0 pós-graduação em estudos linguísticos e literários jan carlos dias

Propaganda
0
PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS
JAN CARLOS DIAS DE SANTANA
O USO DOS VERBOS HAVER E TER EM ESTRUTURAS EXISTENCIAIS: DO
PORTUGUÊS ARCAICO AO PORTUGUÊS FALADO NO BRASIL
Feira de Santana-BA
2017
1
JAN CARLOS DIAS DE SANTANA
O USO DOS VERBOS HAVER E TER EM ESTRUTURAS EXISTENCIAIS: DO
PORTUGUÊS ARCAICO AO PORTUGUÊS FALADO NO BRASIL
Trabalho de Conclusão de Curso, sob a forma de Artigo
Científico, apresentado a Universidade Candido Mendes
(UCAM), como requisito obrigatório para a conclusão do
curso de Pós-graduação Lato Sensu em Estudos
Linguísticos e Literários.
Orientador: Prof. Candido Mendes
Feira de Santana-BA
2017
2
O USO DOS VERBOS HAVER E TER EM ESTRUTURAS EXISTENCIAIS: DO
PORTUGUÊS ARCAICO AO PORTUGUÊS FALADO NO BRASIL
Jan Carlos Dias de Santana1
RESUMO
Esta pesquisa busca mostrar a variação haver/ter em estruturas existenciais do português, a partir de um estudo
bibliográfico e documental, expõem-se amostras de textos antigos e um referencial teórico embasado na
Linguística Histórica. Verificou-se o uso de tais verbos na variedade arcaica do português e como a variação é
tratada por gramáticos brasileiros. Os resultados revelam que tal variação realmente ocorre desde o período
arcaico da língua portuguesa, então foi desde essa época que já se apontava o fato de que a variação haver/ter
desencadearia nos dias atuais um processo de mudança linguística, ocorrendo, quiçá, uma implementação da
forma inovadora num futuro próximo.
Palavras-chave: variação haver/ter; construções existenciais; português.
INTRODUÇÃO
De acordo com os estudos de alguns filólogos e linguistas historiadores da língua
portuguesa, o verbo ter, tradicionalmente utilizado em estruturas de posse, ganhou o traço
semântico de existencial, no decorrer da história da língua. Dessa forma, este verbo se
difundiu em estruturas existenciais, entrando em concorrência com o haver, tradicionalmente
existencial.
Neste sentido, a variação haver/ter em estruturas existenciais pode ser já documentada
na Carta de Caminha (1500), na qual se detecta uma sentença em que ter pode receber uma
interpretação existencial. Em seu estudo sobre o uso do ter sobre haver nos meados do século
XVI, Mattos e Silva (2002a) examina a Obra pedagógica e as Décadas de João de Barros.
Neste estudo, a autora encontra evidências da variação haver/ter como verbo existencial. Em
outro estudo sobre os verbos haver e ter, Mattos e Silva (2002b) analisa as Cartas de D. João
III entre 1540 e 1553. Neste trabalho, a referida autora revela que “o verbo existencial, por
excelência, tal como ocorre por todo o período arcaico, é o verbo haver.” (p. 155), porém,
também há ocorrências em que o ter pode formar parte de estruturas existenciais.
1
Graduado em Letras e Mestre em Estudos Linguísticos, ambos pela Universidade Estadual de Feira de Santana
(UEFS); Membro do Grupo de Pesquisa Constituição, Variação e Mudança do/no Português
(UEFS/CNPq/FAPESB) e Colaborador do Núcleo de Estudos da Língua Portuguesa (NELP-BA).
3
Tratando-se do Brasil, a variação no uso de ter e haver em sentenças existenciais é
frequente na modalidade escrita da língua e, principalmente, na falada. Mas é importante
ressaltar que há uma diferença em relação à frequência desta variação entre as duas
modalidades, visto que a língua escrita seja mais conservadora e preserva o uso do haver, já o
verbo ter é empregado em boa parte das construções existenciais na modalidade oral da
língua.
