1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 METATEATRO: INSERÇÃO DO DISCURSO CRÍTICO NO TEXTO DRAMÁTICO Sonia Aparecida Vido PASCOLATI (UEL) Introdução Oswald de Andrade é, parece-nos, antes de tudo, um dramaturgo: tanto a sua poesia sintética, quanto a sua prosa fragmentada consolidam a escritura dramática [...]. O que se quer dizer é que o teatro é seu signo pertinente (CURY, 2003, p.27). Este artigo é parte de um projeto de pesquisa mais amplo sobre a dramaturgia de Oswald de Andrade, desenvolvido na Universidade Estadual de Londrina (UEL), cujo título é “Metateatro e modernidade teatral brasileira: um estudo da dramaturgia de Oswald de Andrade”. O projeto, coordenado por mim e iniciado em julho de 2007, conta com a participação de alunos em nível de Graduação e Especialização e tem como foco analisar a presença de recursos metateatrais como um dos elementos constituintes da modernidade teatral brasileira. O corpus do projeto abarca os três principais textos dramáticos do autor modernista: O homem e o cavalo (1934), O rei da vela (1937) e A morta (1937). Para os limites deste trabalho, selecionamos a peça O rei da vela e exploramos apenas uma das formas de metateatro nela presentes. Dentre as características da modernidade figura a tendência à auto-reflexividade demonstrada pela arte moderna. O século XX é marcado pela assimilação sistemática, por parte do texto ficcional, do discurso crítico, antes exterior a ele. Inserida na ficção, a crítica ganha novo alcance e novos sentidos. A arte passa a demonstrar consciência de seu caráter de representação. A ficção desnuda os procedimentos de sua construção, revelando ao leitor os bastidores da escrita. Na narrativa, isso é visível na criação de personagens autoras (como em São Bernardo de Graciliano Ramos ou A hora da estrela de Clarice Lispector) e na construção de narradores que refletem sobre o ato da escrita. No teatro, muitos são os recursos reunidos sob o nome de metateatro, todos voltados para o efeito de sentido de ruptura da ilusão teatral e revelação da autoconsciência artística da produção dramática. Em O rei da vela temos personagens com consciência dramática – no sentido que Abel (1968) dá ao procedimento –, demonstrando conhecimento do estatuto de personagens de ficção a representar um papel dramático; personagens que assumem outros papéis (Abelardo II atua como domador de feras e como servo antigo) e até mesmo parecem dirigir a atuação das demais (Abelardo I no segundo ato contracena com cada personagem a fim de melhor caracterizá-la); variados efeitos de ruptura da ilusão dramática, como se dirigir diretamente ao público ou chamar o “ponto” para participar da ação (final do terceiro ato), rompendo com a quarta parede; e um último recurso, analisado neste artigo: a inserção de comentários críticos sobre teatro e literatura em meio à intriga. A literatura dramática, ao tomar a si mesma como objeto de análise e crítica, faz com que o texto se construa na interseção dos fios discursivos ficcional e crítico. Portanto, o objetivo deste artigo é apresentar algumas reflexões sobre o modo como esses discursos se cruzam e que sentidos são produzidos. No objeto de estudo, são identificadas várias inserções críticas a fim de analisar como o discurso ficcional se constrói na intersecção com o discurso crítico, aqui entendido como os mais diversos 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 enunciados produzidos por personagens que assumem a posição de críticos da tradição literária dramatúrgica brasileira. Com uma visão cáustica sobre a sociedade brasileira, Oswald coloca na boca de suas personagens apreciações impiedosas, embora realistas, sobre o cenário literário e artístico do país. 1. Interdiscurso e Metateatro O texto dramático é uma das formas possíveis de organização do discurso literário; na condição de discurso, tem a clara intenção de ser um canal de comunicação entre um enunciador (dramaturgo) e um enunciatário (leitor)(1). Dentre as especificidades do texto dramático, figura o diálogo, um de seus elementos essenciais. Diálogo pressupõe interação verbal, isto é, não apenas uma troca de enunciados entre agentes, mas a emissão de enunciados, de falas dirigidas sempre para um outro e construídas em dadas situações de comunicação. A situação de enunciação é fundamental para a atribuição de sentido ao texto. A palavra é sempre orientada social e ideologicamente para o Outro. No texto dramático, essa troca