Tutela, Resistência e Co-gestão Indígena: relações de poder entre

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Tutela, Resistência e Co-gestão Indígena: relações de
poder entre os índios Terena e o Estado brasileiro.
Autor: Andrey Cordeiro Ferreira ([email protected])
Doutor pelo PPGAS-MN/UFRJ
XIII Congresso Brasileiro de Sociologia - 29 de maio a 1 de junho de 2007, UFPE, Recife (PE)
Grupo de Trabalho 17: Questões Étnicas, Raciais e Ação Afirmativa.
Introdução
Esse artigo visa apresentar alguns dos ados e análises contidos na nossa tese de doutoramento
(2007), acerca das relações de dominação e resistencia entre os indios Terena da terra Cachoeirinha
(Mato Grosso do Sul) e o Estado-Nacional brasileiro, entendendo que tantos os povos indigenas quanto
o Estado devem ser vistos na multicplicidade de atores concretos que os integram.
A análise do caso do povo Terena em particular e da situação dos povos colonizados em geral
pode trazer elementos importantes para a análise das contradições (sociais) e os efeitos (de poder) das
chamadas “ações e políticas afirmativas”.
O conceito de ação afirmativa abrange uma dimensão ideológica, sustentada pela “busca da
eliminação de ideias e práticas discriminatórias”, a “materialização do respeito a igualdade dos direitos
humanos e da equidade social”, e também uma dimensão política, que estebelece meios concretos para
a realização das idéias e objetivos, como: a) garantia de proporcionalidade dos diferentes grupos sociais
nas difernetes esferas; b) abertura de espaços sociais prestigiados a grupos discriminados (cursos
“socialmente” privilegiados, cargos estratégicos na administração pública etc.). Assim, coloca-se a
possibilidade da adoção, por parte do Estado, de políticas de reservas de cotas em universidades e em
cargos da administração pública. Mas qual o significado sociológico e político dessas medidas? Como
elas se relacionam as políticas e estratégias dos grupos subalternos? Quais os efeitos nas relações de
dominação e resistência?
Os Terena formularam, enquanto grupo étnico, uma série de estratégias políticas e discursivas
que podem ser enquadradas no rol das ações afirmativas. Desde um discurso difuso contra o regime
tutelar1, passando por criticas as representações românticas e estigmas do “índio”, até a reivindicação
de vagas em universidades e altos cargos na administração pública.
A estratégia formulada pelos Terena, de reivindicação de espaços nas instituições sociais e
políticas – que se relaciona a uma política mais ampla de “resistência ao” e “colaboração com” o
regime tutelar - nós denominamos de “co-gestão indígena”, no sentido que é uma política que visa criar
espaços de “governo” e “gestão” das instituições estatais pelos índios (a principio e especialmente,
dentro da FUNAI).
Nesse sentido, podemos falar da “co-gestão indígena” como um tipo particular de manifestação
das ações afirmativas e que podem ir de encontro às políticas afirmativas estatais, complexificando
1
O regime tutelar é uma arquitetura político-jurídica que foi construída a partir de 1910, com o SPI (Serviço de Proteção
aos Índios) e que permanece, apesar de ter passado por profundas transformações, até hoje, sendo o seu principal
instrumento a FUNAI. O regime tutelar tem como principal característica a gestão centralizada dos índios, sua força de
trabalho e bens pelo Estado (ver Lima, 1995, Oliveira Filho, 1988).
2
tanto as formas quanto o conteúdo das relações políticas de dominação e resistência. O objetivo deste
artigo é a partir da análise da situação dos Terena, indicar como a “co-gestão indígena”, e por extensão
talvez a própria política de ação afirmativa, é marcada por contradições que ao mesmo tempo que
expressam demandas e projetos de futuro dos grupos dominados, ajudam a fortalecer dominações
horizontais e verticais e multiplicar contradições sociais e étnicas.
1 – A Emergência do “protagonismo étnico”.
