MOREIRA Renata Lúcia - fflch-usp

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O CARÁTER DÊITICO DOS VERBOS INDICADORES NA LÍNGUA DE SINAIS
BRASILEIRA: QUESTÕES SOBRE A METODOLOGIA DE ELICITAÇÃO
(THE DEITIC CHARACTER OF INDICATING VERBS IN BRAZILIAN SIGN
LANGUAGE: ISSUES ABOUT THE METHODOLOGY OF ELICITATION)
Renata Lúcia MOREIRA1
ABSTRACT: According to the idea of Liddell (2003) that indicating verbs in sign
language are deictic, my aim is to begin the investigation on the types of deixis
indicating verbs of Brazilian Sign Language (LSB) are able to do. I present my first
fieldwork, the methodological problems and some questions that arose in this first
phase of my research.
KEYWORDS: Description of Brazilian Sign Language; Indicating Verbs; Deixis.
0. Introdução
As línguas de sinais, entre elas a língua de sinais brasileira (LSB ou LIBRAS),
possuem um conjunto de verbos, chamados direcionais ou indicadores, que apresentam
uma estrutura semântica diferenciada que inclui uma capacidade para a realização de
dêixis.
Para Liddell (2003: 97), que toma como base a semântica cognitiva de
Langacker (1991), verbos indicadores são aqueles que não só apresentam uma estrutura
argumental como qualquer outro verbo, mas que também têm a propriedade de apontar,
no espaço de sinalização, para os locais associados à representação mental2 das
entidades que, na estrutura semântica, correspondem a sua figura primária (trajector) e a
sua figura secundária (landmark)3. Na estrutura sintática, a figura primária e a figura
secundária são realizadas, respectivamente, como o sujeito e o complemento desses
verbos.
1
Agradeço à agência de fomento CAPES pelo financiamento de meu projeto, em seu
início. Também agradeço imensamente à FAPESP pela concessão da bolsa que financia
meu projeto no momento.
2
Para teorias semânticas mentalistas, como de Langacker (1991) e de Jackendoff
(1983), não percebemos ou acessamos o “mundo real”, mas apenas o chamado “mundo
projetado”, a partir do qual podemos acessar a representação mental associada a cada
entidade desse mundo.
3
Os termos trajector e landmark da gramática cognitiva foram traduzidos para o
português pelo Prof. Dr. Leland McCleary (Departamento de Letras Modernas da USP).
Na sentença em (1)4, temos um exemplo de um verbo indicador transitivo,
ABANDONAR5, que pode mapear duas entidades, a figura primária, JOÃO, e a figura
secundária, MARIA. Os dois argumentos podem ser realizados com um sinal próprio (o
que seria equivalente, nas línguas orais, a um nome próprio), ou podem ser
digitalizados, isto é, sinalizados com o alfabeto manual, como está representado no
exemplo6 em (1). Cada argumento pode ser realizado em um determinado ponto no
espaço de sinalização - o espaço em frente ao corpo do sinalizador (ou espaço neutro de
sinalização). Um verbo como ABANDONAR pode realizar sua dêixis ao iniciar seu
movimento no ponto associado à representação mental da figura primária e se dirigir ao
ponto associado à representação mental da figura secundária. O verbo ABANDONAR,
segundo o dicionário de Capovilla7 & Raphael (2001), seria realizado como na figura
em (2) – “o sinal parte de quem abandona em direção a quem recebe o abandono; no
exemplo o sinalizador abandona” (p. 135). Para realizar o sinal, as mãos estão abertas,
na vertical, palma a palma, e os dedos médio e polegar de cada mão estão unidos pelas
pontas. É preciso mover as mãos para frente e para baixo distendendo os dedos, com
expressão facial negativa (p. 800):
(1) J-O-Ã-O ABANDONAR M-A-R-I-A.
O João
abandonou
a Maria.
(2) ABANDONAR
(Figura extraída do dicionário de Capovilla & Raphael, 2001: 135).