ideológica, essa interação verbal incontinente é a pedra de toque. Os sentidos brotam das falas e réplicas das personagens, inevitavelmente condicionadas pela situação discursiva. O rei da vela, texto produzido em 1933, embora publicado apenas em 1937, revela um contexto discursivo e ideológico bastante específico: no plano político, o pano de fundo é a Revolução de 1930 e da Revolução Constitucionalista de 1932; na esfera econômica, o cenário é o da quebra da bolsa de Nova Iorque em 1929, da derrocada dos fazendeiros de café e do embrutecimento das relações capitalistas entre as classes sociais; no campo literário, há uma década o Modernismo instalara-se nas letras nacionais, propondo renovações formais e temáticas das quais Oswald muitas vezes assumiu a direção. Não à-toa a personagem central da peça tem sua ação orientada nessas frentes, responsáveis por desenhar nitidamente os contextos histórico, social, econômico, político e ideológico. Todo o discurso das personagens é balizado pela situação de enunciação à qual estão condicionadas. Quando se trata do cruzamento entre o discurso ficcional e o discurso crítico, temos duas ordens de discurso: um construído no campo da criação artística e outro inserido na expressão de um valor atribuído ao discurso literário. A personagem dramática assume uma função crítica em relação a outros discursos anteriores ou contemporâneos ou até mesmo em relação a seu próprio discurso, a sua existência como personagem dramática de um certo tempo e contexto. Segundo Brandão (2004, p.96), Maingueneau, ao tratar da questão da interdiscursividade, a relaciona à gênese discursiva e pretende mostrar que não existe discurso autofundado, de origem absoluta. Enunciar é se situar sempre em relação a um já-dito que se constitui no Outro do discurso. Em outros termos, na medida em que, cronologicamente, é o discurso segundo que se constitui através do primeiro, parece, com efeito, lógico pensar que este discurso primeiro é o Outro do discurso segundo, não sendo possível o inverso. O discurso primeiro não permite a constituição do discurso segundo sem estar ele próprio ameaçado em seus fundamentos. Assim, por exemplo, na medida em que retiramos de um discurso fragmentos que inserimos em outro discurso, fazemos com 513 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 essa transposição mudar suas condições de produção. Mudadas as condições de produção, a significação desses fragmentos ganha nova configuração semântica. O discurso da personagem Abelardo I em O rei da vela situa-se em relação ao um já-dito constituído pela história da dramaturgia nacional e pelo discurso crítico elaborado sobre essa mesma produção dramatúrgica. Na condição de discurso segundo, o discurso de Abelardo I absorve de modo parodístico o discurso sobre o estado da dramaturgia nacional na virada do século XIX para o seguinte. É nessa medida que o discurso primeiro acaba ameaçado em seus fundamentos, afinal, a personagem pretende questionar as pretensas verdades sobre o teatro nacional, ironizando receitas e modelos já desgastados. Esse procedimento interdiscursivo configura um recurso metateatral na medida em que obedece à principal característica do metateatro: questionar o teatro como forma de representação do real e romper a ilusão dramática. Dentre os estudos teóricos sobre metateatro, destacamos o de Schmeling (1982, p.7-8) pelo mérito de estabelecer uma tipologia de recursos metateatrais. Para o autor, o procedimento metateatral clássico é o da mise en abyme: “[...] on peut dire que le théâtre dans le théâtre dans sa forme idéale est un élément intercalé dans un drame, qui dispose de son espace scénique propre et de sa propre chronologie – de telle façon qu´il s´établit une simultanéité spatiale et temporelle de la sphère scénique et dramaturgique”(2). Para o autor, o teatro dentro do teatro possui caráter crítico-reflexivo tanto sobre momentos históricos quanto sobre formas artísticas e suas relações com a tradição. O metateatro é uma forma de reflexão sobre o passado literário e sobre as condições de produção e recepção de textos. Com a intenção de estabelecer uma morfologia do metateatro, Schmeling divide as ocorrências do teatro dentro do teatro em dois grupos: as formas completas e as periféricas. As formas completas são aquelas que visam ao jeu dans le jeu (representação dentro da representação ou peça por encaixe), ou seja, peças nas quais outras se encaixam, caracterizando