Nosso trabalho apresenta uma contextualização histórica dos verbos haver e ter na
língua portuguesa. Do período arcaico, passamos pelo cenário brasileiro, além de trazermos
algumas informações sobre o uso de tais verbos na perspectiva da literatura gramatical
brasileira. Por fim, à guisa de conclusão, apresentamos as considerações finais quanto aos
resultados encontrados na pesquisa.
ALGUNS ESCLARECIMENTOS SOBRE OS VERBOS HAVER E TER
OS VALORES DOS VERBOS “AVER” E “TEER” NO PORTUGUÊS ARCAICO
Os verbos aver e teer2, na história da língua portuguesa, experimentaram estruturas
sintático-semânticas diversas, tais como: estruturas de tempo composto; estruturas
possessivas; estruturas existenciais.
Segundo Mattos e Silva (1996), nas estruturas de posse, a natureza semântica do
complemento verbal condicionava as ocorrências de teer e aver. Havia três tipos semânticos
para o complemento, a saber:
• Propriedades inerentes (PI) ao possuidor como em: - barvas; ceguidade;
- cinqüenta anos...;
• Propriedades adquiríveis imateriais (PAI), morais, espirituais,
intelectuais, afetivas, sociais, como em: - fé; - graça; - poderio; poder;
- ira...;
• Propriedades adquiríveis materiais (PAM), objetos materiais externos
ao possuidor, como em: - remédio; - mezinhas; - carneiros; ovelhas...3
O verbo aver era escrito sem o ‘h’ gráfico-etimológico e o verbo teer ainda sem a representação gráfica da
fusão dos vogais idênticas.
3
MATOS e SILVA, 2002a, p. 125.
2
4
A partir da análise da referida autora dos corpora Obra Pedagógica4, Primeira e
Segunda Décadas da Ásia de João de Barros e as Cartas de D. João III (escritas entre 1541 a
1551), foi constatado que a difusão de teer nas estruturas possessivas se iniciou nos contextos
do tipo PAM, depois PAI e, por fim, no contexto de tipo PI. O uso de aver como verbo de
posse seria resíduo arcaizante, ocorrendo em contextos sedimentados pela tradição com
expressões fixas como aver por bem – aver por meus serviços – sancta gloria aja, veja
exemplos:
(1) e lhe dires de minha parte que eu ey por bem que ele os tenha, pera
lhos dar quando em bõa ora ordenar (Carta 329 de 1541)
(2) Como tinha ordenado que fosse, ouve por bẽ de ẽcarregar de capitãao
do gualeão Sam Miguel (Carta 368 de 1551)
(3) por que assy averey por muito meu serviço (Carta 323 de 1541)
(4) Ey por meu serviço arrematarse o dito trato por algữus anos (Carta 355
de 1552)
(5) Devemos de lembrar o que me dizieis pera me dever de cõsolar do
falecimẽto da princesa, minha filha, que santa gloria aja (Carta 335 de
1548)5
Dessa maneira, o verbo aver, no português arcaico, manteve o sentido de “possuir”,
assim como o hăbērĕ latino, porém perdeu espaço para teer. Mattos e Silva (1996), ao estudar
o tempo composto com os verbos haver/ter + particípio passado, nos revela que,
provavelmente, no final do século XV era pouco usual esta estrutura na língua portuguesa
após examinar a Carta de Caminha, um testemunho lingüístico da época, e encontrar uma
única ocorrência desta estrutura:
(6) ...epor ele nõ teer ajnda comjdo poseranlhe toalhas e veolhe vianda e
comeo (fol. 10v, 10-11)6
No entanto, a autora observou que em mais duas passagens onde o tempo composto
poderia ocorrer, o escrivão usou tempo simples:
4
Edição de um conjunto de obras, a saber: Grammatica da língua portuguesa (GLP), Ortografia (ORT), Diálogo
em louvor da nossa linguagem (DLNL), Diálogo da viciosa vergonha (DVV).
