kirk em The Conservative Movement: From Burke to
Santayana, Ed. Regnery, Chicago, 1953.
59
Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
violentos. Outro aspecto que preocupava o nascente pensamento conservador europeu diz respeito ao fato de que a Revolução
Francesa não se restringiu à França. Seus efeitos ultrapassaram as
fronteiras desse país justamente porque era uma ação que, realizada em nome da humanidade e seus revolucionários, a faziam em
nome da humanidade.
Nesse ponto, é interessante pensar nas diferenças entre a RF e a
Revolução Americana (RA) e notarmos certa simpatia por parte do
conservadorismo europeu à experiência americana. A RA, datada
de 1776, Burke (1982) entende como sendo a luta de um povo
buscando autonomia. Os primeiros colonos nos EUA faziam parte do Império Britânico e não queriam lutar pelo poder absoluto;
queriam, nessa leitura, liberdade, tanto religiosa, como econômica, social e cultural. No caso da Revolução Francesa, que começa
em 1789, os conservadores identificavam a luta por parte de uma
pequena fração da sociedade, os jacobinos, pelo poder absoluto,
não almejando a liberdade ou a autonomia de um povo, mas sim
querendo construir um novo homem. Segundo Burke, a lógica
da RF não justifica os meios conforme os fins, o que já seria uma
perversão, mas “eles não cometem crimes para obter seus fins. Eles
fabricam fins para cometerem crimes” (Burke, 1982, p. 85).
Partindo da experiência revolucionária na França, o pensamento conservador europeu chega ao século XX com quatro pontos
centrais de sustentação: (1) a importância da tradição, entendendo
que todos os direitos dos homens, assim como a própria vida, é
um legado, uma herança; (2) a importância da aristocracia, pressupondo que numa sociedade há uma ordem natural cuja atividade política funciona apenas com alternância de uma elite ou
de uma aristocracia, que não só garante a ordem como também
imprime um caráter moderado ao poder do soberano; (3) a persistência do espírito antirrevolução francesa, entendendo que a RF
foi uma experiência que, em nome da liberdade, produziu tirania
e opressão e que se trata de uma experiência política que não consegue conciliar liberdade com sujeição. Utilizando a metáfora de
um navio, Burke assevera que, sem essa conciliação, a nau tende a
afundar. Encontramos em Joseph de Maistre (apud Nisbet, 1988,
p. 76) uma boa síntese do que seria esse pensamento conservador
tributário de Edmund Burke e centrado na experiência da RF, a
saber: “Não queremos uma contrarrevolução, mas o oposto da
revolução”.
Quando discutimos ou falamos em pensamento conservador
nos EUA, questionamos o quanto há dessa tradição europeia? Ou
ainda, como e por que ela se diferencia e se transforma num conservadorismo com sentido totalmente diferente, com ideias e tradições totalmente estranhas ao legado de Edmund Burke, de Joseph
de Maistre? Essa é a proposta da discussão desta seção. Bem como
também é a de apresentar e discutir o pensamento conservador dos
EUA em suas articulações com seus diferentes atores e linhagens,
em seus momentos de articulação, mobilização e de articulação,
apresentando quem são seus defensores, articuladores, interlocutores e suas ideias, tal como a construção de sua argumentação e
forma de ação política.
Russel Kirk (1918 –1994) é o primeiro a levar ao debate nos
EUA, somente no século XX, as ideias e a visão conservadora, partindo de Edmund Burke e dentro de uma tradição que podemos
chamar de clássica do conservadorismo, isto é, respeitando e dialogando com a tradição europeia do pensamento conservador. A obra
principal de Kirk data de 1953 e chama-se The Conservative Mind.
Nela, ele argumenta que, mesmo sem raízes, as ideias conservadoras
tiveram e produziram bons frutos nos EUA. Dialogando com autores dos EUA como T.S. Eliot (1888 – 1965), John P. Marquand
(1893 – 1960), Walter Bagehot (1826 – 1877) e George Santayana
(1863 – 1952),6 Kirk mostra que o conservadorismo tem um ponto comum: a relação direta entre propriedade e liberdade e que ser
conservador nos EUA não se trata de defender um legado, uma
herança ou uma posição social, mas, sobretudo, de defender determinados valores, como, por exemplo, a propriedade, a livre iniciativa e os direitos constitucionais. O sentido de conservadoris-
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Esse diálogo e essa busca por referências conservadoras na história dos EUA,
são aprofundados por Kirk em The Conservative Movement: From Burke to
Santayana, Ed. Regnery, Chicago, 1953.
59
Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
mo, aplicado por Kirk, parte da reação ao racionalismo burguês
e entende que o conservadorismo, cujas raízes estão em Burke,
permanece como pensamento, apesar da velha ordem não existir
mais. Em 1954, Kirk avançou sua discussão propondo uma agenda ou um programa conservador. Em A Program for Conservative,
define conceitos e estabelece metas sociais com base em conceitos
que considera conservadores e dialoga com suas visões críticas.
Por exemplo, defende a religião, que considera uma ordem transcendental, e critica a razão, que em sua reflexão transformou-se
num culto perigoso.
Russell Kirk, um dos primeiros a pensar o conservadorismo
nos EUA e a tentar dar sua especificidade no final dos anos de
1950, poderia ser classificado como um conservador tradicional,
passando o debate em torno do conservadorismo americano para
outros autores.
Ao longo dos séculos XIX e XX se desenvolveu nos EUA uma
tradição de pensamento que, autores como Suvanto (1997), classificam como “sulista conservadora”, e outros, como Genovese
(1996), de “agrário sulista” ou, ainda, como “velho sul”. Mesmo
sem buscar um respaldo na tradição conservadora europeia e
tampouco falando abertamente de um conservadorismo, não
podemos deixar de destacar que autores como M.E. Bradford
(1934-1993), Clyde Wilson (1941) e Donald Livingston7 partiram da experiência política, cultural e social do sul dos EUA,
marcado pelas grandes propriedades com mão de obra escrava,
para desenvolver um pensamento antimoderno, quando não antidemocrático, pautado no localismo8 e na crença na autodeterminação. Esses autores, como Clyde Wilson, não só defenderam a
segregação do sul dos EUA, como também foram críticos à vida
moderna capitalista. Essa crítica tem raízes profundas nos EUA,
remetendo a uma discussão em torno dos pais fundadores e dos
mitos que dialogam com a ideia de nação nesse país. Na tradição
sulista de olhar para a experiência americana, há certa oposição à
ideia de progresso e uma associação entre uma democracia radical
e a ideia de igualitarismo.
Há uma longa discussão constitucional nos EUA em torno
da equidade defendida pelo texto constitucional. Autores sulistas
como John C. Calhoun (1782-1850), Thomas R. Dew (18021846) e William Harper (1790 – 1847) são comumente citados
como referências de uma tradição sulista anti-igualitária que não só
discutia a escravidão, mas também a própria ideia de federação e de
governo democrático. Genovese (1996) explica o anti-igualitarismo
da tradição sulista a partir de uma visão supostamente aristotélica
do mundo, na qual as pessoas nascem com diferentes talentos, diferentes capacidades e em diferentes situações. Portanto, nos termos
de Bradford (apud Genovese, p. 45, 1996), o culto à igualdade não
pode existir senão como o verdadeiro “ópio do povo”.
Um dos teóricos do separatismo sulista contemporâneo. Cf. http://www.
abbevilleinstitute.org/index.php. Acessado em: 14/05/2012.
7
A ideia de localismo questiona a própria ideia de uma nação. Nessa tradição,
pouco se fala de nação e muito se fala de comunidade. Em última instância, a
ideia seria algo como, por exemplo, ao invés dos EUA ter um único presidente,
ter um colegiado indicado por todos os estados que formariam uma comunidade
de governo.
8
60
O New Deal e o primeiro marco moderno do conservadorismo americano
A década de 1920 terminou marcada pela crise de 1929, que
rapidamente se sobrepôs aos prósperos anos do início dessa década. Os EUA entraram nos anos de 1930, como se lê em Limoncic
(2009), com o PIB em queda e com 25% de taxa de desemprego. Em 1933, Frank Delano Roosevelt (FDR) venceu Herbert
Hoover, que tentava a reeleição. Em seus 100 primeiros dias de
governo, FDR implantou medidas de impacto, visando combater
o desemprego e a depressão econômica. Dentre as medidas, estavam o Emergency Banking Act, que injetava dinheiro público em
bancos privados falidos ou à beira da falência, o Federal Deposit
Insurance Corporation, que garantia os depósitos até US$ 5 mil, e
o Civil Works Administration, que financiaria e empregaria pessoas
em obras públicas (Limoncic, 2009).
61
Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
mo, aplicado por Kirk, parte da reação ao racionalismo burguês
e entende que o conservadorismo, cujas raízes estão em Burke,
permanece como pensamento, apesar da velha ordem não existir
mais. Em 1954, Kirk avançou sua discussão propondo uma agenda ou um programa conservador. Em A Program for Conservative,
define conceitos e estabelece metas sociais com base em conceitos
que considera conservadores e dialoga com suas visões críticas.
Por exemplo, defende a religião, que considera uma ordem transcendental, e critica a razão, que em sua reflexão transformou-se
num culto perigoso.
Russell Kirk, um dos primeiros a pensar o conservadorismo
nos EUA e a tentar dar sua especificidade no final dos anos de
1950, poderia ser classificado como um conservador tradicional,
passando o debate em torno do conservadorismo americano para
outros autores.
Ao longo dos séculos XIX e XX se desenvolveu nos EUA uma
tradição de pensamento que, autores como Suvanto (1997), classificam como “sulista conservadora”, e outros, como Genovese
(1996), de “agrário sulista” ou, ainda, como “velho sul”. Mesmo
sem buscar um respaldo na tradição conservadora europeia e
tampouco falando abertamente de um conservadorismo, não
podemos deixar de destacar que autores como M.E. Bradford
(1934-1993), Clyde Wilson (1941) e Donald Livingston7 partiram da experiência política, cultural e social do sul dos EUA,
marcado pelas grandes propriedades com mão de obra escrava,
para desenvolver um pensamento antimoderno, quando não antidemocrático, pautado no localismo8 e na crença na autodeterminação. Esses autores, como Clyde Wilson, não só defenderam a
segregação do sul dos EUA, como também foram críticos à vida
moderna capitalista. Essa crítica tem raízes profundas nos EUA,
remetendo a uma discussão em torno dos pais fundadores e dos
mitos que dialogam com a ideia de nação nesse país. Na tradição
sulista de olhar para a experiência americana, há certa oposição à
ideia de progresso e uma associação entre uma democracia radical
e a ideia de igualitarismo.
Há uma longa discussão constitucional nos EUA em torno
da equidade defendida pelo texto constitucional. Autores sulistas
como John C. Calhoun (1782-1850), Thomas R. Dew (18021846) e William Harper (1790 – 1847) são comumente citados
como referências de uma tradição sulista anti-igualitária que não só
discutia a escravidão, mas também a própria ideia de federação e de
governo democrático. Genovese (1996) explica o anti-igualitarismo
da tradição sulista a partir de uma visão supostamente aristotélica
do mundo, na qual as pessoas nascem com diferentes talentos, diferentes capacidades e em diferentes situações. Portanto, nos termos
de Bradford (apud Genovese, p. 45, 1996), o culto à igualdade não
pode existir senão como o verdadeiro “ópio do povo”.
Um dos teóricos do separatismo sulista contemporâneo. Cf. http://www.
abbevilleinstitute.org/index.php. Acessado em: 14/05/2012.
7
A ideia de localismo questiona a própria ideia de uma nação. Nessa tradição,
pouco se fala de nação e muito se fala de comunidade. Em última instância, a
ideia seria algo como, por exemplo, ao invés dos EUA ter um único presidente,
ter um colegiado indicado por todos os estados que formariam uma comunidade
de governo.
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O New Deal e o primeiro marco moderno do conservadorismo americano
A década de 1920 terminou marcada pela crise de 1929, que
rapidamente se sobrepôs aos prósperos anos do início dessa década. Os EUA entraram nos anos de 1930, como se lê em Limoncic
(2009), com o PIB em queda e com 25% de taxa de desemprego. Em 1933, Frank Delano Roosevelt (FDR) venceu Herbert
Hoover, que tentava a reeleição. Em seus 100 primeiros dias de
governo, FDR implantou medidas de impacto, visando combater
o desemprego e a depressão econômica. Dentre as medidas, estavam o Emergency Banking Act, que injetava dinheiro público em
bancos privados falidos ou à beira da falência, o Federal Deposit
Insurance Corporation, que garantia os depósitos até US$ 5 mil, e
o Civil Works Administration, que financiaria e empregaria pessoas
em obras públicas (Limoncic, 2009).
61
Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
As iniciativas e metas do governo FDR ficaram conhecidas como
New Deal e visaram “elevar o poder de compra dos trabalhadores e,
assim, sustentar a demanda” (Limoncic, 2009, p. 45), além de criar
uma extensa rede de assistência social, de auxílio aos trabalhadores,
gerando emprego e renda além de recuperar a agricultura dos EUA.
As políticas do New Deal foram um recorte decisivo na tradição
liberal americana, mostrando a grande influência das ideias de John
Maynard Keynes (1883 – 1946). Nesse contexto, FDR aproveitou-se
da aproximação que suas políticas proporcionaram com sindicatos,
trabalhadores e desempregados para conseguir, em 1935, sua reeleição, conseguindo, de forma inédita, aumentar o poder do Estado,
propondo reformas com foco econômico e estrutural.
Os primeiros a reagirem ao New Deal e a FDR foram os setores
classificados como isolacionistas, com uma longa tradição de mobilização política que reverbera entre sulistas e entre os literários, que
eram críticos e satíricos em relação à nascente sociedade industrial
e aos novos costumes da sociedade burguesa dos anos de 1930.
Dentre esses autores podemos citar John P. Marquand, um escritor
popular na época. Mas o primeiro grande ícone político da defesa
do isolacionismo foi Robert Taft (1889 – 1953), senador pelo estado de Ohio entre 1939 e 1953. Um dos espaços para a discussão
e crítica ao New Deal foi The American Mercury durante os anos
de 1920 e 1930. Depois, no final dos anos de 1930 e começo da
década de 1940, ganhou força a revista Liberty League, que reunia
democratas contrários à reeleição de FDR.
Robert Taft, segundo a biografia escrita por Kirk (1985), foi um
dos políticos mais influentes dos anos de 1940 e foi um marco para
o nascente conservadorismo estadunidense defensor do isolacionismo, mas também uma voz combativa ao New Deal e ao partido
democrata, conseguindo romper com uma hegemonia dos republicanos que vigorava desde 1860. Taft chegou ao Senado em 1939,
quando o ativismo do New Deal já não estava em seu auge – que
ocorreu entre 1932 e 1938 – mas ficou marcado como um dos
maiores críticos dessa política. Tanto a crítica quanto a oposição ao
New Deal e a outras formas de estado de bem-estar social passaram
a ser, se não a principal, uma das mais fortes marcas do conservadorismo dos EUA.
Taft foi atuante politicamente até o começo da década de 1950,
quando o conservadorismo vigente era norteado por uma desconfiança em relação ao capitalismo, com fortes atritos entre o sul
agrário e o norte industrial. O político foi o primeiro fortemente
inserido numa tradição isolacionista, desejosa de uma alternativa,
mas, sobretudo, numa crítica à tradição – até então hegemônica –
do liberalismo. A partir de Taft, esse liberalismo passa a ser o grande alvo dos conservadores. E o primeiro marco a ser combatido
era o New Deal. O segundo, viria com a estratégia adotada para a
Guerra Fria. A crítica ao New Deal, que era feita a partir da tradição liberal, entendia que quando o governo se propõe a regular não
só as relações econômicas, mas também as formas de organização
da sociedade (como os sindicatos, a assistência médica, quem tem
direito ao auxílio desemprego, etc.), termina por comprometer não
só a liberdade individual9 como pode também criar monopólios
e concentrar o poder econômico em poucas mãos, além de sobrevalorizar o poder que certos setores governamentais passam a ter,
como os de assistência social, o dos sindicalistas e estatísticos. Tal
como nos mostra Kirk (1967), ser liberal nos anos de 1940 era,
na visão de seus críticos, populista e progressista, o que, por sua
vez, era entendido a partir dos três “Cs” de Charles Van Hise10:
concentrar, cooperar e controlar. O estado fomentando e almejando os três “Cs” seria o próprio e temido leviatã hobbesiano, que
não só comprometeria os direitos naturais, como acabaria por formar e submeter os indivíduos a um coletivismo, o que, por sua vez,
subordinado ao Estado, ameaçaria a própria arquitetura política
62
Conservadores costumam citar o caso da educação. Eles acusam o
estado liberal de pressupor que todas as crianças são iguais e que, portanto,
deveriam receber a mesma educação. O debate em torno da educação passa
fundamentalmente pela decisão da Suprema Corte de Justiça, de 1954, com
o caso Brown vs. Board of education, no qual a corte decidiu pelo fim da
segregação nas escolas americanas.
9
Charles Van Rise foi um acadêmico importante da Universidade de Wisconsin,
cujos trabalhos influenciaram o liberalismo americano entre o final do século
XIX e começo do XX. A síntese do pensamento progressista a partir dos três
“cs” surge em Concentration and Control, de 1912.
10
63
Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
As iniciativas e metas do governo FDR ficaram conhecidas como
New Deal e visaram “elevar o poder de compra dos trabalhadores e,
assim, sustentar a demanda” (Limoncic, 2009, p. 45), além de criar
uma extensa rede de assistência social, de auxílio aos trabalhadores,
gerando emprego e renda além de recuperar a agricultura dos EUA.
As políticas do New Deal foram um recorte decisivo na tradição
liberal americana, mostrando a grande influência das ideias de John
Maynard Keynes (1883 – 1946). Nesse contexto, FDR aproveitou-se
da aproximação que suas políticas proporcionaram com sindicatos,
trabalhadores e desempregados para conseguir, em 1935, sua reeleição, conseguindo, de forma inédita, aumentar o poder do Estado,
propondo reformas com foco econômico e estrutural.
Os primeiros a reagirem ao New Deal e a FDR foram os setores
classificados como isolacionistas, com uma longa tradição de mobilização política que reverbera entre sulistas e entre os literários, que
eram críticos e satíricos em relação à nascente sociedade industrial
e aos novos costumes da sociedade burguesa dos anos de 1930.
Dentre esses autores podemos citar John P. Marquand, um escritor
popular na época. Mas o primeiro grande ícone político da defesa
do isolacionismo foi Robert Taft (1889 – 1953), senador pelo estado de Ohio entre 1939 e 1953. Um dos espaços para a discussão
e crítica ao New Deal foi The American Mercury durante os anos
de 1920 e 1930. Depois, no final dos anos de 1930 e começo da
década de 1940, ganhou força a revista Liberty League, que reunia
democratas contrários à reeleição de FDR.
Robert Taft, segundo a biografia escrita por Kirk (1985), foi um
dos políticos mais influentes dos anos de 1940 e foi um marco para
o nascente conservadorismo estadunidense defensor do isolacionismo, mas também uma voz combativa ao New Deal e ao partido
democrata, conseguindo romper com uma hegemonia dos republicanos que vigorava desde 1860. Taft chegou ao Senado em 1939,
quando o ativismo do New Deal já não estava em seu auge – que
ocorreu entre 1932 e 1938 – mas ficou marcado como um dos
maiores críticos dessa política. Tanto a crítica quanto a oposição ao
New Deal e a outras formas de estado de bem-estar social passaram
a ser, se não a principal, uma das mais fortes marcas do conservadorismo dos EUA.