a autêntica mise en abyme. É o caso de peça dentro da peça com coincidência ou não dos atores de primeiro e segundo níveis ou de peças cujos personagens/ atores se desdobram em papéis diferentes na peça moldura e na peça encaixada. Como exemplos, pode-se mencionar Hamlet de Shakespeare, peça na qual não há coincidência entre os atores/ personagens que representam a peça moldura – o drama de Hamlet – e a peça encaixada, drama representado pelos atores de uma trupe que passa pelo palácio real. Um exemplo de peça em que os atores são os mesmos representando personagens da peça moldura e da peça encaixada é A decisão, de Bertolt Brecht, na qual emissários do partido comunista têm de representar os motivos que os levaram a eliminar um companheiro. As formas completas de metateatro provocam reflexões estéticas acerca do fenômeno teatral, promovem a ruptura da ilusão dramática, discutem as relações da representação artística com o real e geram o efeito de distanciamento crítico. As formas periféricas referem-se ao jeu du jeu (representação da representação), caracterizando-se pela inserção de variados procedimentos reflexivos e podendo “apoiar” a estrutura da peça dentro da peça, “mais qui apparaissent souvent indépendamment de celles-ci et ne constituent pas un théâtre dans le théâtre proprement dit”(3) (SCHMELING, 1982, p. 12, grifo nosso). Recursos como prólogos e epílogos, o discurso dirigido diretamente ao público ou a técnica do aparte, a presença do coro (como comentador do espetáculo e elemento de ruptura da ilusão) ou de uma personagem que desempenhe função semelhante à de um diretor são considerados por 514 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 Schmeling formas periféricas de metateatro. Periférico aqui não deve ser compreendido como menor ou inferior; simplesmente são recursos disseminados pelo texto dramático, sem configurar exatamente uma interferência estrutural. No caso de O rei da vela, os recursos metateatrais periféricos são bastante significativos e funcionais, considerandose a intenção metateatral de ruptura da ilusão dramática. Por isso, tomamos a classificação de Schmeling como um referencial com a intenção de ampliar esse leque de recursos, tomando como ponto de partida a realização dramatúrgica de Oswald, afinal, as classificações costumam ficar aquém da inventividade dos artistas. 2. Metateatro em O Rei Da Vela O sr. Oswald de Andrade é um problema literário. Imagino, pelas que passa nos contemporâneos, as rasteiras que passará nos críticos do futuro. (CANDIDO, 1992, p.17). Oswald de Andrade (1890-1954) é um ícone do Modernismo brasileiro. Seu nome evoca rebeldia, transgressão, inconformismo quando está em foco o escritor; polêmica, controvérsia e desconfiança quando o foco passa a ser a persona envolvida em debates literários nos quais nem sempre analisa a obra de seus contemporâneos com a isenção necessária e esperada. Críticos de peso já sublinharam esse aspecto: Candido (1992, p.18) aponta o “caráter personalista” de suas relações literárias e Bosi (1989, p.403) a “gratuidade ideológica” com que se posiciona em muitos momentos. Além de protagonista da Semana de Arte Moderna – marco da transformação estética que estabelece os novos alicerces da arte e da literatura no Brasil –, Oswald deixou sua marca inconfundível ao propor a antropofagia como princípio de renovação estética e configuração da arte legitimamente nacional. O estilo do autor de Memórias sentimentais é marcado pela ruptura com as formas literárias convencionais e pela fragmentação. A paródia, a sátira, o humor e a ironia são ingredientes indispensáveis a Oswald, seja na poesia, na prosa ou no teatro. Seus textos, particularmente os teatrais, são uma colcha cujos retalhos são textos literários, mitos, personagens históricas, relatos bíblicos; a recorrência de alusões e referências acaba por fazer da intertextualidade o eixo de suas criações. O tom paródico é a pedra de toque da re-apresentação da realidade circundante, obrigando o leitor a assumir novas perspectivas para a observação do (aparentemente) já conhecido. Ou como observa Cury (2003, p.41), a intertextualidade parodística, estilizadora, parafrástica, a carnavalização, os elementos menipéicos, todos esses procedimentos formadores da cadeia de significantes da narrativa dramática oswaldiana desautomatizam a recepção, criando uma experiência nova, não mais pelo reconhecimento do objeto, mas por uma visão singular, insólita