o papel da concordância nominal na identificação do gênero de

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O PAPEL DA CONCORDÂNCIA NOMINAL NA IDENTIFICAÇÃO DO GÊNERO DE
PALAVRAS NOVAS EM PORTUGUÊS
Letícia M. Sicuro Corrêa (PUC-Rio/LAPAL)
Marina R.A. Augusto (UERJ/LAPAL)*
Abstract: This paper focuses the role DP (determiner phrase) agreement processing may
play in the acquisition of novel nouns [+animate]. An elicited production experiment, ran
with 2 to 4 year-olds, is reported. Results suggest that children rely on syntactic agreement
between determiner and noun for the acquisition of the gender of novel nouns and that the
correlation between gender and thematic vowel may interfere in the processing of gender.
Feminine characteristic ending –a is more vulnerable to such effect, especially for older
children.
1. Introdução
Este artigo focaliza o papel do processamento da concordância no DP (Determiner Phrase)
na aquisição do gênero de palavras novas. O gênero gramatical é apontado como um
aspecto da língua dependente de aprendizagem específica, dado seu caráter idiossincrático
(Meisel et al, 1994; Clahsen & Almazan, 1998). No entanto, a literatura demonstra que
crianças de tenra idade fazem uso adequado de nomes com gênero intrínseco (Levy, 1983).
Esse desempenho não seria esperado caso a criança tivesse de depender de procedimentos
de aprendizagem de caráter indutivo e muitos erros de gênero seriam esperados uma vez
que possíveis correlações entre gênero gramatical e gênero conceitual (sexo, por exemplo)
ou entre gênero gramatical e vogal temática do nome, como podem ser observadas em
línguas românicas, não garantem a correta atribuição do gênero a palavras novas.
Neste artigo, a aquisição do gênero gramatical é abordada no contexto de uma teoria
da aquisição da linguagem segundo a qual a língua é concebida como um sistema cognitivo
composto de um sistema computacional universal, parte constitutiva de uma faculdade de
linguagem, e de um léxico. A aquisição da linguagem é, assim, concebida como o processo
de identificação e representação das propriedades específicas do léxico de uma língua. O
léxico é constituído de unidades mínimas – traços semântico, fonológicos e formais. Os
primeiros representam informação de ordem conceitual ou intencional lexicalizada, os
segundos lhe dão forma fônica, que garante a veiculação daqueles por um meio físico
(perceptível e articulável) e os últimos informam ao sistema computacional o modo como
relações gramaticais se estabelecem, no que concerne basicamente à correspondência entre
a posição hierárquica de um particular elemento do léxico numa estrutura ou árvore
sintática, e ao modo como relações de concordância entre elementos sintaticamente
relacionados se expressam na morfologia. Gênero gramatical é, pois, um traço semântico
do léxico, cujos valores (como masculino e feminino), numa língua em particular, a criança
tem de identificar e cujas propriedades, que repercutem de forma diferenciada na
morfologia das diferentes línguas (concordância entre Determinante, nome, adjetivo, verbo,
predicativo, por exemplo), a criança também tem de representar e identificar.
*
Letícia M. Sicuro Corrêa: [email protected], Marina R.A. Augusto: [email protected]
De acordo com a concepção minimalista de língua aqui assumida (Chomsky, 1995/
2007), o sistema computacional opera de forma ótima, minimizando recursos na
computação de expressões lingüísticas. Estas constituem interfaces entre a língua e os
demais sistemas requeridos no desempenho lingüístico – o sistema sensório-motor, que
possibilita a emissão e a percepção de enunciados lingüísticos, e o sistema conceitualintencional, o que garante que enunciados lingüísticos sejam semanticamente interpretáveis
e usados na referência a entidades e eventos. A criança tem acesso imediato à interface
fônica e é a partir da percepção de contornos prosódicos e padrões regulares na distribuição
dos sons da fala que a ela começa a identificar o que há de gramaticalmente relevante na
língua. Assim sendo, a concepção minimalista de língua está em consonância com a
hipótese do bootstrapping fonológico, segundo a qual muito da informação pertinente à
sintaxe da língua é informada pela prosódia e por padrões distribucionais a que a criança é
altamente sensível desde tenra idade (Morgan & Demuth, 1996; Jusczyk, 1977).