Taft foi atuante politicamente até o começo da década de 1950,
quando o conservadorismo vigente era norteado por uma desconfiança em relação ao capitalismo, com fortes atritos entre o sul
agrário e o norte industrial. O político foi o primeiro fortemente
inserido numa tradição isolacionista, desejosa de uma alternativa,
mas, sobretudo, numa crítica à tradição – até então hegemônica –
do liberalismo. A partir de Taft, esse liberalismo passa a ser o grande alvo dos conservadores. E o primeiro marco a ser combatido
era o New Deal. O segundo, viria com a estratégia adotada para a
Guerra Fria. A crítica ao New Deal, que era feita a partir da tradição liberal, entendia que quando o governo se propõe a regular não
só as relações econômicas, mas também as formas de organização
da sociedade (como os sindicatos, a assistência médica, quem tem
direito ao auxílio desemprego, etc.), termina por comprometer não
só a liberdade individual9 como pode também criar monopólios
e concentrar o poder econômico em poucas mãos, além de sobrevalorizar o poder que certos setores governamentais passam a ter,
como os de assistência social, o dos sindicalistas e estatísticos. Tal
como nos mostra Kirk (1967), ser liberal nos anos de 1940 era,
na visão de seus críticos, populista e progressista, o que, por sua
vez, era entendido a partir dos três “Cs” de Charles Van Hise10:
concentrar, cooperar e controlar. O estado fomentando e almejando os três “Cs” seria o próprio e temido leviatã hobbesiano, que
não só comprometeria os direitos naturais, como acabaria por formar e submeter os indivíduos a um coletivismo, o que, por sua vez,
subordinado ao Estado, ameaçaria a própria arquitetura política
62
Conservadores costumam citar o caso da educação. Eles acusam o
estado liberal de pressupor que todas as crianças são iguais e que, portanto,
deveriam receber a mesma educação. O debate em torno da educação passa
fundamentalmente pela decisão da Suprema Corte de Justiça, de 1954, com
o caso Brown vs. Board of education, no qual a corte decidiu pelo fim da
segregação nas escolas americanas.
9
Charles Van Rise foi um acadêmico importante da Universidade de Wisconsin,
cujos trabalhos influenciaram o liberalismo americano entre o final do século
XIX e começo do XX. A síntese do pensamento progressista a partir dos três
“cs” surge em Concentration and Control, de 1912.
10
63
Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
dos pais fundadores que, nessa leitura, teriam pensado numa república, mas com a prerrogativa que teria que se saber mantê-la11.
A crítica ao Estado de Bem-Estar Social (EBS) atraiu para o
espectro conservador outra tradição política: os libertários. Durante
os anos de 1940 reverberava nos EUA a obra de Friedrich Hayek,
The Road to Serfdom (1944), lançada pela editora da Universidade
de Chicago12. O foco da discussão era mostrar como o coletivismo
cerceava a liberdade: ao proporcionar políticas de bem-estar, resulta em última instância, nesta leitura, num regime totalitário. Os
libertários, por princípio, duvidam do governo e temem governos
pró-ativos. Portanto, colocam-se como oposição aos progressistas
e defendem a primazia dos direitos individuais, buscando menor
interferência governamental. Com foco nas liberdades individuais e no direito de viver sem a interferência negativa do governo,
escreviam em revistas como The Freeman (1946) e Human Events
(1947 –), dialogando com o pensamento de economistas como
George Joseph Stigler e Milton Friedman. Discutiam, ainda, o
pensamento liberal clássico como também traziam e divulgavam as
ideias de autores populares, como Ayn Rand, que por meio de seus
romances populares e sua filosofia objetivista, foi uma das principais divulgadoras das ideias do pensamento libertário.
A oposição ao New Deal e a rejeição a todas as variações de políticas de bem-estar social uniram e possibilitaram uma primeira coalizão de diferentes atores com diferentes aspirações, formando um
primeiro antagonismo ao liberalismo nos EUA. Esse antagonismo
e esses atores podem ser chamados de isolacionistas. Ou, uma vez
que se passa a delinear uma Nova Direita, como veremos a partir
dos anos de 1960, esse grupo seria, então, a Velha Direita. Outro
recorte que encontramos na literatura surge a partir do final dos
anos de 1960 e de 1970, com a ascensão dos neoconservadores. Se
há novos conservadores, eles se firmam em oposição ou, no limite,
em diálogo com os velhos conservadores.
A transição da velha para uma nova direita ou para um neoconservadorismo ocorre entre as décadas de 1950 e 1960. Na década de 1950, a Guerra Fria passou a estar no foco das discussões.
Vale a pena lembrar que o famoso telegrama sobre a URSS de
George Kennan e seus posteriores artigos assinados como Mister X,
na Foreign Affairs, são do final dos anos 1940. E em 1947, James
Burnhan, posteriormente editor da National Review, lançou o livro
The Struggle for the World, no qual argumenta que o conflito entre
EUA e a URSS era historicamente um conflito pelo controle e pela
hegemonia mundial e salientava que, diante dos soviéticos, os americanos deveriam ser ofensivos.
Somando o espírito de vigilância, sugerido no telegrama de
Kennan, com a ofensividade proposta por Burnhan, surge o
Macarthismo, um movimento de cunho populista e inquisidor
em torno de Joseph McCarthy, senador por Wisconsin entre 1947
e 1957. Em 1952, McCarthy, como membro da subcomissão de
política externa do Senado, com poderes de interrogar seus convocados, usou desse espaço para ganhar fama e status. Rapidamente
sua postura inquisitória teve apoio entre a classe média alta (executivos, burocratas e profissionais liberais), entre setores da classe
média e, principalmente, entre católicos do norte.
O auge do macarthismo – que buscava caçar comunistas infiltrados no governo, nas forças armas ou na sociedade civil – ocorreu
no biênio 1954/55. O Macarthismo foi o principal foco de análise
de Daniel Bell, em 1955, quando lançou The New American Right.
Em 1958, quando a “caça aos comunistas” parecia já ter perdido seu
momento, Robert Welch, um próspero homem de negócios, fundou
a John Birch Society (JBS). O foco dela era, partindo de um movimento de base, desmascarar e denunciar conspirações e infiltrações
de pessoas e de ideias comunistas que acreditava ameaçar as instituições americanas. Entre o McCarthismo e a mobilização da JBS, per-
11
Nesse ponto, muitos conservadores gostam de citar Benjamin Franklin, que,
quando uma senhora teria perguntado sobre o que eles tinham feito como
resultado na reunião para a formação da Federação, Franklin teria respondido:
“A republic, if you can keep it.”
O fato de a editora ser da Universidade de Chicago é também um marco, pois
mostra que a hegemonia liberal nas universidades dos EUA estava começando
a ser ameaçada e que a escola de Chicago passou a produzir, principalmente
em economia, obras fundamentais para os libertários e para a Nova Direita, a
partir dos anos de 1960.
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64
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Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
dos pais fundadores que, nessa leitura, teriam pensado numa república, mas com a prerrogativa que teria que se saber mantê-la11.
A crítica ao Estado de Bem-Estar Social (EBS) atraiu para o
espectro conservador outra tradição política: os libertários. Durante
os anos de 1940 reverberava nos EUA a obra de Friedrich Hayek,
The Road to Serfdom (1944), lançada pela editora da Universidade
de Chicago12. O foco da discussão era mostrar como o coletivismo
cerceava a liberdade: ao proporcionar políticas de bem-estar, resulta em última instância, nesta leitura, num regime totalitário. Os
libertários, por princípio, duvidam do governo e temem governos
pró-ativos. Portanto, colocam-se como oposição aos progressistas
e defendem a primazia dos direitos individuais, buscando menor
interferência governamental. Com foco nas liberdades individuais e no direito de viver sem a interferência negativa do governo,
escreviam em revistas como The Freeman (1946) e Human Events
(1947 –), dialogando com o pensamento de economistas como
George Joseph Stigler e Milton Friedman. Discutiam, ainda, o
pensamento liberal clássico como também traziam e divulgavam as
ideias de autores populares, como Ayn Rand, que por meio de seus
romances populares e sua filosofia objetivista, foi uma das principais divulgadoras das ideias do pensamento libertário.
A oposição ao New Deal e a rejeição a todas as variações de políticas de bem-estar social uniram e possibilitaram uma primeira coalizão de diferentes atores com diferentes aspirações, formando um
primeiro antagonismo ao liberalismo nos EUA. Esse antagonismo
e esses atores podem ser chamados de isolacionistas. Ou, uma vez
que se passa a delinear uma Nova Direita, como veremos a partir
dos anos de 1960, esse grupo seria, então, a Velha Direita. Outro
recorte que encontramos na literatura surge a partir do final dos
anos de 1960 e de 1970, com a ascensão dos neoconservadores. Se
há novos conservadores, eles se firmam em oposição ou, no limite,
em diálogo com os velhos conservadores.
A transição da velha para uma nova direita ou para um neoconservadorismo ocorre entre as décadas de 1950 e 1960. Na década de 1950, a Guerra Fria passou a estar no foco das discussões.
Vale a pena lembrar que o famoso telegrama sobre a URSS de
George Kennan e seus posteriores artigos assinados como Mister X,
na Foreign Affairs, são do final dos anos 1940. E em 1947, James
Burnhan, posteriormente editor da National Review, lançou o livro
The Struggle for the World, no qual argumenta que o conflito entre
EUA e a URSS era historicamente um conflito pelo controle e pela
hegemonia mundial e salientava que, diante dos soviéticos, os americanos deveriam ser ofensivos.
Somando o espírito de vigilância, sugerido no telegrama de
Kennan, com a ofensividade proposta por Burnhan, surge o
Macarthismo, um movimento de cunho populista e inquisidor
em torno de Joseph McCarthy, senador por Wisconsin entre 1947
e 1957. Em 1952, McCarthy, como membro da subcomissão de
política externa do Senado, com poderes de interrogar seus convocados, usou desse espaço para ganhar fama e status. Rapidamente
sua postura inquisitória teve apoio entre a classe média alta (executivos, burocratas e profissionais liberais), entre setores da classe
média e, principalmente, entre católicos do norte.
O auge do macarthismo – que buscava caçar comunistas infiltrados no governo, nas forças armas ou na sociedade civil – ocorreu
no biênio 1954/55. O Macarthismo foi o principal foco de análise
de Daniel Bell, em 1955, quando lançou The New American Right.
Em 1958, quando a “caça aos comunistas” parecia já ter perdido seu
momento, Robert Welch, um próspero homem de negócios, fundou
a John Birch Society (JBS). O foco dela era, partindo de um movimento de base, desmascarar e denunciar conspirações e infiltrações
de pessoas e de ideias comunistas que acreditava ameaçar as instituições americanas. Entre o McCarthismo e a mobilização da JBS, per-
11
Nesse ponto, muitos conservadores gostam de citar Benjamin Franklin, que,
quando uma senhora teria perguntado sobre o que eles tinham feito como
resultado na reunião para a formação da Federação, Franklin teria respondido:
“A republic, if you can keep it.”
O fato de a editora ser da Universidade de Chicago é também um marco, pois
mostra que a hegemonia liberal nas universidades dos EUA estava começando
a ser ameaçada e que a escola de Chicago passou a produzir, principalmente
em economia, obras fundamentais para os libertários e para a Nova Direita, a
partir dos anos de 1960.
12
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Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
cebemos que o conservadorismo americano dos anos 1950 obrigatoriamente dialogava com uma direita mais populista e conspiratória
e que, nas décadas seguintes perdeu força, mas sem deixar de existir.
Ao final dos anos de 1950, a direita americana, de forma mais
ampla, liderada pela sua vertente populista, estava novamente se fragmentando. O populismo anticomunista cujos marcos
foram o Macarthismo e a mobilização da JBS, alimentados por
teorias conspiratórias, caminhava para uma ação política mais
radical alimentando uma tradição paranoica, nos termos que
Richard Hofstadter utilizou com grande impacto no debate eleitoral de 1964. Essa linha pouco dialogava com o isolacionismo
de Taft e tampouco com a linha anti-New Deal dos libertários.
Paralelamente a essa linha radical, paranoica e populista surgiu,
em torno de William F. Buckley Jr. (1925 – 2008), outro tipo de
renovação do pensamento conservador. Em 1955, Buckley fundou a National Review, com sede em Nova Iorque (NY). Reuniu
alguns libertários e alguns macarthistas, propondo-se a discutir o
liberalismo e a criticá-lo retomando um pensamento mais tradicionalista, preocupado com questões morais, criticando também
as consequências negativas do declínio da religiosidade e rejeitando o isolacionismo na política externa.
Tal como nos mostra Brookhiser (2009), no final dos anos
de 1950 e nos primeiros anos da década de 1960, contribuíram na National Review, Russell Kirk, James Burnham, Frank
Meyer, Willmoore Kendall, L. Brent Bozell, Harry V. Jaffa,
Garry Wills, Whittaker Chambers e John Dos Passos. Esse
espectro amplo de autores, nem todos confortáveis com o rótulo
de conservador, demonstra uma tentativa de unificar e de renovar o pensamento conservador até então produzido. Há autores
de uma linha com foco num conservadorismo social, priorizando as liberdades individuais, como L. Brent Bozell. Há autores
com foco num conservadorismo mais tradicional, como Harry
V. Jaffa e Russell Kirk. E há outros próximos de uma discussão
cristã e com foco na moralidade religiosa, como Frank Meyer e
até Willmoore Kendall (cf. Schneider, 2003), que discutiam a
necessidade de uma afirmação conservadora.
O contexto da emergência da National Review é credor das
reflexões e do esforço de articulação de seu fundador, William F.
Buckley Jr, que, desde então, torna-se um dos principais articuladores e mobilizadores da renovação do conservadorismo americano da década de 1950. Em 1951, Buckley lançou God and Man
at Yale, em que já fica clara a tentativa de aproximar a discussão
dos libertários anticoletivista com questões morais, salientando a
importância das ideias e da tradição cristã, enfatizando que o liberalismo era apresentado em Yale como a única tradição política
existente nos EUA.
Interessante notarmos que Buckey, em God and Man at Yale,
se coloca como conservador, mas não fala em conservadorismo, o
que já ocorre em sua obra de 1959, Up from Liberalism, na qual
se propõe a fazer uma discussão crítica em torno do liberalismo e
concentra sua crítica nos malefícios do EBS. No início dos anos de
1960, em sua casa em Sharon, Connecticut, Buckley articulou-se
para a criação da Young Americans for Freedom (YAF), que foi um
grupo que rapidamente reuniu nomes que passaram a ser importantes para o conservadorismo americano, como Barry Goldwalter,
Richard Viguerie e Howard Phillips. A proposta do YAF nasceu
em torno de sua declaração de fundação, conhecida como a declaração de Sharon, na qual notamos uma clara retórica libertária e
dirigida a uma geração de jovens conservadores.
Como nos mostra Gottfried (2007), a mobilização e o esforço
de Buckley na segunda metade dos anos de 1950 é a pedra fundamental para o conservadorismo americano que irá se desenvolver a
partir dos anos de 1960. Em torno da National Review, bem como
da YAF, articulava-se um conservadorismo clássico, como o pontuado por Russell Kirk, que valoriza a comunidade, a moral e a religião abrindo-se para uma crítica ao liberalismo como se se aliasse
aos chamados libertários de uma linha mais filosófica, como Ayn
Rand ou uma linha mais econômica, com foco no livre-mercado,
crítica ao keynesianismo e à Guerra Fria e que tinha uma postura
contrária ao isolacionismo. Nesse ponto, mesmo sendo incipiente, temos clara uma plataforma política para se pensar numa Nova
Direita nos EUA.
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Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
cebemos que o conservadorismo americano dos anos 1950 obrigatoriamente dialogava com uma direita mais populista e conspiratória
e que, nas décadas seguintes perdeu força, mas sem deixar de existir.
Ao final dos anos de 1950, a direita americana, de forma mais
ampla, liderada pela sua vertente populista, estava novamente se fragmentando. O populismo anticomunista cujos marcos
foram o Macarthismo e a mobilização da JBS, alimentados por
teorias conspiratórias, caminhava para uma ação política mais
radical alimentando uma tradição paranoica, nos termos que
Richard Hofstadter utilizou com grande impacto no debate eleitoral de 1964. Essa linha pouco dialogava com o isolacionismo
de Taft e tampouco com a linha anti-New Deal dos libertários.
Paralelamente a essa linha radical, paranoica e populista surgiu,
em torno de William F. Buckley Jr. (1925 – 2008), outro tipo de
renovação do pensamento conservador. Em 1955, Buckley fundou a National Review, com sede em Nova Iorque (NY). Reuniu
alguns libertários e alguns macarthistas, propondo-se a discutir o
liberalismo e a criticá-lo retomando um pensamento mais tradicionalista, preocupado com questões morais, criticando também
as consequências negativas do declínio da religiosidade e rejeitando o isolacionismo na política externa.
Tal como nos mostra Brookhiser (2009), no final dos anos
de 1950 e nos primeiros anos da década de 1960, contribuíram na National Review, Russell Kirk, James Burnham, Frank
Meyer, Willmoore Kendall, L. Brent Bozell, Harry V. Jaffa,
Garry Wills, Whittaker Chambers e John Dos Passos. Esse
espectro amplo de autores, nem todos confortáveis com o rótulo
de conservador, demonstra uma tentativa de unificar e de renovar o pensamento conservador até então produzido. Há autores
de uma linha com foco num conservadorismo social, priorizando as liberdades individuais, como L. Brent Bozell. Há autores
com foco num conservadorismo mais tradicional, como Harry
V. Jaffa e Russell Kirk. E há outros próximos de uma discussão
cristã e com foco na moralidade religiosa, como Frank Meyer e
até Willmoore Kendall (cf. Schneider, 2003), que discutiam a
necessidade de uma afirmação conservadora.
O contexto da emergência da National Review é credor das
reflexões e do esforço de articulação de seu fundador, William F.
Buckley Jr, que, desde então, torna-se um dos principais articuladores e mobilizadores da renovação do conservadorismo americano da década de 1950. Em 1951, Buckley lançou God and Man
at Yale, em que já fica clara a tentativa de aproximar a discussão
dos libertários anticoletivista com questões morais, salientando a
importância das ideias e da tradição cristã, enfatizando que o liberalismo era apresentado em Yale como a única tradição política
existente nos EUA.
Interessante notarmos que Buckey, em God and Man at Yale,
se coloca como conservador, mas não fala em conservadorismo, o
que já ocorre em sua obra de 1959, Up from Liberalism, na qual
se propõe a fazer uma discussão crítica em torno do liberalismo e
concentra sua crítica nos malefícios do EBS. No início dos anos de
1960, em sua casa em Sharon, Connecticut, Buckley articulou-se
para a criação da Young Americans for Freedom (YAF), que foi um
grupo que rapidamente reuniu nomes que passaram a ser importantes para o conservadorismo americano, como Barry Goldwalter,
Richard Viguerie e Howard Phillips. A proposta do YAF nasceu
em torno de sua declaração de fundação, conhecida como a declaração de Sharon, na qual notamos uma clara retórica libertária e
dirigida a uma geração de jovens conservadores.
Como nos mostra Gottfried (2007), a mobilização e o esforço
de Buckley na segunda metade dos anos de 1950 é a pedra fundamental para o conservadorismo americano que irá se desenvolver a
partir dos anos de 1960. Em torno da National Review, bem como
da YAF, articulava-se um conservadorismo clássico, como o pontuado por Russell Kirk, que valoriza a comunidade, a moral e a religião abrindo-se para uma crítica ao liberalismo como se se aliasse
aos chamados libertários de uma linha mais filosófica, como Ayn
Rand ou uma linha mais econômica, com foco no livre-mercado,
crítica ao keynesianismo e à Guerra Fria e que tinha uma postura
contrária ao isolacionismo. Nesse ponto, mesmo sendo incipiente, temos clara uma plataforma política para se pensar numa Nova
Direita nos EUA.
