Trajetórias Antropológicas

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Trajetórias Antropológicas
Márcia Merlo
Dos clássicos aos contemporâneos:
autores e escolas antropológicas relevantes.
Princípios norteadores da Antropologia da Atualidade.
É claro que não tenho a pretensão
de, em poucas páginas destinadas a
essa 2ª. aula, abranger todo o percurso
dos antropólogos e outros estudiosos
da Cultura, pois seria impossível,
mesmo porque se trata de um trajeto
que pressupõe uma seleção dentre as
abordagens que possam, de antemão,
interessar para pensar a Moda, ou
melhor, como um delineamento de
trajetórias antropológicas pode
contribuir para pensarmos alguns
caminhos possíveis para quem se
interessa, pensa, faz Moda?
Obra do Museo de Arqueología y Antropología de San Marcos, Lima.
Site: www. Ccsm-unmsm.edu.pe/boletim/006_foto1.jpg. Acesso em 05/07/2005.
Penso que se os primeiros etnólogos, etnógrafos e antropólogos pretendiam
aprofundar os estudos em torno da diferença e, para tal empreitada, propuseram
a pesquisa em loco, na tentativa de saírem dos prejulgamentos em torno de uma
visão etnocêntrica, eurocêntrica, evolucionista, tão presentes ainda nos séculos
XIX, XX e até os dias atuais e, ao mesmo tempo, apesar de se admitir ser a Moda
o destino das sociedades modernas devido ao seu sucesso estar apoiado no
projeto liberal, ou seja, pelo fato de estar engendrada na sociedade capitalistademocrática-individualista, como afirma Lipovetsky (1989), também se percebe
a sua vocação, mesmo que, a princípio, como um elemento transgressor, ou
movido a mini-transgressões, situações e atitudes localizadas que rapidamente
são assimiladas ao sistema de moda e geradoras de novas tendências, que
acabam por legitimizar, às vezes, de novos estilos. Basta olharmos as últimas
tendências para nos darmos conta de que virou moda pensar a moda como
étnica. Será?
Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi
11
Penso que se os primeiros etnólogos, etnógrafos e antropólogos pretendiam
aprofundar os estudos em torno da diferença e, para tal empreitada, propuseram
a pesquisa em loco, na tentativa de saírem dos prejulgamentos em torno de uma
visão etnocêntrica, eurocêntrica, evolucionista, tão presentes ainda nos séculos
XIX, XX e até os dias atuais e, ao mesmo tempo, apesar de se admitir ser a Moda
o destino das sociedades modernas devido ao seu sucesso estar apoiado no
projeto liberal, ou seja, pelo fato de estar engendrada na sociedade capitalistademocrática-individualista, como afirma Lipovetsky (1989), também se percebe
a sua vocação, mesmo que, a princípio, como um elemento transgressor, ou
movido a mini-transgressões, situações e atitudes localizadas que rapidamente
são assimiladas ao sistema de moda e geradoras de novas tendências, que
acabam por legitimizar, às vezes, de novos estilos. Basta olharmos as últimas
tendências para nos darmos conta de que virou moda pensar a moda como
étnica. Será?
Para chegar a tal resposta, no entanto, o caminho a ser percorrido será um
pouco mais longo do que uma aula e ainda penso que exigirá mais pesquisa e
o conhecimento, ainda que iniciante, das trajetórias de alguns dos mais
conhecidos antropólogos que podem mostrar algumas possibilidades para
traçarmos uma meta para a pesquisa de um grupo de interesse. Talvez esse
seja o meu maior objetivo para este módulo. Da teoria à pratica, da prática à
teoria, assim como fez os estudiosos das culturas humanas e ainda o fazem os
atuais pesquisadores.
Voltando no tempo... para pensar o hoje.
O que ocorreu, com os colonizadores, cronistas e mesmo com os primeiros
etnólogos, em relação ao contato com o “outro”, com as diferenças culturais, foi
o julgamento baseado no etnocentrismo europeu e na ideologia do progresso,
em uma crença exagerada na modernidade.
Em cinqüenta anos, de 1450 a 1500, o planeta foi explorado e as costas
marítimas cartografadas pelos ocidentais. Civilizações até então desconhecidas
modificam a sensibilidade ocidental, suscitando-lhes problemas: São homens
ou animais? Possuem uma alma imortal? Descendem de Adão? Se descendem,
após quantas extravagantes migrações?
A figura do Outro assume duas faces: a do sábio antigo e a do selvagem, que
dirigem ao ocidental um olhar crítico, e questionam suas referências culturais,
um a partir da extrema sabedoria da razão filosófica, o outro a partir da inocência
natural.1
O que se percebe, logo de imediato, é que as ideologias desenvolvidas a
partir do contato formam: 1º ) a recusa do estranho apreendido a partir de uma
falta, a partir da imagem de si e da sociedade; e 2º ) a fascinação pelo estranho
(uma imagem de si e da sua sociedade). Em outras palavras, a figura do mau
selvagem e do bom civilizado e a figura do bom selvagem e do mau civilizado.
1
LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. Trad. Marie-Agès Chauvel. Prefácio:
Maria Isaura Pereira Queiroz, São Paulo: Brasiliense, 1988, p.33.
2
Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi
Em outras palavras, [ao] dualismo das sociedades modernas e tradicionais
foi superposto um outro: o da sociologia e da etnologia. A sociologia aparece
como o estudo especializado das sociedades modernas de grandes dimensões.
Estas últimas produzem dados quantitativos indispensáveis à validação das
hipóteses sociológicas. A etnologia aparece, por contraste, como o estudo
prolongado das sociedades da tradição através da interação face a face, pelo
emprego de métodos qualitativos em relação aos quais o instrumental estatístico
é de pouca utilidade.2
Isso quer dizer, em parte, que o surgimento da Sociologia e da Etnologia, no
processo de “modernização” e de mundialização, possuem, como modelo, as
sociedades européia e norte-americana e, portanto, temos um problema, não só
de caráter epistemológico, mas, sobretudo, concreto e atual, que pontua as nossas
relações com aquele (s) que designamos o “outro” ou “eles”.