1. Objetivo
O objetivo de meu projeto de mestrado é fazer uma descrição léxico-semântica
dos verbos indicadores da LSB8. A proposta inicial do trabalho é a de fazer um
levantamento desses verbos com base no dicionário de Capovilla & Raphael (2001) e
4
A forma utilizada neste artigo para transcrever as sentenças em LSB segue o modelo
de transcrição que vem sendo desenvolvido pelo grupo “Estudos da Comunidade Surda:
Língua, Cultura, História” da Universidade de São Paulo, assim como elementos do
modelo de transcrição de Liddell (2003) para pronomes e verbos indicadores.
5
Os sinais serão todos escritos em português, com letras maiúsculas.
6
Os sinais realizados com o alfabeto manual estarão marcados, nos exemplos, com
hífens, como se fossem soletrados.
7
Agradeço o Prof. Dr. Fernando César Capovilla (Instituto de Psicologia da USP) por
autorizar o uso das figuras do dicionário Capovilla & Raphael (2001).
8
Na conferência de abertura do VII ENAPOL, Evani Viotti enfatizou a importância de
fazer a descrição da língua de sinais brasileira. Tomo as palavras da professora como a
principal justificativa deste trabalho.
estudar sua estrutura argumental e sua diátese, assim como analisar suas características
dêiticas (Moreira, 2004). Esse estudo faz parte de um projeto maior, intitulado “Estudos
da Comunidade Surda: Língua, Cultura, História” 9.
Neste artigo, apresento o início da investigação dos tipos de dêixis que os
verbos indicadores da LSB são capazes de instaurar, seguindo, para isso, a notação do
modelo de descrição proposto por Liddell (2003) e a intuição de uma surda sinalizada,
Sylvia Lia Grespan Neves10. Para estudar o comportamento dêitico desses verbos, fiz
meu primeiro trabalho de campo, aplicando dois testes de elicitação.
Na seção 2 deste artigo, apresento as semelhanças entre o comportamento
dêitico dos pronomes pessoais do singular e os verbos indicadores das línguas de sinais,
seguindo os trabalho de Meier (1990) e Liddell (2003). Na seção 3, comento o modelo
descritivo de Liddell (2003) para os verbos indicadores da língua de sinais americana
(American Sign Language - ASL) e apresento os dois testes de elicitação aplicados.
Nessa seção, ainda, discuto os dados do segundo teste, destacando os problemas que
eles apontam para a metodologia da pesquisa. Na seção 4 do texto, apresento as
considerações finais do trabalho e quatro questões que pretendo responder durante a
descrição dos verbos indicadores da LSB.
2. Os pronomes e os verbos indicadores
2.1. Os pronomes pessoais
Segundo Meier (1990), nas línguas de sinais, os dêiticos são sinais de
apontamento, que, assim como ocorre com os dêiticos nas línguas orais, ancoram a
referência de uma sentença no espaço e no tempo e indicam os participantes de uma
comunicação. Para o autor, o apontar dêitico, nas línguas de sinais, é um elemento
gramatical e o seu espaço de articulação é determinado pela localização do referente e,
como qualquer dêitico, varia de acordo com as propriedades do contexto.
Liddell (2003), seguindo Meier (1990), diz que existem duas formas
pronominais de pessoa, no singular, na ASL: a primeira pessoa (o sinalizador – quem
enuncia o “eu”), o que é representado, na notação do autor, por PRO-1, e a não-primeira
pessoa, representada por PRO. Tanto Meier quanto Liddell observam que a ASL não
faz a distinção formal entre a segunda pessoa e a terceira pessoa do discurso, como
fazem algumas línguas orais como o inglês ou o português do Brasil (PB). Mas, como
em qualquer outra língua natural, a ASL, e o que parece também a LSB, possuem a
distinção entre o que é a semântica dos pronomes e o que é a sua dêixis.
Os pronomes da LSB parecem se comportar da mesma maneira que os
pronomes da ASL. Na sua forma de citação (sua semântica), são ou pronome de
9
O grupo que desenvolve esse projeto envolve os Departamentos de Letras Modernas,
Lingüística, Antropologia e História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), é coordenado pelo Prof. Dr.