A teoria lingüística aqui desenvolvida parte da hipótese de que o sistema
computacional universal é bootstrapped uma vez que elementos de classe aberta e fechada
são identificados pela criança no fluxo da fala e que padrões regulares identificados no
âmbito de classes fechadas sinalizam para a criança a presença de um traço formal a ser
representado no léxico (Corrêa, submetido). Uma vez inicializado, o sistema computacional
opera na construção de estruturas sintáticas nas quais os elementos do léxico mantêm
relação de concordância. De acordo com o arcabouço minimalista, traços formais são
representados como traços interpretáveis na interface semântica e não interpretáveis, sendo
estes apenas instrumentais à computação sintática. A relação de concordância sintática é
concebida como o pareamento entre traços interpretáveis e não-interpretáveis de mesma
dimensão ou tipo (gênero, número, etc.) associados a diferentes categorias (nome,
determinante, etc.), o que resulta na valoração desses últimos por aqueles, o que pode ter
reflexos na morfologia flexional (Chomsky,1999). No caso das línguas românicas, um afixo
flexional é adjungido ao elemento cujo traço não interpretável foi valorado na concordância
sintática. Desse modo, a relação sintática entre, por exemplo, determinante nome, torna-se
visível para a criança, uma vez que a forma do determinante varie em função do nome com
o qual aquele mantém relação de concordância. Nesse sentido, as categorias funcionais e
sua expressão morfológica podem ser tomadas como o local privilegiado para refletir as
implicações sintáticas da presença de determinados traços na língua, que se fazem
“visíveis” para a criança na interface fônica. O gênero gramatical nas línguas românicas
permite demonstrar claramente o modo como a identificação de traços formais na aquisição
da língua requer que relações de concordância entre elementos relacionados em blocos
sintáticos/fonológicos, percebidos pela criança na análise do sinal acústico da fala, se
estabeleça antes que uma possível interpretação semântica venha a ser dada às distinções
morfofonológicas percebidas no interior de classes fechadas do léxico (como os
determinantes).
2. O gênero em português: questões para a aquisição
O gênero gramatical pode ser intrínseco, ou seja, uma propriedade da raiz nominal, ou
opcional, uma propriedade que a raiz nominal assume quando da nomeação ou na
2
referência a uma subclasse de indivíduos. Assim, nomes não flexionados em gênero têm
gênero intrínseco, podendo ser inanimados (o carro, a mesa) ou animados (o homem, a
mulher). Aqueles que flexionam em gênero (estabelecendo desse modo distinções de ordem
conceitual – indivíduos do sexo feminino) têm gênero opcional (o menino, a menina). Do
ponto de vista da criança adquirindo uma língua românica, a forma do determinante é a
única informação lingüística disponível para que o gênero intrínseco dos nomes seja
identificado. No entanto, por questões históricas, há uma coincidência entre a forma
fonológica das vogais temáticas características dos nomes masculinos e femininos ( -o, -a) e
a forma fonológica de nomes flexionados para gênero em línguas como o português, o
espanhol ou o italiano. Ver Quadro 1. Estudos experimentais conduzidos em línguas
românicas sugerem que crianças de até 5 anos buscam correlações morfofonológicas na
determinação do gênero de palavras novas (Karmiloff-Smith et al, 1997; Pérez-Pereira,
1991). Pesquisas em português apontam, no entanto, para o fato de que as crianças
adquirem o gênero com base na concordância sintática, embora crianças mais velhas
possam se mostrar sensíveis às correlações fonológicas (Name, 2002; Corrêa & Name,
2003). Nesses estudos, trabalhou-se com nomes inventados inanimados nos quais a vogal
temática poderia ou não ser correlacionada ao gênero expresso no determinante. No estudo
aqui apresentado, os nomes são animados, de modo que a vogal temática –a pode ser
confundida com o morfema –a (feminino), interpretável semanticamente. A questão
investigada é, em que medida a informação de gênero expressa no determinante (como
reflexo da concordância com o nome) será tomada pela criança como indicativa do gênero
da palavra nova.