5
idem, 2002 b, p. 151.
6
idem, 1996 , p. 188.
5
(7) ...lancamos amcoras em dirto daboca dhuữ rrio e chagariamos aesta
amcorajem aas X oras pouco mais ou menos (fol. 1v, 15-17) [teríamos
chegado]
(8) ...amdauam pela praya obra de bij ou biij sego os naujos pequenos
diseram por chegaram primeiro... (fol. 1v, 18-19) [terem chegado]7
Uma provável explicação do não uso do tempo composto, nesses contextos, seria o fato
de o verbo “chegar” ser da classe dos verbos ergativos8. Na Carta, há ainda casos em que o
verbo é transitivo e ao invés de utilizar o tempo composto com o particípio passado precedido
ou seguido de haver/ter, Caminha prefere o mais-que-perfeito simples, como em:
(9) ...cõ huữ paao dhuữa almaadia que lhes o mar leuara (fol. 5v, 5-6) [
tinha levado ]
(10) ...ante dise ele que lhe tomara huữ deles huữas continhas (fol. 8v,
2930) [tinha tomado]9
Já em meados do século XVI, a partir dos documentos analisados dos referidos corpora,
Mattos e Silva (2002a, 2002b) verifica que em João de Barros, o teer é “verbo vitorioso” para
expressões referentes ao passado e que o aver é mais usado em tempos futuros, não sendo
encontrado ocorrências deste verbo em estruturas de particípio passado. Predomina no uso de
teer + particípio passado de verbos [+ transitivo] a não-concordância do particípio passado
com o complemento direto (cf. (11) a (13)), como também ocorrem sequências em que os
escrivães das Cartas variam na concordância (cf. (14) a (17)). É importante salientar que, no
século XVI, o verbo ser era mais usado como auxiliar de tempo composto de verbos
[transitivo], como ocorre nas Cartas de D. João III (cf. (18) e (19)):
(11) nem por eu ter dirigido a su´alteza o trabalho ( DLNL 390, 12)
(12) Como ô tem feito em os estudos de Coimbra (DLNL 409, 23)
(13) a que tinha prometido dar (DVV 459, 3)10
.........................................................................................................................
(14) que vos deve teer apresentada [sua provisom] (Carta 331 de 1541)
7
idem, ibidem, p. 188-9.
Verbos do tipo morrer, nascer, partir, chegar, etc.
9
idem, ibidem, p. 189.
10
idem, 2002a, p. 131-2.
8
6
(15) ...e que, tendo jaa assentada a gente que tenho mandado que vaa nella,
vão algữus cõ allvaraes meus pera se assentarem. (Carta 326 de 1542)
(16) pois já tendes dadas a Vosso Senhor as graças (Carta 335 de 1548)
(17) o que Nosso Senhor quis que fose feito, e de que elle vos já tendes
dado por isso muytas graças (Carta 335 de 1548)
(18) Fernam d´Alvarez me deu conta que a armada da Malageta era
chagada a essa cidade (Carta 323 de 1541)
(19) Vi a carta que me escrevestes de XI d´este mes de março, e por ella
soube como erã partidas as quatro naos pera Índia (Carta 363 de
1551)11
Tratando-se das estruturas existenciais, ponto relevante desta proposta de estudo,
podemos dizer que no período arcaico do português concorriam nesse contexto os verbos seer
e aver. O uso do seer, como existencial, seguia a norma latina e o aver “transformou-se” de
verbo de posse para existencial, conforme Grandgent (1952, apud MATTOS E SILVA,
2002a, p. 135). Em seus estudos, a partir de dados do século XIII, a referida autora encontra
predominância de seer como verbo existencial e o uso relativo de aver. Ribeiro (1993),
encontrou passagens do uso de teer, aver e seer em orações existenciais na obra d´Os
Lusíadas, de Camões:
(20) ... e assim caminha
Para a povoação, que perto tinha ( Lus. V, 29)
Que aqui gente de Cristo não havia ( Lus. I, 102)
Um Rei, por nome Afonso, foi na Espanha (Lus. III, 23)12
No século XIV, fica evidente a preferência pelo aver e raro o uso de seer existencial.