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Ariel Finguerut
Anos 60: Uma Nova Esquerda pede uma Nova Direita
No começo dos anos de 1960, a National Review crescia e só
fazia aumentar seus assinantes. Na mesma toada, a YAF (Young
Americans for Freedom) captava mais e mais defensores para
suas ideias. Concomitantemente, John F. Kennedy (JFK), ainda
como candidato, prometia, entre outras coisas, um governo progressista, ativo, que iria combater a pobreza e expandir programas
de segurança social como, por exemplo, o auxílio-desemprego.
Esse conjunto de propostas era sintetizado por ele pela expressão
New Frontier. Após sua vitória nas eleições, já em 1961, seu New
Frontier mobilizava a oposição não só dos conservadores, como
suscitou um novo fôlego para os libertários, principalmente dos
círculos dos economistas críticos ao EBS (Estado de Bem-Estar
Social) da Escola de Chicago.
Em 1960, o New Deal, de Roosevelt, já parecia algo distante,
mas o liberalismo (como ideologia e como política) mostrava-se
mais forte do que nunca sob o comando JFK. O liberalismo era
visto como a tentativa do governo de alterar os rumos da sociedade, seja propondo-se a combater a pobreza ou a discriminação
racial, seja discutindo a Constituição dos EUA e o próprio papel
que desempenhavam em relação às minorias (católicos, judeus,
negros e latinos).
Os EUA da década de 1960 viram os chamados filhos da
Grande Depressão – também conhecidos como geração baby
boom13 – reivindicando, sobretudo, melhores condições de trabalho, em meio a uma nação que viu seus subúrbios serem ocupados
pela classe média e uma cultura vigorosamente jovem. Ser jovem,
naquela situação, significava afirmar uma autonomia e o direito à
rebeldia, condição necessária em meio a uma população na casa dos
180 milhões. Essa autonomia e essa rebeldia refletiam-se na forma
de se vestir, nos hábitos culturais e na crítica aos costumes arraigados. Rapidamente, a busca por modos e atitudes de essência jovem,
por meio da mobilização e da contestação social, foi interpretada
13
Geração nascida entre 1940 e 1964.
68
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
pelos críticos e pelo status quo como a manifestação de uma “contracultura”. Alcunha rapidamente aceita nos mais diversos meios,
a cara do movimento era ilustrada por jovens boêmios, literatos e
críticos, inspirados em alguns dos pioneiros que, como os escritores
Allen Ginsberg (1926 – 1997) e Jack Kerouac (1922-1969), marcaram e influenciaram o que ficou conhecido como “Geração Beat”
(cujo epicentro deu-se entre os anos de 1950 e início dos anos de
1960). A “Geração Beat” traduzia a insatisfação dos jovens, o cansaço e o inconformismo com a massificação e a padronização do
American way of live, tão em voga. Eram jovens que queriam experimentar coisas novas, se livrar de valores e de costumes opressivos.
Afirmavam o poder e o direito de discordar e de serem diferentes.
Rapidamente, essas ideias de mudança, inconformismo, senso de urgência e rebeldia ganharam um direcionamento político
e passaram a influenciar a política dos EUA. Um marco importante nesse sentido ocorreu em 1962, com a “Declaração de Port
Huson” (Michigan). Esse manifesto, surgido em decorrência da
mobilização da Students for Democratic Society (SDS), representou a primeira tentativa de renovar o pensamento da esquerda dos
EUA, propondo uma Nova Esquerda. No documento, a organização apresentou os temas que iriam pautar boa parte dos debates
da década de sessenta do século XX: a preocupação com a corrida
armamentista e com a ameaça nuclear, a segregação racial nos EUA,
os sentidos e as potencialidades da democracia, além das críticas à
alienação, à sociedade burocratizada e oprimida, tanto economicamente como, sobretudo, cultural e psicologicamente. Como nos
mostra Sousa (2009), a SDS também inovava em suas estratégias
de ação política, propondo formas de mobilização comunitária,
além de marchas, palestras, panfletagens e formação de ação direta.
Era uma organização ativista estudantil que começou com cerca de
800 membros, mas que, com grande capacidade de comunicação e
mobilização, expandiu-se rapidamente, atingindo milhares de estudantes espalhados pelos campi das universidades de todo o país.
A primeira grande causa abraçada pelo movimento estudantil
(principalmente no âmbito da renovação da esquerda, das ações
da SDS e de outras organizações menores com ideias análogas)
69
Ariel Finguerut
Anos 60: Uma Nova Esquerda pede uma Nova Direita
No começo dos anos de 1960, a National Review crescia e só
fazia aumentar seus assinantes. Na mesma toada, a YAF (Young
Americans for Freedom) captava mais e mais defensores para
suas ideias. Concomitantemente, John F. Kennedy (JFK), ainda
como candidato, prometia, entre outras coisas, um governo progressista, ativo, que iria combater a pobreza e expandir programas
de segurança social como, por exemplo, o auxílio-desemprego.
Esse conjunto de propostas era sintetizado por ele pela expressão
New Frontier. Após sua vitória nas eleições, já em 1961, seu New
Frontier mobilizava a oposição não só dos conservadores, como
suscitou um novo fôlego para os libertários, principalmente dos
círculos dos economistas críticos ao EBS (Estado de Bem-Estar
Social) da Escola de Chicago.
Em 1960, o New Deal, de Roosevelt, já parecia algo distante,
mas o liberalismo (como ideologia e como política) mostrava-se
mais forte do que nunca sob o comando JFK. O liberalismo era
visto como a tentativa do governo de alterar os rumos da sociedade, seja propondo-se a combater a pobreza ou a discriminação
racial, seja discutindo a Constituição dos EUA e o próprio papel
que desempenhavam em relação às minorias (católicos, judeus,
negros e latinos).
Os EUA da década de 1960 viram os chamados filhos da
Grande Depressão – também conhecidos como geração baby
boom13 – reivindicando, sobretudo, melhores condições de trabalho, em meio a uma nação que viu seus subúrbios serem ocupados
pela classe média e uma cultura vigorosamente jovem. Ser jovem,
naquela situação, significava afirmar uma autonomia e o direito à
rebeldia, condição necessária em meio a uma população na casa dos
180 milhões. Essa autonomia e essa rebeldia refletiam-se na forma
de se vestir, nos hábitos culturais e na crítica aos costumes arraigados. Rapidamente, a busca por modos e atitudes de essência jovem,
por meio da mobilização e da contestação social, foi interpretada
13
Geração nascida entre 1940 e 1964.
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Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
pelos críticos e pelo status quo como a manifestação de uma “contracultura”. Alcunha rapidamente aceita nos mais diversos meios,
a cara do movimento era ilustrada por jovens boêmios, literatos e
críticos, inspirados em alguns dos pioneiros que, como os escritores
Allen Ginsberg (1926 – 1997) e Jack Kerouac (1922-1969), marcaram e influenciaram o que ficou conhecido como “Geração Beat”
(cujo epicentro deu-se entre os anos de 1950 e início dos anos de
1960). A “Geração Beat” traduzia a insatisfação dos jovens, o cansaço e o inconformismo com a massificação e a padronização do
American way of live, tão em voga. Eram jovens que queriam experimentar coisas novas, se livrar de valores e de costumes opressivos.
Afirmavam o poder e o direito de discordar e de serem diferentes.
Rapidamente, essas ideias de mudança, inconformismo, senso de urgência e rebeldia ganharam um direcionamento político
e passaram a influenciar a política dos EUA. Um marco importante nesse sentido ocorreu em 1962, com a “Declaração de Port
Huson” (Michigan). Esse manifesto, surgido em decorrência da
mobilização da Students for Democratic Society (SDS), representou a primeira tentativa de renovar o pensamento da esquerda dos
EUA, propondo uma Nova Esquerda. No documento, a organização apresentou os temas que iriam pautar boa parte dos debates
da década de sessenta do século XX: a preocupação com a corrida
armamentista e com a ameaça nuclear, a segregação racial nos EUA,
os sentidos e as potencialidades da democracia, além das críticas à
alienação, à sociedade burocratizada e oprimida, tanto economicamente como, sobretudo, cultural e psicologicamente. Como nos
mostra Sousa (2009), a SDS também inovava em suas estratégias
de ação política, propondo formas de mobilização comunitária,
além de marchas, palestras, panfletagens e formação de ação direta.
Era uma organização ativista estudantil que começou com cerca de
800 membros, mas que, com grande capacidade de comunicação e
mobilização, expandiu-se rapidamente, atingindo milhares de estudantes espalhados pelos campi das universidades de todo o país.
A primeira grande causa abraçada pelo movimento estudantil
(principalmente no âmbito da renovação da esquerda, das ações
da SDS e de outras organizações menores com ideias análogas)
69
Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
era, conforme Sousa (2009), a defesa dos direitos civis. Tanto os
movimentos de defesa dos negros, como os de jovens propunham
os sit-ins como estratégia de ação direta – práticas de manifestação
influenciadas pelas ideias de pacifismo, inconformismo e democracia participativa. Nesse contexto, vale ressaltar a figura de Martin
Luther King e de sua Southern Christian Leadership Conference
como destaque na liderança dos movimentos de defesa dos negros.
O auge dessa forma de mobilização ocorreu em 28 de agosto de
1963, quando milhares de ativistas marcharam por Washington
D.C e ouviram o famoso discurso do Dr. King, “I Have a Dream”.
Três meses após tal marcha, JFK seria assassinado em Dallas,
assumindo, em 1964, seu vice, o texano Lyndon B. Johnson (LBJ),
que tinha fama de ser mais liberal que seu companheiro de chapa.
O New Frontier transformou-se em Great Society, mantendo a promessa de combate à pobreza. Logo em seu primeiro ano na Casa
Branca, Johnson ratificou a Emenda dos Direitos Civis. Apesar
da regulamentação e do respaldo jurídico, muitos estados sulistas
desafiavam a lei. Um caso exemplar foi o Alabama, governado por
George Wallace, que, não reconhecendo a emenda, prendia e autorizava repressões violentas às marchas e sit-ins do movimento negro
e dos jovens. Paralelamente aos conflitos domésticos em 1965, os
EUA se envolveram na Guerra do Vietnã.
Diante dos novos rumos da Guerra Fria, das alterações estabelecidas pela Emenda dos Direitos Civis e da mobilização dos jovens
questionando a sociedade americana em sua dimensão econômica,
social, cultural, política e psicológica, as primeiras reações do espectro conservador não tardaram a despontar. Os primeiros a reagir
foram políticos sulistas, como George Wallace (1919-1998), Barry
Goldwater (1909-1998), do Arizona, e Strom Thurmond (1902 –
2003), da Carolina do Sul. O foco de suas ações, principalmente Wallace e Thurmond, era combater os efeitos decorrentes da
Emenda dos Direitos Civis e garantir o direito segregacionista dos
estados14. Uma segunda reação despontou nos círculos intelectuais
de NY. Conservadores preocupados com as questões da ordem e
do funcionamento da sociedade, com as reivindicações e posturas
dos jovens (contracultura), agregavam-se mais uma vez, a partir
de 1960, a William Buckley, Norman Podhoretz, todos em torno da revista Commentary15. O livro The End of Ideology (1960)
de Daniel Bell (um colaborador da Commentary), cuja coleção
de ensaios versava majoritariamente sobre os anos 1950, foi visto
nos círculos intelectuais nova-iorquinos como um instrumento
importante para a compreensão do que também ocorria naqueles
anos incipientes da década de 1960. Segundo Bell, os EUA dos
anos de 1950 construíram um consenso político com base em um
processo decisório racional, uma economia pautada pelos avanços
tecnológicos, funcionando a partir de uma estrutura mista e pluralismo político. Dessa forma, “o fim da ideologia”, como sugere
o título, deve ser entendido, no âmbito da obra, como uma espécie de reconhecimento da vitória das ideias liberais. Neste contexto, a partir de tal evidência (e diante da década que se iniciava),
o autor pergunta se ainda haveria nos EUA, àquela altura, algum
partido que não fosse liberal.
Contrariando as expectativas de Bell, o senador Barry
Goldwater lançou-se pré-candidato à presidência, não só criticando
a agenda liberal como também propondo políticas que ele sequer
temia em classificar como conservadoras. Conquistada a sua nomeação pelo Partido Republicano, rapidamente transformou-se num
Tradicionalmente e historicamente, os estados do Sul eram um campo de
hegemonia dos democratas, mas, mesmo entre eles, a Emenda dos Direitos
14
70
Civis nunca foi consensual. Democratas que defendiam a segregação se
mobilizavam desde os anos de 1940. Segundo Limoncic (2009), foi em 1948
que o Partido Democrata incorporou à sua plataforma a defesa do fim da
segregação, em boa medida percebendo o impacto eleitoral que poderia ter
incorporando os negros à sua base. No mesmo ano, os democratas sulistas
se mobilizaram e criaram, dentro do partido, o grupo de defesa dos direitos dos
estados, que ficaram conhecidos como Dixiecrats.
15
A revista Commentary foi fundada em 1945 vinculada ao American Jewish
Committee, de NY. Inicialmente, a temática era liberal e foi a partir do
direcionamento de Podhoretz, nos anos de 1960, que passou a ser um centro
de referência como reação à contracultura, como ponto de reflexão sobre
os rumos da Guerra Fria e também como um dos núcleos do pensamento
neoconservador.
71
Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
era, conforme Sousa (2009), a defesa dos direitos civis. Tanto os
movimentos de defesa dos negros, como os de jovens propunham
os sit-ins como estratégia de ação direta – práticas de manifestação
influenciadas pelas ideias de pacifismo, inconformismo e democracia participativa. Nesse contexto, vale ressaltar a figura de Martin
Luther King e de sua Southern Christian Leadership Conference
como destaque na liderança dos movimentos de defesa dos negros.
O auge dessa forma de mobilização ocorreu em 28 de agosto de
1963, quando milhares de ativistas marcharam por Washington
D.C e ouviram o famoso discurso do Dr. King, “I Have a Dream”.
Três meses após tal marcha, JFK seria assassinado em Dallas,
assumindo, em 1964, seu vice, o texano Lyndon B. Johnson (LBJ),
que tinha fama de ser mais liberal que seu companheiro de chapa.
O New Frontier transformou-se em Great Society, mantendo a promessa de combate à pobreza. Logo em seu primeiro ano na Casa
Branca, Johnson ratificou a Emenda dos Direitos Civis. Apesar
da regulamentação e do respaldo jurídico, muitos estados sulistas
desafiavam a lei. Um caso exemplar foi o Alabama, governado por
George Wallace, que, não reconhecendo a emenda, prendia e autorizava repressões violentas às marchas e sit-ins do movimento negro
e dos jovens. Paralelamente aos conflitos domésticos em 1965, os
EUA se envolveram na Guerra do Vietnã.
Diante dos novos rumos da Guerra Fria, das alterações estabelecidas pela Emenda dos Direitos Civis e da mobilização dos jovens
questionando a sociedade americana em sua dimensão econômica,
social, cultural, política e psicológica, as primeiras reações do espectro conservador não tardaram a despontar. Os primeiros a reagir
foram políticos sulistas, como George Wallace (1919-1998), Barry
Goldwater (1909-1998), do Arizona, e Strom Thurmond (1902 –
2003), da Carolina do Sul. O foco de suas ações, principalmente Wallace e Thurmond, era combater os efeitos decorrentes da
Emenda dos Direitos Civis e garantir o direito segregacionista dos
estados14. Uma segunda reação despontou nos círculos intelectuais
de NY. Conservadores preocupados com as questões da ordem e
do funcionamento da sociedade, com as reivindicações e posturas
dos jovens (contracultura), agregavam-se mais uma vez, a partir
de 1960, a William Buckley, Norman Podhoretz, todos em torno da revista Commentary15. O livro The End of Ideology (1960)
de Daniel Bell (um colaborador da Commentary), cuja coleção
de ensaios versava majoritariamente sobre os anos 1950, foi visto
nos círculos intelectuais nova-iorquinos como um instrumento
importante para a compreensão do que também ocorria naqueles
anos incipientes da década de 1960. Segundo Bell, os EUA dos
anos de 1950 construíram um consenso político com base em um
processo decisório racional, uma economia pautada pelos avanços
tecnológicos, funcionando a partir de uma estrutura mista e pluralismo político. Dessa forma, “o fim da ideologia”, como sugere
o título, deve ser entendido, no âmbito da obra, como uma espécie de reconhecimento da vitória das ideias liberais. Neste contexto, a partir de tal evidência (e diante da década que se iniciava),
o autor pergunta se ainda haveria nos EUA, àquela altura, algum
partido que não fosse liberal.
Contrariando as expectativas de Bell, o senador Barry
Goldwater lançou-se pré-candidato à presidência, não só criticando
a agenda liberal como também propondo políticas que ele sequer
temia em classificar como conservadoras. Conquistada a sua nomeação pelo Partido Republicano, rapidamente transformou-se num
Tradicionalmente e historicamente, os estados do Sul eram um campo de
hegemonia dos democratas, mas, mesmo entre eles, a Emenda dos Direitos
14
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Civis nunca foi consensual. Democratas que defendiam a segregação se
mobilizavam desde os anos de 1940. Segundo Limoncic (2009), foi em 1948
que o Partido Democrata incorporou à sua plataforma a defesa do fim da
segregação, em boa medida percebendo o impacto eleitoral que poderia ter
incorporando os negros à sua base. No mesmo ano, os democratas sulistas
se mobilizaram e criaram, dentro do partido, o grupo de defesa dos direitos dos
estados, que ficaram conhecidos como Dixiecrats.
15
A revista Commentary foi fundada em 1945 vinculada ao American Jewish
Committee, de NY. Inicialmente, a temática era liberal e foi a partir do
direcionamento de Podhoretz, nos anos de 1960, que passou a ser um centro
de referência como reação à contracultura, como ponto de reflexão sobre
os rumos da Guerra Fria e também como um dos núcleos do pensamento
neoconservador.
71
Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
ícone do conservadorismo16. Tendo começado sua marcha derrotando Nelson Rockfeller17 (então governador de NY e símbolo da
defesa do liberalismo moderado dentre os republicanos) e posteriormente avançando para a disputa nacional nas eleições presidenciais em 1964, Goldwater passou a vislumbrar assim, um futuro
glorioso para a sua bandeira política.
Sua postura era afirmativa e confiante. Sua plataforma de campanha contava com o apoio da YAF e da National Review. Por ter
votado contra a Emenda dos Direitos Civis, foi muitas vezes acusado de racista. Costumava dizer que não se desculparia por ter se
posicionado contra a interferência da União nos Estados, assim
como por ser conservador. E apesar de tal perfil, sua candidatura
conseguiu se valer do debate em torno dos direitos civis para discutir até onde é aceitável a interferência do Estado na vida das pessoas. Conforme argumenta em seu livro de campanha The Conscience
of a Conservative, lançado em 196418, para ele, a postura conservadora sustenta-se no seguinte tripé: a) combater a interferência do
governo federal, defendendo assim, os direitos dos estados – combater, por exemplo, as políticas de bem-estar social; b) expandir a
liberdade, o que implica promover uma economia emancipatória e
não de controle (assegurando, assim, os “direitos naturais”, como
Kabaservice (2012) lamenta que Rockefeller, um republicano moderado,
tenha investido tanto em sua tentativa de chegar à Casa Branca ao invés de
ter investido e ter dado mais respaldo a outros republicanos moderados. Nesse
processo, segundo Kabaservice, os conservadores dominaram o partido
republicano.
educar, se defender e produzir sem interferência do Estado e, por
fim, c) combater o comunismo de forma ofensiva, o que significava
dar mais vigor à estrutura militar, priorizando a estratégia geopolítica em detrimento da diplomática, acarretando num enfraquecimento das instituições multilaterais.
