Trajetórias Antropológicas Márcia Merlo Dos clássicos aos contemporâneos: autores e escolas antropológicas relevantes. Princípios norteadores da Antropologia da Atualidade. É claro que não tenho a pretensão de, em poucas páginas destinadas a essa 2ª. aula, abranger todo o percurso dos antropólogos e outros estudiosos da Cultura, pois seria impossível, mesmo porque se trata de um trajeto que pressupõe uma seleção dentre as abordagens que possam, de antemão, interessar para pensar a Moda, ou melhor, como um delineamento de trajetórias antropológicas pode contribuir para pensarmos alguns caminhos possíveis para quem se interessa, pensa, faz Moda? Obra do Museo de Arqueología y Antropología de San Marcos, Lima. Site: www. Ccsm-unmsm.edu.pe/boletim/006_foto1.jpg. Acesso em 05/07/2005. Penso que se os primeiros etnólogos, etnógrafos e antropólogos pretendiam aprofundar os estudos em torno da diferença e, para tal empreitada, propuseram a pesquisa em loco, na tentativa de saírem dos prejulgamentos em torno de uma visão etnocêntrica, eurocêntrica, evolucionista, tão presentes ainda nos séculos XIX, XX e até os dias atuais e, ao mesmo tempo, apesar de se admitir ser a Moda o destino das sociedades modernas devido ao seu sucesso estar apoiado no projeto liberal, ou seja, pelo fato de estar engendrada na sociedade capitalistademocrática-individualista, como afirma Lipovetsky (1989), também se percebe a sua vocação, mesmo que, a princípio, como um elemento transgressor, ou movido a mini-transgressões, situações e atitudes localizadas que rapidamente são assimiladas ao sistema de moda e geradoras de novas tendências, que acabam por legitimizar, às vezes, de novos estilos. Basta olharmos as últimas tendências para nos darmos conta de que virou moda pensar a moda como étnica. Será? Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi 11 Penso que se os primeiros etnólogos, etnógrafos e antropólogos pretendiam aprofundar os estudos em torno da diferença e, para tal empreitada, propuseram a pesquisa em loco, na tentativa de saírem dos prejulgamentos em torno de uma visão etnocêntrica, eurocêntrica, evolucionista, tão presentes ainda nos séculos XIX, XX e até os dias atuais e, ao mesmo tempo, apesar de se admitir ser a Moda o destino das sociedades modernas devido ao seu sucesso estar apoiado no projeto liberal, ou seja, pelo fato de estar engendrada na sociedade capitalistademocrática-individualista, como afirma Lipovetsky (1989), também se percebe a sua vocação, mesmo que, a princípio, como um elemento transgressor, ou movido a mini-transgressões, situações e atitudes localizadas que rapidamente são assimiladas ao sistema de moda e geradoras de novas tendências, que acabam por legitimizar, às vezes, de novos estilos. Basta olharmos as últimas tendências para nos darmos conta de que virou moda pensar a moda como étnica. Será? Para chegar a tal resposta, no entanto, o caminho a ser percorrido será um pouco mais longo do que uma aula e ainda penso que exigirá mais pesquisa e o conhecimento, ainda que iniciante, das trajetórias de alguns dos mais conhecidos antropólogos que podem mostrar algumas possibilidades para traçarmos uma meta para a pesquisa de um grupo de interesse. Talvez esse seja o meu maior objetivo para este módulo. Da teoria à pratica, da prática à teoria, assim como fez os estudiosos das culturas humanas e ainda o fazem os atuais pesquisadores. Voltando no tempo... para pensar o hoje. O que ocorreu, com os colonizadores, cronistas e mesmo com os primeiros etnólogos, em relação ao contato com o “outro”, com as diferenças culturais, foi o julgamento baseado no etnocentrismo europeu e na ideologia do progresso, em uma crença exagerada na modernidade. Em cinqüenta anos, de 1450 a 1500, o planeta foi explorado e as costas marítimas cartografadas pelos ocidentais. Civilizações até então desconhecidas modificam a sensibilidade ocidental, suscitando-lhes problemas: São homens ou animais? Possuem uma alma imortal? Descendem de Adão? Se descendem, após quantas extravagantes migrações? A figura do Outro assume duas faces: a do sábio antigo e a do selvagem, que dirigem ao ocidental um olhar crítico, e questionam suas referências culturais, um a partir da extrema sabedoria da razão filosófica, o outro a partir da inocência natural.1 O que se percebe, logo de imediato, é que as ideologias desenvolvidas a partir do contato formam: 1º ) a recusa do estranho apreendido a partir de uma falta, a partir da imagem de si e da sociedade; e 2º ) a fascinação pelo estranho (uma imagem de si e da sua sociedade). Em outras palavras, a figura do mau selvagem e do bom civilizado e a figura do bom selvagem e do mau civilizado. 1 LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. Trad. Marie-Agès Chauvel. Prefácio: Maria Isaura Pereira Queiroz, São Paulo: Brasiliense, 1988, p.33. 2 Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi Em outras palavras, [ao] dualismo das sociedades modernas e tradicionais foi superposto um outro: o da sociologia e da etnologia. A sociologia aparece como o estudo especializado das sociedades modernas de grandes dimensões. Estas últimas produzem dados quantitativos indispensáveis à validação das hipóteses sociológicas. A etnologia aparece, por contraste, como o estudo prolongado das sociedades da tradição através da interação face a face, pelo emprego de métodos qualitativos em relação aos quais o instrumental estatístico é de pouca utilidade.2 Isso quer dizer, em parte, que o surgimento da Sociologia e da Etnologia, no processo de “modernização” e de mundialização, possuem, como modelo, as sociedades européia e norte-americana e, portanto, temos um problema, não só de caráter epistemológico, mas, sobretudo, concreto e atual, que pontua as nossas relações com aquele (s) que designamos o “outro” ou “eles”. Herdamos um modelo de modernidade, que por mais que esteja em questão na atualidade, ainda se faz bastante presente em nossas interpretações cotidianas, isto porque tal modelo “’propaga-se’ para fora de seu âmbito de origem, noutras palavras, difunde-se. A teoria da modernidade é uma teoria da difusão. Liga-se, desta