Ao percorrermos as terras indígenas Terena, com suas inúmeras aldeias e postos, e nos
relacionarmos com as pessoas que vivem nelas seu cotidiano, percebemos que elas ostentam um certo
“orgulho”, expresso numa discursividade de afirmação da sua identidade de índios Terna. Essa
discursividade manifesta-se na ostentação do fato de os seus “patrícios2” estarem ocupando diversos
espaços que no passado só estavam disponíveis aos “purutuye” (brancos), espaços profissionais,
políticos ou administrativos.
Os Terena freqüentemente comentam com satisfação o fato de os chefes (ou encarregados) dos
Postos da FUNAI em suas terras serem índios da sua etnia, assim como muitos dos funcionários da
Administração Executiva Regional da FUNAI. Ressaltam também a importância de uma parte
significativa dos professores que lecionam nas escolas existentes nas aldeias, e em alguns casos ainda
também os funcionários dos postos de saúde, serem índios Terena.
Além disso, as Igrejas (evangélicas e católicas) que existem em grande número nos diversos
territórios Terena, também são “dirigidas” por índios (presidentes, secretários, tesoureiros), nas
organizações religiosas se manifesta também à “hegemonia” indígena. São inúmeras as “Associações”
existentes, que buscam a captação de recursos externos - todas elas fundadas e geridas pelos próprios
Terena. E a escolha do “cacique”, que foi em diversas ocasiões históricas, imposta ou muito
influenciada pelo órgão tutelar, hoje é um cargo eletivo e são as próprias aldeias Terena que definem
através do voto os seus respectivos líderes. Não são poucos os que apontam a necessidade de os índios
terem “representação política” nas câmaras municipais, no sentido de garantir seus interesses (note-se
que vários Terena já se elegeram para cargos no âmbito legislativo municipal no estado do Mato
Grosso do Sul).
Acrescente-se que – e isso é possível de se perceber principalmente nas falas das lideranças
Terena, como caciques, membros dos conselhos de aldeia e etc. - que a ocupação destes “espaços” têm
2
Um dos termos pelo qual usualmente um Terena designa outro (na forma singular) ou o conjunto do grupo (na forma
plural).
3
um caráter relativamente intencional: eles dizem, por exemplo, que é importante ter escolas para
preparar os índios para assumirem todas as tarefas possíveis que lhes dizem respeito (na educação, na
saúde, no órgão indigenista), porque, segundo entendem, seria vantajoso para eles enquanto grupo. Ou
seja, a realidade atual é explorada pelos Terena tanto a partir de projetos individuais quanto coletivos,
seguindo estratégias próprias, o que afeta substancialmente as relações do grupo com os demais agentes
(tanto no plano das representações culturais quanto dos efeitos de poder).
Para exemplificar como os Terena empregam esse discurso afirmativo e como ele está
relacionado a uma prática, podemos citar uma situação social registrada em nosso trabalho de campo.
No dia 25/04/2003, ocorreu no PIN Cachoeirinha uma reunião entre representantes da Administração
Regional da FUNAI de Campo Grande (todos índios Terena), lideranças indígenas locais e o Chefe do
PIN Cachoeirinha (também um índio Terena de Cachoeirinha) para discutir o Programa Pantanal (um
programa de desenvolvimento regional). Uma das pessoas presentes na reunião disse “dar “nota O” ao
Programa Pantanal”. Um dos representantes da FUNAI falou que “deveriam colocar um patrício na
coordenação”. Ele comentou que haviam indicado para a coordenação do programa um técnico, mas
que, entretanto “é preciso ter compromisso com a causa3”. A FUNAI, assim disse seu representante,
“irá encaminhar ao MPF pedido de substituição do coordenador “branco” por um “índio”. “É
impossível um índio não ter sensibilidade à causa”, afirmou. As resoluções da reunião, que passariam
a ser a posição oficial das aldeias de Cachoeirinha sobre o tema, indicaram: “considerando que os
índios não foram convidados a elaboração, e que não há por isso um ajuste entre as ações do
programa e a realidade das aldeias, e que depois do fracasso da produção é o índio o estigmatizado
como preguiçoso, propõe-se a nomeação de um índio para a coordenação do programa”. Está muito
presente nessa situação social, a luta entre “afirmação identitária e estigamização do índio”, como a
“luta simbólica” está associada a “luta pelo poder”.