Goldwater não tinha dificuldades em transmitir sua mensagem (calcada em seu tripé conservador) mostrando que combater a
URSS e o Estado de bem-estar social não eram coisas tão distantes
do cotidiano da vida do americano típico19.
A eleição de 1964 foi um marco para o conservadorismo americano e para a delimitação de uma Nova Direita. A disputa se
polarizou entre Lyndon Johnson e Barry Goldwater: o primeiro
apresentando-se como uma continuidade do governo de JFK; o
segundo assumindo pela primeira vez na história política americana uma candidatura declaradamente conservadora. Ganhando
em cinco estados (todos do Sul), Goldwater conquistou 38,5%
dos votos. Com tal façanha, além de conseguir transmitir uma
mensagem clara, revelou a existência de um eleitorado de quase
30 milhões dispostos a apoiar políticas de forte oposição à plataforma liberal.
O impacto de Goldwater não só inspirou jovens conservadores, como Harry Jaffa, Patrick Buchanan, L. Brent Bozell e
Richard Viguerie, que se envolveram diretamente na campanha,
como também mostrou existir espaço para publicações conservadoras, inspirando Irving Kristol a criar o jornal The Public Interest,
em 1965. O conservadorismo não isolacionista de Goldwater
também incentivou centros de pesquisas, fundações e, sobretudo, think tanks a discutirem e produzirem alternativas aos EUA
face os rumos da Guerra Fria. Foi o caso da Rand Corporation,
American Enterprise Institute (AEI), Fundação Coors, Fundação
Bradley e do Hoover Institution (vinculado à Stanford University,
na Califórnia), todas elas gerando emprego para jovens pesquisadores dispostos a mostrar alternativas à hegemonia liberal, tanto
na Guerra Fria, como na política doméstica.
A ideia de afirmação conservadora é reforçada pelas obras de Willmoore
Kendall, The Conservative Affirmation, de 1963 e a ainda anterior, de 1962, de
Frank Meyer, In: Defense of Freedom: A Conservative Credo.
19
Na campanha, Goldwater costuma dizer que temia mais Washington e o
governo centralizado do que Moscou e a URSS.
Goldwater rapidamente ganhou o respeito e conseguiu empolgar aqueles
que se diziam conservadores, principalmente por propor a expansão do poder
americano além da retórica antigoverno. Mas não podemos deixar de lembrar
que ele tinha posições que seriam consideradas liberais, como a defesa ao
direito ao aborto. Suas posições quanto a temas como homossexualismo
e drogas também seriam liberais. Para uma discussão mais aprofundada
consultar Before the Storm: Barry Goldwater and the Unmaking of the American
Consensus, de Rick Perlstein, ed. Nation Books, NY, 2009.
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Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
ícone do conservadorismo16. Tendo começado sua marcha derrotando Nelson Rockfeller17 (então governador de NY e símbolo da
defesa do liberalismo moderado dentre os republicanos) e posteriormente avançando para a disputa nacional nas eleições presidenciais em 1964, Goldwater passou a vislumbrar assim, um futuro
glorioso para a sua bandeira política.
Sua postura era afirmativa e confiante. Sua plataforma de campanha contava com o apoio da YAF e da National Review. Por ter
votado contra a Emenda dos Direitos Civis, foi muitas vezes acusado de racista. Costumava dizer que não se desculparia por ter se
posicionado contra a interferência da União nos Estados, assim
como por ser conservador. E apesar de tal perfil, sua candidatura
conseguiu se valer do debate em torno dos direitos civis para discutir até onde é aceitável a interferência do Estado na vida das pessoas. Conforme argumenta em seu livro de campanha The Conscience
of a Conservative, lançado em 196418, para ele, a postura conservadora sustenta-se no seguinte tripé: a) combater a interferência do
governo federal, defendendo assim, os direitos dos estados – combater, por exemplo, as políticas de bem-estar social; b) expandir a
liberdade, o que implica promover uma economia emancipatória e
não de controle (assegurando, assim, os “direitos naturais”, como
Kabaservice (2012) lamenta que Rockefeller, um republicano moderado,
tenha investido tanto em sua tentativa de chegar à Casa Branca ao invés de
ter investido e ter dado mais respaldo a outros republicanos moderados. Nesse
processo, segundo Kabaservice, os conservadores dominaram o partido
republicano.
educar, se defender e produzir sem interferência do Estado e, por
fim, c) combater o comunismo de forma ofensiva, o que significava
dar mais vigor à estrutura militar, priorizando a estratégia geopolítica em detrimento da diplomática, acarretando num enfraquecimento das instituições multilaterais.
Goldwater não tinha dificuldades em transmitir sua mensagem (calcada em seu tripé conservador) mostrando que combater a
URSS e o Estado de bem-estar social não eram coisas tão distantes
do cotidiano da vida do americano típico19.
A eleição de 1964 foi um marco para o conservadorismo americano e para a delimitação de uma Nova Direita. A disputa se
polarizou entre Lyndon Johnson e Barry Goldwater: o primeiro
apresentando-se como uma continuidade do governo de JFK; o
segundo assumindo pela primeira vez na história política americana uma candidatura declaradamente conservadora. Ganhando
em cinco estados (todos do Sul), Goldwater conquistou 38,5%
dos votos. Com tal façanha, além de conseguir transmitir uma
mensagem clara, revelou a existência de um eleitorado de quase
30 milhões dispostos a apoiar políticas de forte oposição à plataforma liberal.
O impacto de Goldwater não só inspirou jovens conservadores, como Harry Jaffa, Patrick Buchanan, L. Brent Bozell e
Richard Viguerie, que se envolveram diretamente na campanha,
como também mostrou existir espaço para publicações conservadoras, inspirando Irving Kristol a criar o jornal The Public Interest,
em 1965. O conservadorismo não isolacionista de Goldwater
também incentivou centros de pesquisas, fundações e, sobretudo, think tanks a discutirem e produzirem alternativas aos EUA
face os rumos da Guerra Fria. Foi o caso da Rand Corporation,
American Enterprise Institute (AEI), Fundação Coors, Fundação
Bradley e do Hoover Institution (vinculado à Stanford University,
na Califórnia), todas elas gerando emprego para jovens pesquisadores dispostos a mostrar alternativas à hegemonia liberal, tanto
na Guerra Fria, como na política doméstica.
A ideia de afirmação conservadora é reforçada pelas obras de Willmoore
Kendall, The Conservative Affirmation, de 1963 e a ainda anterior, de 1962, de
Frank Meyer, In: Defense of Freedom: A Conservative Credo.
19
Na campanha, Goldwater costuma dizer que temia mais Washington e o
governo centralizado do que Moscou e a URSS.
Goldwater rapidamente ganhou o respeito e conseguiu empolgar aqueles
que se diziam conservadores, principalmente por propor a expansão do poder
americano além da retórica antigoverno. Mas não podemos deixar de lembrar
que ele tinha posições que seriam consideradas liberais, como a defesa ao
direito ao aborto. Suas posições quanto a temas como homossexualismo
e drogas também seriam liberais. Para uma discussão mais aprofundada
consultar Before the Storm: Barry Goldwater and the Unmaking of the American
Consensus, de Rick Perlstein, ed. Nation Books, NY, 2009.
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Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
A segunda metade dos anos 1960 e o segundo mandato de
Johnson foram marcados pelo crescimento da violência na Guerra
do Vietnã e, consequentemente, por um aumento da violência nos
protestos e nas manifestações juvenis no campo doméstico. No biênio 1966/67, como nos mostra Sousa (2009), estudantes ocupavam e faziam sit-ins e teach-ins20 intensivamente em universidades
de todo país. A SDS crescia em número de filiados, mas também
se dividia em grupos pacifistas (como a Student Peace Union, que
fazia mobilizações antiguerra) e em outros que defendiam ações de
guerrilha e de terrorismo doméstico (caso da organização Weather
Underground, criada em 1969). A sensação de bifurcamento também ocorria no movimento negro pós-Lei dos Direitos Civis.
Tanto em 1964, como em 1965 ocorreram muitos casos de violência urbana generalizados, suscitados por questões e conflitos
raciais. Em 1965, o ativista e importante líder negro Malcolm-X
foi assassinado no Harlem (Nova Iorque), assim como Martin
Luther King, em Memphis, em abril de 1968. Esses crimes criaram
em uma parcela do movimento negro a busca por uma organização
não integracionista e disposta ao conflito. Nesse contexto, como
nos mostra Sousa (2009), nasceu em Ockland o “Partido Pantera
Negra”, em torno dos ativistas Huey P. Newton e Bobby Seale.
Se a eleição de 1964 foi decisiva para a ideia de uma Nova
Direita, a de 1968 marcou o début de uma Nova Esquerda. Sob
o forte impacto da Guerra do Vietnã, nas primárias do Partido
Democrata, como nos mostra Matuz (2002), havia três candidatos fortes: Hubert Humphrey, Robert Kennedy (assassinado em
1965) e Eugene McCarthy, sendo estes dois últimos mais próximos
da Nova Esquerda. McCarthy, vencedor das primárias em seis estados, terminando a disputa em terceiro lugar, defendia praticamente
uma única plataforma: o fim da Guerra do Vietnã. Toda essa turbulência, aproximação e influência do movimento estudantil em
apoio aos democratas deixaram muitos liberais incomodados.
Siti-in consiste em ocupar totalmente e de forma pacífica um determinado
lugar (pode ser uma praça, uma sala de aula, um escritório, um laboratório
etc.). A ocupação pode ser simplesmente ficar sentado em determinado lugar.
Quando a polícia chega ou há uma ordem de desocupação, a estratégia é
resistir de forma não violenta, forçando a polícia a ter que arrastar ou remover
todos os manifestantes, processo que muitas vezes é lento e pode acabar por
forçar a polícia a desistir. Já o teach-in segue a mesma finalidade dos sit-in,
mas, ao invés de simplesmente ocupar, ocorre uma aula ou palestra de um
convidado ou, simplesmente, um debate que pode, por exemplo, durar uma
noite toda.
20
74
Anos 70: Conservadores se perguntam se não são a maioria
O candidato republicano Richard Nixon não conseguiu mobilizar o mesmo eleitorado seduzido por Goldwater quatro anos
antes, mas atraiu liberais descontentes e teve certo apelo nos estados do Sul devido à desconfiança dos eleitores em relação a todo
e qualquer candidato democrata depois da Lei dos Direitos Civis.
Em torno de Nixon estavam alguns conservadores mais experientes, como Patrick Buchanan e Daniel P. Moynihan. O candidato
também conquistou um forte respaldo entre os católicos. Isso se
deve, em parte, à plataforma política voltada para uma classe média
que não estava se manifestando contra a Guerra do Vietnã e que
poderia ser mais numerosa do que os jovens que estavam protestando nas ruas. Nixon referiu-se a esse eleitorado como “maioria
silenciosa”. Para outros analistas, como Perlstein (2009), trata-se de
plataforma da lei e ordem voltada para a América da classe média,
numa tentativa de volta à normalidade e à vida cotidiana distante
da contracultura da década anterior. Nixon falava a um eleitorado
que não era necessariamente conservador, mas antielitista e antimovimento estudantil.
Na eleição de 1972, Richard Nixon enfrentou um candidato
totalmente identificado com a Nova Esquerda: o professor universitário George McGovern, veterano da II Guerra, filho de pastor e
senador pelo Dakota do Sul. Se a eleição de 1968 foi vencida com
uma margem estreita, nessa o republicano obteve mais de 60%
dos votos. O segundo mandato de Nixon durou até 1973, quando
renunciou em consequência de uma série de escândalos conhecidos como Watergate21. Seu vice, Spiro Agnew, também renunciou,
21
O escândalo conhecido como Watergate envolvia escutas clandestinas ao
Partido Democrata. Envolveu não só Nixon, como também seu vice, Spiro
75
Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
A segunda metade dos anos 1960 e o segundo mandato de
Johnson foram marcados pelo crescimento da violência na Guerra
do Vietnã e, consequentemente, por um aumento da violência nos
protestos e nas manifestações juvenis no campo doméstico. No biênio 1966/67, como nos mostra Sousa (2009), estudantes ocupavam e faziam sit-ins e teach-ins20 intensivamente em universidades
de todo país. A SDS crescia em número de filiados, mas também
se dividia em grupos pacifistas (como a Student Peace Union, que
fazia mobilizações antiguerra) e em outros que defendiam ações de
guerrilha e de terrorismo doméstico (caso da organização Weather
Underground, criada em 1969). A sensação de bifurcamento também ocorria no movimento negro pós-Lei dos Direitos Civis.
Tanto em 1964, como em 1965 ocorreram muitos casos de violência urbana generalizados, suscitados por questões e conflitos
raciais. Em 1965, o ativista e importante líder negro Malcolm-X
foi assassinado no Harlem (Nova Iorque), assim como Martin
Luther King, em Memphis, em abril de 1968. Esses crimes criaram
em uma parcela do movimento negro a busca por uma organização
não integracionista e disposta ao conflito. Nesse contexto, como
nos mostra Sousa (2009), nasceu em Ockland o “Partido Pantera
Negra”, em torno dos ativistas Huey P. Newton e Bobby Seale.
Se a eleição de 1964 foi decisiva para a ideia de uma Nova
Direita, a de 1968 marcou o début de uma Nova Esquerda. Sob
o forte impacto da Guerra do Vietnã, nas primárias do Partido
Democrata, como nos mostra Matuz (2002), havia três candidatos fortes: Hubert Humphrey, Robert Kennedy (assassinado em
1965) e Eugene McCarthy, sendo estes dois últimos mais próximos
da Nova Esquerda. McCarthy, vencedor das primárias em seis estados, terminando a disputa em terceiro lugar, defendia praticamente
uma única plataforma: o fim da Guerra do Vietnã. Toda essa turbulência, aproximação e influência do movimento estudantil em
apoio aos democratas deixaram muitos liberais incomodados.
Siti-in consiste em ocupar totalmente e de forma pacífica um determinado
lugar (pode ser uma praça, uma sala de aula, um escritório, um laboratório
etc.). A ocupação pode ser simplesmente ficar sentado em determinado lugar.
Quando a polícia chega ou há uma ordem de desocupação, a estratégia é
resistir de forma não violenta, forçando a polícia a ter que arrastar ou remover
todos os manifestantes, processo que muitas vezes é lento e pode acabar por
forçar a polícia a desistir. Já o teach-in segue a mesma finalidade dos sit-in,
mas, ao invés de simplesmente ocupar, ocorre uma aula ou palestra de um
convidado ou, simplesmente, um debate que pode, por exemplo, durar uma
noite toda.
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Anos 70: Conservadores se perguntam se não são a maioria
O candidato republicano Richard Nixon não conseguiu mobilizar o mesmo eleitorado seduzido por Goldwater quatro anos
antes, mas atraiu liberais descontentes e teve certo apelo nos estados do Sul devido à desconfiança dos eleitores em relação a todo
e qualquer candidato democrata depois da Lei dos Direitos Civis.
Em torno de Nixon estavam alguns conservadores mais experientes, como Patrick Buchanan e Daniel P. Moynihan. O candidato
também conquistou um forte respaldo entre os católicos. Isso se
deve, em parte, à plataforma política voltada para uma classe média
que não estava se manifestando contra a Guerra do Vietnã e que
poderia ser mais numerosa do que os jovens que estavam protestando nas ruas. Nixon referiu-se a esse eleitorado como “maioria
silenciosa”. Para outros analistas, como Perlstein (2009), trata-se de
plataforma da lei e ordem voltada para a América da classe média,
numa tentativa de volta à normalidade e à vida cotidiana distante
da contracultura da década anterior. Nixon falava a um eleitorado
que não era necessariamente conservador, mas antielitista e antimovimento estudantil.
Na eleição de 1972, Richard Nixon enfrentou um candidato
totalmente identificado com a Nova Esquerda: o professor universitário George McGovern, veterano da II Guerra, filho de pastor e
senador pelo Dakota do Sul. Se a eleição de 1968 foi vencida com
uma margem estreita, nessa o republicano obteve mais de 60%
dos votos. O segundo mandato de Nixon durou até 1973, quando
renunciou em consequência de uma série de escândalos conhecidos como Watergate21. Seu vice, Spiro Agnew, também renunciou,
21
O escândalo conhecido como Watergate envolvia escutas clandestinas ao
Partido Democrata. Envolveu não só Nixon, como também seu vice, Spiro
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Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
assumindo Gerald Ford, tendo Nelson Rockfeller como suplente. O governo Ford/Rockefeller (1974 – 1977), que contava com
maioria no Congresso e tinha um perfil mais liberal na Suprema
Corte, conseguiu aprovar uma série de leis que asseguravam direitos às mulheres, aos imigrantes, outras garantias civis, além do
marco Roe versus Wade e Doe vs. Bolton22, de 1972, que tornou legal
a prática do aborto.
Todas essas transformações suscitaram entre os conservadores
a percepção de crise moral e de ameaça à democracia americana.
Himmelfarb (1998) identifica nos anos sessenta do século XX uma
conjuntura que entende envolver e comprometer os princípios éticos, a família, a civilidade e a cultura, tanto em sua dimensão mais
refinada, como também popular. O legado dos anos dessa década
seria um só: o declínio moral dos EUA, que, por sua vez, estaria
evidenciado pelo aumento da violência, dos crimes, do consumo
de drogas e da pornografia, além do aumento dos divórcios, da
prática de aborto e declínio nos índices de casamento. Diante de
tamanha crise, seria preciso uma mudança de rumo. Caso contrário, como questiona Weaver (1984), a própria existência da civilização moderna poderia estar em risco.
A escolha de George McGovern como candidato dos democratas, em 1972, foi decisiva para que uma série de intelectuais, que
se consideravam liberais, demonstrassem seu desencantamento e
desilusão, a ponto de pouco a pouco irem renovando o espectro
conservador do país. Em síntese, esse é o caso dos intelectuais de
Nova Iorque que ficaram conhecidos posteriormente como neoconservadores.
É o que se dá, por exemplo, com Daniel Bell, que nos anos
de 1970 lecionava em universidades de ponta, como Harvard e
Columbia e figurava entre os pensadores mais influentes da década.
The End of Ideology (sua obra de 1960) era discutida, tanto entre
os círculos da Nova Esquerda, como nos da Nova Direita. Bell se
recusava a aceitar o título de neoconservador, dizendo-se, nos termos de Steinfels (1979), “socialista na economia, liberal na política e conservador nos temas culturais”. Os vínculos que admitia ter
com os adeptos da nova corrente antiliberal era o de ser frequentador de alguns círculos nos quais estes também se mostravam e o de
colaborar com publicações tidas como ligadas a eles, como a Public
Interest e a Commentary. Apesar de relutar em aceitar o titulo de
conservador ou de neoconservador, Bell demonstrava um descontentamento com o liberalismo e com a sociedade de cultura liberal
dos anos de 1960 nos EUA – dos sinais mais fortes da transição
desse grupo para o espectro conservador.
Em 1976, Bell lançou The Cultural Contradiction of Capitalism
com uma discussão focada na cultura. Argumentou que o indivíduo vivia um hedonismo psicodélico, perdido em meio à emergência da multidão e que, sem disciplina, seria uma vítima e, ao
mesmo tempo, um algoz do declínio moral da sociedade. Para o
autor, o liberalismo americano produziu, nos anos de 1970, uma
sociedade em crise espiritual sob risco de uma anarquia cultural.
A crise do indivíduo no liberalismo também foi o foco de Daniel
Patrick Moynihan, que nos anos de 1970 era o rosto mais famoso
dentre os liberais críticos do liberalismo e talvez o único político
neoconservador membro do Partido Democrata (foi senador pelo
partido representando Nova York entre 1977 e 2011).