-o
-a
-e
MASCULINO
FEMININO
MASC./FEM.
bot-o
libid-o
model-o
crom-a
testemunh-a
coleg-a
tigr-e
lebr-e
client-e
Quadro 1: Classes formais e gênero (In: Alcântara, 2003)
3. Experimento
Este experimento visa a contrastar duas hipóteses: a de que a criança baseia-se em
correlações fonológicas/semânticas das variações morfofonológicas dos nomes na
identificação do gênero de palavras novas (Pérez-Pereira, 1991) – processo dependente de
considerável experiência lingüística; e a de que a criança confia na expressão da
concordância sintática como indicativa do gênero do nome – processo automático, uma vez
que padrões morfofonológicos sejam reconhecidos como expressão de um traço formal da
língua, no contexto de uma unidade sintática (no caso DP) (Corrêa, 2001; Name, 2002;
Corrêa e Name, 2003), diante da possibilidade de a informação de gênero ser tomada como
indicativa do sexo do referente do referente do DP.
Têm-se, assim, como objetivos verificar (i) em que medida as crianças crianças de
2 e 4 anos baseiam-se na informação de gênero do determinante na atribuição de gênero a
nomes novos animados de gênero intrínseco; (ii) se correlação entre gênero gramatical e
vogal temática afeta a atribuição de gênero a nomes diante da possibilidade de a vogal
3
temática ser tomada como morfema de gênero (opcional) e (iii) se o fator idade afeta a
interferência dessa correlação na atribuição do gênero.
A investigação é conduzida por meio de uma tarefa de produção eliciada a partir de
estorinhas apresentadas na tela de um computador do tipo Laptop. As crianças ouvem a
identificação dos personagens das “tirinhas” e a descrição de um evento, enquanto os três
primeiros quadrinhos são apresentados. Para o personagem–alvo, usa-se uma figura
inventada e um pseudo-nome. Solicita-se, então, à criança que identifique quem executou a
ação descrita no último quadrinho. Espera-se que a referência ao personagem inventado
seja feita por meio do nome recém-adquirido.
O DP utilizado para a referência à figura-alvo é manipulado em função das
seguintes variáveis: (1) Gênero Gramatical: Determinante: Masculino, Determinante:
Feminino; (2) Correlação gênero-vogal temática: Correlacionado (Determinante
Masculino/Vogal Temática –o; Determinante Feminino/Vogal temática –a), Nãocorrelacionado
(Determinante
Masculino/Vogal
Temática
–a;
Determinante
Feminino/Vogal temática –o), Neutro (Determinante Masculino ou Feminino/Vogal
Temática –e) e (3) Idade: Abaixo de 3 anos (22-32 meses); acima de 3 anos (36 a 48
meses). A variável dependente é o número de respostas nas quais o gênero do determinante
é mantido.
3.1. Método
Participantes
Participaram desse experimento 39 crianças, sendo 25 meninas, divididas em 2 grupos
etários: abaixo de 3 anos – 16 crianças – e acima de 3 anos – 23 crianças, todas moradoras
do Rio de Janeiro.
Material
O material lingüístico consistiu de 10 listas de estímulos (5 masculinas e 5 femininas) de 4
“tirinhas” de quadrinhos, contendo 3 pré-testes, 9 testes (com pseudo-nomes e referentes
alvos inventados) e 9 estímulos distratores em arquivos ppt. Utilizaram-se um laptop
Toshiba e folhas de respostas para anotação.
Procedimento
As crianças foram submetidas ao experimento nas próprias escolas que freqüentavam. A
aplicação foi individual, sendo realizada em uma sala isolada. Para iniciar a aplicação do
experimento, as crianças eram convidadas a participar de um jogo de computador. A sessão
começa com o pré-teste. As crianças que demonstram entender a tarefa continuam sendo
testadas. Cada sentença-teste consiste da apresentação de 4 “quadrinhos”. Nos dois
primeiros, são apresentados dois personagens: um conhecido e um inventado, ao qual se
atribui um pseudo-nome. No terceiro e quarto quadrinhos, os personagens estão
participando de um evento. Ao se apresentar o último quadrinho, solicita-se à criança que
identifique quem executou certa ação. Espera-se que a referência ao personagem inventado
seja feita por meio do nome recém-adquirido. A ordem de apresentação das condições é
aleatorizada e as sentenças distratoras são apresentadas em uma ordem fixa. As respostas
4
das crianças são anotadas nas folhas de respostas. Encoraja-se a participação da criança a
despeito da resposta dada. O procedimento leva em torno de 8-10 minutos.