Outra situação social ilustrativa destas questões ocorreu durante a comemoração do Dia do
Índio em 19 de abril de 2003, poucos dias antes do fato acima mencionado. Enquanto estávamos na
aldeia Cachoeirinha, na sede do PIN, foi possível ouvir a transmissão de um programa da rádio “FM
Terena”,4 do qual pudemos gravar alguns pronunciamentos. Era um programa comemorativo do Dia do
Índio em que participaram convidados especiais, como o administrador regional da FUNAI de Campo
Grande, na ocasião Márcio Justino Marcos, lideranças das aldeias de Miranda, e o futuro
Administrador da FUNAI, Wanderley Dias Cardoso, índio Terena da aldeia Lalima.
3
A idéia de “causa indigenista” integra o léxico utilizado pelos funcionários e administradores da FUNAI.
Rádio Comunitária que tem sua sede funcional na aldeia de Moreira, a alguns quilômetros de Cachoeirinha, também
município de Miranda.
4
4
Wanderley, em seu pronunciamento, afirmou:
“Bom dia a todos, da aldeia Moreira e Passarinho e aos mirandenses em geral. É um prazer estar
revendo companheiros aqui, de partido e lideranças indígenas, também conhecendo esta rádio tem
como já foi dita...um instrumento da divulgação da cultura e da força que possui a nação Terena.
Nós temos hoje uma data muito especial e eu enquanto historiador, educador, é emocionante falar
desta data, porque foi uma luta histórica dos povos indígenas da América do Sul, que através de
muita resistência estabeleceu que 19 de abril fosse chamado Dia do Índio.É um dia que para nós é
especial.
A história do nosso país ela revela um lado triste de tratamento que o sistema de governo, digamos
assim, que foi implantado no nosso país, desde a monarquia, de colonização, de exploração, tentou
dizimar as populações indígenas de todo o país. Mas nós após 503 anos de país constituído
estamos aqui provando o nosso poder de resistência, nosso poder de organização, nosso poder de
acreditar nos nossos sonhos.
Então resistimos, estamos aqui com a rádio com uma potência dessa, outro dia eu estava lá no
centro de Miranda e estava ouvindo um debate que acontecia aqui. Então isto é motivo de orgulho.
E com certeza nós estamos num momento histórico em que tá aberto o diálogo, toda discussão
concernente à questão indígena. Nós termos aqui uma nova forma de governar, está proposto isso
no nosso estado, no nosso país. Então vai valor cada vez mais nossa organização, nossos
movimentos. (Wanderley, Aldeia Moreira, MS, 19/04/2003).
Outro pronunciamento que merece destaque foi o realizado por Carlos Jacobina (que disputaria,
com Wanderley o cargo de administrador regional), irmão do cacique da aldeia Passarinho Wilson
Jacobina, e membro do Conselho estadual de Política Indigenista, que falou:
“Mas esse momento a gente tá falando dos nossos problemas, das nossas políticas, dos nossos
movimentos, Faustino eu quero parabenizar você, parabenizar a direção da rádio, (...) Nós estamos
no movimento indígena aqui no município de Miranda, bem como no estado, a gente enfrenta
dentro do movimento divergência de nossas lideranças, de nossos patrícios.
Só quero relembrar quando pessoas se colocaram contra a rádio (...) Qual a importância da radio
FM Terena no município de Miranda, a importância da radio Fm Terena para nossa população
indígena registrando a presença do administrador, do vice-prefeito, registrando a presença da
presidente do partido, das lideranças indígenas, do Néder Vedovato presidente da Câmara dos
Vereadores, a gente conversando com você ouvinte, morador aqui da aldeia, que vive o dia a dia
daqui da aldeia, vive os problemas o quanto é importante essa radio.