Nathan Glazer (1988), na mesma linha argumentativa, defendia que o governo, ao propor cotas e outras formas de ações afirmativas, estava produzindo uma discriminação positiva. A relação
desses intelectuais (liberais descontentes) com a questão racial americana é decisiva para uma primeira tentativa de inseri-los entre os
interlocutores e atores do conservadorismo americano. Apesar de
despertarem a ira de muitos liberais que ainda lutavam e defendiam as Leis dos Direitos Civis, o alvo de tais pensadores era mos-
Agnew, entre outros nomes ligados ao partido republicano.
Doe versus Bolton foi uma decisão da Suprema Corte de 1972 que revogou
a tentativa do estado da Geórgia de restringir o aborto. Já a Roe versus Wade
define até qual ponto uma gestação pode ser interrompida. O caso parte da
situação de Norma L. McCorvey, do Texas, onde o aborto era restrito. Norma,
não querendo ter seu terceiro filho, tentou alegar ter sofrido estupro para poder
fazer o aborto. O caso se estendeu com inúmeras complicações e foi levado
à suprema corte. Para uma discussão mais aprofundada, conferir Roe versus
Wade: The Abortion Rights Controversy in American History, de N. E. H. Hull e
Peter Charles Hoffer, Ed. University Press of Kansas, 2010.
22
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Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
assumindo Gerald Ford, tendo Nelson Rockfeller como suplente. O governo Ford/Rockefeller (1974 – 1977), que contava com
maioria no Congresso e tinha um perfil mais liberal na Suprema
Corte, conseguiu aprovar uma série de leis que asseguravam direitos às mulheres, aos imigrantes, outras garantias civis, além do
marco Roe versus Wade e Doe vs. Bolton22, de 1972, que tornou legal
a prática do aborto.
Todas essas transformações suscitaram entre os conservadores
a percepção de crise moral e de ameaça à democracia americana.
Himmelfarb (1998) identifica nos anos sessenta do século XX uma
conjuntura que entende envolver e comprometer os princípios éticos, a família, a civilidade e a cultura, tanto em sua dimensão mais
refinada, como também popular. O legado dos anos dessa década
seria um só: o declínio moral dos EUA, que, por sua vez, estaria
evidenciado pelo aumento da violência, dos crimes, do consumo
de drogas e da pornografia, além do aumento dos divórcios, da
prática de aborto e declínio nos índices de casamento. Diante de
tamanha crise, seria preciso uma mudança de rumo. Caso contrário, como questiona Weaver (1984), a própria existência da civilização moderna poderia estar em risco.
A escolha de George McGovern como candidato dos democratas, em 1972, foi decisiva para que uma série de intelectuais, que
se consideravam liberais, demonstrassem seu desencantamento e
desilusão, a ponto de pouco a pouco irem renovando o espectro
conservador do país. Em síntese, esse é o caso dos intelectuais de
Nova Iorque que ficaram conhecidos posteriormente como neoconservadores.
É o que se dá, por exemplo, com Daniel Bell, que nos anos
de 1970 lecionava em universidades de ponta, como Harvard e
Columbia e figurava entre os pensadores mais influentes da década.
The End of Ideology (sua obra de 1960) era discutida, tanto entre
os círculos da Nova Esquerda, como nos da Nova Direita. Bell se
recusava a aceitar o título de neoconservador, dizendo-se, nos termos de Steinfels (1979), “socialista na economia, liberal na política e conservador nos temas culturais”. Os vínculos que admitia ter
com os adeptos da nova corrente antiliberal era o de ser frequentador de alguns círculos nos quais estes também se mostravam e o de
colaborar com publicações tidas como ligadas a eles, como a Public
Interest e a Commentary. Apesar de relutar em aceitar o titulo de
conservador ou de neoconservador, Bell demonstrava um descontentamento com o liberalismo e com a sociedade de cultura liberal
dos anos de 1960 nos EUA – dos sinais mais fortes da transição
desse grupo para o espectro conservador.
Em 1976, Bell lançou The Cultural Contradiction of Capitalism
com uma discussão focada na cultura. Argumentou que o indivíduo vivia um hedonismo psicodélico, perdido em meio à emergência da multidão e que, sem disciplina, seria uma vítima e, ao
mesmo tempo, um algoz do declínio moral da sociedade. Para o
autor, o liberalismo americano produziu, nos anos de 1970, uma
sociedade em crise espiritual sob risco de uma anarquia cultural.
A crise do indivíduo no liberalismo também foi o foco de Daniel
Patrick Moynihan, que nos anos de 1970 era o rosto mais famoso
dentre os liberais críticos do liberalismo e talvez o único político
neoconservador membro do Partido Democrata (foi senador pelo
partido representando Nova York entre 1977 e 2011).
Nathan Glazer (1988), na mesma linha argumentativa, defendia que o governo, ao propor cotas e outras formas de ações afirmativas, estava produzindo uma discriminação positiva. A relação
desses intelectuais (liberais descontentes) com a questão racial americana é decisiva para uma primeira tentativa de inseri-los entre os
interlocutores e atores do conservadorismo americano. Apesar de
despertarem a ira de muitos liberais que ainda lutavam e defendiam as Leis dos Direitos Civis, o alvo de tais pensadores era mos-
Agnew, entre outros nomes ligados ao partido republicano.
Doe versus Bolton foi uma decisão da Suprema Corte de 1972 que revogou
a tentativa do estado da Geórgia de restringir o aborto. Já a Roe versus Wade
define até qual ponto uma gestação pode ser interrompida. O caso parte da
situação de Norma L. McCorvey, do Texas, onde o aborto era restrito. Norma,
não querendo ter seu terceiro filho, tentou alegar ter sofrido estupro para poder
fazer o aborto. O caso se estendeu com inúmeras complicações e foi levado
à suprema corte. Para uma discussão mais aprofundada, conferir Roe versus
Wade: The Abortion Rights Controversy in American History, de N. E. H. Hull e
Peter Charles Hoffer, Ed. University Press of Kansas, 2010.
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Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
trar sua diferença em relação aos conservadores sulistas, que não
só se opunham às políticas afirmativas, mas, sobretudo, eram contra a própria proposta das Leis.23 A partir desse ponto é possível
argumentar, como sinaliza Gottfried (2007), para o nascimento
de uma Nova Direita, separando-a dos conservadores sulistas, os
grupos e atores que defendiam a segregação racial e que tinham
uma argumentação anti-igualitária. Essa Nova Direita seria pró-Direitos Civis, antirracista, simpática a lideranças negras, como
Martin Luther King Jr., sendo apenas contrária às ações afirmativas
e às políticas de bem-estar social que beneficiam seguindo critérios
étnico-raciais.
Irving Kristol – por muitos considerado o pai do neoconservadorismo – em seus textos produzidos principalmente para a
Commentary, a Public Interest e para a Encounter (sendo delas editor), aponta que durante os anos setenta do século XX, para além
da preocupação com o indivíduo, cresce em importância a autoridade, argumentando que na sociedade liberal de seu tempo,
o grande risco estava na crise moral pela qual os EUA passavam.
Para ele, se a crise era moral, só poderia haver uma solução moral.
Decorre de tal argumento a ideia de que sua aposta é a volta da
religião como um instrumento e como uma totalidade que igualaria e educaria moralmente os indivíduos.
Kristol, durante a década de 1970, contribuiu e escreveu em
espaços de grande influência, como no Wall Street Journal, colocando-se como um liberal que se recusou a mudar, denunciando
o que considerava vulgaridade e imoralidade da sociedade americana de seu tempo. Em seus textos também discutia os rumos do
capitalismo, questionando os limites da racionalidade do sistema,
para os quais também cobrava embasamento ético e moral. Kristol,
que já tinha sido socialista, nunca chegou a ser um entusiasta do
capitalismo. Apesar disso, como nos mostra Hoeveler (1991), foi
por meio da sua influência e da sua de rede de contatos com fundações e think tanks conservadores que economistas e intelectuais que
defendiam a estratégia econômica do Supply-side24 receberam apoio
e incentivo25 para pesquisas e divulgação de suas ideias.
Entre os principais beneficiários, como lemos em Hoeveler
(1991) e Blumenthal (1988), estavam Arthur Laffer e Milton
Friedman. Friedman, no começo de sua carreira, trabalhou como
estatístico durante o New Deal e nas décadas de 1950 e 1960 passou a discutir e a defender a ideia de um capitalismo de livre mercado como professor da Escola de Chicago, definindo-se, então,
como um liberal no sentido econômico do termo e evitando colocar-se como conservador.
Em 1976, Friedman ganhou o Nobel de economia, aumentando ainda mais sua influência, principalmente por meio do relançamento de seu livro Capitalism and Freedom, lançado em 1962.
Seu destaque dentre os pensadores econômicos do final dos anos
de 1960 foi boa parte impulsionado pelo nascente neoconservadorismo. A relação entre o neoliberalismo, que parte das teorias de
livre mercado e o neoconservadorismo dos intelectuais de Nova
Iorque pode tanto reforçar a tese de que os segundos nunca deixaram totalmente a plataforma liberal, como também pode servir
para argumentar que houve uma mudança de lado, na medida em
que intelectuais, como Daniel Bell e Irving Kristol, diagnosticavam
uma crise moral e temiam a ameaça do niilismo à sociedade capitalista moderna. Em boa medida, fruto das políticas keynesianas
Nesse ponto, os neoconservadores também se afastavam de muitos
libertários que eram contrários à Emenda dos Direitos Civis, dentre eles
podemos citar Ayn Rand, que argumentava: “O Racismo privado não é uma
questão legal, mas moral – e pode ser combatido apenas por meios privados,
como boicote econômico ou ostracismo social”. (Rand, 1972, p. 108).
Kristol indicou Leslie Lenkowsky, um professor de administração pública da
Universidade de Indiana, defensor e pesquisador do Supply – side economics,
para trabalhar na Fundação Smith-Richardson. Na AEI, onde Kristol era
pesquisador sênior, ele indicou e incentivou as pesquisas em torno de temas de
Supply – side economics de Michael Novak e George Gilder, entre outros.
23
78
A Supply-side economics é uma teoria aplicada na economia, mas que
parte de uma leitura do comportamento humano. São dois os princípios
fundamentais: (i) cortar gastos e aumentar a arrecadação do governo e (ii) a
ideia de que “a oferta cria sua própria demanda”. Essa teoria entrou no debate
cotidiano a partir do governo Reagan, que formou seu gabinete com nomes
entusiastas dessa teoria. Para uma discussão mais aprofundada, cf. de Bruce
R. Bartlett, Reaganomics: Supply-side economics in action, Ed. Quill, NY, 1982.
24
25
79
Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
trar sua diferença em relação aos conservadores sulistas, que não
só se opunham às políticas afirmativas, mas, sobretudo, eram contra a própria proposta das Leis.23 A partir desse ponto é possível
argumentar, como sinaliza Gottfried (2007), para o nascimento
de uma Nova Direita, separando-a dos conservadores sulistas, os
grupos e atores que defendiam a segregação racial e que tinham
uma argumentação anti-igualitária. Essa Nova Direita seria pró-Direitos Civis, antirracista, simpática a lideranças negras, como
Martin Luther King Jr., sendo apenas contrária às ações afirmativas
e às políticas de bem-estar social que beneficiam seguindo critérios
étnico-raciais.
Irving Kristol – por muitos considerado o pai do neoconservadorismo – em seus textos produzidos principalmente para a
Commentary, a Public Interest e para a Encounter (sendo delas editor), aponta que durante os anos setenta do século XX, para além
da preocupação com o indivíduo, cresce em importância a autoridade, argumentando que na sociedade liberal de seu tempo,
o grande risco estava na crise moral pela qual os EUA passavam.
Para ele, se a crise era moral, só poderia haver uma solução moral.
Decorre de tal argumento a ideia de que sua aposta é a volta da
religião como um instrumento e como uma totalidade que igualaria e educaria moralmente os indivíduos.
Kristol, durante a década de 1970, contribuiu e escreveu em
espaços de grande influência, como no Wall Street Journal, colocando-se como um liberal que se recusou a mudar, denunciando
o que considerava vulgaridade e imoralidade da sociedade americana de seu tempo. Em seus textos também discutia os rumos do
capitalismo, questionando os limites da racionalidade do sistema,
para os quais também cobrava embasamento ético e moral. Kristol,
que já tinha sido socialista, nunca chegou a ser um entusiasta do
capitalismo. Apesar disso, como nos mostra Hoeveler (1991), foi
por meio da sua influência e da sua de rede de contatos com fundações e think tanks conservadores que economistas e intelectuais que
defendiam a estratégia econômica do Supply-side24 receberam apoio
e incentivo25 para pesquisas e divulgação de suas ideias.
Entre os principais beneficiários, como lemos em Hoeveler
(1991) e Blumenthal (1988), estavam Arthur Laffer e Milton
Friedman. Friedman, no começo de sua carreira, trabalhou como
estatístico durante o New Deal e nas décadas de 1950 e 1960 passou a discutir e a defender a ideia de um capitalismo de livre mercado como professor da Escola de Chicago, definindo-se, então,
como um liberal no sentido econômico do termo e evitando colocar-se como conservador.
Em 1976, Friedman ganhou o Nobel de economia, aumentando ainda mais sua influência, principalmente por meio do relançamento de seu livro Capitalism and Freedom, lançado em 1962.
Seu destaque dentre os pensadores econômicos do final dos anos
de 1960 foi boa parte impulsionado pelo nascente neoconservadorismo. A relação entre o neoliberalismo, que parte das teorias de
livre mercado e o neoconservadorismo dos intelectuais de Nova
Iorque pode tanto reforçar a tese de que os segundos nunca deixaram totalmente a plataforma liberal, como também pode servir
para argumentar que houve uma mudança de lado, na medida em
que intelectuais, como Daniel Bell e Irving Kristol, diagnosticavam
uma crise moral e temiam a ameaça do niilismo à sociedade capitalista moderna. Em boa medida, fruto das políticas keynesianas
Nesse ponto, os neoconservadores também se afastavam de muitos
libertários que eram contrários à Emenda dos Direitos Civis, dentre eles
podemos citar Ayn Rand, que argumentava: “O Racismo privado não é uma
questão legal, mas moral – e pode ser combatido apenas por meios privados,
como boicote econômico ou ostracismo social”. (Rand, 1972, p. 108).
Kristol indicou Leslie Lenkowsky, um professor de administração pública da
Universidade de Indiana, defensor e pesquisador do Supply – side economics,
para trabalhar na Fundação Smith-Richardson. Na AEI, onde Kristol era
pesquisador sênior, ele indicou e incentivou as pesquisas em torno de temas de
Supply – side economics de Michael Novak e George Gilder, entre outros.
23
78
A Supply-side economics é uma teoria aplicada na economia, mas que
parte de uma leitura do comportamento humano. São dois os princípios
fundamentais: (i) cortar gastos e aumentar a arrecadação do governo e (ii) a
ideia de que “a oferta cria sua própria demanda”. Essa teoria entrou no debate
cotidiano a partir do governo Reagan, que formou seu gabinete com nomes
entusiastas dessa teoria. Para uma discussão mais aprofundada, cf. de Bruce
R. Bartlett, Reaganomics: Supply-side economics in action, Ed. Quill, NY, 1982.
24
25
79
Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
e de bem-estar social, tais pensadores buscariam, portanto, uma
mudança de rumo, de sentido, uma nova ética para um capitalismo eticamente em crise e para uma sociedade moralmente frágil.
Outro ponto importante que devemos frisar é que a associação dos
neoconservadores à defesa do livre mercado está em ressonância
com uma renovação que, como nos mostra Gray (2007), também
ocorre na Europa, principalmente na Inglaterra onde, partindo de
novas leituras e novas discussões em torno das obras de Friedrich
Hayek26 (1899 – 1992), boa parte da direita e do pensamento conservador europeu era renovada.
Kristol, Glazer, Moynihan, Bell, entre outros nomes como
James Q. Wilson e Edward Banfield, além de serem liberais críticos
do liberalismo, tinham outras coisas em comum. Eles escreviam
basicamente em duas revistas, a Commentary, da qual Norman
Podhoretz tinha se tornado editor, e na The Public Interest, do próprio Irving Kristol. Suas pesquisas vinham basicamente da mesma
fonte, a AEI, que buscava fomentar trabalhos de viés político e
econômico críticos ao liberalismo. Ainda na década de cinquenta, estavam principalmente sob a liderança de Daniel Bell, no
American Committee for Cultural Freedom (ACCF), que, por sua
vez, era vinculado ao Congress for Cultural Freedom (CCF), no qual
Irving Kristol se destacou no final dos anos de 1960. Mas as raízes
desse grupo de intelectuais liberais são mais profundas e chegam
aos anos de 1930 e 40.
Para Steinfels (1979), esse grupo, que posteriormente ficou
conhecido como a primeira geração do pensamento neoconservador, já estava articulado e já se conhecia do movimento estudantil
de NY, no final dos anos de 1930, especialmente no City College,
onde estudavam os filhos da classe média. Enquanto estudantes,
esse grupo se identificava como socialista, mas não comunista; os
comunistas, muito mais populares e numerosos entre os estudantes
estavam na Alcove N. 2, restando a Alcove N.1 para os críticos do
stalinismo, além de ser um reduto para os poucos trotskistas que
estavam filiados ao Young People´s Socialist League27. O fato de ser
minoria e de ter um adversário ideológico forte e hegemônico fez
com que esse grupo criasse laços intelectuais fortes, buscasse seus
próprios meios e espaços para comunicação, além de forçar-se a
ser disciplinado nos estudos e bem treinado para os debates. Esses
intelectuais sempre tiveram clara a ideia de ser uma classe e de que,
para se firmarem ou para serem influentes, teriam que disputar o
poder com outras classes. Isso pode nos ajudar a entender o porquê
de um estranhamento inicial e de uma grande resistência quando
seus críticos passaram a se dirigir a eles como neoconservadores.
Ser ou não ser conservador não era a questão teórica para Daniel
Bell nem para Irving Kristol ou para a sua geração da Alcova 1.
Antes estavam preocupados com os rumos do liberalismo. O liberalismo que essa geração aprendeu, ensinada por professores como
Leo Strauss, Sidney Hook e Lionel Trilling, via os anos de 1960
como desastrosos e imorais para os rumos, não só da democracia
nos EUA, como também para a própria sociedade ocidental. Isso
se deu de tal forma que eles se colocavam muito mais como verdadeiros liberais dispostos a corrigir o rumo. Só seriam conservadores se o termo fosse aplicado no sentido de defesa e conservação
do ethos liberal. Em síntese, essa seria uma defesa do capitalismo
(em sua vertente de livre mercado), retomando a ideia de secularismo e valorizando a comunidade em oposição a mudanças radicais
como revoluções, por exemplo. Se ser neoconservador significava
defender o ethos liberal e apresentar uma alternativa, quando não
uma solução para a crise moral dos EUA, eles não temiam as críticas, pois já estavam acostumados a ouvi-las desde os anos de 1940,
quando deixaram o rótulo de socialistas para abraçar o de liberais.
A tentativa de mudança de rumo para o liberalismo americano
ocorria, tanto na esfera doméstica, onde o foco era as consequências negativas dos anos sessenta e do EBS, como também na política externa, preocupada com rumos dados à Guerra Fria. No debate doméstico, destacaram-se Daniel Bell, Nathan Glazer e Irving
Kristol fazendo a crítica às transformações negativas dos anos
26
Tal como encontramos em Diamond (1995), Hayek também começou sua
trajetória intelectual como socialista, assim como os neoconservadores.
80
27
A rivalidade desse grupo era diante da Young Communist League.
81
Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
e de bem-estar social, tais pensadores buscariam, portanto, uma
mudança de rumo, de sentido, uma nova ética para um capitalismo eticamente em crise e para uma sociedade moralmente frágil.