Herdamos um modelo de modernidade, que por mais que esteja em questão
na atualidade, ainda se faz bastante presente em nossas interpretações
cotidianas, isto porque tal modelo “’propaga-se’ para fora de seu âmbito de
origem, noutras palavras, difunde-se. A teoria da modernidade é uma teoria da
difusão. Liga-se, desta maneira, a uma corrente de pensamento sociológico
segundo a qual as mudanças sociais dão-se, sobretudo, pela difusão das
informações a partir de um centro que é suposto produzi-las: o Crescente Fértil
no neolítico, o Egito na Antigüidade, o Ocidente na época moderna. Para
Eisenstadt e seus contemporâneos, o motor dessa difusão é a racionalidade
científica, portanto universal, que se impõe às civilizações particulares, fundadas
sobre outros modos de pensamento, chamados de ‘pré-científicos’, ‘pré-lógicos’,
e até ‘irracionais’. A modernização é, assim, percebida como o rolo compressor
destinado a esmagar todas as civilizações para reduzi-las ao modelo do Ocidente
industrializado. Por isso, a teoria da modernização é também chamada de
teoria da convergência das civilizações, já que se presume que todas se
aproximam de um modelo único.
(...) a modernização ‘é um processo de mudanças’. Mas, além disso, a
modernidade valoriza esta mudança e a inovação. O que é novo é percebido
como progresso. Uma sociedade moderna é uma sociedade que se acredita
voltada antes para o futuro que para o passado. A modernidade é um valor.
Possui, portanto, seus apologistas e seus detratores.3
Em contraste com as sociedades modernas, surgem os termos referentes
às “outras” – arcaicas, primitivas, tradicionais, ou ainda, quentes e frias como
falou Lévi-Strauss.
Quaisquer que sejam os termos empregados, a sociologia ocidental é
marcada por este dualismo que remonta ao Renascimento, e que opõe os
“selvagens” aos “civilizados”, seja para deplorar as perversões imputáveis à
civilização, como fez Rousseau, seja para exaltar essa civilização, como fizeram
os evolucionistas do século XIX (Spencer, Tylor, Morgan, Marx). 4
2
LABURTHE-TOLRA, Philippe & WARNIER, Jean-Pierre, Etnologia – Antropologia. Trad.
Anna Hartmann Cavalcanti, Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, p. 22.
3
Ibidem, p. 21-22.
4
Ibidem, p. 22.
Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi
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Esses são apenas alguns nomes dos que objetivavam conhecer o outro,
mas não conseguiam abrir mão de um modelo civilizatório para tal empreitada o que, a priori, criou um outro sujeito distante tanto do dito “civilizado” como do
dito “primitivo” ou “arcaico”, já que se procurava no outro cultural o mesmo e
aquilo tudo que não era similar ou possível de ser compreendido dentro dos
modelos civilizatórios almejados como o que se tinha de “melhor” a ser aceito
por todos, era marginalizado a uma condição subumana, tribal ou sub-grupal terminologias presentes até hoje em muitos textos, inclusive, acadêmicos.
Apesar de termos como raça, etnia, tribo, serem recorrentes e nem sempre
bem aplicados ou justificados, parece mais coerente chamarmos outros povos,
grupos sociais, enfim, o outro para nós ou o eles como culturas ou sociedades,
pois, como afirma o antropólogo social Marcel Mauss, em meados do século XX:
“O que nós conhecemos são somente sociedades”.
Então, essa etnologia que vai se formando nos séculos XIX e XX pode ser
entendida como em parte, uma raciologia (a descrição e classificação dos povos
era análoga ao que Lineu havia proposto para as espécies animais). Somente
no século XX, o termo etnologia irá drenar a experiência filosófica do Renascimento
e do Século das Luzes – o da reflexividade e do comparatismo – e tentará se
desfazer de um racismo mais ou menos latente.
Se os etnólogos dedicam muito tempo e energia à descrição e análise das
sociedades outras, eles não são, entretanto, indiferentes à sua própria sociedade.
Estabelecem comparações entre várias sociedades, ou entre uma determinada
sociedade e a sua. É isto que queremos dizer ao afirmar que a etnologia é
comparativa. Além disso, como Montaigne, Rousseau e Montesquieu, o
pesquisador volta-se para sua própria civilização. Ele se olha com o olhar do
outro. Ele se descobre em sua estranheza a partir de um olhar distanciado, que
lhe revela seu próprio particularismo. A objetividade, neste caso, não é procurar
colocar-se como que fora da sociedade, pois isto é impossível, já que todo
observador está situado, definido por um determinado pertencimento social.
Para este observador, o único caminho possível consistirá em jogar o jogo de
uma outra inserção social, com duplo fim, pedagógico e científico, de fazer surgir,
como num mergulho revelador, a natureza de sua própria socialidade e as
distorções resultantes dos efeitos de situação na percepção do social.5
Entretanto, como uma ciência que tenta decifrar signos e símbolos, entender
o outro, a Antropologia teve seu repertório modificado ao passar dos tempos e no
próprio contato, ao se deparar com situações conflitantes e com um outro cultural
bastante diferente e extremamente interessante, no ponto de vista das lógicas
culturais e dos sistemas sociais com que esses estudiosos começam a se abrir
no século XX.
Assim, como entender, decifrar os códigos, os registros, outras possibilidades,
o diferente e o igual entre os homens? Como compreender a totalidade das
relações sem deixar escapar a diferença?
5
4
Ibidem, p. 39.
Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi
Rouanet6 pensa que o investigador deve ter suas próprias formulações e
discuti-las em nível do discurso argumentativo, não deixando de lado o seu juízo
de valor, cultura e a maneira de ver e colocar-se na interação com o outro. O
processo comunicativo torna-se possível por meio do discurso argumentativo,
ou seja, a forma de chegar à compreensão de culturas diferentes é por um
diálogo entre interlocutores. E aqui só consigo entender uma interlocução apoiada
no argumento de Geertz, ao afirmar que, na relação entre pesquisador/pesquisado
que se estabelece durante a pesquisa e no trabalho de interpretação, também o
pesquisador presencia na relação com o objeto da pesquisa, que no caso é o
próprio sujeito da história narrada, sutilezas que direcionam o desenrolar de seu
trabalho.
Uma idéia que se faz presente ao buscarmos as narrativas dos sujeitos que
vivem o lugar cotidianamente fica explicitada por Ecléa Bosi, quando se refere à
veracidade do relatado pelo narrador, diz que “com certeza, seus erros e lapsos
são menos graves em suas conseqüências que as omissões da história oficial.