Leland McCleary (USP) e registrado junto ao CNPq e à Pró-Reitoria de Pesquisa da
USP.
10
Não poderia deixar de registrar os meus mais sinceros agradecimentos à professora
Sylvia Lia Grespan Neves, cuja colaboração foi crucial para a realização dos dois testes
de elicitação que apresento neste artigo.
primeira pessoa (“mão direita em 1 horizontal, palma para a direita, indicador
apontando para trás. Tocar o peito com a ponta do indicador”, Capovilla & Raphael,
2001: 632), como mostra a figura em (3), ou pronome de não primeira pessoa (“mão
direita em 1 horizontal, palma para a esquerda”, Capovilla & Raphael, 2001: 573),
como mostra a figura em (4). A dêixis pronominal é feita com a direcionalidade desses
sinais pronominais. O pronome se refere à pessoa para a qual está apontando:
significará primeira pessoa quando o sinal apontar para o sinalizador (a forma do sinal
será PRO-1); significará não-primeira pessoa se não apontar para o sinalizador: segunda
pessoa se apontar para o interlocutor direto do sinalizador, terceira pessoa se apontar
para o não-sinalizador e não-interlocutor. Nos dois últimos casos, a forma pronominal
será PRO.
(3) PRO-1
(Figura extraída do dicionário de Capovilla & Raphael, 2001: 632).
(4) PRO
(Figura extraída do dicionário de Capovilla & Raphael, 2001: 573).
2.2. Os verbos indicadores
Para Meier (1990), os espaços de articulação dos sinais pronominais dêiticos
são os mesmos envolvidos na realização de verbos indicadores como ASK-QUESTION
ou INFORM na ASL. A partir dessa observação de Meier, Liddell (2003) mostra que
os verbos indicadores apresentam essa mesma propriedade dêitica dos pronomes
pessoais da língua, uma vez que a direcionalidade desses verbos têm a mesma função
que a direcionalidade dos pronomes.
Segundo Liddell (2003), os verbos indicadores se comportam como os
pronomes pessoais pelas seguintes razões: (a) quando têm a forma de primeira pessoa,
essa forma é sempre específica, diferente da forma para marcar a não-primeira pessoa;
(b) também podem apontar para locais associados às representações das entidades
presentes ou ausentes no momento da enunciação, e (c) ao apontar, também fazem a
conexão entre seu significado e esse espaço onde está localizada a representação dos
referentes (no caso dos verbos, de sua figura primária e de sua figura secundária),
indicando, dessa forma, os participantes da situação que estão relacionados a seus
argumentos.
Como os pronomes pessoais, os verbos indicadores também possuem uma
forma de citação e várias formas diferentes que correspondem à realização de sua
dêixis. Na forma semântica de um verbo como PERGUNTAR da LSB, na figura em
(5), o verbo, sendo transitivo, possui duas variáveis que podem ser mapeadas: a figura
primária e a figura secundária. Quando o sinal é realizado, ele pode ou não mapear
essas duas entidades, ou seja, ele pode ou não realizar sua dêixis. Dentro de um
contexto discursivo, se o verbo partir de um ponto no espaço de sinalização associado a
um participante da enunciação, esse verbo relacionará esse espaço inicial a sua figura
primária, e saber-se-á, então, a que participante o sujeito faz referência; se o verbo
apontar para um ponto associado a outro participante do discurso, também se saberá que
entidade está relacionada à figura secundária ou ao complemento desse verbo.
(5) PERGUNTAR
(Figura extraída do dicionário de Capovilla & Raphael, 2001: 1033).
3. A dêixis nos verbos indicadores
3.1. Os verbos indicadores da ASL
Liddell (2003) fez um levantamento dos verbos indicadores em ASL e mostrou
a semântica (a forma de citação) e quais os tipos de dêixis possíveis de cada verbo. O
autor separou os verbos, primeiramente, em transitivos e intransitivos. Na sua notação,
a figura primária é a entidade conceitual representada pela variável x, e a figura
secundária é a entidade representada pela variável y. A seta indica a orientação do
movimento do sinal. Essa notação de Liddell representa o tipo de dêixis que cada verbo
indicador da ASL é capaz de instaurar.