dele. Esse efeito provocado na recepção é o que Chklóvski chama de estranhamento. O rei da vela é a primeira incursão do autor no terreno do drama. Escrita em 1933, a peça esperou quatro anos para ser publicada e mais trinta para ser encenada pelo Teatro Oficina em pleno curso do regime militar no Brasil. Esse resgate “tardio” do texto paradoxalmente evidencia um caráter peculiar às obras teatrais de Oswald: sua atualidade. É o caso óbvio dessa primeira peça ao trazer à cena uma alegoria vibrante do capitalismo, descortinando seus mecanismos de funcionamento. Podemos dizer, 515 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 apoiados em José Celso Martinez Corrêa (2003, p.25), que a peça é ainda um retrato do Brasil do início do século XXI, afirmando sempre mais a “velhice” dessa estrutura social e política: “O humor grotesco, o sentido da paródia, o uso de formas feitas, de teatro no teatro, literatura na literatura, faz do texto uma colagem do Brasil de 30. Que permanece uma colagem ainda mais violenta do Brasil de trinta anos depois, pois acresce a denúncia da permanência e da velhice destes mesmos e eternos personagens”. Sábato Magaldi (2004, p.87) destaca a modernidade e o espírito de vanguarda da peça ao situá-la entre o passadismo do teatro nacional e o que há de revolucionário na dramaturgia ocidental à época de escritura da peça: [...] Os conhecedores da dramaturgia brasileira da década de 1930 não podem entender como Oswald de Andrade escreveu O rei da vela. A peça está fora de todos os padrões praticados entre nós. Ela funde consciência política e vanguarda – um segredo que, infelizmente, se perdeu depois no teatro. Ou se fazem textos com boas idéias e tratamento convencional, ou se utiliza uma linguagem de vanguarda para esposar princípios retrógrados. Brecht, Maiakovski, Oswald e uns poucos mais souberam unir pensamento e forma revolucionários. Esse é um privilégio de gênios. A intriga gira em torno da personagem Abelardo I, burguês em ascensão cujo capital advém do empréstimo de dinheiro a juros exorbitantes. Seu auxiliar Abelardo II, embora socialista, acomoda-se muito bem ao sistema exploratório do outro. A duplicação do nome da personagem aponta para uma espécie de hereditariedade dinástica e uma similitude de caráter e interesses. Completam a lista das personagens centrais os membros da família do coronel Belarmino, fazendeiro arruinado, pai de quatro filhos que representam a mais completa decadência moral da aristocracia feudal: Heloísa de Lesbos, Joana ou João dos Divãs, Totó Fruta-do-conde e Perdigoto. Os nomes representam alegoricamente os traços essenciais de cada um, sendo a homossexualidade e/ou indefinição de papéis sexuais a tinta das pinceladas na composição das personagens. Abelardo I e Heloísa formam um par romântico às avessas; o tom paródico do texto obriga a ler o intertexto com o famoso casal medieval, cujo amor foi capaz de vencer tantos obstáculos, como uma caricatura do amor romântico, impossível em tempos de prevalência do capital sobre o sentimento. O acordo de casamento entre Abelardo I e Heloísa garante ao burguês o conveniente tráfego pelas classes aristocráticas e salva a família de Heloísa da falência financeira. A divisão em três atos adapta-se perfeitamente às necessidades de exposição da intriga; aliás, o texto distancia-se da forma dramática convencional ao trocar o desenrolar de uma ação que caminha necessariamente a um desfecho por uma técnica expositiva que leva personagens e circunstâncias a desfilar episodicamente diante dos olhos do leitor, com destaque para situações exemplares que tão bem descrevem as personagens e as condições determinantes de seu comportamento. No primeiro ato, Abelardo I e Abelardo II são flagrados em plena atividade comercial no escritório de usura. Em poucos traços sabemos quem são os clientes e como vêm sendo francamente explorados pelo capitalista; temos notícia do acordo de casamento entre Abelardo e Heloísa; menciona-se a figura de Mister Jones, metáfora da submissão da economia nacional ao poderio americano. O cenário do segundo ato é outro: uma ilha tropical que propicia o encontro entre Abelardo e cada um dos membros da família do coronel Belarmino. A fraqueza moral, a hipocrisia e os desvios sexuais são satirizados impiedosamente. O americano faz uma breve aparição, suficiente para dar a entender que Heloísa é uma moeda facilmente cambiável de acordo com as circunstâncias 516 