maneira, a uma corrente de pensamento sociológico segundo a qual as mudanças sociais dão-se, sobretudo, pela difusão das informações a partir de um centro que é suposto produzi-las: o Crescente Fértil no neolítico, o Egito na Antigüidade, o Ocidente na época moderna. Para Eisenstadt e seus contemporâneos, o motor dessa difusão é a racionalidade científica, portanto universal, que se impõe às civilizações particulares, fundadas sobre outros modos de pensamento, chamados de ‘pré-científicos’, ‘pré-lógicos’, e até ‘irracionais’. A modernização é, assim, percebida como o rolo compressor destinado a esmagar todas as civilizações para reduzi-las ao modelo do Ocidente industrializado. Por isso, a teoria da modernização é também chamada de teoria da convergência das civilizações, já que se presume que todas se aproximam de um modelo único. (...) a modernização ‘é um processo de mudanças’. Mas, além disso, a modernidade valoriza esta mudança e a inovação. O que é novo é percebido como progresso. Uma sociedade moderna é uma sociedade que se acredita voltada antes para o futuro que para o passado. A modernidade é um valor. Possui, portanto, seus apologistas e seus detratores.3 Em contraste com as sociedades modernas, surgem os termos referentes às “outras” – arcaicas, primitivas, tradicionais, ou ainda, quentes e frias como falou Lévi-Strauss. Quaisquer que sejam os termos empregados, a sociologia ocidental é marcada por este dualismo que remonta ao Renascimento, e que opõe os “selvagens” aos “civilizados”, seja para deplorar as perversões imputáveis à civilização, como fez Rousseau, seja para exaltar essa civilização, como fizeram os evolucionistas do século XIX (Spencer, Tylor, Morgan, Marx). 4 2 LABURTHE-TOLRA, Philippe & WARNIER, Jean-Pierre, Etnologia – Antropologia. Trad. Anna Hartmann Cavalcanti, Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, p. 22. 3 Ibidem, p. 21-22. 4 Ibidem, p. 22. Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi 33 Esses são apenas alguns nomes dos que objetivavam conhecer o outro, mas não conseguiam abrir mão de um modelo civilizatório para tal empreitada o que, a priori, criou um outro sujeito distante tanto do dito “civilizado” como do dito “primitivo” ou “arcaico”, já que se procurava no outro cultural o mesmo e aquilo tudo que não era similar ou possível de ser compreendido dentro dos modelos civilizatórios almejados como o que se tinha de “melhor” a ser aceito por todos, era marginalizado a uma condição subumana, tribal ou sub-grupal terminologias presentes até hoje em muitos textos, inclusive, acadêmicos. Apesar de termos como raça, etnia, tribo, serem recorrentes e nem sempre bem aplicados ou justificados, parece mais coerente chamarmos outros povos, grupos sociais, enfim, o outro para nós ou o eles como culturas ou sociedades, pois, como afirma o antropólogo social Marcel Mauss, em meados do século XX: “O que nós conhecemos são somente sociedades”. Então, essa etnologia que vai se formando nos séculos XIX e XX pode ser entendida como em parte, uma raciologia (a descrição e classificação dos povos era análoga ao que Lineu havia proposto para as espécies animais). Somente no século XX, o termo etnologia irá drenar a experiência filosófica do Renascimento e do Século das Luzes – o da reflexividade e do comparatismo – e tentará se desfazer de um racismo mais ou menos latente. Se os etnólogos dedicam muito tempo e energia à descrição e análise das sociedades outras, eles não são, entretanto, indiferentes à sua própria sociedade. Estabelecem comparações entre várias sociedades, ou entre uma determinada sociedade e a sua. É isto que queremos dizer ao afirmar que a etnologia é comparativa. Além disso, como Montaigne, Rousseau e Montesquieu, o pesquisador volta-se para sua própria civilização. Ele se olha com o olhar do outro. Ele se descobre em sua estranheza a partir de um olhar distanciado, que lhe revela seu próprio particularismo. A objetividade, neste caso, não é procurar colocar-se como que fora da sociedade, pois isto é impossível, já que todo observador está situado, definido por um determinado pertencimento social. Para este observador, o único caminho possível consistirá em jogar o jogo de uma outra inserção social, com duplo fim, pedagógico e científico, de fazer surgir, como num mergulho revelador, a natureza de sua própria socialidade e as distorções resultantes dos efeitos de situação na percepção do social.5 Entretanto, como uma ciência que tenta decifrar signos e símbolos, entender o outro, a Antropologia teve seu repertório modificado ao passar dos tempos e no próprio contato, ao se deparar com situações conflitantes e com um outro cultural bastante diferente e extremamente interessante, no ponto de vista das lógicas culturais e dos sistemas sociais com que esses estudiosos começam a se abrir no século XX. Assim, como entender, decifrar os códigos, os registros, outras possibilidades, o diferente e o igual entre os homens? Como compreender a totalidade das relações sem deixar escapar a diferença? 5 4 Ibidem, p. 39. Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi Rouanet6 pensa que o investigador deve ter suas próprias formulações e discuti-las em nível do discurso argumentativo, não deixando de lado o seu juízo de valor, cultura e a maneira de ver e colocar-se na interação com o outro. O processo comunicativo torna-se possível por meio do discurso argumentativo, ou seja, a forma de chegar à compreensão de culturas diferentes é por um diálogo entre interlocutores. E aqui só consigo entender uma interlocução apoiada no argumento de Geertz, ao afirmar que, na relação entre pesquisador/pesquisado que se estabelece durante a pesquisa e no trabalho de interpretação, também o pesquisador presencia na relação com o objeto da pesquisa, que no caso é o próprio sujeito da história narrada, sutilezas que direcionam o desenrolar de seu trabalho. Uma idéia que se faz presente ao buscarmos as narrativas dos sujeitos que vivem o lugar cotidianamente fica explicitada por Ecléa Bosi, quando se refere à veracidade do relatado pelo narrador, diz que “com certeza, seus erros e lapsos são menos