Outro ponto importante que devemos frisar é que a associação dos
neoconservadores à defesa do livre mercado está em ressonância
com uma renovação que, como nos mostra Gray (2007), também
ocorre na Europa, principalmente na Inglaterra onde, partindo de
novas leituras e novas discussões em torno das obras de Friedrich
Hayek26 (1899 – 1992), boa parte da direita e do pensamento conservador europeu era renovada.
Kristol, Glazer, Moynihan, Bell, entre outros nomes como
James Q. Wilson e Edward Banfield, além de serem liberais críticos
do liberalismo, tinham outras coisas em comum. Eles escreviam
basicamente em duas revistas, a Commentary, da qual Norman
Podhoretz tinha se tornado editor, e na The Public Interest, do próprio Irving Kristol. Suas pesquisas vinham basicamente da mesma
fonte, a AEI, que buscava fomentar trabalhos de viés político e
econômico críticos ao liberalismo. Ainda na década de cinquenta, estavam principalmente sob a liderança de Daniel Bell, no
American Committee for Cultural Freedom (ACCF), que, por sua
vez, era vinculado ao Congress for Cultural Freedom (CCF), no qual
Irving Kristol se destacou no final dos anos de 1960. Mas as raízes
desse grupo de intelectuais liberais são mais profundas e chegam
aos anos de 1930 e 40.
Para Steinfels (1979), esse grupo, que posteriormente ficou
conhecido como a primeira geração do pensamento neoconservador, já estava articulado e já se conhecia do movimento estudantil
de NY, no final dos anos de 1930, especialmente no City College,
onde estudavam os filhos da classe média. Enquanto estudantes,
esse grupo se identificava como socialista, mas não comunista; os
comunistas, muito mais populares e numerosos entre os estudantes
estavam na Alcove N. 2, restando a Alcove N.1 para os críticos do
stalinismo, além de ser um reduto para os poucos trotskistas que
estavam filiados ao Young People´s Socialist League27. O fato de ser
minoria e de ter um adversário ideológico forte e hegemônico fez
com que esse grupo criasse laços intelectuais fortes, buscasse seus
próprios meios e espaços para comunicação, além de forçar-se a
ser disciplinado nos estudos e bem treinado para os debates. Esses
intelectuais sempre tiveram clara a ideia de ser uma classe e de que,
para se firmarem ou para serem influentes, teriam que disputar o
poder com outras classes. Isso pode nos ajudar a entender o porquê
de um estranhamento inicial e de uma grande resistência quando
seus críticos passaram a se dirigir a eles como neoconservadores.
Ser ou não ser conservador não era a questão teórica para Daniel
Bell nem para Irving Kristol ou para a sua geração da Alcova 1.
Antes estavam preocupados com os rumos do liberalismo. O liberalismo que essa geração aprendeu, ensinada por professores como
Leo Strauss, Sidney Hook e Lionel Trilling, via os anos de 1960
como desastrosos e imorais para os rumos, não só da democracia
nos EUA, como também para a própria sociedade ocidental. Isso
se deu de tal forma que eles se colocavam muito mais como verdadeiros liberais dispostos a corrigir o rumo. Só seriam conservadores se o termo fosse aplicado no sentido de defesa e conservação
do ethos liberal. Em síntese, essa seria uma defesa do capitalismo
(em sua vertente de livre mercado), retomando a ideia de secularismo e valorizando a comunidade em oposição a mudanças radicais
como revoluções, por exemplo. Se ser neoconservador significava
defender o ethos liberal e apresentar uma alternativa, quando não
uma solução para a crise moral dos EUA, eles não temiam as críticas, pois já estavam acostumados a ouvi-las desde os anos de 1940,
quando deixaram o rótulo de socialistas para abraçar o de liberais.
A tentativa de mudança de rumo para o liberalismo americano
ocorria, tanto na esfera doméstica, onde o foco era as consequências negativas dos anos sessenta e do EBS, como também na política externa, preocupada com rumos dados à Guerra Fria. No debate doméstico, destacaram-se Daniel Bell, Nathan Glazer e Irving
Kristol fazendo a crítica às transformações negativas dos anos
26
Tal como encontramos em Diamond (1995), Hayek também começou sua
trajetória intelectual como socialista, assim como os neoconservadores.
80
27
A rivalidade desse grupo era diante da Young Communist League.
81
Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
1960, mostrando a perversidade do EBS, principalmente da Great
Society de LBJ e oposição às ações afirmativas, discutindo o colapso
moral e da autoridade diante de um indivíduo niilista hedonista e
perdido em meio à emergência das massas. Nesse ponto, os neoconservadores, apesar da retórica mais sofisticada com referências
à filosofia política e aos temas morais e religiosos, não se diferenciavam muito da agenda, tanto do conservadorismo proposto por
Barry Goldwater, em 1964, como das ideias defendidas pelos círculos próximos a William Buckley Jr. A grande diferença entre os
que estavam com Goldwater ou Buckley, é que os primeiros não
hesitavam em se dizerem e se afirmarem como conservadores. Essas
três forças pareciam ter se encontrado no cruzamento entre a defesa
do capitalismo moderno de livre mercado e livre iniciativa com respaldo moral, institucional e de autoridades fortes, tentando superar
os anos de 1960, resgatar e reeditar os valores tradicionais que eram
tidos como conservadores28 (liberdade, família com papéis e gêneros bem definidos, propriedade sociedade civil separada da administração pública etc.).
A diferenciação dos neoconservadores dentro do espectro conservador surge em suas propostas e na visão de mundo que tinham
para os EUA na política internacional. Nesse sentido, o esforço começou com Daniel Moynihan que, como senador a partir
de 1972, adotou como prioridade atuar na Comissão de Política
Externa. Norman Podhoretz, como editor e colaborador da revista Commentary, defendia outro rumo estratégico na Guerra Fria29.
Francis Fukuyama, então um jovem doutor em Harvard, criticava o otimismo da política externa de JFK. Charles Krauthammer,
um psiquiatra que decidiu ser articulista e comentarista político,
denunciava o isolacionismo que, na sua opinião, direcionava a
política externa dos democratas, propondo mais intervencionismo
do que mero internacionalismo. Com a mesma lógica de cobrar
mais ação, Jeane Kirkpatrick questionava a eficácia da contenção diante da URSS, bem como da legitimidade de organizações
internacionais como a ONU30. De forma dispersa e não mais concentrada somente aos círculos de NY, os neoconservadores propunham, diante da Guerra Fria, uma política externa mais agressiva,
intervencionista ou, nos termos de Mead (2005), wilsioniana.
O foco trazido por essas discussões em torno da política
externa enfraqueceu atores até então fortes do conservadorismo
americano, principalmente os libertários que, nesse campo de
debate, eram isolacionistas ou, quando muito, seguiam o realismo clássico de Morgenthau. A causa anti-EBS e anti-impostos,
sólidas bandeiras dos libertários, assim como a oposição às ações
afirmativas, há muito tempo discutidas nos círculos libertários,
permaneciam na agenda, mas o isolacionismo passou a ser categoricamente descartado. E toda a preocupação com a crise moral
e com o colapso da autoridade trazia à tona uma linha mais tradicionalista que faz referência a autores como Leo Strauss, Allan
Bloom, Eric Voegelin e Richard Weaver. Para alguns autores,
como Blumenthal (1988), esse é um dos momentos em que
podemos separar uma nova de uma velha direita e, para outros,
como Kagan (2006) e Teixeira (2007), é pela política externa que
os neoconservadores conseguem se destacar e firmar seu espaço
no conservadorismo americano. Entre críticas ao isolacionismo e
à retomada de uma vertente conservadora mais tradicionalista é
que podemos efetivamente pensar qual é a novidade trazida pelos
neoconservadores e quão emblemática é a relação desses intelectuais com o pensamento e o movimento conservador americano.
Hoeveler (1991), por exemplo, ao analisar a trajetória de Irving
Kristol, enfatiza o diálogo desse autor com os tradicionalistas.
Chega a concluir que Kristol não inventou o neoconservadorismo,
Para os neoconservadores esses valores poderiam ser chamados de moldura
liberal.
28
O ponto central da critica de Podhoretz era quanto aos rumos da Guerra
com foco na détente. Para ele, esse rumo teria como fim o isolacionismo e
somente fortaleceria os soviéticos. Cf. banco de artigos de Norman Podhoretz
na revista Commentary, alguns estão disponíveis online em: http://www.
commentarymagazine.com/search/. Acessado em: 01/05/2012.
29
82
Como nos mostra Hoeveler (1991), tanto Krauthamer, como Kirkpatrick
entendiam que se os EUA têm na ONU o mesmo status que todos os outros
países, ao invés de se comportarem como um estado forte, se igualariam aos
estados fracos, o que só favorecia a URSS.
30
83
Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
1960, mostrando a perversidade do EBS, principalmente da Great
Society de LBJ e oposição às ações afirmativas, discutindo o colapso
moral e da autoridade diante de um indivíduo niilista hedonista e
perdido em meio à emergência das massas. Nesse ponto, os neoconservadores, apesar da retórica mais sofisticada com referências
à filosofia política e aos temas morais e religiosos, não se diferenciavam muito da agenda, tanto do conservadorismo proposto por
Barry Goldwater, em 1964, como das ideias defendidas pelos círculos próximos a William Buckley Jr. A grande diferença entre os
que estavam com Goldwater ou Buckley, é que os primeiros não
hesitavam em se dizerem e se afirmarem como conservadores. Essas
três forças pareciam ter se encontrado no cruzamento entre a defesa
do capitalismo moderno de livre mercado e livre iniciativa com respaldo moral, institucional e de autoridades fortes, tentando superar
os anos de 1960, resgatar e reeditar os valores tradicionais que eram
tidos como conservadores28 (liberdade, família com papéis e gêneros bem definidos, propriedade sociedade civil separada da administração pública etc.).
A diferenciação dos neoconservadores dentro do espectro conservador surge em suas propostas e na visão de mundo que tinham
para os EUA na política internacional. Nesse sentido, o esforço começou com Daniel Moynihan que, como senador a partir
de 1972, adotou como prioridade atuar na Comissão de Política
Externa. Norman Podhoretz, como editor e colaborador da revista Commentary, defendia outro rumo estratégico na Guerra Fria29.
Francis Fukuyama, então um jovem doutor em Harvard, criticava o otimismo da política externa de JFK. Charles Krauthammer,
um psiquiatra que decidiu ser articulista e comentarista político,
denunciava o isolacionismo que, na sua opinião, direcionava a
política externa dos democratas, propondo mais intervencionismo
do que mero internacionalismo. Com a mesma lógica de cobrar
mais ação, Jeane Kirkpatrick questionava a eficácia da contenção diante da URSS, bem como da legitimidade de organizações
internacionais como a ONU30. De forma dispersa e não mais concentrada somente aos círculos de NY, os neoconservadores propunham, diante da Guerra Fria, uma política externa mais agressiva,
intervencionista ou, nos termos de Mead (2005), wilsioniana.
O foco trazido por essas discussões em torno da política
externa enfraqueceu atores até então fortes do conservadorismo
americano, principalmente os libertários que, nesse campo de
debate, eram isolacionistas ou, quando muito, seguiam o realismo clássico de Morgenthau. A causa anti-EBS e anti-impostos,
sólidas bandeiras dos libertários, assim como a oposição às ações
afirmativas, há muito tempo discutidas nos círculos libertários,
permaneciam na agenda, mas o isolacionismo passou a ser categoricamente descartado. E toda a preocupação com a crise moral
e com o colapso da autoridade trazia à tona uma linha mais tradicionalista que faz referência a autores como Leo Strauss, Allan
Bloom, Eric Voegelin e Richard Weaver. Para alguns autores,
como Blumenthal (1988), esse é um dos momentos em que
podemos separar uma nova de uma velha direita e, para outros,
como Kagan (2006) e Teixeira (2007), é pela política externa que
os neoconservadores conseguem se destacar e firmar seu espaço
no conservadorismo americano. Entre críticas ao isolacionismo e
à retomada de uma vertente conservadora mais tradicionalista é
que podemos efetivamente pensar qual é a novidade trazida pelos
neoconservadores e quão emblemática é a relação desses intelectuais com o pensamento e o movimento conservador americano.
Hoeveler (1991), por exemplo, ao analisar a trajetória de Irving
Kristol, enfatiza o diálogo desse autor com os tradicionalistas.
Chega a concluir que Kristol não inventou o neoconservadorismo,
Para os neoconservadores esses valores poderiam ser chamados de moldura
liberal.
28
O ponto central da critica de Podhoretz era quanto aos rumos da Guerra
com foco na détente. Para ele, esse rumo teria como fim o isolacionismo e
somente fortaleceria os soviéticos. Cf. banco de artigos de Norman Podhoretz
na revista Commentary, alguns estão disponíveis online em: http://www.
commentarymagazine.com/search/. Acessado em: 01/05/2012.
29
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Como nos mostra Hoeveler (1991), tanto Krauthamer, como Kirkpatrick
entendiam que se os EUA têm na ONU o mesmo status que todos os outros
países, ao invés de se comportarem como um estado forte, se igualariam aos
estados fracos, o que só favorecia a URSS.
30
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Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
tampouco mudou de liberal para conservador. Ele sempre teria sido
um conservador tradicionalista. Já Gottfried (2007) argumenta que
Kristol e a primeira geração de neoconservadores, ao negarem a
tradição isolacionista e ao proporem um novo direcionamento para
a política externa, estariam tentando mudar os valores e reinventar as tradições do conservadorismo americano, às quais esse grupo
não teria qualquer apreço.
Somando o senso de crise doméstica com um questionamento
da postura americana na política internacional, os neoconservadores
imprimiram ao conservadorismo dos anos de 1970 um senso de crise
de confiança, tanto no poder americano, como diante das próprias
instituições e da democracia da sociedade civil estadunidense.
Diante do senso de crise e da urgência de uma mudança de
rumo, surgiram, no final dos anos de 1970, outros movimentos
que pretendiam ser uma reação ou até mesmo uma proposta de
contrarrevolução frente ao que entendiam ser a revolução cultural dos anos 1960. Esse foi o caso de movimentos liderados por
mulheres que se colocavam contra o feminismo e contra as bandeiras das feministas associadas a direitos iguais nas relações de gênero,
direito a trabalhar fora de casa, direito ao aborto, direito a métodos
contraceptivos, maior engajamento e participação na política local
e nacional, entre os principais.
Mulheres como Phyllis Schlafly e Beverly LaHaye reagiram à
Emenda dos Direitos Iguais, proposta em 1972, que tinha em sua
primeira redação a afirmação de que não poderia haver discriminação por sexo. Martha Griffiths, uma advogada de Michigan, é
sem dúvida o principal símbolo dessa conquista. Ela foi uma das
mulheres pioneiras na política americana dos anos de 1950 e,
como advogada, trabalhou na emenda dos Direitos Civis, onde
incluiu uma série de artigos proibindo a discriminação por sexo/
gênero. Tais políticas representavam, para as mulheres conservadoras, uma grande ameaça ao casamento e à própria família. Schlafly
(1978) entendia, por isso, que a Emenda dos Direitos Iguais era
imoral, uma consequência de uma política liberal que valorizava
o individualismo, o hedonismo e o niilismo. Seu esforço foi o de
construir uma mobilização de base. A tática funcionou e a Emenda
foi rejeitada em trinta e oito dos estados da União. Mais do que
a simbologia da vitória, a estratégia de vencer a disputa na base e
não no topo do processo decisório traz uma grande novidade para
a mobilização e para a trajetória do pensamento conservador nos
EUA. Tal tática mostrava que a ação direta com foco local poderia ter resultados políticos muito favoráveis para as causas e para a
agenda conservadora. A saga de Schlafly contra os Direitos Iguais
e contra o aborto inspirou, na forma de mobilização e de ação,
grupos que se diziam defensores das bandeiras conservadoras31,
como por exemplo, Focus on the Family (1977), Family Research
Council (1982), Traditional Values Coalition (1980) e o Citizens for
Excellence in Education (1983) e, mais recentemente, o Independent
Women’s Forum (1991).
Foi com esse espírito que, a partir de 1973, tanto Phyllis
Schlafly, como Beverly LaHaye passaram a militar e a se organizar contra a decisão Roe versus Wade, que legalizou o aborto. Nesse
mesmo ano, Schlafly idealizou e fomentou o Eagle Forum, uma
organização descentralizada, articulada e mobilizada por voluntários que poderiam agir no âmbito de bairros, cidades e estados.
Essa forma de mobilização e de organização foi um marco para o
conservadorismo americano, de modo que passou a ser copiada por
outros ativistas, passando a ser decisiva para vitórias políticas e eleitorais do movimento.
Schafly (1978) relacionava a conquista do direito ao aborto
à revolução sexual dos anos de 1960. Entre outras coisas, para a
autora, a conquista teria incentivado as mulheres a não se casar
(quando já casadas, a se divorciarem), a serem promíscuas e precoces na vida sexual. Tudo isso seria sintoma de uma crise moral pró-
84
Os temas mobilizados abrangiam desde as da contestações ao aborto,
aos gays, às feministas, que defendiam os direitos das mulheres, da família
e dos religiosos (que queriam, por exemplo, o direito de rezar nas escolas
públicas), que queriam mais pena de morte e leis mais rígidas contra o
divórcio, contra o consumo de drogas; que queriam proibir a pornografia,
entre vários outros temas. Para uma discussão mais aprofundada conferir
Donald T. Critchlow, Phyllis Schlafly and Grassroots Conservatism, ed.
Princeton University Press, 2007.
31
85
Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
tampouco mudou de liberal para conservador. Ele sempre teria sido
um conservador tradicionalista. Já Gottfried (2007) argumenta que
Kristol e a primeira geração de neoconservadores, ao negarem a
tradição isolacionista e ao proporem um novo direcionamento para
a política externa, estariam tentando mudar os valores e reinventar as tradições do conservadorismo americano, às quais esse grupo
não teria qualquer apreço.
Somando o senso de crise doméstica com um questionamento
da postura americana na política internacional, os neoconservadores
imprimiram ao conservadorismo dos anos de 1970 um senso de crise
de confiança, tanto no poder americano, como diante das próprias
instituições e da democracia da sociedade civil estadunidense.
Diante do senso de crise e da urgência de uma mudança de
rumo, surgiram, no final dos anos de 1970, outros movimentos
que pretendiam ser uma reação ou até mesmo uma proposta de
contrarrevolução frente ao que entendiam ser a revolução cultural dos anos 1960. Esse foi o caso de movimentos liderados por
mulheres que se colocavam contra o feminismo e contra as bandeiras das feministas associadas a direitos iguais nas relações de gênero,
direito a trabalhar fora de casa, direito ao aborto, direito a métodos
contraceptivos, maior engajamento e participação na política local
e nacional, entre os principais.
Mulheres como Phyllis Schlafly e Beverly LaHaye reagiram à
Emenda dos Direitos Iguais, proposta em 1972, que tinha em sua
primeira redação a afirmação de que não poderia haver discriminação por sexo. Martha Griffiths, uma advogada de Michigan, é
sem dúvida o principal símbolo dessa conquista. Ela foi uma das
mulheres pioneiras na política americana dos anos de 1950 e,
como advogada, trabalhou na emenda dos Direitos Civis, onde
incluiu uma série de artigos proibindo a discriminação por sexo/
gênero. Tais políticas representavam, para as mulheres conservadoras, uma grande ameaça ao casamento e à própria família. Schlafly
(1978) entendia, por isso, que a Emenda dos Direitos Iguais era
imoral, uma consequência de uma política liberal que valorizava
o individualismo, o hedonismo e o niilismo. Seu esforço foi o de
construir uma mobilização de base. A tática funcionou e a Emenda
foi rejeitada em trinta e oito dos estados da União. Mais do que
a simbologia da vitória, a estratégia de vencer a disputa na base e
não no topo do processo decisório traz uma grande novidade para
a mobilização e para a trajetória do pensamento conservador nos
EUA. Tal tática mostrava que a ação direta com foco local poderia ter resultados políticos muito favoráveis para as causas e para a
agenda conservadora. A saga de Schlafly contra os Direitos Iguais
e contra o aborto inspirou, na forma de mobilização e de ação,
grupos que se diziam defensores das bandeiras conservadoras31,
como por exemplo, Focus on the Family (1977), Family Research
Council (1982), Traditional Values Coalition (1980) e o Citizens for
Excellence in Education (1983) e, mais recentemente, o Independent
Women’s Forum (1991).