Nosso interesse está no que foi lembrado, no que foi escolhido para perpetuarse na história de sua vida” 7.
Complementando a idéia desenvolvida por Bosi, uma historiadora da
Memória, ao esclarecer o objetivo da antropologia interpretativa, Geertz traduz,
em parte, a preocupação que vem sendo (e ainda será) desenvolvida no decorrer
dessa seleção de idéias e textos expostos aqui:
Olhar as dimensões simbólicas da ação social – arte, religião, ideologia,
ciência, lei, moralidade, senso comum – não é afastar-se dos dilemas existenciais
da vida em favor de algum domínio empírico de formas não-emocionalizadas; é
mergulhar no meio delas. A vocação essencial da antropologia interpretativa não
é responder às nossas questões mais profundas, mas colocar à nossa
disposição as respostas que outros deram (...) e assim incluí-las no registro de
consultas sobre o que o homem falou8.
Mesmo conscientes de que escutamos e vivenciamos reflexões sobre a própria
existência de quem narra a sua história para o ouvinte, no caso, o antropólogo, o
que percebemos é que nem sempre o nós e os outros estão tão distantes
quanto aparecem, ou quanto queremos afastar, e muitas das questões subjetivas
“deles” são as do próprio pesquisador. As narrativas dos sujeitos de uma
pesquisa, muitas vezes e dependendo dos objetivos dela, serão interpretadas
por meio de vários autores, para se ampliar o próprio horizonte do pesquisador,
no sentido de elucidar e criar discernimento para o diálogo intercultural, assim
também o pesquisado precisa ser encarado como um igual na interlocução,
mesmo que diferente cultural e socialmente. Não só as suas histórias, mas
também a sua cultura material é interpretada por ambos, em uma constante
construção simbólica.
6
ROUANET, Sérgio Paulo. “Ética e Antropologia”. In Revista Estudos Avançados, set/dez.
1990, vol. 4, n.10.
7
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: Lembranças de velhos. São Paulo, T.A.Queiroz,
1979, p. 1.
8
GEERTZ, Clifford. “Uma descrição densa. Por uma teoria interpretativa da cultura”. In: A
interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 40-1.
Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi
55
Jaguar, Cultura Mexica, Ciudad de México, Museo Nacional de Antropología
www.campus-oei.org/cultura/mexico/c7b.htm. Acesso: 05/07/2005.
Desta forma, a Antropologia tem os seus métodos, objetos, mas o diálogo
sobredeterminaria a objetividade científica – o saber antropológico. Então, é no
diálogo que entra a questão da ética, cada qual (interlocutor) com a sua cultura
em um discurso argumentativo ético.
Aí pergunto: Como transportar para a Moda esse debate antropológico?
O que pensavam os fundadores da ciência da alteridade ?
Os primeiros 30 anos do século XX impõem mudanças consideráveis – acaba
a divisão de tarefas entre o observador e o analista/intérprete. Com isso, muda
também a visão/relação que o pesquisador/observador mantinha com o
informante. Parte-se para o trabalho de campo, como à procura da própria fonte
da pesquisa e não como um conhecimento secundário para ilustrar uma tese o que ressalta as diferenças de enfoque entre as tradições antropológicas
americana, britânica e francesa. A tradição americana, durante muito tempo,
apoiou-se na antropologia física, enquanto a francesa, esteve ligada, durante
muito tempo, à filosofia. Em outras palavras, enquanto as tradições britânica e
americana preocupavam-se com o corpo e a produção de sua materialidade, a
francesa preocupava-se com as representações.
Franz Boas (1858-1942)
Americano de origem alemã, físico e geógrafo. Nascido em uma cidade
prussiana de Minden, chamada Vestfália. Fez história na antropologia americana.
Como etnógrafo, partiu, em 20 de junho de 1883, para uma expedição aos
esquimós, na ilha de Baffin (Canadá), onde permaneceu por um ano. Durante o
período em que permaneceu entre os esquimós escreveu diários e, em uma
passagem, afirma: “Sou agora um verdadeiro esquimó. Vivo como eles, caço com
eles e faço dos homens de Anarnitung”.E ainda mais, como o registrado em 23 de
dezembro de 1883:
6
Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi
Freqüentemente me pergunto que vantagens nossa “boa sociedade” possui
sobre aquela dos “selvagens” e descubro, quanto mais vejo de seus costumes,
que não temos o direito de olhá-los de cima para baixo. Onde, em nosso povo,
poder-se-ia encontrar hospitalidade tão verdadeira quanto aqui? ... Nós, “pessoas
altamente educadas”, somos muito piores, relativamente falando. ... Creio que,
se esta viagem tem para mim (como ser pensante) uma influência valiosa, ela
reside no fortalecimento do ponto de vista da relatividade de toda formação
(Bildung), e que a maldade, bem como o valor de uma pessoa, residem na
formação do coração (Herzensbildung), que eu encontro, ou não, tanto aqui quanto
entre nós.9
Boas criticava a repartição das ciências, as generalizações superficiais e
tentava chegar às conclusões após exaustivos repertórios. Sua preocupação dá
início a uma nova fase – a da Etnografia, entendida como o estudo e a descrição
dos povos, sua língua, raça, religião etc., e manifestações culturais de sua
atividade. É parte ou disciplina integrante da etnologia, entendida como ramo da
antropologia que estuda a cultura dos chamados povos naturais. Em outras
palavras, a etnografia inicia-se a partir do momento em que o pesquisador percebe
que precisa efetuar a pesquisa no campo por meio de uma observação direta,
pois assim será parte integrante da pesquisa.
Para tanto, o estudioso defendia o método de indução empírica, evitando
amarrar os fenômenos em uma camisa de força teórica. O novo “método histórico”
exigia que se limitasse a comparação a um território restrito e bem definido. A
precondição para o estabelecimento de grandes generalizações teóricas e a
busca de leis gerais seria, portanto, o estudo das culturas tomadas
individualmente e de regiões culturais delimitadas.
Boas criticava o determinismo geográfico, afirmando que o meio ambiente
exercia um efeito limitado sobre a cultura humana – a grande diversidade cultural
existente entre povos que vivem sob as mesmas condições geográficas reforça
essa tese.