Eu quero fazer meu apelo da população indígena daqui da aldeia Moreira para que apóie a FM
Terena, temos que apoiar, porque é através desse veiculo que nós levamos a comunicação, levamos
a novidade, nós levamos a noticia, nós fazemos nossa proposta, nós fazemos nossas colocações
sobre a política indigenista.
Parabéns Faustino, parabéns aldeia Moreira, por ter a honra de ter uma rádio, a FM Terena, ter
uma rádio que tem um momento da cultura indígena Terena, é o momento de nossas comunidades
indígenas começar a refletir sobre nossas potencialidades, das nossas demandas, que são os nossos
professores, que sãos as nossas organizações evangélicas, são as lideranças indígenas, os
conselheiros tribais, as associações, movimentos indígenas, as rádios comunitárias que temos nas
aldeias é o momento de nós refletirmos, dizermos não a exploração, e aonde a população indígena
quer chegar. (...) (Carlos Jacobina, Aldeia Moreira, MS, 19/04/2003).
5
O discurso de Wanderley fala do “poder de resistência, poder de organização” dos índios, dentro da
história brasileira (e a categoria resistência aprece em diversos momentos na composição narrativa). O
discurso de Jacobina fala de “potencialidades e demandas” ao citar um conjunto heterogêneo que inclui
professores, organizações evangélicas, lideranças e rádios comunitárias. Os dois discursos considerados
permitem indicar que dentro das aldeias Terena, existe um discurso, uma narrativa auto-afirmativa
acerca da história indígena, que evoca a idéia de “resistência” e que expressa um posicionamento
quanto ao “lugar que o índio” deve ocupar na sociedade. As identidades acionadas (historiador,
educador) mostram também as posições políticas e as bases concretas, factuais, do discurso de
afirmação identitária.
Esse discurso e essa prática se expressam em fenômenos diversificados, difusos, que se
apresentam como um campo de estudos e problemas etnográficos, teóricos e políticos. Acreditamos
que destas evidências do discurso indígena (que dado seu contexto de enunciação, são fragmentos de
ações políticas) são sintomas de um processo social-histórico de transformação das relações de poder
entre índios, grupos sociais dominantes e o Estado-Nacional. O que está na base deste processo é a
emergência do que podemos chamar de protagonismo étnico, num contraponto direto às bases
simbólicas e políticas do regime tutelar instituído em 1910 com a criação do SPI e ratificado pelo
Estatuto do Índio de 1973.
Este protagonismo étnico recobre um conjunto heterogêneo de intervenções e ações políticas
indígenas. Oliveira Filho apontou que os índios formularam diferentes práticas ou estratégias políticas
frente ao regime tutelar que lhes foi imposto:
“Frente à estrutura tutelar, os indígenas se encontram diante de três alternativas concretas. A
primeira, que para simplificar definiremos como índios funcionários, é que os índios entrem no
jogo das relações clientelistas estabelecidas com os indigenistas, encontrando ai canais de acesso
ao uso de recursos coletivos e a acumulação de bens materiais e prestigio. A segunda que
chamaremos de assembléias indígenas, se refere à mobilização por terra e assistência. A terceira
que chamaremos de organização indígena, busca criar mecanismos modernos de gestão territorial
e desenvolvimento. Há também outras alternativas – que envolvem na sua maioria formas de
mobilidade individual e familiar ..”. (Oliveira Filho, 2006, p. 137)
Dessa maneira, estamos considerando diferentes possibilidades de intervenção política indígena,
mas em todas elas o regime tutelar é não somente o contexto geral, mas o próprio alvo direto dessa
intervenção. Além disso, os dados globais mostram que esse fenômeno verificado entre os Terena é
generalizado nas sociedades indígenas, e que as três formas de intervenção política têm efeitos
agregados muito importantes.