Foi com esse espírito que, a partir de 1973, tanto Phyllis
Schlafly, como Beverly LaHaye passaram a militar e a se organizar contra a decisão Roe versus Wade, que legalizou o aborto. Nesse
mesmo ano, Schlafly idealizou e fomentou o Eagle Forum, uma
organização descentralizada, articulada e mobilizada por voluntários que poderiam agir no âmbito de bairros, cidades e estados.
Essa forma de mobilização e de organização foi um marco para o
conservadorismo americano, de modo que passou a ser copiada por
outros ativistas, passando a ser decisiva para vitórias políticas e eleitorais do movimento.
Schafly (1978) relacionava a conquista do direito ao aborto
à revolução sexual dos anos de 1960. Entre outras coisas, para a
autora, a conquista teria incentivado as mulheres a não se casar
(quando já casadas, a se divorciarem), a serem promíscuas e precoces na vida sexual. Tudo isso seria sintoma de uma crise moral pró-
84
Os temas mobilizados abrangiam desde as da contestações ao aborto,
aos gays, às feministas, que defendiam os direitos das mulheres, da família
e dos religiosos (que queriam, por exemplo, o direito de rezar nas escolas
públicas), que queriam mais pena de morte e leis mais rígidas contra o
divórcio, contra o consumo de drogas; que queriam proibir a pornografia,
entre vários outros temas. Para uma discussão mais aprofundada conferir
Donald T. Critchlow, Phyllis Schlafly and Grassroots Conservatism, ed.
Princeton University Press, 2007.
31
85
Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
pria da guinada liberal da sociedade americana, como diagnosticou
também Himmelfarb (1998). Pensando numa agenda mais ampla,
com foco na mulher diante dessa percepção de crise moral, Beverly
LaHaye fundou, em 1979, o Concerned Women for America (CWA)
buscando mobilizar, não só mulheres, mas também pessoas politicamente dispostas a se organizarem e a defenderem os interesses
das mulheres, entendidos como interesses da família e relacionados com outras causas conservadoras. O ponto central: defender o
direito e, em certo sentido, a tradição das mulheres em serem esposas, mães e de terem um papel bem definido nas relações familiares.
O CWA pretendia inicialmente também derrotar a Emenda dos
Direitos Iguais. Opunha-se ao direito ao aborto, mas, ao contrário
do Eagle Forum e da postura de Schlafly, Beverly LaHaye tinha na
retórica um apelo religioso/evangélico. No final dos anos de 1970
houve também uma reação e um reviver religioso que mobilizou,
tanto protestantes e católicos, como fundamentalistas e evangélicos. Tal movimento teve clara tendência conservadora.
Como nos mostra Lins e Silva (2011), há uma longa tradição de
grandes “despertares” religiosos nos EUA – ocorrências que datam
de meados do século XVIII, com o objetivo de renovar e fazer a
fé renascer, rompendo fronteiras entre denominações religiosas,
enfatizando a experiência individual. O “despertar” pode ocorrer
em momentos de crise moral, como por exemplo, combatendo a
escravidão, o consumo de drogas, o jogo e as bebidas. Nos anos
de 1970, a renovação da fé ocorreu motivada por uma percepção
de ameaça diante da tradicional família americana e do modo de
vida americano32. Essa ameaça viria tanto do comportamento dos
jovens na contracultura dos anos de 1960 como também, como
aponta Himmelfarb (1998), com a percepção de colapso moral
(aumento dos divórcios, alcoolismo, pornografia, consumismo,
etc.) ou, nos termos de Suvanto (1997), pela percepção de uma era
excessivamente liberal.
O ponto central da percepção de ameaça surge com as mulheres buscando deixar seu tradicional papel dentro da família típica
americana, na qual eram donas de casa, religiosas e dedicadas a seus
maridos e filhos. A nova mulher, fruto dos anos de 1960, poderia
se divorciar, viver sozinha e ter direitos iguais aos homens e, sobretudo, poderia se recusar a ter filhos (com o aborto legalizado e com
a popularização dos contraceptivos).
Certas correntes do pensamento libertário, apesar de defender
a emancipação do indivíduo, desconfiava das intenções do governo
quando ele promovia e resguardava os novos papéis sociais conquistados pelas mulheres. Muitos autores e militantes libertários – lembrando a discussão de Ludwig Von Mises33 (1881-1973) suscitada
em sua obra mais influente nos EUA, Socialism: An Economic and
Sociological Analysis, de 1922 – lembram que a tentativa de mudar
e transformar as relações de gênero é uma das estratégias paralelas
à ideia de socializar os meios de produção do socialismo, visando
uma sociedade controlada, em última instância: sem propriedades
privadas e sem casamentos.
A ideia de um liberalismo excessivo e de colapso moral foi apenas acentuada com a vitória de Jimmy Carter, em 1976. Apesar
de ser democrata, Carter não escondia sua religiosidade (era um
renascido cristão), não escondia sua base sulista (era da Geórgia),
e prometia moralidade (lembrando o eleitor do Watergate) durante
a campanha. Com certo discurso conservador, prometia cortes na
assistência social e conservadorismo no trato fiscal do governo. Por
32
Como nos mostra Buell (2003), foi uma consequência das transformações
dos anos de 1960 e 1970 a percepção de que os americanos deveriam mudar
seu modo de vida, adotando uma que fosse mais sustentável, preocupada
com o meio ambiente. Em 1970, por exemplo, foi criado o Environmental
Protection Agency (EPA) que alertava quanto à finitude dos recursos naturais,
propondo políticas de preservação e novas formas de manejo do solo. Essas
transformações foram decisivas para uma influência ambientalista e ecológica
para a Nova Esquerda. Mas despertou entre os conservadores um sentimento
de reação e de retórica antiambientalista. Cf., por exemplo, blog de Ronald
Bailey vinculado a revista libertária Reason, http://reason.com/people/ronald-
86
bailey/all.xml. Acessado em: 04/05/2012. Cf, ainda, do economista Julian
Simon, The Resourceful Earth: A Response to “Global 2000”, ed. Julian Simon
& Herman Kahn, Maryland, 1984.
33
Cf. discussões do Instituto Ludwig Von Mises, <http://mises.org/> , com sede
no Alabama. Acessado em: 14/05/2012.
87
Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
pria da guinada liberal da sociedade americana, como diagnosticou
também Himmelfarb (1998). Pensando numa agenda mais ampla,
com foco na mulher diante dessa percepção de crise moral, Beverly
LaHaye fundou, em 1979, o Concerned Women for America (CWA)
buscando mobilizar, não só mulheres, mas também pessoas politicamente dispostas a se organizarem e a defenderem os interesses
das mulheres, entendidos como interesses da família e relacionados com outras causas conservadoras. O ponto central: defender o
direito e, em certo sentido, a tradição das mulheres em serem esposas, mães e de terem um papel bem definido nas relações familiares.
O CWA pretendia inicialmente também derrotar a Emenda dos
Direitos Iguais. Opunha-se ao direito ao aborto, mas, ao contrário
do Eagle Forum e da postura de Schlafly, Beverly LaHaye tinha na
retórica um apelo religioso/evangélico. No final dos anos de 1970
houve também uma reação e um reviver religioso que mobilizou,
tanto protestantes e católicos, como fundamentalistas e evangélicos. Tal movimento teve clara tendência conservadora.
Como nos mostra Lins e Silva (2011), há uma longa tradição de
grandes “despertares” religiosos nos EUA – ocorrências que datam
de meados do século XVIII, com o objetivo de renovar e fazer a
fé renascer, rompendo fronteiras entre denominações religiosas,
enfatizando a experiência individual. O “despertar” pode ocorrer
em momentos de crise moral, como por exemplo, combatendo a
escravidão, o consumo de drogas, o jogo e as bebidas. Nos anos
de 1970, a renovação da fé ocorreu motivada por uma percepção
de ameaça diante da tradicional família americana e do modo de
vida americano32. Essa ameaça viria tanto do comportamento dos
jovens na contracultura dos anos de 1960 como também, como
aponta Himmelfarb (1998), com a percepção de colapso moral
(aumento dos divórcios, alcoolismo, pornografia, consumismo,
etc.) ou, nos termos de Suvanto (1997), pela percepção de uma era
excessivamente liberal.
O ponto central da percepção de ameaça surge com as mulheres buscando deixar seu tradicional papel dentro da família típica
americana, na qual eram donas de casa, religiosas e dedicadas a seus
maridos e filhos. A nova mulher, fruto dos anos de 1960, poderia
se divorciar, viver sozinha e ter direitos iguais aos homens e, sobretudo, poderia se recusar a ter filhos (com o aborto legalizado e com
a popularização dos contraceptivos).
Certas correntes do pensamento libertário, apesar de defender
a emancipação do indivíduo, desconfiava das intenções do governo
quando ele promovia e resguardava os novos papéis sociais conquistados pelas mulheres. Muitos autores e militantes libertários – lembrando a discussão de Ludwig Von Mises33 (1881-1973) suscitada
em sua obra mais influente nos EUA, Socialism: An Economic and
Sociological Analysis, de 1922 – lembram que a tentativa de mudar
e transformar as relações de gênero é uma das estratégias paralelas
à ideia de socializar os meios de produção do socialismo, visando
uma sociedade controlada, em última instância: sem propriedades
privadas e sem casamentos.
A ideia de um liberalismo excessivo e de colapso moral foi apenas acentuada com a vitória de Jimmy Carter, em 1976. Apesar
de ser democrata, Carter não escondia sua religiosidade (era um
renascido cristão), não escondia sua base sulista (era da Geórgia),
e prometia moralidade (lembrando o eleitor do Watergate) durante
a campanha. Com certo discurso conservador, prometia cortes na
assistência social e conservadorismo no trato fiscal do governo. Por
32
Como nos mostra Buell (2003), foi uma consequência das transformações
dos anos de 1960 e 1970 a percepção de que os americanos deveriam mudar
seu modo de vida, adotando uma que fosse mais sustentável, preocupada
com o meio ambiente. Em 1970, por exemplo, foi criado o Environmental
Protection Agency (EPA) que alertava quanto à finitude dos recursos naturais,
propondo políticas de preservação e novas formas de manejo do solo. Essas
transformações foram decisivas para uma influência ambientalista e ecológica
para a Nova Esquerda. Mas despertou entre os conservadores um sentimento
de reação e de retórica antiambientalista. Cf., por exemplo, blog de Ronald
Bailey vinculado a revista libertária Reason, http://reason.com/people/ronald-
86
bailey/all.xml. Acessado em: 04/05/2012. Cf, ainda, do economista Julian
Simon, The Resourceful Earth: A Response to “Global 2000”, ed. Julian Simon
& Herman Kahn, Maryland, 1984.
33
Cf. discussões do Instituto Ludwig Von Mises, <http://mises.org/> , com sede
no Alabama. Acessado em: 14/05/2012.
87
Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
outro lado, Carter se mostrava aberto às preocupações da Nova Era
e prometia investimentos em setores como energia, meio ambiente
e educação, além de prometer rever a corrida armamentista e ter
os direitos humanos como base para sua política externa. Pouco
a pouco, o político conseguiu despertar a ira do movimento conservador. Os neoconservadores se mobilizaram contra sua política
externa exemplarista. Em torno de Norman Podhoretz, os neoconservadores se articularam no Committee on the Present Danger34 e
ali criticavam a détente, as propostas de política externa de Carter.
Lideranças, militantes evangélicos e religiosos mobilizaram–se contra a Casa Branca, contra a retórica dos direitos humanos, da valorização da questão ambiental, mas, sobretudo, contra mudanças
fiscais que afetavam escolas religiosas.
A articulação inicial contra Carter foi mobilizada em torno
de três ativistas: Howard Phillips, da YAF, e Paul M. Weyrich,
um dos fundadores do Heritage Foundation (em 1973), ambos os
membros descontentes do Christian Voice, uma organização cristã
na qual sentiam não ter espaço. O terceiro é o pastor da Igreja
Batista do Sul, Jerry Falwell, que, em 1979, fundou a Maioria
Moral. Falwell não se reconhecia como um fundamentalista cristão, mas era um dissidente da Igreja Batista do Sul, tendo sua
própria Igreja, a Thomas Road Baptist Church, com sede em
Lynchburg, Virgínia. Como conta na sua autobiografia (1996),
a partir da segunda metade da década de 1970 viajava principalmente entre os estados do Sul promovendo encontros e cultos
que chamava de I Love America. Nesses encontros, falava contra
a Emenda dos Direitos Iguais, atacava os defensores do aborto
e argumentava sobre os riscos e as ameaças contra a família trazidos pelo homossexualismo, o adultério e a pornografia. Esses
encontros e cultos misturavam carisma com liturgia religiosa,
retórica política com retórica religiosa e atraía milhares de pessoas. Foi em um desses encontros que Howard Phillips e Paul M.
Weyrich se conheceram e convidaram Falwell para formarem a
Maioria Moral, que pretendia ser um instrumento de organização
e uma coordenação para um movimento de base descentralizado
de cunho religioso, mas com foco na ação política.
Os instrumentos de ação da Maioria Moral consistiam na
organização de grandes eventos e de grandes cultos religiosos
em torno de Jerry Falwell. Além disso, tinham uma lista de correspondência que atingia um universo de meio milhão de famílias. Objetivaram construir uma rede de apoiadores de âmbito
nacional, mobilizando pastores e militantes35 coordenados por
Howard Phillips e Paul M. Weyrich. Esses últimos ficavam em
Washington D.C, a partir de onde podiam, entre outras coisas,
escrever cartas para os congressistas, distribuir panfletos divulgando causas ou alertar contra alguma política em curso36. A Maioria
Moral explorava principalmente temas que afetavam a família
americana, como as restrições e ameaças à liberdade religiosa, à
legalidade do aborto, à facilidade do divórcio, além das ameaças
trazidas pelos gays, feministas e ambientalistas. Os números de
membros que alcançaram eram expressivos. Alguns autores, como
Harding (2001), afirmam que a organização chegou a ter quatro
milhões de membros e dois milhões de contribuintes. O que convém destacar é que durante seu tempo de existência, entre 1978
e 1987, a Maioria Moral mostrou ser capaz de mobilizar e de trazer para as causas conservadores milhares de renascidos cristãos,
evangélicos e fundamentalistas cristãos, renovando e trazendo um
novo foco, agora centrado nos temas que ameaçavam a família,
para o movimento conservador nos EUA.
O discurso direto, a articulação de base, a ideia de pressionar
Washington de baixo para cima e da periferia para o centro inspiraram outros movimentos que passaram a se mobilizar no final
Entre os nomes que participaram destacamos: Max Kampelman, Jeane
Kirkpatrick, Daniel P. Moynihan, Henry Jackson, Midge Decter, Richard Pipes e
Eugene Rostow.
34
88
35
Dentre eles, Easton (2000) destaca que estavam Charles Stanley, Greg
Dixon, James Kennedy e Tim Lahaye, este casado com Bevery, que mobilizava
principalmente mulheres na sua Concerned Women for America.
36
Dentre outras causas, a Maioria Moral defendia censura à pornografia, leis
rígidas contra o aborto, aulas de religião, direito a rezar nas escolas públicas e
pedia mobilização dos eleitores contra a Emenda dos Direitos Iguais.
89
Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
outro lado, Carter se mostrava aberto às preocupações da Nova Era
e prometia investimentos em setores como energia, meio ambiente
e educação, além de prometer rever a corrida armamentista e ter
os direitos humanos como base para sua política externa. Pouco
a pouco, o político conseguiu despertar a ira do movimento conservador. Os neoconservadores se mobilizaram contra sua política
externa exemplarista. Em torno de Norman Podhoretz, os neoconservadores se articularam no Committee on the Present Danger34 e
ali criticavam a détente, as propostas de política externa de Carter.
Lideranças, militantes evangélicos e religiosos mobilizaram–se contra a Casa Branca, contra a retórica dos direitos humanos, da valorização da questão ambiental, mas, sobretudo, contra mudanças
fiscais que afetavam escolas religiosas.
A articulação inicial contra Carter foi mobilizada em torno
de três ativistas: Howard Phillips, da YAF, e Paul M. Weyrich,
um dos fundadores do Heritage Foundation (em 1973), ambos os
membros descontentes do Christian Voice, uma organização cristã
na qual sentiam não ter espaço. O terceiro é o pastor da Igreja
Batista do Sul, Jerry Falwell, que, em 1979, fundou a Maioria
Moral. Falwell não se reconhecia como um fundamentalista cristão, mas era um dissidente da Igreja Batista do Sul, tendo sua
própria Igreja, a Thomas Road Baptist Church, com sede em
Lynchburg, Virgínia. Como conta na sua autobiografia (1996),
a partir da segunda metade da década de 1970 viajava principalmente entre os estados do Sul promovendo encontros e cultos
que chamava de I Love America. Nesses encontros, falava contra
a Emenda dos Direitos Iguais, atacava os defensores do aborto
e argumentava sobre os riscos e as ameaças contra a família trazidos pelo homossexualismo, o adultério e a pornografia. Esses
encontros e cultos misturavam carisma com liturgia religiosa,
retórica política com retórica religiosa e atraía milhares de pessoas. Foi em um desses encontros que Howard Phillips e Paul M.
Weyrich se conheceram e convidaram Falwell para formarem a
Maioria Moral, que pretendia ser um instrumento de organização
e uma coordenação para um movimento de base descentralizado
de cunho religioso, mas com foco na ação política.
Os instrumentos de ação da Maioria Moral consistiam na
organização de grandes eventos e de grandes cultos religiosos
em torno de Jerry Falwell. Além disso, tinham uma lista de correspondência que atingia um universo de meio milhão de famílias. Objetivaram construir uma rede de apoiadores de âmbito
nacional, mobilizando pastores e militantes35 coordenados por
Howard Phillips e Paul M. Weyrich. Esses últimos ficavam em
Washington D.C, a partir de onde podiam, entre outras coisas,
escrever cartas para os congressistas, distribuir panfletos divulgando causas ou alertar contra alguma política em curso36. A Maioria
Moral explorava principalmente temas que afetavam a família
americana, como as restrições e ameaças à liberdade religiosa, à
legalidade do aborto, à facilidade do divórcio, além das ameaças
trazidas pelos gays, feministas e ambientalistas. Os números de
membros que alcançaram eram expressivos. Alguns autores, como
Harding (2001), afirmam que a organização chegou a ter quatro
milhões de membros e dois milhões de contribuintes. O que convém destacar é que durante seu tempo de existência, entre 1978
e 1987, a Maioria Moral mostrou ser capaz de mobilizar e de trazer para as causas conservadores milhares de renascidos cristãos,
evangélicos e fundamentalistas cristãos, renovando e trazendo um
novo foco, agora centrado nos temas que ameaçavam a família,
para o movimento conservador nos EUA.
O discurso direto, a articulação de base, a ideia de pressionar
Washington de baixo para cima e da periferia para o centro inspiraram outros movimentos que passaram a se mobilizar no final
Entre os nomes que participaram destacamos: Max Kampelman, Jeane
Kirkpatrick, Daniel P. Moynihan, Henry Jackson, Midge Decter, Richard Pipes e
Eugene Rostow.