Analisando a Carta de Caminha, registro do final do século XV, Mattos e Silva (1996)
encontra 24 ocorrências de aver em estruturas existenciais, nem uma do verbo seer e, ainda,
ressalta uma ocorrência em que o teer pode receber interpretação existencial:
(21) ...se metiam [eles] en almaadias duas ou tres que hy tiinham (fol. 5,
31-32)13
11
12
idem, 2002b, p. 154.
RIBEIRO, 1993, p. 373.
7
No exame da Obra Pedagógica e amostras da Primeira e Segunda Décadas, João de
Barros, de meados do século XVI, Mattos e Silva (2002a), encontra evidências da variação
haver/ter como verbo existencial:
(22) Temos mais este verbo [h]ei, [h]ás que é de genero diverso pelo oficio
que tem. Quando se ajunta com nome soprimos muitos verbos da língua
latina que a nossa não tem: [h]ei vergonha, [h]ei medo, [h]ei frio e outros
muitos significados que tem quando ô ajuntamos a nomes substantivos desta
calidade. (GLP 327, 9 – 328, 2).
(23) Ésta lêtera N àçera de nós sérve no prinçipio e fim da sílaba e nunca
em fim de diçam... E muitos vezes o til ô escusa do seu trabalho quando é
final de sílaba, como faz ao m. Tem máis, que às vezes se quer dobrado em
algữas dições que reçebemos dos latinos, como anno.
(24) Porque partido Antã Gõçalve teue no caminho hữu temporal tã grande,
que dizia Baltazar que já vira o q desejaria, mas não sabia se o poderia
contar. (Déc. I, 31, 5)
(25) Concentrou-se com o infante dom Anrique sobre o que nellas [nas
ilhas] tinha, e elle passouse a ilha de Madeira onde assentou sua uiuienda
(Déc. I, 46-38)14
Esses indícios de teer existencial nos meados do século XVI também já apontam nas
Cartas de D. João III, coetâneo do ortógrafo João de Barros, ressaltando que o verbo
existencial, por excelência, como ocorre em todo o período arcaico, é o verbo aver. Eis os
exemplos:
(26) por que tenho Recado que no Cabo de Geez nõ he necessária mais
gente da que tem ( Carta 323 de 1541)
(27) Mandovos que ffaçais asentar o dito dom Pedro de Sousa no livro da
dita matricola, no tijolo dos fidalgos cavaleyros, com a dita moradia e
cevada, Riscandose primeiro o asento d´escudeiro que tem no dito livro
(Carta 370 de 1557)14
Assim sendo, de acordo com este esboço histórico, concluímos que, já no período
arcaico da língua portuguesa, conviviam como verbos existenciais o ser arcaizante, o haver de
uso regular e o emergente ter.
13
MATTOS e SILVA, 1996, p. 187.
idem, 2002a, p. 137-8.
14
idem, 2002b, p. 156.
14
8
AS ESTRUTURAS EXISTENCIAIS NO PORTUGUÊS BRASILEIRO
Alguns estudos sobre o português brasileiro (PB) têm revelado que a variação
haver/ter, em estruturas existenciais, constitui uma das marcas que o caracteriza, porém, “tal
uso não constitui brasileirismo como julgam alguns, mas é herança arcaica que se projetou”. (
BUENO, 1958, p. 208).