Na forma de citação, o verbo ASK-QUESTION da ASL, por exemplo, é
realizado à altura do ombro, em frente ao sinalizador, com um movimento curto do dedo
indicador da mão direita. Essa forma meramente expressa o significado do verbo, mas
não aponta para qualquer entidade associada a esse significado (Liddell, 2003: 98). Na
notação de Liddell, o verbo aparece, nessa forma, como em (6):
(6) ASK-QUESTION.
Um verbo indicador intransitivo da ASL como BE-ALONE, que mapeia
apenas sua figura primária (representada pela variável x), é realizado com uma mão com
a configuração em G na vertical, ponta do dedo indicador para cima, com movimento
circular. Quando a figura primária coincide com a primeira pessoa, o sinal é realizado
próximo ao peito do sinalizador, com a ponta do dedo indicador apontando para a parte
inferior do queixo. Na notação de Liddell, essa forma do verbo é representada como
BE-ALONE-1. Quando a figura primária é uma outra pessoa, e não o sinalizador, o
sinal é realizado no ponto do espaço de sinalização que representa a entidade x. A
notação usada, então, é BE-ALONE→x.
O verbo indicador transitivo SAY-NO-TO, que envolve mais de uma entidade
participante de um evento, pode mapear tanto sua figura primária quanto sua figura
secundária, apontando para os pontos no espaço de sinalização que estão associados a
essas entidades. Liddell (2003) dividiu os verbos indicadores transitivos em sub-grupos,
de acordo com a capacidade de cada um mapear sua figura primária e sua figura
secundária, ou só uma delas.
O verbo SAY-NO-TO em ASL, por exemplo, é realizado da seguinte forma:
mão direita em 3, fechar os dedos polegar, indicador e médio unindo as pontas. Quando
o movimento de um sinal como de SAY-NO-TO parte de um ponto inicial, no espaço
de sinalização, associado à entidade representada pela variável x, e vai até um ponto
associado à entidade representada pela variável y, ele é representado por Liddell como
em (7):
(7) SAY-NO-TOx→y.
Segundo Liddell (2003), quando o sinal parte do sinalizador, não é possível
saber se o verbo está sendo realizado como um sinal do tipox→y ou do tipo→y
(apresentado a seguir). Ou seja, não se sabe se esse sinal mapeia a sua figura primária,
que coincide com a primeira pessoa (o próprio sinalizador), e a sua figura secundária, ou
se o verbo só mapeia a sua figura secundária. Segundo o autor, isso vai depender de
outros aspectos sintáticos presentes na realização da sentença, ou de aspectos
pragmáticos, presentes no contexto enunciativo, que indiquem se a entidade primeira
pessoa é mapeada ou não por um verbo indicador transitivo. No seu modelo, Liddell
(2003) considerou que os verbos que têm como ponto de partida o sinalizador são
verbos do tipo→y, e que, nesse caso, a localização inicial do sinal não mapeia a figura
primária.
Quando o movimento de um verbo como SAY-NO-TO, então, tem como ponto
inicial ou o sinalizador ou um ponto qualquer no espaço de sinalização e o sinal aponta
apenas para o ponto, no espaço de sinalização, associado a sua figura secundária
(representada pela variável y), que não pode ser a primeira pessoa (o próprio
sinalizador), a entidade correspondente a x poderá ser apontada por um pronome, não
pelo verbo. A notação usada por Liddell, nesse caso em que apenas a figura secundária
é mapeada, está em (8):
(8) SAY-NO-TO→y.
Se o movimento do verbo parte de algum local no espaço de sinalização e se
dirige à entidade y, que coincide com a primeira pessoa do discurso, verbos como SAYNO-TO mapeiam apenas a figura secundária, correspondente ao sinalizador, e recebem
a notação em (9):
(9) SAY-NO-TO-1.