graves em suas conseqüências que as omissões da história oficial. Nosso interesse está no que foi lembrado, no que foi escolhido para perpetuarse na história de sua vida” 7. Complementando a idéia desenvolvida por Bosi, uma historiadora da Memória, ao esclarecer o objetivo da antropologia interpretativa, Geertz traduz, em parte, a preocupação que vem sendo (e ainda será) desenvolvida no decorrer dessa seleção de idéias e textos expostos aqui: Olhar as dimensões simbólicas da ação social – arte, religião, ideologia, ciência, lei, moralidade, senso comum – não é afastar-se dos dilemas existenciais da vida em favor de algum domínio empírico de formas não-emocionalizadas; é mergulhar no meio delas. A vocação essencial da antropologia interpretativa não é responder às nossas questões mais profundas, mas colocar à nossa disposição as respostas que outros deram (...) e assim incluí-las no registro de consultas sobre o que o homem falou8. Mesmo conscientes de que escutamos e vivenciamos reflexões sobre a própria existência de quem narra a sua história para o ouvinte, no caso, o antropólogo, o que percebemos é que nem sempre o nós e os outros estão tão distantes quanto aparecem, ou quanto queremos afastar, e muitas das questões subjetivas “deles” são as do próprio pesquisador. As narrativas dos sujeitos de uma pesquisa, muitas vezes e dependendo dos objetivos dela, serão interpretadas por meio de vários autores, para se ampliar o próprio horizonte do pesquisador, no sentido de elucidar e criar discernimento para o diálogo intercultural, assim também o pesquisado precisa ser encarado como um igual na interlocução, mesmo que diferente cultural e socialmente. Não só as suas histórias, mas também a sua cultura material é interpretada por ambos, em uma constante construção simbólica. 6 ROUANET, Sérgio Paulo. “Ética e Antropologia”. In Revista Estudos Avançados, set/dez. 1990, vol. 4, n.10. 7 BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: Lembranças de velhos. São Paulo, T.A.Queiroz, 1979, p. 1. 8 GEERTZ, Clifford. “Uma descrição densa. Por uma teoria interpretativa da cultura”. In: A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 40-1. Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi 55 Jaguar, Cultura Mexica, Ciudad de México, Museo Nacional de Antropología www.campus-oei.org/cultura/mexico/c7b.htm. Acesso: 05/07/2005. Desta forma, a Antropologia tem os seus métodos, objetos, mas o diálogo sobredeterminaria a objetividade científica – o saber antropológico. Então, é no diálogo que entra a questão da ética, cada qual (interlocutor) com a sua cultura em um discurso argumentativo ético. Aí pergunto: Como transportar para a Moda esse debate antropológico? O que pensavam os fundadores da ciência da alteridade ? Os primeiros 30 anos do século XX impõem mudanças consideráveis – acaba a divisão de tarefas entre o observador e o analista/intérprete. Com isso, muda também a visão/relação que o pesquisador/observador mantinha com o informante. Parte-se para o trabalho de campo, como à procura da própria fonte da pesquisa e não como um conhecimento secundário para ilustrar uma tese o que ressalta as diferenças de enfoque entre as tradições antropológicas americana, britânica e francesa. A tradição americana, durante muito tempo, apoiou-se na antropologia física, enquanto a francesa, esteve ligada, durante muito tempo, à filosofia. Em outras palavras, enquanto as tradições britânica e americana preocupavam-se com o corpo e a produção de sua materialidade, a francesa preocupava-se com as representações. Franz Boas (1858-1942) Americano de origem alemã, físico e geógrafo. Nascido em uma cidade prussiana de Minden, chamada Vestfália. Fez história na antropologia americana. Como etnógrafo, partiu, em 20 de junho de 1883, para uma expedição aos esquimós, na ilha de Baffin (Canadá), onde permaneceu por um ano. Durante o período em que permaneceu entre os esquimós escreveu diários e, em uma passagem, afirma: “Sou agora um verdadeiro esquimó. Vivo como eles, caço com eles e faço dos homens de Anarnitung”.E ainda mais, como o registrado em 23 de dezembro de 1883: 6 Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi Freqüentemente me pergunto que vantagens nossa “boa sociedade” possui sobre aquela dos “selvagens” e descubro, quanto mais vejo de seus costumes, que não temos o direito de olhá-los de cima para baixo. Onde, em nosso povo, poder-se-ia encontrar hospitalidade tão verdadeira quanto aqui? ... Nós, “pessoas altamente educadas”, somos muito piores, relativamente falando. ... Creio que, se esta viagem tem para mim (como ser pensante) uma influência valiosa, ela reside no fortalecimento do ponto de vista da relatividade de toda formação (Bildung), e que a maldade, bem como o valor de uma pessoa, residem na formação do coração (Herzensbildung), que eu encontro, ou não, tanto aqui quanto entre nós.9 Boas criticava a repartição das ciências, as generalizações superficiais e tentava chegar às conclusões após exaustivos repertórios. Sua preocupação dá início a uma nova fase – a da Etnografia, entendida como o estudo e a descrição dos povos, sua língua, raça, religião etc., e manifestações culturais de sua atividade. É parte ou disciplina integrante da etnologia, entendida como ramo da antropologia que estuda a cultura dos chamados povos naturais. Em outras palavras, a etnografia inicia-se a partir do momento em que o pesquisador percebe que precisa efetuar a pesquisa no campo por meio de uma observação direta, pois assim será parte integrante da pesquisa. Para tanto, o estudioso defendia o método de indução empírica, evitando amarrar os fenômenos em uma camisa de força teórica. O novo “método histórico” exigia que se limitasse a comparação a um território restrito e bem definido. A precondição para o estabelecimento de grandes generalizações teóricas e a busca de leis gerais seria, portanto, o estudo das culturas tomadas individualmente e de regiões culturais delimitadas. Boas criticava o determinismo geográfico, afirmando que o meio ambiente exercia um efeito limitado sobre a cultura humana – a grande diversidade cultural existente