Dessa forma, criaram-se condições para que o verbo ter ocupasse o lugar do haver em
orações existenciais, originando um processo de competição semântica. Esta variação ocorre
na modalidade escrita da língua e, principalmente, na falada porque esta modalidade se
transforma mais rápido (cf. AVELAR, 2005; VITRAL, 2006; LEITE; CALLOU &
MORAES, s/d.).
Assim sendo, a variação haver/ter, em estruturas existenciais, está em situação de
mudança por causa do processo de “esvaziamento semântico” de haver na concorrência com o
verbo ter. Para Paiva & Duarte (2003, p. 15), “a conseqüência última dessa concorrência
poderá ser a substituição da forma antiga pela forma nova, que se tornará categórica no
âmbito de toda a comunidade de fala. [...] se espalhando por todos os grupos sociais.” As
mudanças linguísticas ocorrem em circunstâncias e segundo modalidades classificáveis,
havendo a necessidade de estabelecer tipos gerais de circunstâncias, modalidades e finalidades
no que diz respeito ao nível genérico da mudança. (COSERIU, 1979, p. 176 apud MATTOS E
SILVA, 2008, p. 173)
Conforme Silveira (apud NASCENTES, 1953, p. 162), quatro são as circunstâncias
que podem explicar o uso impessoal de ter: (i) uma construção frasal em que ter tem sujeito
que não aparece logo, dando a impressão de impessoalidade; (ii) equivalência das frases não
há dúvida, não existe dúvida, não tem dúvida; (iii) “cruzamento” semântico; (iv) uso da
segunda pessoa com sentido indefinido.
Para Nascentes (1953):
A substituição de haver impessoal por ter nada apresenta de espantoso. A
significação primitiva de haver é ter (cfr. ital. avere, fr. avoir). Haver foi
perdendo esta significação que depois do século XVII a perdeu de todo. Em
compensação ter foi invadindo a esfera de haver a ponto de substituí-lo
quase completamente na formação dos tempos compostos. Não admira que
usurpasse também a função impessoal (NASCENTES, 1953, p. 163).
9
No português brasileiro contemporâneo, o verbo ter vem ocupando o posto de verbo
existencial, saindo-se vencedor do canônico haver, ou seja, “[usurpando-se] também da
função impessoal”.
VARIAÇÃO HAVER/TER NA LITERATURA GRAMATICAL DO BRASIL
A gramática trata dos fatos da linguagem e, segundo a concepção prescritiva15,
podemos dizer que:
Gramática normativa é aquela que estuda apenas os fatos da língua padrão,
da norma culta de uma língua, norma essa que se tornou oficial. Baseiamse,
em geral, mais nos fatos da língua escrita e dá pouca importância à
variedade oral da norma culta. [...] apresenta e dita normas de bem falar e
escrever, normas para a correta utilização oral e escrita do idioma, prescreve
o que se deve e o que não se deve usar na língua. Essa gramática é mais uma
espécie de lei que regula o uso da língua em uma sociedade (
TRAVAGLIA, 1996, p. 30-31).
Desse modo, no tocante à variação haver/ter, em estruturas existenciais, a maioria das
gramáticas normativas consultadas consideram-na um erro, veja um exemplo:
Dos quatro verbos auxiliares, somente ter não poder ser impessoal; constitui
erro grave, e todo o possível devemos fazer para evitá-lo, em empregar o
verbo ter com significação de existir. Não devemos permitir frases como
estas: “Não tem nada na mala.” (em vez de: “Não há nada...) – “Não tem de
que.” (em vez de: “Não há de que”) – “Não tem lugar” (em vez de: “Não há
lugar”) (ALMEIDA, 1975, p. 431).