Hoje a FUNAI afirma possuir 1300 funcionários indígenas, num universo de cerca de 3000, ou
seja, mais de 40%. Com relação às assembléias indígenas, suas propostas eram encaminhadas através
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de uma sucessão de encontros e reuniões realizados em escalas diversas, recobrindo desde as aldeias
até pólos regionais e das capitais, sendo iniciadas em 1974 em Mato Grosso. Tais assembléias até o
final da década de 1970 chegaram a 15; entre 1980 e 1984 foram realizados 42 encontros desse tipo
(Oliveira Filho, 2006, p.137-138). Com relação às organizações indígenas, houve também um processo
importante. “Em 1991 já eram 48, em 1996 somavam 109 e em 1999 alcançaram as 290. Desse total,
195, ou seja, mais de 2/3, estavam situadas na Amazônia, refletindo a prioridade brindada a essa
região nos financiamentos internacionais”. (Oliveira Filho, 2006, p. 145)
O conceito de protagonismo étnico visa apreender esses processos difusos de mudança nas
relações e cadeias de poder (mudança que significa que as diferentes posições dentro de instituições,
comunidades, espaços de produção, estão tendo sua função e significado redefinidas). Isso quer dizer
que um símbolo, um posto administrativo ou profissão passam a ter importância estratégica dentro dos
esquemas e relações de poder, podendo representar maior acesso ao controle de recursos ou expressar
simbolicamente um aumento de status de certos sujeitos (ou a destruição de certas representações,
legitimadoras das formas de dominação). O protagonismo étnico, em termos sociológicos é a afirmação
da capacidade política indígena, do seu caráter de sujeito e de sua capacidade de “governo”, o que
exige três elementos básicos: 1) a constituição de centros de ação política, formais ou informais; 2) a
formação de idéias ou discursos comuns que delimitam fronteiras de oposição política e se opõem à
certas idéias da estrutura de dominação; 3) o aumento do poder dos grupos submetidos a essa estrutura.
Essas características se aplicam à realidade dos Terena enquanto grupo étnico.
Mas é importante perceber que na realidade sob o protagonismo étnico, se encontram estratégias
não somente diferentes, mas contraditórias5. Poderíamos agrupar em duas grandes vias de ação política,
que se relacionam de forma diferentes com a estrutura de dominação, ou seja, a política indigenista e o
regime tutelar. O discurso de “Marcos Terena” deixa muito claro o delineamento de uma dessas vias:
“Temos a plataforma de uma Secretaria Especial de Direitos Indígenas e um índio na presidência
da Funai [Fundação Nacional do Índio]. Esse trabalho o governo já sinalizou que é possível, mas
temos que construir isso de acordo com as possibilidades. Chegou o momento do índio não só
requerer direitos, mas responsabilidade, co-participação.”
5
“Deixando de lado os impactos sobre a opinião publica e com relação ao reordenamento da política oficial, os resultados
desse processo foram relativamente limitados sobre a forma de organização política das aldeias e sobre o controle dos
territórios étnicos. Os mediadores indígenas que tinham uma fonte de poder externa a aldeia e de fora dos mecanismos de
controle da coletividade que pretendiam representar, se tornaram progressivamente frágeis frente ao poder de Estado e as
acometidas dos setores poderosos da sociedade. Apenas especialistas na função de intermediação para fora, muitas das
lideranças indígenas terminaram por ser capturadas nos anos seguintes pela estrutura tutelar, transformando-se em
braceros, em chefes de posto, em professores bilíngües, monitores de saúde ou ate administradores regionais e assessores
(em Brasília).” (Oliveira Filho, 2006, p. 143)
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Esse discurso foi pronunciado numa Conferência Regional em Brasília realizada com o apoio da
Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e da Organização das Nações Unidas.
O tema do evento são os avanços e desafios do “Plano de Ação Contra o Racismo”. Cerca de 400
representantes de 35 países participaram do encontro, que avaliou os compromissos firmados no
encontro de Durban (África do Sul) em 2001.