entre povos que vivem sob as mesmas condições geográficas reforça essa tese. Criticava, também, o método “difusionista”, que pregava que a ocorrência de elementos culturais semelhantes, em duas regiões geograficamente afastadas, seria prova de existência de um único e mesmo caminho evolutivo, evidenciando, assim, sua postura anti-evolucionista e a construção de um método que se propunha a conhecer a cultura de um povo por ele mesmo, ou melhor, estando entre ele e passando por um deles. Por isso, a importância de conhecer a língua, a história e a cultura, dentro das particularidades de cada grupo. Franz Boas efetiva esse trabalho realizando abertamente uma crítica aos “pesquisadores de gabinete”, que por não estarem em loco, não compreendiam o modus vivendus do pesquisado e permanecia julgando-o inferior. Por isso mesmo, recusava qualquer valor científico à suposição de que existem diferenças raciais significativas entre os homens. 9 BOAS, Franz. Antropologia Cultural. Org. e Trad. Celso Castro, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 9. Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi 77 Segundo ele, a variação se daria entre diferentes linhagens familiares de uma mesma população, e não entre supostas “raças”, construídas a partir de elementos puramente superficiais, como a cor da pele, forma da cabeça ou textura dos cabelos. Haveria uma enorme variabilidade genética, mesmo em uma população considerada “racialmente homogênea”, daí o absurdo cientifico de se pensar em “raças puras”. Traços ou características que habitualmente se associavam a uma determinada raça estariam, na verdade, presentes em várias outras.10 Não é à toa a importância que Boas atribuía ao conceito de CULTURA, já que esta está no elemento explicativo da diversidade humana. A concepção boasiana de cultura tem como fundamento um relativismo de fundo metodológico, baseado no reconhecimento de que cada ser humano vê o mundo sob a perspectiva da cultura em que cresceu – em uma expressão que se tornou famosa, ele disse que estamos acorrentados aos “grilhões da tradição”. O antropólogo deveria procurar sempre relativizar suas próprias noções, fruto da posição contingente da civilização ocidental e de seus valores. (...) A percepção do valor relativo de todas as culturas – a palavra aparece agora no plural - servia também para ajudar a lidar com as difíceis questões colocadas para a humanidade pela diversidade cultural.11 Franz Boas, a partir de suas críticas às então consagradas teorias - o evolucionismo e o racismo - contribuiu para a antropologia cultural, assim como para outros antropólogos, que continuariam no embate teórico e prático no ampliar da visão acerca das formas culturais sob as quais vivem os homens. Bronislaw Malinowski (1884-1942) É co-fundador da Antropologia inglesa moderna, ao lado de Alfred RadcliffeBrown (1881-1955). A obra de Malinowski inaugura o funcionalismo = sistemas lógicos em funcionamento; funções elaboradas e lógicas. Resgata a questão da alteridade/ autenticidade, contrapondo-se ao evolucionismo, mas recai na ‘idealização do selvagem’. Com ele, a antropologia torna-se uma “ciência da alteridade” e se dedica ao estudo das lógicas particulares características de cada cultura. No funcionalismo de Malinowski, as sociedades tradicionais são sociedades estáveis e sem conflitos, visando naturalmente a um equilíbrio através das instituições capazes de satisfazer às necessidades dos homens. Essa compreensão naturalista e marcadamente otimista de uma totalidade cultural integrada, que postula que toda sociedade é tão boa quanto pode ser, pois suas instituições estão aí para satisfazer a todas as necessidades, defronta-se com duas grandes dificuldades: Como explicar a mudança social? Como dar conta do disfuncionamento e da patologia cultural?12 10 Ibidem, p. 19. CASTRO, Celso apud BOAS, Franz. Antropologia cultural. Op. Cit. p.18. 12 LAPLANTINE, François. Op. Cit. p. 83. 11 8 Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi É o primeiro a colocar em prática a observação participante. Estudo intenso e olhar atento às sociedades diferentes da nossa. Com esse método, passa-se a valorizar os interlocutores. O homem nunca desaparece em proveito do sistema. Ora, essa exigência de conduzir um projeto científico sem renunciar à sensibilidade artística chama-se etnologia. Malinowski ensinou a muitos entre nós não apenas a olhar, mas a escrever, restituindo às cenas da vida cotidiana seu relevo e sua cor. 13 Segundo Malinowski14, são instrumentos necessários a uma pesquisa de campo, além do bom senso, os princípios metodológicos de que o etnógrafo deve se munir, entre eles: em primeiro lugar, é lógico, o pesquisador deve possuir objetivos genuinamente científicos e conhecer os valores e critérios da etnografia moderna. Em segundo lugar, deve o pesquisador assegurar boas condições de trabalho, o que significa, basicamente, viver mesmo entre os nativos, sem depender de outros brancos. Finalmente, deve ele aplicar certos métodos especiais de coleta, manipulação e registro de evidência. (p. 24) Aliado ao aparato metodológico, também, o etnógrafo precisa estar bem preparado teoricamente, pois só assim estará aberto às possibilidades de compreender o que se está por vir. Afirma: Se um homem parte, numa expedição, decidido a provar certas hipóteses e é incapaz de mudar seus pontos de vista constantemente, abandonando-os sem hesitar ante a pressão da evidência, sem dúvida seu trabalho será inútil. Mas, quanto maior for o número de problemas que leve consigo para o trabalho de campo, quanto mais esteja habituado a moldar suas teorias aos fatos e a decidir quão relevantes eles são às suas teorias, tanto mais estará bem equipado para o seu trabalho de pesquisa. As idéias preconcebidas são perniciosas a qualquer estado científico; a capacidade de levantar problemas, no entanto, constitui uma das maiores virtudes do cientista – esses problemas são revelados ao observador através de seus estudos teóricos.15 Para ele nenhum aspecto da vida nativa deve ser desprezado, seja no público ou no privado, já que afirma ser o comportamento um fato e “um fato relevante – passível de análise e registro. Tolo e míope é o cientista que, ao deparar com todo um tipo de fenômenos prontos a serem coletados, permite que eles se percam, mesmo se, no momento, não visse a que fins teóricos poderiam servir!16 13 Ibidem, p. 85. MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. Um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné, Melanésia. São Paulo: Abril Cultural, 1976. Coleção Os Pensadores. 