Alguns normativistas chegam a mencionar sobre tal variação, alegando ser uma
“particularidade” do português não-padrão, como em Cegalla (1978) que afirma que “na
língua popular brasileira é generalizado o uso de ter impessoal por haver, existir.” (p. 302) Já
“na linguagem coloquial do Brasil é corrente o emprego do verbo ter como impessoal, à
semelhança de haver.” (p. 127). E para Bechara (1987):
Na linguagem familiar do Brasil é freqüente o emprego do verbo ter como
impessoal, à maneira de haver: Há bons livros na biblioteca/tem bons livros
15
Outra concepção de gramática é aquela considerada descritiva porque descreve o funcionamento de uma
língua, levando em consideração os fatos orais.
10
na biblioteca. Em tal construção parece ter-se originado uma mudança na
formulação da frase. A biblioteca tem bons livros, auxiliada por vários
outros casos em que haver e ter têm aplicações comuns (BECHARA, 1987,
p. 210).
Assim sendo, na língua portuguesa, no que se refere aos verbos existenciais, a norma
ideal, como prescrevem as gramáticas, está se distanciando da norma real porque uma língua
não é um sistema fechado. Conforme Bagno (2005), “existe uma pressão muito grande dos
defensores da norma-padrão de fazer com que ela fique inalterada, compacta e sólida”.
(p.167) Mas, mudanças ocorrem na língua ao longo de sua existência devido às variedades
[cultas] que sobem lentamente na escala social e vão sendo assimiladas pelos falantes
[+/cultos], até serem incorporados pelos falantes [+ cultos] na sua variedade.
De maneira geral, as variedades utilizadas pelos falantes mais escolarizados sempre
apresentam uma boa parcela de conservadorismo e inovações linguísticas. São essas
inovações que os normativistas encaram como “erros”:
Quando as mudanças se cristalizam nas variedades [+ cultas] e deixam se
ser percebidas como “erros”, quando os falantes dessas variedades aceitam
sem resistência essas novas formas lingüísticas, elas acabam se
incorporando à norma-padrão, passam a integrar o ideal imaginário de
língua “certa”, e ganham até status de regra obrigatória (BAGNO, 2005, p.
171).
É por isso que o uso de ter como verbo existencial não é considerado nos compêndios
gramaticais, porque ainda não se transformou em norma-padrão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscamos verificar, neste trabalho, como se configura a variação haver/ter em
estruturas existenciais. O estudo evidencia que tal variação é recorrente desde o português
arcaico, como é exemplificado por meio de trecho de textos antigos, continuando no falar do
brasileiro e, na fala e escrita informal do dia-a-dia, é perceptível que o verbo ter ocupa o posto
de verbo impessoal na maior parte das ocorrências de orações existenciais, ou seja, a variação
haver/ter na variedade estudada confirma a hipótese que é recorrente a alternância de tais
verbos em contextos existenciais na língua portuguesa, e pesquisa sociolinguísticas relatam
que está havendo, consistentemente, indícios de uma mudança linguística em curso.
11
Por fim, o nosso objetivo é contribuir para o estudo da variação haver/ter em estruturas
existenciais, a fim de mostrar que essa variação ocorre no Português Brasileiro porque é fruto
de uma variação que já vinha ocorrendo desde o período arcaico da língua portuguesa.
Esperamos, também, ter contribuído para um melhor entendimento do comportamento
linguístico.
REFERÊNCIAS
AVELAR, Juanito. Gramática, competição e padrões de variação: casos com ter/haver e
de/em no português brasileiro. Campinas, SP: 2005. Disponível em:
<http://www.geocities.com/gt_teoria_da_gramatica/download/anpoll2005_juanito.pdf>.
Acesso em 4 dez. 2008.
CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. Dicionário de lingüística e gramática: referente à língua
portuguesa. 22 ed. Petrópilos, RJ: Vozes, 2001.
DUARTE, Maria Eugênia Lamoglia. O sujeito expletivo e as construções existenciais. In:
RONCARI, Cláudia; ABRAÇADO, Jussara (Orgs.). Português brasileiro: contato
lingüístico, heterogeneidade e história. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. p. 123-131.