Poderíamos denominar essa via, apontada por Marcos Terena como a “via da co-gestão
indígena”, ou seja, que visa estabelecer mecanismos que possibilitem aos índios se tornarem cogestores das instituições político-administrativas do regime tutelar. Isso tem uma série de efeitos de
poder e significados sociológicos. Num certo sentido, esta via da co-gestão é sustentada por grande
parte das lideranças e população Terena, se apresentando como um projeto político compartilhado por
diferentes facções e comunidades locais.
2 – A luta pelo poder e a co-gestão indígena: mudança e reprodução das relações de dominação.
Devemos caracterizar então a estrutura de dominação representada pelo regime tutelar, para
entender o significado das ações afirmativas. O regime tutelar compreende um conjunto de signos que
traduzem sempre uma relação de desigualdade de capacidade e de poder, composta por pares de
oposição que estruturam a idéia de tutela: a oposição “adulto/criança” (que se funda numa analogia
com os ciclos biológicos); a oposição “civilizado/primitivo” ou selvagem (tipos de sociedade, nível
social, técnico e cultural); a oposição “capaz/incapaz” e (no sentido político, mas também, intelectual e
biossocial, já que a incapacidade está associada ao “caráter fisiológico” e ao “tipo de sociedade” do
índio). Este conjunto de signos remete sempre a desigualdade, mas não através do mesmo conteúdo
simbólico, e podemos dizer que são signos porque fazem parte de um conjunto, dentro de uma estrutura
narrativa acerca da história indígena e dão sustentação as idéias de assistência e proteção do Estado. Os
índios são considerados como crianças, como estando na “infância da humanidade”, mas estão aquém
das crianças civilizadas; desta maneira a distinção entre “civilizado e primitivo”, define uma fronteira
ainda mais acentuada, e diz que infantilidade não é suficiente para traduzir a condição do índio em face
da sociedade nacional; por outro lado, a oposição “capaz e incapaz”, é a conclusão política e societária
das duas oposições anteriores. O índio pode ser considerado como criança porque é
primitivo/selvagem, mas sendo primitivo está aquém das próprias crianças civilizadas, e sendo assim
rebaixado duplamente, ele é duplamente incapaz, no sentido de que está fora da civilização e quando se
aproxima desta é colocado numa condição de infantilidade. Este raciocínio foi fielmente traduzido na
regulamentação jurídica do regime tutelar, através da categorização dos índios.
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As
representações
acerca
da
superioridade/inferioridade,
infantilidade/adultidade,
capacidade/incapacidade, estão associadas ao mesmo tempo a uma interpretação da história formulada
dentro dos aparelhos de Estado e por agentes sociais como os militares vinculados organicamente a este
mesmo Estado. É pelo fato do índio ser concebido/percebido a partir destes signos, que se coloca a
idéia de proteção e assistência como centrais. Sendo o índio incapaz, ele precisa de um protetor, de
alguém que o represente e atue como provedor. A idéia de “proteção” é associada ao “controle”, sendo
a tutela a forma concreta pela qual se estabelecem as formas de proteção e controle do Estado sobre os
índios. O papel político, a ação e pensamento indígenas são obliterados, colocados como meramente
determinados pela sociedade nacional e pelo Estado-Protetor. No fim, o Estado aparece como o
verdadeiro e único sujeito da história indígena, já que – sendo o índio incapaz, este somente existe
graças ao Estado. Assim a relação e o regime tutelar, aparecem como único meio possível de impedir o
extermínio final e definitivo dos índios. O índio não existe sem a tutela.
Assim, o regime tutelar era estruturado num discurso de “rebaixamento” simbólico dos índios.