Liddell (2003) não tem uma forma de notação para uma situação em que o
verbo indicador transitivo mapeia apenas a sua figura primária. O movimento do sinal,
nesse caso, partiria do ponto associado à entidade representada por x, diferente da
primeira pessoa ou sinalizador, e terminaria em um ponto qualquer no espaço de
sinalização, que não coincide com o ponto associado à representação mental da figura
secundária. Mais adiante, mostro que a LSB parece ter esse tipo de verbo indicador.
3.2. Os verbos indicadores da LSB
3.2.1. O trabalho de campo: os testes de elicitação
A primeira parte do trabalho foi fazer um levantamento dos verbos indicadores
do dicionário de Capovilla & Raphael (2001) e a aplicação de dois testes de elicitação,
para saber quais os tipos de dêixis que os verbos indicadores da LSB são capazes de
instaurar. Para os testes, contei, como já foi dito, com a ajuda da surda sinalizada Sylvia
Lia Grespan Neves.
A partir desse levantamento e principalmente com o primeiro teste, foi possível
perceber que o dicionário não faz uma descrição fina desses verbos, como faz Liddell
para os verbos indicadores da ASL. Primeiramente, o dicionário não descreve, por
exemplo, todas as possibilidades de realização de um verbo como PERGUNTAR da
LSB. Há apenas o registro de duas formas de realização do sinal. Uma corresponde à
entrada PERGUNTAR, e a outra à entrada PERGUNTAR-ME. Os dois sinais são
descritos quase da mesma forma: mão esquerda horizontal aberta, palma voltada para a
direita; mão direita em D horizontal, palma voltada para baixo, indicador apontando
para frente, lateral do indicador direito tocando a base do punho esquerdo; movimento
da mão direita. A diferença na descrição dos sinais está na direção do movimento da
mão direita. Em PERGUNTAR, a mão move-se para frente do sinalizador, um
movimento de dentro para fora; em PERGUNTAR-ME, a mão se move em direção ao
punho esquerdo, isto é, um movimento de fora para dentro. Com essa descrição, o
dicionário transmite a impressão de que só existem duas formas de realização de dêixis
de um verbo como PERGUNTAR. Diferentemente, o primeiro teste de intuição
realizado mostrou que o verbo PERGUNTAR possui pelo menos três formas de realizar
sua dêixis.
O dicionário também não registra todas as formas dêiticas de outros verbos
indicadores da língua, como ABANDONAR, ACUSAR, AJUDAR, AVISAR, DAR,
ENGANAR, RESPONDER, VENCER, etc. Alguns verbos como CONTAR, COPIAR,
ENVIAR e MOSTRAR, que como PERGUNTAR, apresentam também a propriedade
de realizar dêixis, não são descritos, pelo dicionário, como verbos indicadores da LSB.
O trabalho de campo realizado, em especial o segundo teste aplicado, também
apontou alguns problemas metodológicos na pesquisa e sugeriu novas questões para o
estudo. Os problemas na metodologia apontados pelos dados estão mais bem discutidos
na seção 3.2.1.2. deste artigo.
3.2.1.1. Teste 1: quais os tipos de dêixis que os verbos indicadores da LSB são capazes
de realizar?
Nesse primeiro teste, apresentei para minha colaboradora uma lista de verbos
levantados do dicionário e pedi que ela me dissesse quais as formas de realização,
previstas no modelo descritivo de Liddell (2003), que eram possíveis com cada verbo
indicador da LSB.
Na tabela abaixo estão alguns verbos que foram testados e classificados de
acordo com o que Sylvia considerou possível:
Verbos indicadores transitivos
←Y
↔Y
VERBO-1
VERBO←y VERBOX↔
VERBO
VERBO
VERBOX←
ACUSAR
ACUSAR
AJUDAR
AJUDAR
AJUDAR
CONVIDAR CONVIDAR CONVIDAR
DAR
DAR
DAR
DAR
DESPREZAR DESPREZAR
ENSINAR
ENSINAR
ENSINAR
PERGUNTAR PERGUNTAR PERGUNTAR
RESPONDER RESPONDER RESPONDER
VENCER
VENCER
VENCER
X→
→Y
→Y
3.2.1.2. Teste 2: as sentenças.
Nesse segundo teste, apresentei para minha colaboradora uma lista de 40
sentenças em PB, algumas das quais aparecem nos exemplos em (a), e pedi que ela as
sinalizasse em LSB. Em (b), aparecem as transcrições das sinalizações correspondentes
às sentenças em (a). As sentenças foram construídas com o objetivo de tornar possível a
observação da maneira como são criados os espaços associados à representação mental
de cada participante da enunciação e como o verbo faz a associação desses espaços com
as entidades que correspondem a sua figura primária ou a sua figura secundária.