Criticava, também, o método “difusionista”, que pregava que a ocorrência de
elementos culturais semelhantes, em duas regiões geograficamente afastadas,
seria prova de existência de um único e mesmo caminho evolutivo, evidenciando,
assim, sua postura anti-evolucionista e a construção de um método que se
propunha a conhecer a cultura de um povo por ele mesmo, ou melhor, estando
entre ele e passando por um deles. Por isso, a importância de conhecer a língua,
a história e a cultura, dentro das particularidades de cada grupo.
Franz Boas efetiva esse trabalho realizando abertamente uma crítica aos
“pesquisadores de gabinete”, que por não estarem em loco, não compreendiam
o modus vivendus do pesquisado e permanecia julgando-o inferior. Por isso
mesmo, recusava qualquer valor científico à suposição de que existem diferenças
raciais significativas entre os homens.
9
BOAS, Franz. Antropologia Cultural. Org. e Trad. Celso Castro, Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2004, p. 9.
Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi
77
Segundo ele, a variação se daria entre diferentes linhagens familiares de
uma mesma população, e não entre supostas “raças”, construídas a partir de
elementos puramente superficiais, como a cor da pele, forma da cabeça ou
textura dos cabelos. Haveria uma enorme variabilidade genética, mesmo em
uma população considerada “racialmente homogênea”, daí o absurdo cientifico
de se pensar em “raças puras”. Traços ou características que habitualmente se
associavam a uma determinada raça estariam, na verdade, presentes em várias
outras.10
Não é à toa a importância que Boas
atribuía ao conceito de CULTURA, já
que esta está no elemento explicativo
da diversidade humana.
A concepção boasiana de cultura
tem como fundamento um relativismo
de fundo metodológico, baseado no
reconhecimento de que cada ser
humano vê o mundo sob a perspectiva
da cultura em que cresceu – em uma
expressão que se tornou famosa, ele
disse que estamos acorrentados aos
“grilhões da tradição”. O antropólogo
deveria procurar sempre relativizar
suas próprias noções, fruto da posição
contingente da civilização ocidental e
de seus valores.
(...) A percepção do valor relativo de
todas as culturas – a palavra aparece
agora no plural - servia também para
ajudar a lidar com as difíceis questões
colocadas para a humanidade pela
diversidade cultural.11
Franz Boas, a partir de suas críticas
às então consagradas teorias - o
evolucionismo e o racismo - contribuiu
para a antropologia cultural, assim
como para outros antropólogos, que
continuariam no embate teórico e
prático no ampliar da visão acerca das
formas culturais sob as quais vivem os
homens.
Bronislaw Malinowski (1884-1942)
É co-fundador da Antropologia inglesa moderna, ao lado de Alfred RadcliffeBrown (1881-1955).
A obra de Malinowski inaugura o funcionalismo = sistemas lógicos em
funcionamento; funções elaboradas e lógicas. Resgata a questão da alteridade/
autenticidade, contrapondo-se ao evolucionismo, mas recai na ‘idealização do
selvagem’. Com ele, a antropologia torna-se uma “ciência da alteridade” e se
dedica ao estudo das lógicas particulares características de cada cultura.
No funcionalismo de Malinowski, as sociedades tradicionais são sociedades
estáveis e sem conflitos, visando naturalmente a um equilíbrio através das
instituições capazes de satisfazer às necessidades dos homens. Essa
compreensão naturalista e marcadamente otimista de uma totalidade cultural
integrada, que postula que toda sociedade é tão boa quanto pode ser, pois suas
instituições estão aí para satisfazer a todas as necessidades, defronta-se com
duas grandes dificuldades: Como explicar a mudança social? Como dar conta
do disfuncionamento e da patologia cultural?12
10
Ibidem, p. 19.
CASTRO, Celso apud BOAS, Franz. Antropologia cultural. Op. Cit. p.18.
12
LAPLANTINE, François. Op. Cit. p. 83.
11
8
Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi
É o primeiro a colocar em prática a observação participante. Estudo intenso
e olhar atento às sociedades diferentes da nossa. Com esse método, passa-se
a valorizar os interlocutores.
O homem nunca desaparece em proveito do sistema. Ora, essa exigência de
conduzir um projeto científico sem renunciar à sensibilidade artística chama-se
etnologia. Malinowski ensinou a muitos entre nós não apenas a olhar, mas a
escrever, restituindo às cenas da vida cotidiana seu relevo e sua cor. 13
Segundo Malinowski14, são instrumentos necessários a uma pesquisa de
campo, além do bom senso, os princípios metodológicos de que o etnógrafo
deve se munir, entre eles: em primeiro lugar, é lógico, o pesquisador deve possuir
objetivos genuinamente científicos e conhecer os valores e critérios da etnografia
moderna. Em segundo lugar, deve o pesquisador assegurar boas condições de
trabalho, o que significa, basicamente, viver mesmo entre os nativos, sem
depender de outros brancos. Finalmente, deve ele aplicar certos métodos
especiais de coleta, manipulação e registro de evidência. (p. 24)
Aliado ao aparato metodológico, também, o etnógrafo precisa estar bem
preparado teoricamente, pois só assim estará aberto às possibilidades de
compreender o que se está por vir. Afirma:
Se um homem parte, numa expedição, decidido a provar certas hipóteses e é
incapaz de mudar seus pontos de vista constantemente, abandonando-os sem
hesitar ante a pressão da evidência, sem dúvida seu trabalho será inútil. Mas,
quanto maior for o número de problemas que leve consigo para o trabalho de
campo, quanto mais esteja habituado a moldar suas teorias aos fatos e a decidir
quão relevantes eles são às suas teorias, tanto mais estará bem equipado para
o seu trabalho de pesquisa. As idéias preconcebidas são perniciosas a qualquer
estado científico; a capacidade de levantar problemas, no entanto, constitui uma
das maiores virtudes do cientista – esses problemas são revelados ao
observador através de seus estudos teóricos.15
Para ele nenhum aspecto da vida nativa deve ser desprezado, seja no público
ou no privado, já que afirma ser o comportamento um fato e “um fato relevante –
passível de análise e registro. Tolo e míope é o cientista que, ao deparar com
todo um tipo de fenômenos prontos a serem coletados, permite que eles se
percam, mesmo se, no momento, não visse a que fins teóricos poderiam servir!16
13
Ibidem, p. 85.
MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. Um relato do
empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné, Melanésia.
São Paulo: Abril Cultural, 1976. Coleção Os Pensadores.
15
Ibidem, p. 26.
16
Ibidem, p. 35.
14
Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi
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Em Malinowski, a observação participante que, em última análise, é viver
junto com o grupo, é um critério epistemológico - do conhecimento. A preocupação
com a funcionalidade dos sistemas – sociais, políticos e econômicos, só é
possível por meio da pesquisa de campo, com a coleta de material etnográfico e
com o uso de técnicas apropriadas – as qualitativas. Privilegia, desse modo, o
que o outro pensa, explica, mas parte do pressuposto de que não há diálogo; o
que o etnógrafo faz é a confirmação de tais valores, por isso é fundamental
conhecer a língua do nativo para manter a comunicabilidade, para a compreensão
da outra cultura.
Para resumir, para o autor, o objetivo central do etnógrafo é o de apreender
o ponto de vista dos nativos, seu relacionamento com a vida, sua visão de seu
mundo. É nossa tarefa estudar o homem e devemos, portanto, estudar tudo
aquilo que mais intimamente lhe diz respeito, ou seja, o domínio que a vida
exerce sobre ele. Cada cultura possui seus próprios valores; as pessoas têm
suas próprias ambições, seguem seus próprios impulsos, desejam diferentes
formas de felicidade. Em cada cultura, encontramos instituições diferentes através
das quais ele satisfaz às suas aspirações; diferentes códigos de lei e moralidade
que premiam suas virtudes ou punem seus defeitos. Estudar instituições,
costumes e códigos, ou estudar o comportamento e mentalidade do homem,
sem atingir os desejos e sentimentos subjetivos pelos quais ele vive, e sem o
intuito de compreender o que é, para ele, a essência de sua felicidade, é, em
minha opinião, perder a maior recompensa que se possa esperar do estudo do
homem.17
Quando li o trabalho de Bronislaw Malinowski, encantei-me com a belíssima
descrição que faz dos povos trobriandeses (das ilhas Trobriand) e do Kula,
sistema de trocas que evidenciou ao etnógrafo um sistema econômico em que
se trocavam os bens nativos além de regras e hierarquias sociais. Ele inaugura
o trabalho de campo com a observação participante, criando um estatuto da
pesquisa etnográfica e, assim, recolocando em pauta o lugar do pesquisador,
assim como o do pesquisado. Influenciou gerações de antropólogos e ainda
está presente em todo nosso trabalho de campo que privilegie o estudo da
diferença com seriedade e ética na coleta de informações e observação
comportamental em Antropologia, mesmo que os tempos sejam outros. Ele,
também, coloca ao antropólogo a questão da autoria e deixa com os seus escritos,
relatórios que demonstraram a vida de povos que desapareceram em função de
tantas invasões colonialistas. Muitos dos relatórios produzidos pelos etnógrafos,
durante as primeiras décadas do século XX, serviam aos impérios coloniais –
conhecer para assimilar. Esta é uma página triste da história da Antropologia, ou
melhor, dos povos.
Mas o que retomo da leitura da vida nativa descrita por Malinowski é algo que
pode ser trazido para o universo artesanal do mundo da moda, como o relatado
em relação ao valor das coisas para os argonautas do Pacífico Ocidental:
17
10
Ibidem, p. 38.
Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi
O valor não é resultante da utilidade ou raridade, intelectualmente combinadas,
mas sim o resultado de um sentimento que se desenvolve ao redor das coisas
que, satisfazendo necessidades humanas, são capazes de provocar emoções.(...)
A maneira cuidadosa de trabalhar, a perfeição técnica, a discriminação na
escolha da matéria-prima, a inexaurível paciência demonstrada nos detalhes do
acabamento – tudo isso tem sido notado por todos os que têm observado os
nativos em seu trabalho.18
TALVEZ SEJA BOM ... pensar nas heranças que recebemos de povos de que mal
ouvimos falar, mas que existiram e continuam existindo enquanto houver uma linha
que os retrate ou uma técnica que seja fruto da imaginação e criação humanas e,
quiçá, de nossas próprias tradições que, muitas vezes desconhecemos, carregam
tanto dos outros que insistimos em afastar do nosso convívio, pensamento, história ...
Como podemos pensar tal questão na criação, ilustração, marketing e varejo de Moda?
E...
A grande preocupação, no final do século XIX, era construir um verdadeiro
objeto científico da Antropologia – e os primeiros pesquisadores, neste sentido,
foram os da “Escola Francesa de Sociologia”. Para isso, buscaram criar um
sistema de conceitos para alcançarem o método científico. Trabalho iniciado por
Emile Durkheim (conhecido como um dos fundadores da Sociologia) e Marcel
Mauss. Aqui nos ateremos ao antropólogo.
Marcel Mauss (1872-1950)
Trabalhou incansavelmente para o reconhecimento da Antropologia como
ciência verdadeira e não como uma disciplina anexa à Sociologia. Tanto é que,
em 1924, escreve que o lugar da sociologia está ‘na Antropologia’ e não o inverso.
Cria o conceito de fenômeno social total que consiste na integração dos
diferentes aspectos (biológico, econômico, jurídico, histórico, religioso, estético)
constitutivos de uma dada realidade social que convém apreender em sua
integridade. Chega a dizer que é preciso os sociólogos se esforçarem para
recompor o todo. Para Mauss, devemos observar o comportamento dos
indivíduos, mas encarados como seres totais e não divididos em faculdades,
pois só assim é possível apreender a experiência concreta de um ser humano
naquilo que tem de único. Dizia que “O simples estudo desse fragmento de
nossa vida, que é nossa vida em sociedade não basta”.19
Mauss debruçou-se sobre o tema das trocas e viu na troca simbólica as leis
de reciprocidade e comunicação (Dom e contradom), a universalidade da
obrigação de dar presentes, de recebê-los e de retribuir dádiva por dádiva. Foi a
partir de tais fatos, atestados em todas as sociedades, que publicou em 192324, no L’Ánnée sociologique, seu “Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca
nas sociedades arcaicas”.
18
Ibidem, p. 139.
LÉVI-STRAUSS, Claude. “Introdução à obra de Marcel Mauss” in Sociologia e
Antropologia. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 24.