DUTRA, Cristiane de Souza. Ter e haver na norma culta de Salvador. Dissertação (
Mestrado em Letras e Lingüística) Salvador:UFBA, 2000. Mímeo
FARACO, Carlos Alberto. Lingüística Histórica: uma introdução ao estudo da história das
línguas. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.
FARACO, Carlos Emílio; MOURA, Francisco Marto. Gramática Língua e Literatura.
Volume único. São Paulo: Ática, 1999.
GOMES, Henriette Ferreira; LOSE, Alícia Duhá. Documentos científicos: orientações para
elaboração e apresentação de trabalhos acadêmicos. Salvador: Edições São Bento, 2007.
LEITE, Yonne; CALLOU, Dinah; MORAES, João. Processos de mudança no português do
Brasil: variáveis sociais. In: CASTRO, I.; DUARTE, I. Razões e Emoções. Miscelânea de
estudos em homenagem a Maria Helena Mira Mateus. Vol 1.
Lisboa, Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, s/d. 87-114. Disponível em:
<http://www.letras.ufrj.br/posverna/docentes/62341-1.pdf> Acesso em: 4 dez. 2008.
OLIVEIRA, Luciano Amaral. Manual de sobrevivência universitária. Campinas, SP:
Papirus, 2004.
OSÓRIO, Paulo. Lingüística histórica e história da língua: aportações teóricas e
metodológicas. Lisboa, s/d. Disponível em:
<http://www.fflch.usp.br/eventos/simelp/new/pdf/slp04/01.pdf> Acesso em: 4 dez. 2008.
12
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Estruturas trecentistas: elementos para uma gramática
do português arcaico. Lisboa: IN-CM, 1989.
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. O português arcaico: morfologia e sintaxe. São Paulo:
Contexto, 1993.
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. A variação haver/ter. In: A Carta de Caminha:
testemunho lingüístico de 1500. MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia (Org.). Salvador:
EDUFBA, 1996. p. 181-194.
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. A variação ser/estar e haver/ter em 1540. Revista
Portuguesa de Filologia. Separata, Vol. XXIII. Coimbra: Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, 1999-2000. p. 71-96.
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Vitórias de ter sobre haver nos meados do século XVI:
usos e teoria em João de Barros. In: MATTOS E SILVA, R. V.; MACHADO FILHO, A. V.
(Orgs.). O português quinhentista: estudos lingüísticos. Salvador: EDUFBA/UEFS, 2002a.
p. 121-142.
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. A variação ser/estar e haver/ter as Cartas de D. João III
entre 1540 e 1553: comparação com os usos coetâneos de João de Barros. In: MATTOS E
SILVA, R. V.; MACHADO FILHO, A. V. (Orgs.). O português quinhentista: estudos
lingüísticos. Salvador: EDUFBA/UEFS, 2002b. p. 143-160.
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Ensaios para uma sócio-história do Português
Brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Caminhos da linguística histórica – “ouvir o
inaudível”. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
PAIVA, Maria da Conceição; DUARTE, Maria Eugênia Lamoglia. In: PAIVA, Maria da
Conceição; DUARTE, Maria Eugênia Lamoglia (Orgs.). Mudança lingüística em tempo
real. Rio de Janeiro: Contra capa Livraria, 2003. p. 13-29.
PERINI, Mário Alberto. A língua do Brasil amanhã e outros mistérios. São Paulo: Parábola
Editorial, 2004.
RIBEIRO, Ilza. A formação dos tempos compostos: a evolução histórica das formas ter, haver
e ser. In: ROBERTS, Ian; KATO, Mary A. (Orgs.). Português Brasileiro: uma viagem
diacrônica: homenagem a Fernando Tarallo. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1993. p.
343-386.
VITRAL, Lorenzo. O papel da freqüência na identificação de processos de gramaticalização.
Scripta, Belo Horizonte, v. 9, n. 18, p. 149-177, 1º sem. 2006.
Download