15 Ibidem, p. 26. 16 Ibidem, p. 35. 14 Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi 99 Em Malinowski, a observação participante que, em última análise, é viver junto com o grupo, é um critério epistemológico - do conhecimento. A preocupação com a funcionalidade dos sistemas – sociais, políticos e econômicos, só é possível por meio da pesquisa de campo, com a coleta de material etnográfico e com o uso de técnicas apropriadas – as qualitativas. Privilegia, desse modo, o que o outro pensa, explica, mas parte do pressuposto de que não há diálogo; o que o etnógrafo faz é a confirmação de tais valores, por isso é fundamental conhecer a língua do nativo para manter a comunicabilidade, para a compreensão da outra cultura. Para resumir, para o autor, o objetivo central do etnógrafo é o de apreender o ponto de vista dos nativos, seu relacionamento com a vida, sua visão de seu mundo. É nossa tarefa estudar o homem e devemos, portanto, estudar tudo aquilo que mais intimamente lhe diz respeito, ou seja, o domínio que a vida exerce sobre ele. Cada cultura possui seus próprios valores; as pessoas têm suas próprias ambições, seguem seus próprios impulsos, desejam diferentes formas de felicidade. Em cada cultura, encontramos instituições diferentes através das quais ele satisfaz às suas aspirações; diferentes códigos de lei e moralidade que premiam suas virtudes ou punem seus defeitos. Estudar instituições, costumes e códigos, ou estudar o comportamento e mentalidade do homem, sem atingir os desejos e sentimentos subjetivos pelos quais ele vive, e sem o intuito de compreender o que é, para ele, a essência de sua felicidade, é, em minha opinião, perder a maior recompensa que se possa esperar do estudo do homem.17 Quando li o trabalho de Bronislaw Malinowski, encantei-me com a belíssima descrição que faz dos povos trobriandeses (das ilhas Trobriand) e do Kula, sistema de trocas que evidenciou ao etnógrafo um sistema econômico em que se trocavam os bens nativos além de regras e hierarquias sociais. Ele inaugura o trabalho de campo com a observação participante, criando um estatuto da pesquisa etnográfica e, assim, recolocando em pauta o lugar do pesquisador, assim como o do pesquisado. Influenciou gerações de antropólogos e ainda está presente em todo nosso trabalho de campo que privilegie o estudo da diferença com seriedade e ética na coleta de informações e observação comportamental em Antropologia, mesmo que os tempos sejam outros. Ele, também, coloca ao antropólogo a questão da autoria e deixa com os seus escritos, relatórios que demonstraram a vida de povos que desapareceram em função de tantas invasões colonialistas. Muitos dos relatórios produzidos pelos etnógrafos, durante as primeiras décadas do século XX, serviam aos impérios coloniais – conhecer para assimilar. Esta é uma página triste da história da Antropologia, ou melhor, dos povos. Mas o que retomo da leitura da vida nativa descrita por Malinowski é algo que pode ser trazido para o universo artesanal do mundo da moda, como o relatado em relação ao valor das coisas para os argonautas do Pacífico Ocidental: 17 10 Ibidem, p. 38. Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi O valor não é resultante da utilidade ou raridade, intelectualmente combinadas, mas sim o resultado de um sentimento que se desenvolve ao redor das coisas que, satisfazendo necessidades humanas, são capazes de provocar emoções.(...) A maneira cuidadosa de trabalhar, a perfeição técnica, a discriminação na escolha da matéria-prima, a inexaurível paciência demonstrada nos detalhes do acabamento – tudo isso tem sido notado por todos os que têm observado os nativos em seu trabalho.18 TALVEZ SEJA BOM ... pensar nas heranças que recebemos de povos de que mal ouvimos falar, mas que existiram e continuam existindo enquanto houver uma linha que os retrate ou uma técnica que seja fruto da imaginação e criação humanas e, quiçá, de nossas próprias tradições que, muitas vezes desconhecemos, carregam tanto dos outros que insistimos em afastar do nosso convívio, pensamento, história ... Como podemos pensar tal questão na criação, ilustração, marketing e varejo de Moda? E... A grande preocupação, no final do século XIX, era construir um verdadeiro objeto científico da Antropologia – e os primeiros pesquisadores, neste sentido, foram os da “Escola Francesa de Sociologia”. Para isso, buscaram criar um sistema de conceitos para alcançarem o método científico. Trabalho iniciado por Emile Durkheim (conhecido como um dos fundadores da Sociologia) e Marcel Mauss. Aqui nos ateremos ao antropólogo. Marcel Mauss (1872-1950) Trabalhou incansavelmente para o reconhecimento da Antropologia como ciência verdadeira e não como uma disciplina anexa à Sociologia. Tanto é que, em 1924, escreve que o lugar da sociologia está ‘na Antropologia’ e não o inverso. Cria o conceito de fenômeno social total que consiste na integração dos diferentes aspectos (biológico, econômico, jurídico, histórico, religioso, estético) constitutivos de uma dada realidade social que convém apreender em sua integridade. Chega a dizer que é preciso os sociólogos se esforçarem para recompor o todo. Para Mauss, devemos observar o comportamento dos indivíduos, mas encarados como seres totais e não divididos em faculdades, pois só assim é possível apreender a experiência concreta de um ser humano naquilo que tem de único. Dizia que “O simples estudo desse fragmento de nossa vida, que é nossa vida em sociedade não basta”.19 Mauss debruçou-se sobre o tema das trocas e viu na troca simbólica as leis de reciprocidade e comunicação (Dom e contradom), a universalidade da obrigação de dar presentes, de recebê-los e de retribuir dádiva por dádiva. Foi a partir de tais fatos, atestados em todas as sociedades, que publicou em 192324, no L’Ánnée sociologique, seu “Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas”. 