Em algumas sentenças, coloquei, como sujeito ou como complemento do
verbo, nomes de pessoas conhecidas de minha colaboradora. Foram escolhidos nomes
próprios que correspondem, em LSB, a sinais realizados fora do espaço neutro de
sinalização, mais especificamente, na altura do rosto ou da cabeça do sinalizador, como
é o caso do sinal TARCÍSIO. Em outras sentenças, coloquei nomes de pessoas que ela
não conhece e que não têm sinal próprio na LSB. Portanto, os nomes dessas pessoas
tiveram de ser digitalizados com o alfabeto manual, como no caso de nomes como João
e Maria.
Selecionei para este artigo seis sentenças que se mostraram bem interessantes
para o meu trabalho, uma vez que, com elas, foi possível fazer um levantamento de
problemas na metodologia de elicitação. Separei as sentenças em três grandes grupos,
de acordo com a maneira como elas foram sinalizadas.
1) Sentenças em que o verbo mapeou a figura primária ou a figura secundária
→Y
ou VERBO→Y):
claramente (VERBOX→
VERBOX→Y
(10) a. O João deu um presente para a Maria.
→Y
b. J-O-Ã-O PRESENTEi DAR-αi11X→
M-A-R-I-A.
Na sinalização da sentença em (10), o nome João foi digitalizado à direita do
rosto da sinalizadora. Em seguida, minha colaboradora fez o sinal de PRESENTE
(“mãos verticais fechadas, palma a palma, dedos polegares, médios e indicadores
distendidos. Movê-las, alternadamente, em um círculo vertical para frente, afastá-las
para os lados opostos, unindo as pontas dos dedos de cada mão”, Capovilla & Raphael,
2001: 1077), e movimentou as mãos do ponto onde digitalizou JOÃO até um ponto em
que digitalizou MARIA, à sua esquerda. Nesse exemplo, fica nítido o mapeamento da
figura primária e da figura secundária desse verbo.
(11) a. O João desprezou a Maria.
→Y
M-A-R-I-A.
b. J-O-Ã-O DESPREZARX→
Na sentença em (11), novamente o nome João é digitalizado à direita da
sinalizadora. Em seguida, ela sinaliza o verbo DESPREZAR, com a mão direita vertical,
palma para dentro, pontas dos dedos unidas tocando a ponta do nariz, vira a palma para
a direita, passando pelo ponto onde foi digitalizado JOÃO e desse ponto faz outro
movimento para a esquerda, onde digitaliza MARIA. Nesse ponto em que digitalizou o
nome Maria, no espaço de sinalização, minha colaboradora balança sua mão para frente
e para trás duas vezes. Nesse exemplo, também fica claro o mapeamento que o verbo
faz de sua figura primária e de sua figura secundária.
O interessante no exemplo em (11) é a possibilidade de um verbo como
DESPREZAR poder mapear sua figura primária e sua figura secundária, o que minha
colaboradora tinha considerado impossível no primeiro teste (vide Tabela).
VERBO→Y
(12) a. Eu desprezei o João.
b. PRO-1 DESPREZAR→Y J-O-Ã-O.
Na sentença em (12), o sujeito do verbo DESPREZAR foi realizado por um
pronome de primeira pessoa, forma PRO-1. Em seguida, Sylvia sinalizou o verbo,
movendo a mão em direção ao ponto no espaço de sinalização em que ela digitalizou
JOÃO. Nesse exemplo, é possível perceber que o verbo só mapeia sua figura
secundária. Como dito anteriormente, Liddell (2003) não registra ocorrências de verbos
desse tipo em ASL.