19
Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi
1111
Percebeu, nesse estudo, um sentido paradoxal da dádiva: ela é por definição
voluntária, e, por isso, gratuita. Entretanto, todas as sociedades obrigam os
indivíduos a praticar troca. Ou seja, é coercitiva. Mas podemos ir além disso, ao
analisarmos que elas criam laços de reciprocidade, definem prestígio social e
garantem uma estabilidade entre os membros que participam das trocas. Desta
forma, uma vez que a obrigação de dar pesa sobre o doador, o beneficiário da
dádiva encontra-se na obrigação de aceitá-la e de retribuí-la. A não retribuição
pode afetar o indivíduo e/ou grupo de muitas maneiras, entre elas, pode gerar a
exclusão da troca social ou outros gêneros de hostilidades. Afirma:
Nas economias e nos direitos que precederam os nossos, nunca se
constatam, por assim dizer, simples trocas de bens, de riquezas e de produtos
num mercado estabelecido entre os indivíduos. Em primeiro lugar, não são
indivíduos, são coletividades que se obrigam mutuamente, trocam e contratam;
as pessoas presentes ao contrato são pessoas morais: clãs, tribos, famílias,
que se enfrentam e se opõem, seja em grupos frente a frente num terreno, seja
por intermédio de seus chefes, seja ainda dessas duas maneiras ao mesmo
tempo. Ademais, o que eles trocam não são exclusivamente bens e riquezas,
bens móveis e imóveis, coisas úteis economicamente. São, antes de tudo,
amabilidades,banquetes, ritos, serviços militares, mulheres, crianças,
danças, festas, feiras, dos quais o mercado é apenas um dos momentos, e
nos quais a circulação de riquezas não é senão um dos termos de um
contrato bem mais geral e bem mais permanente. Enfim, essas prestações
e contraprestações se estabelecem de uma forma sobretudo voluntária, por
meio de regalos, presentes, embora sejam no fundo rigorosamente
obrigatórias, sob pena de guerra privada ou pública.20
Muitos foram os antropólogos que se depararam com os sistemas de trocas
baseadas em competições. Aquilo que os índios Kwakiutil, observados por Franz
Boas, chamariam de potlatch, e que Mauss qualifica de “prestações totais de tipo
agonístico, reordenavam a hierarquia social em benefício dos mais generosos.
Essas prestações são totais na medida em que abrangem todos os aspectos
da atividade humana, ou seja, a troca de prestações implica também, e talvez
antes de tudo, a organização do poder e da dominação, da riqueza e do prestígio21.
Segundo o que Marcel Mauss constatou, em sua longa, profunda e duradoura
pesquisa, baseando-se em analogias com as várias sociedades estudadas
por ele mesmo e analisando as estudadas por outros etnólogos e etnógrafos,
Potlatch quer dizer essencialmente “nutrir”, “consumir”. Se a obrigação de
dar é a essência do potlatch, isso quer dizer dádiva.
O termo agonístico deriva da palavra agôn = lutar, combater.Assim, agonístico
significa que os parceiros estão empenhados em uma rivalidade. Só que em
vez de guerrearem com armas, guerreiam com presentes.
20
MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a Dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades
arcaicas”. In Sociologia e Antropologia. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify,
2003, p. 190-191.
21
Lembrar o Kula entre os habitantes do arquipélago melanésio das ilhas Trobriand.
12
Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi
Mauss também sublinhou a importância da contradádiva. A contraprestação
pode ser da mesma natureza que a prestação, ou de natureza diferente. A
contraprestação pode ser de valor inferior, igual ou superior à prestação,
hierarquizando os parceiros na troca – o superior pode dar mais que seu inferior,
ou menos, conforme o caso. A reciprocidade pode ser exercida por indivíduos ou
grupos. Pode colocar dois parceiros face a face, ou ao contrário, incluir numerosos
permutadores em redes complexas ou em circuitos mais ou menos extensos,
dentro de variações infinitas, mas regradas, codificadas dentro do que chamou
de sistema das prestações totais, veiculando entre os envolvidos significações
pessoais e sociais entrelaçadas pelo código das trocas – verdadeiros contratos.
Neste contexto, a reciprocidade pode tomar a forma da redistribuição: as
prestações são efetuadas por diversos grupos ou pessoas em benefício de uma
instância única que centraliza as contribuições, e que novamente as reparte
entre os prestadores ou entre outros parceiros, que são, amiúde, clientes no
sentido político do termo. Nosso sistema de seguridade social é um sistema
redistributivo. Acontece o mesmo com a cobrança de impostos ou com outras
contraprestações efetuadas por todos os estados e poderes da história.22
Pergunta-se: O que se troca?
Resposta: Tudo ou quase tudo. Mas, lendo o extenso trabalho de Mauss,
podemos enumerar 4 itens significativos. Trocam-se:
1 - palavras – a começar pelas saudações que desvelam sentidos.
2 - objetos materiais. Nas sociedades tradicionais, o objeto dado ou retribuído
é freqüentemente dotado de um princípio ativo, ou posto sob o controle de uma
transcendência que obriga o beneficiado a levar até o fim o ciclo da reciprocidade,
e a reenviar o princípio ativo à sua origem, graças a uma série de substratos
dados e retribuídos.
3 - pessoas ou direitos sobre as pessoas. Em algumas sociedades
tradicionais, os filhos são objeto de múltiplas transações, que podem resultar no
internato ou na adoção. Lévi-Strauss, em sua obra As estruturas elementares do
Parentesco (1949), estendeu a reciprocidade à troca de mulheres, na qual vê o
princípio de todos os sistemas de parentesco e a contrapartida da proibição do
incesto.
4 - golpes. Os conflitos armados, a guerra, surgem entre vizinhos que são, no
entanto, parceiros em diversas formas de reciprocidade. Entre os nuer
pesquisados por Evans-Pritchard, era comum ouvir “Nós lutamos com aqueles
com quem nos casamos”, sendo que as mulheres trocadas quase sempre
eram a razão de rivalidades e rixas profundas. Esses relatos também são comuns
em várias sociedades indígenas em território brasileiro.
22
LABURTHE-TOLRA, Philippe ; WARNIER, Jean-Pierre. Op. Cit. p. 344.
Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi
1313
SIR EDWARD EVANS-PRITCHARD (1902-1973) nasceu na Inglaterra e é
considerado um dos mais importantes antropólogos do século XX. Estudou
História Moderna na London School of Economics and Political Science. Foi
professor de Sociologia Africana e Antropologia na Universidade de Oxford.
Dirigiu seis expedições ao Sudão anglo-egípcio, principalmente entre os Nuer
e os Azande, de quem deixou um vasto e rico material etnográfico de grande
contribuição à pesquisa e teoria antropológicas.
Assim, chama-se de reciprocidade o processo pelo qual as prestações são
trocadas na modalidade da dádiva e da contradádiva. Se os bens e os serviços,
que são objeto dessas transações, reordenam as relações sociais de aliança e
subordinação, também é verdade que nas sociedades de interação face a face,
ou comunidades de conhecimento mútuo, eles são personalizados. Isso é
perceptível em um contrato matrimonial, mas não é o que acontece nas trocas
mercantis, em que as relações entre pessoas são anuladas por transações
monetárias que podem alcançar um grau extremo de despersonalização.
Esta comparação esclarece uma diferença fundamental entre o sistema de
trocas nas sociedades dita primitivas e nas sociedades de consumo das quais
fazemos parte e, sobretudo, quando pensamos na relação sujeito-objeto em que
se insere o mundo da Moda. A Antropologia do consumo será algo que trataremos
nas aulas posteriores, ao trabalharmos os conceitos de cultura, moda, identidade
e contemporaneidade.
É claro que pensar o homo sapiens sapiens é situá-lo em sua materialidade
e em um mundo material modelado por ele. Por isso, na diversidade das escolhas
em relação à alimentação e modos de fazê-la, assim como nas vestimentas,
aparência, ou seja, modos de viver, sentir, ser, fazer, vestir e, ainda mais, no de se
servir dos objetos produzidos para o uso, abuso e prazer, além do reino da
necessidade, é perceber como as humanidades foram construindo suas
identidades. Somos, de certo modo, o que comemos, o que vestimos, o que
incluímos e o que segregamos, somos a arte, o luxo, mas somos, também, o lixo
que produzimos.
Nas sociedades industriais, todos os objetos, antes de ser consumidos, são
postos em circulação. No “Ensaio sobre a Dádiva”, Marcel Mauss23 mostra o
produtor que guarda o objeto produzido sendo isolado do circuito da troca. Nas
sociedades tradicionais, não só o objeto tinha o valor da troca, pois o que se
trocava além do valor contido no objeto era o prestígio do próprio produtor. Do
objeto se trocava não só a materialidade, mas o “hau”, o seu espírito, por isso ele
ia e voltava e, junto com ele, trocavam-se outros fluidos. Em outras palavras,
colocar o objeto em circulação, desfazer-se dele, significava transformar a relação
com o objeto em uma relação entre sujeitos, por meio da reciprocidade, da
redistribuição, da solidariedade ou mesmo do mercado. Era tornar os objetos
signos. É nessa complexidade das relações entre sujeito e objeto que a
Antropologia do Consumo inicia seu debate.
23
Um outro ensaio de extrema valia de Marcel Mauss trata-se de “As técnicas do corpo” e
está no mesmo livro citado e que faremos referências até o final do módulo, quando for
conveniente.
14
Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi
A título de uma visão mais geral sobre a diversidade dentro da própria
Antropologia... As principais tendências do pensamento antropológico que
fizeram escolas:
• Antropologia americana – impulso evolucionista (Morgan). Culturalista e
relativista (Boas):
- Tipo de pesquisa que destaca a diversidade das culturas – observação
dos comportamentos individuais; especificidade das personalidades culturais e
das produções culturais de etnias ou nações;
- Estuda os processos de interação entre as culturas – criou o conceito de
“aculturação”;
- Parte da situação colonial de sua existência e, por isso, coloca os
problemas das minorias (negra, índia, porto-riquenha);
• Antropologia britânica – antievolucionista (Malinowski); estruturais
(Radcliffe-Brown): “uma sociedade deve ser estudada em si, independentemente
de seu passado, tal como se apresenta no momento no qual a observamos”.
Empirista;
- É anti-difusionista, ou seja, “uma sociedade não deve ser explicada nem
pelo que herda de seu passado, nem pelo que empresta a seus vizinhos”;
- É uma antropologia de campo (método indutivo e empirista, em oposição
ao racionalismo e idealismo francês.);
- Preza o social – estudo da organização dos sistemas em detrimento do
estudo dos comportamentos culturais dos indivíduos.
• Antropologia francesa – até metade do séc. XIX, falava-se em Antropologia
Física, aquilo que se chamaria de uma etnologia selvagem feita por missionários
e/ou administradores coloniais, ao invés de antropólogos formados em
universidades, como os de tradições britânica e americana.
- A Antropologia Francesa preocupou-se com a teoria dos filósofos e
sociólogos sem, contudo, praticarem investigação etnográfica. Só a partir dos
anos 30 que se inicia a etnografia/etnologia na França.
- Após os anos 30, inicia-se uma etnografia profissional na França. Um
objeto preferido pelos franceses é o estudo dos sistemas de representações
(religião, mitologia, literatura de tradição oral, mentalidades, etc.)
- Também a antropologia francesa é responsável pela renovação
metodológica impulsionada pelo estruturalismo de Lévi-Strauss e das pesquisas
conduzidas dentro da perspectiva marxista.
Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi
1515
E... alguns pólos teóricos do pensamento antropológico contemporâneo, já
que esta, hoje, atinge todas as áreas e já, desde o início, mostrava sua vocação
para o “holístico”, ou ainda, para o estudo da complexidade do humano e suas
relações possíveis (É claro que, atualmente, o saber antropológico amplia-se
e desafia para a compreensão das novas relações sociais e culturais, assim
como os trajetos dos indivíduos na contemporaneidade):
• Antropologia simbólica – parte do sentido. O que significam instituições e
comportamentos? Qual é a lógica dos discursos?
• Antropologia social – aproxima-se da sociologia = estudo das funções das
instituições (normalização das funções = instituições).
• Antropologia cultural – empírica. Está mais para a função e o sentido, do
que para a norma e sistema.
Estudo da continuidade/descontinuidade. Natureza/Cultura. Os culturalistas
diferem-se entre aqueles que acreditam na continuidade/descontinuidade
(ordenação da natureza e da cultura) e aqueles que buscam a universalidade da
cultura.