Resultados e discussão
Os dados foram submetidos a ANOVA com design 2 Gênero Gramatical X 2
Correlação gênero-vogal temática X 2 Idade. Efeitos principais de Idade F(1,35) = 7.65 p
<.01, Gênero Gramatical F(1,35) = 6.52 p =.01 e Correlação gênero-vogal temática
F(2,70) = 4.6 p =.01 foram obtidos. Interação entre Gênero Gramatical e Correlação
gênero-vogal temática aproximou-se do nível de significância F(2,70) = 2.97 p=.06.
A Tabela 1 apresenta as médias de respostas corretas em função da correlação gênero-vogal
temática, nas duas faixas etárias para as listas masculino e feminino. As médias obtidas
demonstram que a condição feminina e a condição não-correlacionada impõem maior
demanda e que há um progresso dependente da idade. O efeito de interação pode ser,
particularmente, notado em relação à condição feminina não-correlacionada.
Abaixo de 3 anos
Acima de 3 anos
Masc
Fem
Masc
Fem
Correlacionada
2,14
1,11
2,43
2,33
Não-correlacionada
1,71
0,67
2,21
1,22
Neutra
1,57
1,56
2,21
2,00
Tabela 1: Média de respostas corretas
Esses resultados indicam que as crianças se baseiam na concordância sintática na
aquisição do gênero de palavras novas e que a correlação entre gênero e vogal temática
interfere no processamento de gênero, sendo os nomes femininos mais vulneráveis aos
efeitos de correlação. Comparando-se esses resultados aos de Corrêa & Name, 2003,
constata-se que animacidade introduz uma dificuldade considerável nessa tarefa. As
crianças mais novas parecem tentar interpretar as distinções morfológicas semanticamente,
particularmente na condição feminina. Já as crianças mais velhas não são afetadas pela
correlação entre gênero e vogal temática na condição masculina, embora o sejam na
condição feminina não-correlacionada, visto que a vogal temática –a pode ser confundida
com gênero opcional feminino morfologicamente marcado. A análise dos erros revela, não
obstante, que o tipo de erro predominante (excetuando omissões e não respostas) foi a
manutenção do gênero do determinante e alteração da forma do nome, predominantemente
com a substituição de uma vogal não-correlacionada com uma neutra (21,58% vs 3,6% de
alteração do gênero do determinante em função da VT do nome).
5
D mantido/VT alterada
21,58
D alterado/VT mantida
3,6
D e VT alterados
0,72
Pronomes com gênero alterado
17,99
Omissões e outros
56,12
Tabela 2: Percentual de tipos de erros
Em suma, os resultados encontrados sugerem que as crianças se baseiam na
concordância sintática entre determinante e nome na aquisição do gênero de nomes novos e
que a correlação entre gênero e vogal temática interfere no processamento do gênero, sendo
a terminação característica do feminino –a mais vulnerável aos efeitos de correlação na
condição não-correlacionada. O efeito de correlação gênero-vogal temática parece ser póssintático, quando da codificação morfofonológica da vogal temática do novo nome, sendo
que as crianças mais velhas, por estarem mais atentas a aspectos metalingüísticos, acabam
por se mostrar mais sensíveis aos efeitos de correlação entre gênero e vogal temática.
4. Considerações finais
Os resultados são compatíveis com a teoria de aquisição da linguagem aqui apresentada –
as crianças identificam traços formais a partir da percepção de regularidades na interface
fônica e partem do pressuposto de que elementos do léxico localmente relacionados em
blocos sintáticos/prosódicos mantêm relação de concordância. No caso do gênero, o valor
do gênero identificado no determinante (expressão morfológica da concordância sintática) é
atribuído ao nome novo adquirido, o que explica a facilidade com que crianças adquirem
algo que parece ser idiossincrático na língua. Apenas com o tempo, a criança se torna
sensível a correlações fonológicas e semânticas entre VT e gênero (produto das
idiossincrasias da língua), embora essa interferência fique restrita a formas femininas.
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