34
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35
Dentre eles, Easton (2000) destaca que estavam Charles Stanley, Greg
Dixon, James Kennedy e Tim Lahaye, este casado com Bevery, que mobilizava
principalmente mulheres na sua Concerned Women for America.
36
Dentre outras causas, a Maioria Moral defendia censura à pornografia, leis
rígidas contra o aborto, aulas de religião, direito a rezar nas escolas públicas e
pedia mobilização dos eleitores contra a Emenda dos Direitos Iguais.
89
Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
dos anos de 1970. É o caso de James Dobson, um psicólogo cristão que, em 1977, fundou o Focus on The Family, com sede em
Colorado Springs, Colorado. Partindo de sua experiência como
radialista37, Dobson entendia que, diante do governo Carter e das
instituições seculares e governadas por liberais, a família estava sob
forte ameaça. Portando, sua organização se fazia necessária para
auxiliar as famílias e para mobilizar uma luta nacional em defesa
dos valores e da instituição familiar. Dobson também desenvolveu
uma bem–sucedida carreira de escritor, discutindo em seus livros
temas como educação, relações conjugais, assuntos que, em sua
concepção, ameaçavam a família. Seus livros e sua forma de mobilizar evangélicos e de falar em defesa da família chegaram a atingir
mais de 15 países38.
Tentando ser a voz de centenas de igrejas de diferentes denominações, Louis Sheldon, um pastor presbiteriano, criou, em 1980,
a Traditional Values Coalition que, com uma agenda conservadora
com foco na família, propõe–se a defender de forma mais ampla,
em Washington D.C., a liberdade religiosa, os valores da cultura judaico-cristã, a família e o casamento tradicional (entre um
homem e uma mulher). De forma semelhante, fundada em 1983,
age em Washington o Family Research Council.
Todos esses movimentos, partindo de Phyllis Schlafly até
James Dobson e Jerry Falwell, trazem para o conservadorismo
americano dois pontos importantes. O primeiro, como já discutimos, está na forma de ação. O segundo está na ênfase no seu
tema de mobilização: a família moderna americana sob a percepção de ameaça. Essa ênfase também pode nos servir para entendermos a distância, cada vez maior, entre a Nova Direita e a Velha
Direita. A Velha Direita valorizava também a família, mas sua
ênfase estava no indivíduo e nos seus respectivos direitos naturais
inalienáveis. Era partindo dessa leitura, com foco no indivíduo,
que esses atores pensavam o papel do homem e das instituições.
Já na Nova Direita, com ênfase na família, as preocupações partem de um revisionismo, quando não de uma contrarrevolução,
para ter instituições menos seculares, mais religiosas e que revoguem uma série de leis e de direitos que, no entendimento desses
atores, ameaçam a família moderna americana.
Agregando a experiência da Maioria Moral e com a tentativa
de pressionar a Casa Branca, partindo de um movimento religioso de base, mas colocando–se como uma liderança tanto religiosa
como política, Pat Robertson, com o auxílio decisivo de Ralph
Reed, fundou em 1989 a Coalizão Cristã. Robertson, desde os
anos setenta do século XX como pastor da Igreja Batista do Sul,
percebera como o fervor religioso poderia ter impacto político,
mas, sobretudo, para a mobilização. Articulando seus fiéis, criou
o 700 Club, cujo programa seria mantido por doações de 700
pessoas. Em seguida, da mesma forma, cotizando recursos entre
seu público religioso, comprou e organizou seu próprio canal
televisivo, o Christian Brodcasting Network (CBN), que mantinha uma programação com intensa mobilização dos telespectadores. Eles eram instigados a fazer doações, a ligar para Centros
de Atendimento para participar de pesquisas e votações, além de
terem suas próprias histórias transformadas em dramaturgia ou
contadas por pastores nos programas. A CBN como empreendimento foi muito bem–sucedida, chegando a ser a segunda maior
rede televisiva dos EUA, com programação durante 24 horas,
transmissão para todos os americanos e para o exterior, além de
ter entrevistas e programas transmitidos via satélite. Para uma
discussão mais detalhada, conferir Finguerut (2009).
A principal diferença entre a mobilização de Reed e
Robertson – via Coalizão Cristã – em relação aos outros movimentos da chamada Direita Cristã é que, no cume da mobilização,
Robertson canalizou todos os esforços para conquistar a base do
Partido Republicano e ser escolhido como candidato à presidência
em 1988. A tentativa de Robertson de ser o candidato dos republicanos produziu no conservadorismo americano uma sensação
Seu programa Focus on the Family começou em 1977, no qual ele trabalhava
como uma espécie de terapeuta de casais, dando conselhos em torno de como
manter a família.
37
38
Cf. o site da organização: <http://www.focusonthefamily.com/.> Acessado em:
04/05/2012.
90
91
Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
dos anos de 1970. É o caso de James Dobson, um psicólogo cristão que, em 1977, fundou o Focus on The Family, com sede em
Colorado Springs, Colorado. Partindo de sua experiência como
radialista37, Dobson entendia que, diante do governo Carter e das
instituições seculares e governadas por liberais, a família estava sob
forte ameaça. Portando, sua organização se fazia necessária para
auxiliar as famílias e para mobilizar uma luta nacional em defesa
dos valores e da instituição familiar. Dobson também desenvolveu
uma bem–sucedida carreira de escritor, discutindo em seus livros
temas como educação, relações conjugais, assuntos que, em sua
concepção, ameaçavam a família. Seus livros e sua forma de mobilizar evangélicos e de falar em defesa da família chegaram a atingir
mais de 15 países38.
Tentando ser a voz de centenas de igrejas de diferentes denominações, Louis Sheldon, um pastor presbiteriano, criou, em 1980,
a Traditional Values Coalition que, com uma agenda conservadora
com foco na família, propõe–se a defender de forma mais ampla,
em Washington D.C., a liberdade religiosa, os valores da cultura judaico-cristã, a família e o casamento tradicional (entre um
homem e uma mulher). De forma semelhante, fundada em 1983,
age em Washington o Family Research Council.
Todos esses movimentos, partindo de Phyllis Schlafly até
James Dobson e Jerry Falwell, trazem para o conservadorismo
americano dois pontos importantes. O primeiro, como já discutimos, está na forma de ação. O segundo está na ênfase no seu
tema de mobilização: a família moderna americana sob a percepção de ameaça. Essa ênfase também pode nos servir para entendermos a distância, cada vez maior, entre a Nova Direita e a Velha
Direita. A Velha Direita valorizava também a família, mas sua
ênfase estava no indivíduo e nos seus respectivos direitos naturais
inalienáveis. Era partindo dessa leitura, com foco no indivíduo,
que esses atores pensavam o papel do homem e das instituições.
Já na Nova Direita, com ênfase na família, as preocupações partem de um revisionismo, quando não de uma contrarrevolução,
para ter instituições menos seculares, mais religiosas e que revoguem uma série de leis e de direitos que, no entendimento desses
atores, ameaçam a família moderna americana.
Agregando a experiência da Maioria Moral e com a tentativa
de pressionar a Casa Branca, partindo de um movimento religioso de base, mas colocando–se como uma liderança tanto religiosa
como política, Pat Robertson, com o auxílio decisivo de Ralph
Reed, fundou em 1989 a Coalizão Cristã. Robertson, desde os
anos setenta do século XX como pastor da Igreja Batista do Sul,
percebera como o fervor religioso poderia ter impacto político,
mas, sobretudo, para a mobilização. Articulando seus fiéis, criou
o 700 Club, cujo programa seria mantido por doações de 700
pessoas. Em seguida, da mesma forma, cotizando recursos entre
seu público religioso, comprou e organizou seu próprio canal
televisivo, o Christian Brodcasting Network (CBN), que mantinha uma programação com intensa mobilização dos telespectadores. Eles eram instigados a fazer doações, a ligar para Centros
de Atendimento para participar de pesquisas e votações, além de
terem suas próprias histórias transformadas em dramaturgia ou
contadas por pastores nos programas. A CBN como empreendimento foi muito bem–sucedida, chegando a ser a segunda maior
rede televisiva dos EUA, com programação durante 24 horas,
transmissão para todos os americanos e para o exterior, além de
ter entrevistas e programas transmitidos via satélite. Para uma
discussão mais detalhada, conferir Finguerut (2009).
A principal diferença entre a mobilização de Reed e
Robertson – via Coalizão Cristã – em relação aos outros movimentos da chamada Direita Cristã é que, no cume da mobilização,
Robertson canalizou todos os esforços para conquistar a base do
Partido Republicano e ser escolhido como candidato à presidência
em 1988. A tentativa de Robertson de ser o candidato dos republicanos produziu no conservadorismo americano uma sensação
Seu programa Focus on the Family começou em 1977, no qual ele trabalhava
como uma espécie de terapeuta de casais, dando conselhos em torno de como
manter a família.
37
38
Cf. o site da organização: <http://www.focusonthefamily.com/.> Acessado em:
04/05/2012.
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Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
de crise para alguns e de inflexão para outros. A discussão ocorreu principalmente no campo dos neoconservadores. Irving Kristol
(1996), por exemplo, discutia a ideia de humanismo secular que
nega qualquer teologia para explicar a vida e as relações sociais. Via
na religião uma solução para a crise moderna. Contudo, tinha ressalvas quanto aos fundamentalistas e evangélicos em geral, buscando uma saída que classificava como neo–ortodoxa, tendo a religião
o papel de ordenar a vida, valorizando o passado em detrimento
do futuro, a tradição em detrimento do novo, o privado em detrimento do público e o interior ao exterior. Com foco na estratégia
política, Nathan Glazer39 entendia a mobilização cristã da Maioria
Moral de Falwell à Coalizão Cristã de Robertson como uma defesa
ofensiva, mas que poderia mudar de rumo quando a luta deixasse
de ser defensiva e passasse a ser ofensiva. Partindo desse ponto, de
acordo com Abrams (2011), Norman Podhoretz, como editor da
Commentary reconhecia o peso e a importância da aliança entre os
neoconservadores e a Direita Cristã, mas entendia que a aliança era
de curta duração e pautada pela lógica “o inimigo do meu inimigo
é meu amigo”. Uma vez que o inimigo entendido como sendo a
esquerda antissionista deixasse de ser o foco, as diferenças e velhos
problemas como o antissemitismo cristão poderia comprometer a
aliança entre os dois grupos.
Neoconservadores como Irving Kristol (1996), Nathan Glazer e
Norman Podhoretz temiam os ataques religiosos aos estados seculares e percebiam que a aliança com a Direita Cristã poderia ser
somente tática, podendo, no futuro, revelar um antissemitismo e
intolerância religiosa, além de temerem a perda de influência dos
neoconservadores dentro do Partido Republicano. Já para outros
atores próximos a Robertson e da Direita Cristã, como Ralph
Reed, Gary Bauer e Tim LaHaye, a mobilização dos esforços da
base religiosa para tentar eleger o substituto de Reagan poderia forçar o movimento a sair do Partido Republicano, arriscando–se ou
criando um terceiro partido. Caso o caminho os levasse a criar tal
partido, o dilema seria: um partido cristão ou conservador? Ronald
Reagan foi o ápice do conservadorismo contemporâneo. A família
Bush com os governos de George H. W. Bush – vice de Reagan
entre 1981–1989 – depois presidente entre 1989–1993 e seu filho
George W. Bush, presidente entre 2001 e 2009, ambos tentaram se
apresentar como os herdeiros naturais do conservadorismo e buscaram reproduzir a aliança bem–sucedida construída por Reagan,
porém desde então o conservadorismo busca novos caminhos,
novas possibilidades de articulação e sobretudo de renovação. O
Tea Party diante de Obama pode ser a grande esperança do conservadorismo desde Reagan.
39
In: Harding ( 2001)
92
Conclusão: Qual a herança conservadora?
Conservadores e neoconservadores em uma breve trajetória de
menos de um século mostram forte impulso de mobilização como
força de reação. Durante a década de 1970 a mobilização foi em
torno dos Direitos Civis. A questão dos direitos iguais, das diferenças de gênero e do Estado secular foi o centro da reação nos anos
de 1970. Já a questão dos impostos foi central nos anos de 1980,
chegando ao multiculturalismo e à globalização como o tema dos
anos 1990, até a questão do fundamentalismo islâmico e do terrorismo internacional após o 11/09/2001. Em cada momento e diante de cada tema, a reação ocorreu de um modo diferente.
As formas de reação partiram de diferentes atores com diferentes propostas e diferentes formas de mobilização. Contra os
Direitos Civis, a principal vertente de reação partia dos libertários que não necessariamente defendiam o racismo e a segregação, mas se opunham à intervenção estatal nos comércios e na
definição de como e de quem deveriam ser as escolas públicas e
privadas, como argumentava, por exemplo, Ayn Rand. Já a reação contra os Direitos Iguais, que envolvia principalmente uma
igualdade de gênero, a reação fomentou um movimento de base
mobilizado principalmente por Phyllis Schlafly, que deu às ideias
conservadoras uma nova dimensão e novas possibilidades políticas.
A reação anti–impostos e antiestadismo, que marcou o discurso
da era Reagan nos anos de 1980, partiu de muitos economistas e
acadêmicos que se identificavam ora como liberais clássicos, ora
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Ariel Finguerut
Conservadorismo nos EUA, um conceito fora de lugar?
de crise para alguns e de inflexão para outros. A discussão ocorreu principalmente no campo dos neoconservadores. Irving Kristol
(1996), por exemplo, discutia a ideia de humanismo secular que
nega qualquer teologia para explicar a vida e as relações sociais. Via
na religião uma solução para a crise moderna. Contudo, tinha ressalvas quanto aos fundamentalistas e evangélicos em geral, buscando uma saída que classificava como neo–ortodoxa, tendo a religião
o papel de ordenar a vida, valorizando o passado em detrimento
do futuro, a tradição em detrimento do novo, o privado em detrimento do público e o interior ao exterior. Com foco na estratégia
política, Nathan Glazer39 entendia a mobilização cristã da Maioria
Moral de Falwell à Coalizão Cristã de Robertson como uma defesa
ofensiva, mas que poderia mudar de rumo quando a luta deixasse
de ser defensiva e passasse a ser ofensiva. Partindo desse ponto, de
acordo com Abrams (2011), Norman Podhoretz, como editor da
Commentary reconhecia o peso e a importância da aliança entre os
neoconservadores e a Direita Cristã, mas entendia que a aliança era
de curta duração e pautada pela lógica “o inimigo do meu inimigo
é meu amigo”. Uma vez que o inimigo entendido como sendo a
esquerda antissionista deixasse de ser o foco, as diferenças e velhos
problemas como o antissemitismo cristão poderia comprometer a
aliança entre os dois grupos.
Neoconservadores como Irving Kristol (1996), Nathan Glazer e
Norman Podhoretz temiam os ataques religiosos aos estados seculares e percebiam que a aliança com a Direita Cristã poderia ser
somente tática, podendo, no futuro, revelar um antissemitismo e
intolerância religiosa, além de temerem a perda de influência dos
neoconservadores dentro do Partido Republicano. Já para outros
atores próximos a Robertson e da Direita Cristã, como Ralph
Reed, Gary Bauer e Tim LaHaye, a mobilização dos esforços da
base religiosa para tentar eleger o substituto de Reagan poderia forçar o movimento a sair do Partido Republicano, arriscando–se ou
criando um terceiro partido. Caso o caminho os levasse a criar tal
partido, o dilema seria: um partido cristão ou conservador? Ronald
Reagan foi o ápice do conservadorismo contemporâneo. A família
Bush com os governos de George H. W. Bush – vice de Reagan
entre 1981–1989 – depois presidente entre 1989–1993 e seu filho
George W. Bush, presidente entre 2001 e 2009, ambos tentaram se
apresentar como os herdeiros naturais do conservadorismo e buscaram reproduzir a aliança bem–sucedida construída por Reagan,
porém desde então o conservadorismo busca novos caminhos,
novas possibilidades de articulação e sobretudo de renovação. O
Tea Party diante de Obama pode ser a grande esperança do conservadorismo desde Reagan.
39
In: Harding ( 2001)
92
Conclusão: Qual a herança conservadora?
Conservadores e neoconservadores em uma breve trajetória de
menos de um século mostram forte impulso de mobilização como
força de reação. Durante a década de 1970 a mobilização foi em
torno dos Direitos Civis. A questão dos direitos iguais, das diferenças de gênero e do Estado secular foi o centro da reação nos anos
de 1970. Já a questão dos impostos foi central nos anos de 1980,
chegando ao multiculturalismo e à globalização como o tema dos
anos 1990, até a questão do fundamentalismo islâmico e do terrorismo internacional após o 11/09/2001. Em cada momento e diante de cada tema, a reação ocorreu de um modo diferente.
As formas de reação partiram de diferentes atores com diferentes propostas e diferentes formas de mobilização. Contra os
Direitos Civis, a principal vertente de reação partia dos libertários que não necessariamente defendiam o racismo e a segregação, mas se opunham à intervenção estatal nos comércios e na
definição de como e de quem deveriam ser as escolas públicas e
privadas, como argumentava, por exemplo, Ayn Rand. Já a reação contra os Direitos Iguais, que envolvia principalmente uma
igualdade de gênero, a reação fomentou um movimento de base
mobilizado principalmente por Phyllis Schlafly, que deu às ideias
conservadoras uma nova dimensão e novas possibilidades políticas.
A reação anti–impostos e antiestadismo, que marcou o discurso
da era Reagan nos anos de 1980, partiu de muitos economistas e
acadêmicos que se identificavam ora como liberais clássicos, ora
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Ariel Finguerut
como neoliberais, com certa interlocução com autores da tradição libertária inspirada em Friedrich Hayek e Ludwig von Mises.
A reação antimulticulturalismo/globalização partia de atores que
oscilam entre o conservadorismo, o nacionalismo populista flertando muitas vezes com a extrema–direita, como foi o caso principalmente de Patrick Buchanan. Já diante do terrorismo internacional e da ameaça da islamização da agenda, os conservadores,
pela primeira vez, não foram reativos, mas estavam entre os propositores. E, nesse sentido, é interessante notar como os neoconservadores, que eram estranhos ao título de conservador, passados
pouco mais de 40 anos, transformaram–se nos principais articuladores do movimento.
A peculiaridade da trajetória dos neoconservadores nos faz pensar na dificuldade de se pontuar possíveis momentos de cisão entre
os conservadores, criando a ideia de que, a partir de determinados marcos, se forma uma Velha Direita em oposição a uma Nova
Direita. Uma possível cisão pode ser apontada com a questão dos
Direitos Civis. Alguns atores que se identificavam como conservadores ou, no limite, como antiliberais, se recusaram a aceitar o fim
da segregação, criando uma divisão Norte contra Sul no conservadorismo americano e fomentando um conservadorismo sulista, que
ganhou um rumo distinto do espectro conservador mais amplo.
Outro possível ponto de cisão ocorreu com a emergência da
Direita Cristã que afastou muitos libertários e trouxe grandes preocupações aos neoconservadores, que temiam perder espaço caso
o Partido Republicano se tornasse uma plataforma eleitoral para a
Direita Cristã. Por fim, diante da hegemonia dos neoconservadores entre o final do governo Reagan (1989) e o final do governo
George W. Bush (2008), muitos conservadores, contrários a uma
política externa unilateral e ao crescimento do Estado – mesmo
diante de temas como segurança e antiterrorismo – e com críticas
à aliança com Israel, se veem fora do lugar, pois ao mesmo tempo que o conservadorismo americano chega ao século XXI com
uma estrutura de financiamento, publicações, inserção na mídia
e peso políticos inéditos em sua trajetória, é inevitável a sensação
entre eles de que estão perdendo o carro para aqueles que em certo
mo
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