18 Ibidem, p. 139. LÉVI-STRAUSS, Claude. “Introdução à obra de Marcel Mauss” in Sociologia e Antropologia. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 24. 19 Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi 1111 Percebeu, nesse estudo, um sentido paradoxal da dádiva: ela é por definição voluntária, e, por isso, gratuita. Entretanto, todas as sociedades obrigam os indivíduos a praticar troca. Ou seja, é coercitiva. Mas podemos ir além disso, ao analisarmos que elas criam laços de reciprocidade, definem prestígio social e garantem uma estabilidade entre os membros que participam das trocas. Desta forma, uma vez que a obrigação de dar pesa sobre o doador, o beneficiário da dádiva encontra-se na obrigação de aceitá-la e de retribuí-la. A não retribuição pode afetar o indivíduo e/ou grupo de muitas maneiras, entre elas, pode gerar a exclusão da troca social ou outros gêneros de hostilidades. Afirma: Nas economias e nos direitos que precederam os nossos, nunca se constatam, por assim dizer, simples trocas de bens, de riquezas e de produtos num mercado estabelecido entre os indivíduos. Em primeiro lugar, não são indivíduos, são coletividades que se obrigam mutuamente, trocam e contratam; as pessoas presentes ao contrato são pessoas morais: clãs, tribos, famílias, que se enfrentam e se opõem, seja em grupos frente a frente num terreno, seja por intermédio de seus chefes, seja ainda dessas duas maneiras ao mesmo tempo. Ademais, o que eles trocam não são exclusivamente bens e riquezas, bens móveis e imóveis, coisas úteis economicamente. São, antes de tudo, amabilidades,banquetes, ritos, serviços militares, mulheres, crianças, danças, festas, feiras, dos quais o mercado é apenas um dos momentos, e nos quais a circulação de riquezas não é senão um dos termos de um contrato bem mais geral e bem mais permanente. Enfim, essas prestações e contraprestações se estabelecem de uma forma sobretudo voluntária, por meio de regalos, presentes, embora sejam no fundo rigorosamente obrigatórias, sob pena de guerra privada ou pública.20 Muitos foram os antropólogos que se depararam com os sistemas de trocas baseadas em competições. Aquilo que os índios Kwakiutil, observados por Franz Boas, chamariam de potlatch, e que Mauss qualifica de “prestações totais de tipo agonístico, reordenavam a hierarquia social em benefício dos mais generosos. Essas prestações são totais na medida em que abrangem todos os aspectos da atividade humana, ou seja, a troca de prestações implica também, e talvez antes de tudo, a organização do poder e da dominação, da riqueza e do prestígio21. Segundo o que Marcel Mauss constatou, em sua longa, profunda e duradoura pesquisa, baseando-se em analogias com as várias sociedades estudadas por ele mesmo e analisando as estudadas por outros etnólogos e etnógrafos, Potlatch quer dizer essencialmente “nutrir”, “consumir”. Se a obrigação de dar é a essência do potlatch, isso quer dizer dádiva. O termo agonístico deriva da palavra agôn = lutar, combater.Assim, agonístico significa que os parceiros estão empenhados em uma rivalidade. Só que em vez de guerrearem com armas, guerreiam com presentes. 20 MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a Dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas”. In Sociologia e Antropologia. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 190-191. 21 Lembrar o Kula entre os habitantes do arquipélago melanésio das ilhas Trobriand. 12 Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi Mauss também sublinhou a importância da contradádiva. A contraprestação pode ser da mesma natureza que a prestação, ou de natureza diferente. A contraprestação pode ser de valor inferior, igual ou superior à prestação, hierarquizando os parceiros na troca – o superior pode dar mais que seu inferior, ou menos, conforme o caso. A reciprocidade pode ser exercida por indivíduos ou grupos. Pode colocar dois parceiros face a face, ou ao contrário, incluir numerosos permutadores em redes complexas ou em circuitos mais ou menos extensos, dentro de variações infinitas, mas regradas, codificadas dentro do que chamou de sistema das prestações totais, veiculando entre os envolvidos significações pessoais e sociais entrelaçadas pelo código das trocas – verdadeiros contratos. Neste contexto, a reciprocidade pode tomar a forma da redistribuição: as prestações são efetuadas por diversos grupos ou pessoas em benefício de uma instância única que centraliza as contribuições, e que novamente as reparte entre os prestadores ou entre outros parceiros, que são, amiúde, clientes no sentido político do termo. Nosso sistema de seguridade social é um sistema redistributivo. Acontece o mesmo com a cobrança de impostos ou com outras contraprestações efetuadas por todos os estados e poderes da história.22 Pergunta-se: O que se troca? Resposta: Tudo ou quase tudo. Mas, lendo o extenso trabalho de Mauss, podemos enumerar 4 itens significativos. Trocam-se: 1 - palavras – a começar pelas saudações que desvelam sentidos. 2 - objetos materiais. Nas sociedades tradicionais, o objeto dado ou retribuído é freqüentemente dotado de um princípio ativo, ou posto sob o controle de uma transcendência que obriga o beneficiado a levar até o fim o ciclo da reciprocidade, e a reenviar o princípio ativo à sua origem, graças a uma série de substratos dados e retribuídos. 3 - pessoas ou direitos sobre as pessoas. Em algumas sociedades tradicionais, os filhos são objeto de múltiplas transações, que podem resultar no internato ou na adoção. Lévi-Strauss, em sua obra As estruturas elementares do Parentesco (1949), estendeu a reciprocidade à troca de mulheres, na qual vê o princípio de todos os sistemas de parentesco e a contrapartida da proibição do incesto. 