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 econômicas. A reviravolta acontece no terceiro ato quando Abelardo está falido por ter sido roubado pelo próprio assistente. Abelardo II prepara-se para assumir o lugar de Abelardo I, seja na condução dos negócios de agiotagem e na representação da classe cujo poder só muda de mãos, mas conserva o modo de funcionamento, seja na posse de Heloísa, afinal, “Heloísa será sempre de Abelardo. É clássico!” (ANDRADE, 2003, p.108). No que diz respeito à inserção do discurso crítico no discurso ficcional, um dos recursos metateatrais existentes na peça, o grande porta-voz é Abelardo, sendo dele quase a totalidade das intervenções desse gênero; quando não é um enunciado seu, ele cria a situação enunciativa, provocando a réplica de outras personagens. Em coro com Haroldo de Campos, Magaldi (2004, p.87) concorda que Oswald não distingue, na redação dos manifestos, a fronteira entre a linguagem poética e a linguagem da crítica; o mesmo pode ser dito sobre a fronteira entre o diálogo dramático e o discurso crítico. Abelardo não é apenas o emissor de um discurso crítico sobre a cultura e a literatura brasileiras, como também é o porta-voz do próprio autor, um canal por meio do qual Oswald faz ouvir suas opiniões e sua indignação diante do estado de coisas na década de 1930. Para facilitar a análise e a exposição, optamos por agrupar as referências metateatrais em quatro grupos, começando pelo mais abrangente: as menções ao papel social do intelectual em tempos de crise. As duas cenas referentes ao intelectual estão no primeiro ato, em consonância com o cunho expositivo impresso a ele. Assim como a situação dramática e a ação das personagens centrais Abelardo I, Abelardo II e Heloísa são registradas de modo exemplar, o Intelectual Pinote é apresentado com traços precisos, bastando um breve passeio pela cena para que se tenha idéia da função dramática e da crítica social veiculada através da personagem. O primeiro alvo de sátira é “um tal de Cristiano de Bensaúde”, industrial, escritor e crítico literário, reacionário e propositor de uma “frente única contra os operários” (ANDRADE, 2003, p.53); ele não entra em cena, sendo apenas o destinatário de uma carta ditada por Abelardo à secretária. Segundo Magaldi (2004, p.71), “não será difícil identificar [Bensaúde] como o escritor Tristão de Ataíde, naquele tempo sob a sedução da direita”. Abelardo refere-se a Bensaúde como um seu igual, ambos “industriais avançados”, ou melhor, deixa claro que ambos estão do mesmo lado, o do capital; ao mesmo tempo, considera-o retrógrado e tacanho por não compreender suficientemente as leis da exploração capitalista ao insistir na idéia de “escrever livros de sociologia com anjos” (ANDRADE, 2003, p.53). A função reservada à personagem é exercer poder policial, vigiando fábricas e evitando propaganda comunista, numa completa inversão do papel esperado de um intelectual. Em vez de denunciar as estruturas do poder, ele deve agir a favor do sistema. O Intelectual Pinote entra em cena logo em seguida. Independentemente de ser ou não identificada com Menotti del Picchia, a personagem interessa como “paródia do intelectual – burguês farsante, representante de uma classe desengajada, neutra” (CURY, 2003, p.55). O primeiro índice revelador do caráter da personagem é o objeto portado por ela: uma faca enorme de madeira usada como bengala. A faca, instrumento cortante, pode ser uma metáfora da arma do escritor e do intelectual, contudo, apesar de enorme, ela é de madeira e serve apenas como apoio; logo, é uma arma falsa e inútil. Para reafirmar sua neutralidade, Pinote admite ter desistido do romance e da poesia, dedicando-se apenas a biografias inofensivas, ou como resume Abelardo, a “uma literatura bestificante” (ANDRADE, 2003, p.57); essa neutralidade é condenada por ele: 517 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 PINOTE – Eu tenho uma posição intermediária, neutra... Não me meto. ABELARDO I – Neutra! É incompreensível! É inadmissível! Ninguém é neutro no mundo atual. Ou se serve os de baixo... PINOTE – Mas com que roupa? ABELARDO I – Sirva então francamente os de cima. Mas não só com biografias neutras... Precisamos de lacaios... (ANDRADE, 2003, p.58). Os outros grupos de referências metateatrais remetem ao universo dramático, por isso são mais interessantes aos objetivos do projeto de pesquisa ora em desenvolvimento. As primeiras referências dizem respeito a classificações das