Mas além da estrutura de dominação é preciso, para entender o significado das ações afirmativas entre
os Terena, dar algumas informações acerca da sua cultura e organização social. A aldeia é marcada pela
existência de diferentes “vilas”, unidades que compreendem grupos vicinais e de parentesco, que se
estruturam em torno de um ou mais lideranças políticas. As facções locais agrupam às vezes um ou
mais grupos vicinais. As facções assim compostas normalmente agrupam descendentes de antigos
caciques ou naati (líder ou chefe em Terena/Aruak), e nesse sentido as disputas entre facções são
também lutas entre diferentes grupos de descendência, cujas genealogias remetem a antigos lideres com
histórias de vida e de alianças políticas distintas.
No caso de Cachoeirinha e em quase todas as terras Terena, a construção do regime tutelar (que
foi marcada pelo processo de expropriação de terras indígenas e construção de reservas) levou dentro
das aldeias ao estabelecimento de alianças entre algumas facções locais e o SPI - que necessitava de
apoio interno para implementar suas políticas. Essas alianças implicavam na concessão de recursos e a
político que possibilitavam a dominação monopólica de determinadas facções sobre recursos materiais
e simbólicos, e em certos casos contrariava o “status tradicional”, uma vez que a antiga organização
social indígena era baseada na transmissão hereditária da chefia. Com o SPI e depois a FUNAI, as
alianças possibilitaram que fossem escolhidos como caciques membros de famílias que não “poderiam”
de acordo com a antiga lógica ocupar a liderança política. Assim, estabeleceu-se uma contínua luta pelo
poder dentro das aldeias, tanto entre facções indígenas, quanto das facções contra o Estado-Nacional e
o regime tutelar que o representava. Mas a luta das facções contra o Estado nunca era dissociada da luta
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interna, ao contrário, já que as facções se apoiavam no regime tutelar para impor sua dominação sobre
as outras facções. A resistência ao regime tutelar estava então associada à luta faccional.
Em Cachoeirinha, uma facção composta por alguns grupos vicinais, conseguiu praticamente
monopolizar o cargo de cacique dentro da aldeia entre 1965-1985, aproximadamente, momento em que
era liderada por Dionísio Antônio. Nos anos 1980 a emergência de uma outra facção liderada por
Sabino Albuquerque provocou profundas mudanças políticas nos esquemas locais de distribuição do
poder e dominação. Ao final dos anos 1980 a facção liderada por Sabino, construiria uma associação e
através dela conseguiria eleger várias vezes o cacique (nos anos 1990, 3 dos 4 caciques eleitos
pertenciam aos grupos vicinais ligados à facção de Sabino, e somente um a antiga facção de Dionísio
Antonio).
No mesmo período, em todo o Mato Grosso do Sul, expandem-se as ações afirmativas. Os
índios começam a ocupar (e reivindicar) cargos na administração pública, passam também a se lançar
na política local, através das candidaturas indígenas para o legislativo e executivo e tem a experiência
“da co-gestão” no plano local, através da administração regional da FUNAI em Mato Grosso do Sul.
Por exemplo, desde 1985 que o Administrador Regional da FUNAI (cargo máximo do órgão no estado)
é um indígena, escolhido – ou pelo menos referendado - pelos caciques Terena. Nesse mesmo período,
formam-se associações indígenas e difunde-se um discurso auto-afirmativo que irá predominar entre os
Terena (como vimos acima, através das narrativas sobre a resistência indígena e o orgulho étnico).
Mas o que acontece é que os cargos criados na administração pública e os espaços de co-gestão
estavam sujeitos à dinâmica de luta pelo poder entre facções dentro da aldeia e a dinâmica de
dominação/resistência estabelecida entre o Estado-Nacional e os índios. Assim, as “ações afirmativas”
e o discurso que acionam, estavam mais associadas ao beneficiamento político de grupos vicinais e de
descendência do que ao grupo étnico como um todo. Na realidade, o acesso de uma facção a estes
espaços representava a exclusão das demais. Os espaços de representação buscados na política local, os
cargos na administração pública, servem diretamente a política das facções que passam a estabelecer
novas alianças no campo de relações interétnicas, com elites, agencias estatais, para fortalecer seu
poder sobre as facções rivais, excluindo-a sempre que possível do acesso a tais cargos e espaços.