11
Alguns verbos das línguas de sinais, que Liddell (2003) chama de verbos depictivos,
parecem incorporar semanticamente um de seus argumentos. O verbo DAR é um
desses verbos e, por isso, sua configuração depende do objeto que é dado. No exemplo
em (10), o indica que o verbo assumiu a forma de seu complemento, e o índice
subscrito indica qual é o complemento direto do verbo DAR na sentença.
2) Sentenças com o verbo na forma-1:
(13) a. O João me respondeu.
b. J-O-Ã-O RESPONDER-1.
O verbo RESPONDER no dicionário é descrito da seguinte forma: “mão
direita em R, palma para a esquerda, pontas dos dedos tocando o queixo. Mover a mão
em um arco para frente e para baixo” (Capovilla & Raphael, 2001: 1138). Na sentença
em (13), Sylvia digitalizou JOÃO em um ponto no espaço de sinalização a sua frente e
fez o sinal de RESPONDER, partindo desse ponto até o centro de seu peito. Nesse
exemplo, o verbo parece mapear tanto a sua figura primária quanto a sua figura
secundária.
(14) a. O Tarcísio me perguntou.
b. TARCÍSIO PERGUNTAR-1.
Na sentença em (14), Sylvia fez o sinal correspondente ao nome próprio
Tarcísio, que é feito na altura do seu rosto e, em seguida, realizou o sinal de
PERGUNTAR, fazendo o verbo partir de um ponto no espaço de sinalização a sua
frente e se mover até o centro de seu peito. Diferentemente do que ocorreu em (13), o
verbo não partiu do ponto associado à figura primária, e sim de um ponto indeterminado
no espaço de sinalização. Nesse exemplo, não é possível saber se a figura primária é
mapeada pelo verbo, porque não se sabe se o espaço de onde partiu o verbo estava
relacionado com o sinal TARCÍSIO, realizado no rosto da sinalizadora. Para saber isso,
seria preciso um contexto maior, uma história, por exemplo, em que fosse possível
perceber se o espaço de onde partiu o verbo também seria usado outras vezes, quando a
sinalizadora se referisse a Tarcísio.
Outra forma de perceber se o espaço estava relacionado ao sinal TARCÍSIO
seria a direcionalidade do olhar da sinalizadora. Nos exemplos realizados, minha
colaboradora tinha o olhar fixo ou para a câmera de vídeo ou para a folha de papel onde
lia as sentenças em PB.
Como as frases não estavam presas a um discurso maior, esperava, tendo em
vista o que diz Liddell (2003) sobre os verbos indicadores da ASL, que Sylvia, antes de
realizar a sentença, criasse um espaço para esses participantes, como o Tarcísio, cujo
sinal é realizado no rosto, ou que ela criasse esse espaço utilizando um PRO depois da
realização do sinal TARCÍSIO. Mas isso não ocorreu.
Se o espaço de onde parte o verbo, como no exemplo em (14), estiver de fato
relacionado ao sinal TARCÍSIO, feito no rosto da sinalizadora, a notação da forma-1,
prevista no modelo de Liddell (2003), terá de recuperar a possibilidade de os verbos
também mapearem, nesses casos, a figura primária do verbo, e não só a figura
secundária de primeira pessoa, como diz Liddell (2003) sobre os verbos desse tipo na
ASL.
→
:
3) Sentenças com o verbo na formaX→
Como já foi dito, Liddell (2003) não apresenta em seu trabalho nenhum
exemplo de uma possibilidade de dêixis dos verbos indicadores transitivos, em que
apenas a figura primária é mapeada. A notação usada no exemplo em (15), portanto, é
uma forma diferente daquelas previstas no modelo do autor, para descrever o que
ocorreu na realização da sentença abaixo:
(15) a. O João venceu a Maria.
→
b. J-O-Ã-O VENCERX→
M-A-R-I-A.