realizações dramáticas típicas do início do século XX; relacionada a elas está a consciência revelada pelas personagens – aqui consideradas porta-vozes do autor – de pertencerem à vanguarda teatral brasileira. Na mesma cena em que Pinote e Abelardo se encontram, o primeiro tenta justificar sua adesão ao gênero biográfico, e entre outros motivos, diz que “o teatro nacional virou teatro de tese” (ANDRADE, 2003, p.56), isto é, uma forma sistemática de teatro didático. As peças desenvolvem uma tese filosófica, política ou moral, buscando convencer o público de sua legitimidade convidando-o a analisar mais a reflexão que suas emoções. Toda peça apresenta, necessariamente, numa embalagem mais ou menos discreta, uma tese: a liberdade ou a servidão do homem, os perigos da avareza, a força do destino ou das paixões. O teatro de tese não hesita, no entanto, em formular os problemas num comentário bastante didático. Dramaturgos como Ibsen, Shaw, Claudel, Górki ou Sartre escreveram peças que queriam fazer o público refletir, ou até mesmo obrigá-lo a mudar a sociedade (PAVIS, 1999, p.385). Cremos que O rei da vela possa ser considerada uma peça de tese, desde que observadas algumas ressalvas, pois ela não tem o tom doutrinário identificado nos textos dos dramaturgos apresentados por Pavis como exemplos. Além disso, o recurso ao riso desbragado dá um tom especial às idéias apresentadas no texto oswaldiano. Vemos na peça poucos traços de didatismo, se é que se pode dar esse nome ao recurso de apenas ilustrar comportamentos das personagens; por outro lado, é flagrante a intenção de agir ideologicamente sobre o público e levá-lo à reflexão. Pinote está, nessa medida, voltando as costas para a vanguarda do teatro nacional, representada aqui pelo próprio Oswald de Andrade. Antes dessa cena, Abelardo II já havia mencionado um outro tipo de teatro, o teatro de classe produzido pela burguesia. A expressão teatro burguês designa um teatro e um repertório de boulevard produzido dentro de uma estrutura econômica de rentabilidade máxima e destinado, por seus temas e valores, a um público “(pequeno)-burguês”, que veio consumir com grande despesa uma ideologia e uma estética que lhe são, de cara, familiares. O termo é, portanto, antes negativo, sendo empregado sobretudo pelos adeptos de um teatro radicalmente diferente, experimental e militante (PAVIS, 1999, p.376). O posicionamento crítico e satírico diante desse modo burguês de fazer teatro serve, ao mesmo tempo, como reconhecimento do papel de vanguarda desempenhado por O rei da vela e, conseqüentemente, por seu autor. Conforme diz Abelardo II, “a burguesia só produziu um teatro de classe. A apresentação da classe. Hoje evoluímos. Chegamos à espinafração” (ANDRADE, 2003, p.44). É como se essa fala fosse uma 518 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 proposta de renovação dramática no plano do discurso crítico e, simultaneamente, a realização dessa mesma proposta no plano artístico, afinal, a espinafração de tudo e de todos dá o tom paródico, irônico e satírico da peça. Essa mesma consciência de ser a vanguarda teatral brasileira aparece em outra fala de Abelardo II como resposta à questão de Abelardo I sobre seu vínculo com o socialismo: “Diga-me uma coisa, seu Abelardo, você é socialista?”. Abelardo II não hesita em responder de forma grandiloqüente: “Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro Brasileiro” (ANDRADE, 2003, p.50). É evidente a percepção de Oswald de estar participando do processo de renovação literária brasileira, abrindo novos caminhos para a incipiente dramaturgia nacional. Por fim, comentamos algumas alfinetadas desferidas contra o ranço do teatro e da literatura produzidos no século XIX. O alvo principal é o Romantismo com sua tendência a idealizar a realidade e a tornar tudo exageradamente dramático. As críticas ao teatro praticado no “passado” confundem-se com esse estilo romântico de representação da realidade e contrapõem-se a um novo modo de compreender a arte, particularmente o teatro, revelando mais uma vez a consciência, por parte das personagens e do próprio autor, de estar à frente de seu tempo. É o caso do momento em que Abelardo explica a seu assessor a diferença entre prole e família, o que significa na base a diferença entre a classe explorada e a ocupante do poder. Famílias são as tradicionais, que possuem brasão; prole refere-se aos filhos do proletariado, tanto menos miserável quanto mais braços