• Antropologia estrutural e sistêmica – O estruturalismo desmorona os
pares antinômicos. Atua na compreensão das estruturas do inconsciente =
sistema.
• Antropologia dinâmica – procura estudar as relações de poder (vai para o
campo sociológico). Rompe com o funcionalismo (satisfação de necessidades,
a-histórica e finalista).
• Antropologia Interpretativa – Desdobramento da Antropologia Cultural, em
que Clifford Geertz é o antropólogo de referência. Em seu trabalho A interpretação
das Culturas, Geertz revigora o estudo da cultura como sistema simbólico. Afirma:
“o conceito de cultura que eu defendo (...) é essencialmente semiótico.” (1989, p.
4) E ainda:
Nada mais necessário para compreender o que é a interpretação
antropológica, e em que grau ela é uma interpretação do que a compreensão
exata do que ela se propõe dizer – ou não se propõe – de que nossas formulações
dos sistemas simbólicos de outros povos devem ser orientadas pelos atos. (...)
Resumindo, os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e, na
verdade, de segunda e terceira mão. (Por definição, somente um “nativo” faz a
interpretação em primeira mão: é a sua cultura.) (Ibidem, p. 11)
16
Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi
• Antropologia da Atualidade ou dos mundos contemporâneos
Pensando a Antropologia hoje, uma idéia desenvolvida por Marc Augé parece
traduzir os dilemas atuais, já que uma nova ordem de realidade se propõe a seu
olhar: as novas fronteiras que não se confundem com as antigas delimitações
do social e do cultural. Por esses novos mundos, passam as relações de sentido
(as alteridades-identidades instituídas e simbolizadas) cujos cruzamentos,
imbricações e rupturas fazem a complexidade da contemporaneidade24.
Nesse olhar para as relações que se colocam diante das novas fronteiras
em torno das identidades, e aqui entra a etnicidade, é que se insere a nossa
preocupação quanto ao tratamento dado às diferenças na atualidade. Aliás, não
se trata de um assunto novo, mas de redirecionar, à luz da teoria e na análise do
cotidiano, as novas imbricações conceituais diante do desenraizamento,
fragmentação, recriação de identidades que ocorrem em um mundo que se diz
global e que aprofunda conflitos de todos os gêneros e aqui nos interessa, em
particular, o debate da diferença que perpassa a etnicidade.
Em outras palavras, diante dos fenômenos contemporâneos de reafirmação
das diferenças culturais no processo de mundialização, torna-se crucial uma
reflexão sobre o lugar teórico e político da diferença, ainda mais quando o Outro
tem no passado a marca de um contato/percepção ocidental que o inferiorizou
diante de uma pretensa superioridade étnica. Passado este que deixou marcas
visíveis/invisíveis, situações que emergem pacifica e/ou violentamente por meio
das lembranças, das guerras por territórios, da luta pela preservação de
identidades étnicas, enfim, passado que se pauta no presente e que tenta ser
capturado pela Antropologia, que tem por especificidade o estudo do outro, a
reflexão sobre a diferença cultural, por meio da observação minuciosa, análise e
interpretação das relações sócio-político-culturais em torno das fronteiras
identitárias ontem e hoje.
Quando pensamos no sujeito pós-moderno no enfretamento do dilema da
subjetividade diante do deslocamento das fronteiras identitárias, aparece aos
nossos olhos que ele reflete as contradições do se sentir pertencendo e o jogo
das identidades se faz em momentos oportunos em que a afirmação da
identidade se dá de múltiplas formas.
Então, se podemos dizer, como Paula Montero, em uma Antropologia Pósmoderna, talvez possamos afirmar que a inquietação comum dos trabalhos
contemporâneos é a de incluir, na imagem que a antropologia produz sobre o
Outro, a reflexão sobre o modo como essa imagem foi produzida. O antropólogo
passa, pois, a disputar com diversos atores sociais o monopólio da
representação legítima do Outro. Se isto é verdade, não é mais a diferença que
interessa nela mesma, mas o jogo de forças que organiza o campo de sua
construção simbólica.25
24
AUGÉ, Marc. Por uma antropologia dos mundos contemporâneos. Trad. Clarisse
Meireles e Leneide Duarte. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p. 143.
25
MONTERO, Paula. “Globalização, identidade e diferença” In Novos Estudos CEBRAP n.
49. São Paulo: Cebrap, novembro de 1997, p. 47-64.
Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi
1717
E entre estas questões aparecem as interfaces da Moda, principalmente
quando pensamos, como Geertz, que o objetivo da Antropologia é o alargamento
do universo do discurso humano.
Nesta aula, tive, por objetivo, dar um panorama sobre os trajetos da
Antropologia, seu vasto campo analítico-interpretativo, no intuito de despertar
curiosidade e um saber inicial de que tão complexo quanto os homens e as
mulheres é a ciência que os pretende compreender. Neste estudo, nós nos
inserimos (porque somos e estamos) de corpo e alma.
O grafite em estudo. Os grafites são compreendidos como crônicas de sua época,
formas de expressão de uma realidade e condição humanas.Assim, o visual e o virtual
são objetos em foco dos estudos da Antropologia Urbana ou Contemporânea.
Disponível em :www.revistaetcetera.com.br/.../graff2.htm. Acesso em:05/07/2005.
18
Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi
AUGÉ, Marc. Por uma Antropologia dos Mundos Contemporâneos. Trad.
Clarisse Meireles e Leneide Duarte. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
BOAS, Franz. Antropologia Cultural. Textos selecionados, apresentação
e tradução: Celso Castro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
CARVALHO, E. A. (org) Godelier. São Paulo: Ática, 1981. (Coleção Grandes
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GEERTZ, C. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro, LTC, 1989.
______________. Nova luz sobre a antropologia. Trad. Vera Ribeiro. Rio
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LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia Das
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MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
MALINOWSKI, B. Argonautas do Pacífico Ocidental. 2. ed. São Paulo:
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EVANS-PRITCHARD, E. E. Antropologia social. Trad. Ana Maria Bessa.
Lisboa, Portugal:Edições 70, 1972.
_______________. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Trad.
Eduardo Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
_______________. Os Nuer: uma descrição do modo de subsistência e
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Paulo: Perspectiva, 1978.
Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi
1919
20
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