No exemplo (15), Sylvia digitalizou JOÃO ao lado de seu rosto, à direita, e em
seguida sinalizou o verbo VENCER (“mão esquerda em 1 horizontal, palma para baixo,
indicador inclinado para cima e para a direita; mão direita horizontal fechada, palma
para dentro, dedos polegar, indicador e médio distendidos, lado do dedo mínimo direito
apoiado no dorso da mão esquerda; mover a mão direita sobre e além do indicador
esquerdo, unindo os dedos direitos”, Capovilla & Raphael, 2001: 1305). O movimento
do sinal partiu do ponto onde Sylvia tinha digitalizado JOÃO, em direção a um outro
ponto do espaço de sinalização a sua frente. Em seguida, minha colaboradora digitalizou
MARIA um pouco abaixo do local onde tinha digitalizado JOÃO, e não no local para
onde o verbo foi direcionado. Nesse exemplo, parece que apenas a figura primária foi
mapeada pelo verbo. Diferentemente do que ocorre com os verbos intransitivos, que só
possuem uma entidade para mapear, o verbo VENCER, um verbo transitivo, poderia
mapear duas entidades. Nessa sinalização em (15), no entanto, o verbo pareceu mapear
apenas sua figura primária, porque o local do espaço de sinalização para o qual se
direcionou não foi determinado. O ponto final do movimento do verbo pode sugerir ou
marcar a presença de mais uma entidade que poderia ser mapeada pelo sinal, mas, nesse
caso, não ficou claro o mapeamento da figura secundária. Mais uma vez, é preciso dizer
que só com esses dados de elicitação, não é possível afirmar que esse tipo de dêixis seja
realizado pelos verbos indicadores da LSB.
4. Considerações finais e mais questões para a pesquisa
Neste artigo, apresento o início de minha descrição dos verbos indicadores da
LSB. Assumindo, como Liddell (2003), que os verbos indicadores possuem a
capacidade de realizar dêixis, comecei essa descrição pelo estudo do comportamento
dêitico desses verbos, realizando dois testes de elicitação com uma surda sinalizada. Os
resultados desse primeiro trabalho de campo apontaram sérios problemas na
metodologia da pesquisa, entre eles, o fato de a colaboradora ler as sentenças, no
segundo teste, enquanto as sinalizava. Com a não direcionalidade do olhar da
sinalizadora, não foi possível perceber se ela estava de fato criando locais, no espaço de
sinalização, para os participantes enunciativos. Um outro problema metodológico que o
segundo teste apresentou foi o fato de as sentenças utilizadas serem frases soltas, fora
de um contexto discursivo, o que parece ter feito com que minha colaboradora não
imaginasse os referentes nas sentenças e, por isso, não se preocupasse em criar locais
para essas entidades.
Os problemas que esse primeiro trabalho de campo apresentou me alertaram
para o fato de que, quando se trabalha com discurso e, principalmente, com questões de
dêixis, não bastam os dados de elicitação. É necessário criar um corpus de conversa
natural entre surdos e analisar contextos maiores, em que se possa observar as relações
desses verbos com sua figura primária e com sua figura secundária.
Sem um corpus de conversa natural entre surdos e só com dados de elicitação
não é possível, por exemplo, responder às questões abaixo:
1) Como os locais, no espaço de sinalização, associados à figura primária e à figura
secundária dos verbos indicadores são construídos no discurso?
2) Como a figura primária ou a figura secundária são mapeadas pelo verbo quando são
realizadas como sinais próprios?
3) O verbo na forma–1 pode mapear a sua figura primária ou não? Se pode, qual será a
notação para esse tipo de dêixis?
→
4) Será possível a formaX→
dos verbos indicadores da LSB?
RESUMO: Seguindo a idéia de Liddell (2003) de que os verbos indicadores nas línguas
de sinais são dêiticos, meu objetivo é dar início à investigação sobre os tipos de dêixis
que os verbos indicadores da língua de sinais brasileira (LSB) são capazes de instaurar.
Apresento meu primeiro trabalho de campo, os problemas metodológicos e algumas
questões levantadas nessa primeira fase da pesquisa.
PALAVRAS-CHAVE: Descrição da Língua de Sinais Brasileira, Verbos Indicadores, Dêixis.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Viotti, E. de C. (2004). Anotações de aula do curso A lingüística das línguas de Sinais.
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