produzir para o sustento da família. Deixar de ser prole para ser família é o pretendido por Abelardo I ao “comprar” a tradição, o sobrenome da família de Heloísa: “O que eu estou fazendo, o que o senhor quer fazer é deixar de ser prole para ser família, comprar os velhos brasões, isso até parece teatro do século XIX. Mas no Brasil ainda é novo” (ANDRADE, 2003, p.44). De fato, o casamento por interesse já rendera páginas e páginas de romances desde O pai Goriot de Balzac a Senhora de José de Alencar, habitando também os palcos nacionais e estrangeiros. Por conta do contexto histórico contemporâneo à escrita da peça – a derrocada dos fazendeiros de café e o enriquecimento de imigrantes no comércio – esse tipo de arranjo comercial tornou-se comum. Aí reside a ironia: procedimento atual na esfera econômica, portanto, também nas formas de representação artística. O Romantismo é atacado principalmente por iludir as jovens moças leitoras, “transferindo as soluções da existência para as soluções ‘no livro’ ou ‘no teatro’” (ANDRADE, 2003, p.57). Logo, é preciso que a arte trate da realidade de forma menos deformada, em compasso com os tempos modernos. Por isso, quando Dona Cesarina, futura sogra de Abelardo, o questiona por permitir liberdades excessivas entre Heloísa e Mister Jones, ele responde: Mas d. Cesarina! Eu me prezo de ser um homem da minha época! A senhora quer que eu perca tempo em ter ciúmes? (Imita dramaticamente um casal em choque) Diga, Heloísa! Quem era aquele homem? – Eu fui lá só para dar um recado. – Foste lá! Confessas! Entraste naquela casa, naquele antro! Traíste-me, perjura! – Ah! Meu amor, que desconfiança também, que injustiça! Um homem feio daquele! Eu fui lá só por causa do recado! – Maldita! Pum! Pum! (Ri) Oh! Oh! ah! É isso? Essa ridicularia que divertiu e ensangüentou gerações de idiotas. É isso... O ciúme! (ANDRADE, 2003, p.71). A cena parece tirada de um melodrama qualquer, cheio de golpes de teatro tão comuns a essa forma dramática, e reproduz um enredo típico: homem traído lava a 519 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 honra com sangue. O uso da segunda pessoa do singular reforça o tom ultrapassado da linguagem, particularmente para o teatro. O riso é provocado pelo deslocamento discursivo da situação de ciúme de um contexto autêntico para uma época em que não faz mais sentido, mas também por outro recurso metateatral não explorado aqui, a personagem que propositadamente desempenha outros papéis. Ser um homem de sua época não significa apenas desprezar o ciúme, principalmente quando ele pode atrapalhar negociações, mas também virar as costas para um tipo de dramaturgia que diverte só “idiotas”. Abelardo II também é apontado como personagem de um teatro atrasado, passadista, que recorre a soluções fáceis e óbvias para a ação da peça. Trata-se do terceiro ato, quando Abelardo I revela a Heloísa ter sido roubado por Abelardo II: “É um ladrão de comédia antiga... Com todos os resíduos do velho teatro. Quando te digo que estamos num país atrasado!” (ANDRADE, 2003, p.96). Para amplificar o efeito de crítica, na seqüência da cena Heloísa percebe uma arma de fogo nas mãos de Abelardo I e implora a ele para não recorrer a gesto tão extremo. O patético da cena transforma-se em cômico, afinal, a solução é parte do arsenal dramatúrgico desse teatro que acaba de ser denunciado como ultrapassado e já incapaz de comover e convencer de fato o espectador. O mesmo se pode dizer dos boatos que correm sobre a via pregressa do agiota, recheada de aventuras e maldades dignas de um grande vilão de drama burguês, ou como ele mesmo diz: “Os degraus do crime... que desci corajosamente [...]. Os homens que traí e assassinei. As mulheres que deixei. Os suicidados... O contrabando e a pilhagem... Todo o arsenal do teatro moralista dos nossos avós. Nada disso me impressiona nem impressiona mais o público...” (ANDRADE, 2003, p.61). Ao absorver formas desgastadas, Oswald lhes dá um novo contorno e um novo efeito de sentido, balizado pelo cômico. O elemento trágico é submetido ao mesmo procedimento. Heloísa propõe uma estratégica fuga idílica do casal, mas Abelardo I recusa: “Recomeçar... uma choupana lírica. Como no tempo do romantismo! As soluções fora da vida. As soluções no teatro. Para tapear. Nunca! Só tenho uma solução. Sou um personagem do meu tempo, vulgar, mas lógico. Vou até o fim. O meu fim! A morte no terceiro ato” (ANDRADE, 2003, p.98). E por ser vulgar, sua