4 - golpes. Os conflitos armados, a guerra, surgem entre vizinhos que são, no entanto, parceiros em diversas formas de reciprocidade. Entre os nuer pesquisados por Evans-Pritchard, era comum ouvir “Nós lutamos com aqueles com quem nos casamos”, sendo que as mulheres trocadas quase sempre eram a razão de rivalidades e rixas profundas. Esses relatos também são comuns em várias sociedades indígenas em território brasileiro. 22 LABURTHE-TOLRA, Philippe ; WARNIER, Jean-Pierre. Op. Cit. p. 344. Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi 1313 SIR EDWARD EVANS-PRITCHARD (1902-1973) nasceu na Inglaterra e é considerado um dos mais importantes antropólogos do século XX. Estudou História Moderna na London School of Economics and Political Science. Foi professor de Sociologia Africana e Antropologia na Universidade de Oxford. Dirigiu seis expedições ao Sudão anglo-egípcio, principalmente entre os Nuer e os Azande, de quem deixou um vasto e rico material etnográfico de grande contribuição à pesquisa e teoria antropológicas. Assim, chama-se de reciprocidade o processo pelo qual as prestações são trocadas na modalidade da dádiva e da contradádiva. Se os bens e os serviços, que são objeto dessas transações, reordenam as relações sociais de aliança e subordinação, também é verdade que nas sociedades de interação face a face, ou comunidades de conhecimento mútuo, eles são personalizados. Isso é perceptível em um contrato matrimonial, mas não é o que acontece nas trocas mercantis, em que as relações entre pessoas são anuladas por transações monetárias que podem alcançar um grau extremo de despersonalização. Esta comparação esclarece uma diferença fundamental entre o sistema de trocas nas sociedades dita primitivas e nas sociedades de consumo das quais fazemos parte e, sobretudo, quando pensamos na relação sujeito-objeto em que se insere o mundo da Moda. A Antropologia do consumo será algo que trataremos nas aulas posteriores, ao trabalharmos os conceitos de cultura, moda, identidade e contemporaneidade. É claro que pensar o homo sapiens sapiens é situá-lo em sua materialidade e em um mundo material modelado por ele. Por isso, na diversidade das escolhas em relação à alimentação e modos de fazê-la, assim como nas vestimentas, aparência, ou seja, modos de viver, sentir, ser, fazer, vestir e, ainda mais, no de se servir dos objetos produzidos para o uso, abuso e prazer, além do reino da necessidade, é perceber como as humanidades foram construindo suas identidades. Somos, de certo modo, o que comemos, o que vestimos, o que incluímos e o que segregamos, somos a arte, o luxo, mas somos, também, o lixo que produzimos. Nas sociedades industriais, todos os objetos, antes de ser consumidos, são postos em circulação. No “Ensaio sobre a Dádiva”, Marcel Mauss23 mostra o produtor que guarda o objeto produzido sendo isolado do circuito da troca. Nas sociedades tradicionais, não só o objeto tinha o valor da troca, pois o que se trocava além do valor contido no objeto era o prestígio do próprio produtor. Do objeto se trocava não só a materialidade, mas o “hau”, o seu espírito, por isso ele ia e voltava e, junto com ele, trocavam-se outros fluidos. Em outras palavras, colocar o objeto em circulação, desfazer-se dele, significava transformar a relação com o objeto em uma relação entre sujeitos, por meio da reciprocidade, da redistribuição, da solidariedade ou mesmo do mercado. Era tornar os objetos signos. É nessa complexidade das relações entre sujeito e objeto que a Antropologia do Consumo inicia seu debate. 23 Um outro ensaio de extrema valia de Marcel Mauss trata-se de “As técnicas do corpo” e está no mesmo livro citado e que faremos referências até o final do módulo, quando for conveniente. 14 Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi A título de uma visão mais geral sobre a diversidade dentro da própria Antropologia... As principais tendências do pensamento antropológico que fizeram escolas: • Antropologia americana – impulso evolucionista (Morgan). Culturalista e relativista (Boas): - Tipo de pesquisa que destaca a diversidade das culturas – observação dos comportamentos individuais; especificidade das personalidades culturais e das produções culturais de etnias ou nações; - Estuda os processos de interação entre as culturas – criou o conceito de “aculturação”; - Parte da situação colonial de sua existência e, por isso, coloca os problemas das minorias (negra, índia, porto-riquenha); • Antropologia britânica – antievolucionista (Malinowski); estruturais (Radcliffe-Brown): “uma sociedade deve ser estudada em si, independentemente de seu passado, tal como se apresenta no momento no qual a observamos”. Empirista; - É anti-difusionista, ou seja, “uma sociedade não deve ser explicada nem pelo que herda de seu passado, nem pelo que empresta a seus vizinhos”; - É uma antropologia de campo (método indutivo e empirista, em oposição ao racionalismo e idealismo francês.); - Preza o social – estudo da organização dos sistemas em detrimento do estudo dos comportamentos culturais dos indivíduos. • Antropologia francesa – até metade do séc. XIX, falava-se em Antropologia Física, aquilo que se chamaria de uma etnologia selvagem feita por missionários e/ou administradores coloniais, ao invés de antropólogos formados em universidades, como os de tradições britânica e americana. - A Antropologia Francesa preocupou-se com a teoria dos filósofos e sociólogos sem, contudo, praticarem investigação etnográfica. Só a partir dos anos 30 que se inicia a etnografia/etnologia na França. - Após os anos 30, inicia-se uma etnografia profissional na França. Um objeto preferido pelos franceses é o estudo dos sistemas de representações (religião, mitologia, literatura de tradição oral, mentalidades, etc.) - Também a antropologia francesa é responsável pela renovação metodológica impulsionada pelo estruturalismo de Lévi-Strauss e das pesquisas conduzidas dentro da perspectiva marxista. Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi 1515 E... alguns pólos teóricos do pensamento antropológico contemporâneo, já que esta, hoje, atinge todas as áreas e já, desde o início, mostrava sua vocação para o “holístico”, ou ainda, para o estudo da complexidade do humano e suas relações possíveis (É claro que, atualmente, o saber antropológico amplia-se e desafia para a compreensão das novas relações sociais e culturais, assim como os trajetos dos indivíduos na contemporaneidade): • Antropologia simbólica – parte do sentido. O que significam instituições e comportamentos? Qual é a lógica dos discursos? • Antropologia social – aproxima-se da sociologia = estudo das funções das instituições (normalização das funções = instituições). • Antropologia cultural – empírica. Está mais para a função e o sentido, do que para a norma e sistema. Estudo da continuidade/descontinuidade. Natureza/Cultura. Os culturalistas diferem-se entre aqueles que acreditam na continuidade/descontinuidade (ordenação da natureza e da cultura) e aqueles que buscam a universalidade da cultura. • Antropologia estrutural e sistêmica – O estruturalismo desmorona os pares antinômicos. Atua na compreensão das estruturas do inconsciente = sistema. • Antropologia dinâmica – procura estudar as relações de poder (vai para o campo sociológico). Rompe com o funcionalismo (satisfação de necessidades, a-histórica e finalista). • Antropologia Interpretativa – Desdobramento da Antropologia Cultural, em que Clifford Geertz é o antropólogo de referência. Em seu trabalho A interpretação das Culturas, Geertz revigora o estudo da cultura como sistema simbólico. Afirma: “o conceito de cultura que eu defendo (...) é essencialmente semiótico.” (1989, p. 4) E ainda: Nada mais necessário para compreender o que é a interpretação antropológica, e em que grau ela é uma interpretação do que a compreensão exata do que ela se propõe dizer – ou não se propõe – de que nossas formulações dos sistemas simbólicos de outros povos devem ser orientadas pelos atos. (...) Resumindo, os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e, na verdade, de segunda e terceira mão. (Por definição, somente um “nativo” faz a interpretação em primeira mão: é a sua cultura.) (Ibidem, p. 11) 16 Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi • Antropologia da Atualidade ou dos mundos contemporâneos Pensando a Antropologia hoje, uma idéia desenvolvida por Marc Augé parece traduzir os dilemas atuais, já que uma nova ordem de realidade se propõe a seu olhar: as novas fronteiras que não se confundem com as antigas delimitações do social e do cultural. Por esses novos mundos, passam as relações de sentido (as alteridades-identidades instituídas e simbolizadas) cujos cruzamentos, imbricações e rupturas fazem a complexidade da contemporaneidade24. Nesse olhar para as relações que se colocam diante das novas fronteiras em torno das identidades, e aqui entra a etnicidade, é que se insere a nossa preocupação quanto ao tratamento dado às diferenças na atualidade. Aliás, não se trata de um assunto novo, mas de redirecionar, à luz da teoria e na análise do cotidiano, as novas imbricações conceituais diante do desenraizamento, fragmentação, recriação de identidades que ocorrem em um mundo que se diz global e que aprofunda conflitos de todos os gêneros e aqui nos interessa, em particular, o debate da diferença que perpassa a etnicidade. Em outras palavras, diante dos fenômenos contemporâneos de reafirmação das diferenças culturais no processo de mundialização, torna-se crucial uma reflexão sobre o lugar teórico e político da diferença, ainda mais quando o Outro tem no passado a marca de um contato/percepção ocidental que o inferiorizou diante de uma pretensa superioridade étnica. Passado este que deixou marcas visíveis/invisíveis, situações que emergem pacifica e/ou violentamente por meio das lembranças, das guerras por territórios, da luta pela preservação de identidades étnicas, enfim, passado que se pauta no presente e que tenta ser capturado pela Antropologia, que tem por especificidade o estudo do outro, a reflexão sobre a diferença cultural, por meio da observação minuciosa, análise e interpretação das relações sócio-político-culturais em torno das fronteiras identitárias ontem e hoje. Quando pensamos no sujeito pós-moderno no enfretamento do dilema da subjetividade diante do deslocamento das fronteiras identitárias, aparece aos nossos olhos que ele reflete as contradições do se sentir pertencendo e o jogo das identidades se faz em momentos oportunos em que a afirmação da identidade se dá de múltiplas formas. Então, se podemos dizer, como Paula Montero, em uma Antropologia Pósmoderna, talvez possamos afirmar que a inquietação comum dos trabalhos contemporâneos é a de incluir, na imagem que a antropologia produz sobre o Outro, a reflexão sobre o modo como essa imagem foi produzida. O antropólogo passa, pois, a disputar com diversos atores sociais o monopólio da representação legítima do Outro. Se isto é verdade, não é mais a diferença que interessa nela mesma, mas o jogo de forças que organiza o campo de sua construção simbólica.25 24 AUGÉ, Marc. Por uma antropologia dos mundos contemporâneos. Trad. Clarisse Meireles e Leneide Duarte. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p. 143. 25 MONTERO, Paula. “Globalização, identidade e diferença” In Novos Estudos CEBRAP n. 49. São Paulo: Cebrap, novembro de 1997, p. 47-64. Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi 1717 E entre estas questões aparecem as interfaces da Moda, principalmente quando pensamos, como Geertz, que o objetivo da Antropologia é o alargamento do universo do discurso humano. Nesta aula, tive, por objetivo, dar um panorama sobre os trajetos da Antropologia, seu vasto campo analítico-interpretativo, no intuito de despertar curiosidade e um saber inicial de que tão complexo quanto os homens e as mulheres é a ciência que os pretende compreender. Neste estudo, nós nos inserimos (porque somos e estamos) de corpo e alma. O grafite em estudo. Os grafites são compreendidos como crônicas de sua época, formas de expressão de uma realidade e condição humanas.Assim, o visual e o virtual são objetos em foco dos estudos da Antropologia Urbana ou Contemporânea. Disponível em :www.revistaetcetera.com.br/.../graff2.htm. Acesso em:05/07/2005. 18 Trajetórias Antropológicas / Anhembi Morumbi AUGÉ, Marc. Por uma Antropologia dos Mundos Contemporâneos. 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