morte, ao aproximar-se do trágico, desaba para o cômico, carnavalizando uma das cenas trágicas mais clássicas do teatro ocidental, o beijo de Romeu e Julieta. Após esse último beijo, não se ouve apenas um disparo, mas “uma salva de sete tiros de canhão”, conforme informa a rubrica. O leitor é colocado na zona de tensão entro o pathos trágico e o cômico, permitindo-lhe rir diante da morte. Como bem observa Gardin (1995, p.161) a esse respeito, quando a cena corre o risco de tornar-se melodramática, Oswald mais uma vez carnavaliza. Do teatro grego ele retira o Corifeu, primeira voz do coro grego, que aqui simboliza a voz dos clientes que ecoa na jaula vazia. Abelardo, vela na mão, morre, mas a cena é bruscamente estranhada pelo som da Marcha Nupcial e a entrada as personagens que desfilam diante da platéia e do casal enluarado Heloísa e Abelardo. Embora alimente a certeza de ter seguido à risca os princípios de sua classe, falta a Abelardo um heroísmo autêntico para acomodar-se ao trágico. Mais do que isso, ele tem consciência de que é apenas uma peça da engrenagem exploratória, nada além disso. Ele cai e Abelardo II impera em seu lugar, assim como ele cairá e outro assumirá o lugar, pois “um homem não tem importância... A classe fica. Resiste” (ANDRADE, 2003, p.100). Apenas o cômico pode condizer com esse espírito de classe, distanciando- 520 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 se do trágico, gênero que focaliza o homem solitário em luta com o destino. Em O rei da vela não há destino, não há herói solitário. Há um anti-herói bufo que ri da sociedade e mais ainda de si mesmo. O metateatro, sob a forma de interdiscursividade, é um elemento essencial na construção de O rei da vela. As inserções de comentários críticos sobre a literatura produzida no século anterior em sua relação com as inovações modernistas formam um painel bastante explícito das convicções dramatúrgicas de Oswald de Andrade. Além de ser um traço de modernidade teatral, revela um escritor antenado com seu tempo e consciente de seu papel renovador. A paródia, o intertexto, a carnavalização e o riso renovam o fôlego de vários aspectos do texto, desde a construção das personagens, passando pela ação e desembocando na camada ideológica do texto. O olhar ferino do autor sobre a criação literária do passado recente é uma prova de que muitas vezes a melhor crítica literária não é necessariamente exterior ao texto; pelo contrário, é tanto mais contundente e eficaz quando engendrada pela própria ficção. Referências ABEL, L. Metateatro: uma nova visão da forma dramática. Tradução Bárbara Heliodora. Apresentação Paulo Francis. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. ANDRADE, O. O rei da vela. São Paulo: Globo, 2003. BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1989. BRANDÃO, H. H. N. Introdução à análise do discurso. 2. ed. rev. Campinas: Editora da Unicamp, 2004. CANDIDO, A. Estouro e libertação. In: ______. Brigada ligeira. São Paulo: Unesp, 1992, p. 17-32. CORRÊA, J. C. M. O rei da vela: manifesto do Oficina. In: ANDRADE, Oswald de. O rei da vela. São Paulo: Globo, 2003, p. 21-29. CURY, J. J. O teatro de Oswald de Andrade: ideologia, intertextualidade e escritura. São Paulo: Annablume, 2003. GARDIN, C. O teatro antropofágico de Oswald de Andrade: da ação teatral ao teatro de ação. 2. ed. São Paulo: Annablume, 1995. MAGALDI, S. Teatro da ruptura: Oswald de Andrade. São Paulo: Global, 2004. PAVIS, P. Dicionário de teatro. Tradução dirigida por Jacob Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 1999. SCHMELING, M. Métathéâtre et intertexte: aspects du théâtre dans le théâtre. Paris: Lettres Modernes, 1982. (Colléction Archives des Lettres Modernes, 204). NOTAS (1) São utilizados os termos dramaturgo e leitor por se considerar aqui apenas a dimensão textual do fenômeno teatral, pois o encenador e o espectador são elementos de um segundo nível de enunciação, aquele da passagem do texto para o palco. 521 1a JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 (2) Tradução: “Pode-se dizer que o teatro no teatro em sua forma ideal é um elemento intercalado em um drama, que dispõe de seu espaço cênico próprio e de sua própria cronologia – de tal modo que se estabelece uma simultaneidade espacial e temporal da esfera cênica e dramatúrgica”. (3) Tradução: “mas que aparecem freqüentemente de forma independente daquelas e não constituem um teatro dentro do teatro propriamente dito”. 522