A estratégia das facções na sua política de resistência ao regime tutelar se expressou de
diferentes maneiras: a aliança com as Missões/Igrejas, a aliança com ONG´s, a aliança com elites,
lideranças e grupos políticos locais e regionais. Estas alianças abriram o leque de possibilidades
políticas dentro do campo e arenas das relações interétnicas. Ao mesmo tempo, abriu-se espaço para a
introdução e/ou generalização de novos modos de dominação no contexto da política das aldeias. As
alianças permitiram a formação de relações clientelistas dentro da política local, que sendo à base das
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alianças entre índios e instituições estatais, elites políticas e etc, permitia o fortalecimento de
determinadas facções na sua luta pelo poder dentro da aldeia. A “Prefeitura” e a “Câmara” (e o
conjunto das instituições de Governo na esfera local) passaram a ocupar um lugar tão importante
quanto à “FUNAI”. Assim se de um lado o regime tutelar foi modificado pela estratégia de resistência
indígena, obrigando o Estado-Nacional a reconhecer a capacidade política indígena, através das ações
afirmativas e de uma política de resistência cotidiana, mas emergiu uma relação e um modo de
dominação clientelista paralelamente a este processo.
Por exemplo, ao longo dos anos 1990, o monopólio da facção de Dionísio Antonio foi
quebrado, mas as lideranças como Sabino Albuquerque, Isídio Albuquerque (irmão de Sabino)
implementaram políticas de gestão similares ao da antiga facção, de maneira que outras facções se
organizaram para combater as facções que estavam mopolizando recursos e relações políticas. Ao
mesmo tempo, os cargos são distribuídos dentro dos grupos vicinais e de parentesco, não estando
acessíveis a todos os grupos indígenas.
A idéia dos Terena é que os índios possam ocupar espaços – tornarem-se funcionários nas
posições hierárquicas mais diversas – de diversas instituições estatais, como a Escola e mesmo a
“Secretaria de Educação”, Câmaras Municipais e Prefeituras, estendendo e ampliando assim os
“espaços de poder” acessíveis e eles. Um elemento de destaque nas situações descritas acima, foi à
proposta da formação de uma “Secretaria do Índio” dentro da Prefeitura. Praticamente todos os lideres
políticos locais que disputaram as eleições para a prefeitura em 2004, apresentaram tal proposta, ou
seja, todos os candidatos assimilaram e falam dessa possibilidade (além de colocarem candidatos
indígenas nas suas coligações). Um documento do PT de 1988 já mencionava na proposta de programa
de governo para a Prefeitura a criação de uma Secretaria do Índio.
Mas na realidade, as situações e dramas sociais dentro de Cachoeirinha mostram como as ações
afirmativas e a possibilidade de “co-gestão” aberta a uma das facções exige de outro lado, o
fortalecimento da dominação do Estado sobre o grupo indígena, materializado especialmente na relação
de dominação horizontal de uma facção sobre a outra, através da exclusão do acesso a recursos,
tratores, empregos e etc. O caso das lutas entre as facções mostra como os grupos que tem acesso ao
poder de gestão empregam uma forma monopólica, tanto por interesse próprio quanto de seus aliados
nas elites locais. A essas políticas se inserem dentro de um processo histórico que leva a centralização
do poder no órgão tutelar a progressiva construção da legitimidade de suas funções e naturalização das
relações que expressa.
Todo o conjunto de processos sociais difusos, os diferentes dramas de sucessão e cisão, as
estratégias de assembléias e organizações indígenas, de ocupação de espaços nos organismos estatais; a
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política de resistência cotidiana, e também os diferentes empreendimentos indigenistas,
governamentais, missionários e militares nos quais os índios tomam parte contribuem ao mesmo tempo
para mudanças nas relações e esquemas de distribuição de poder6 (entre facções indígenas dentro das
aldeias e nas instituições estatais, nos “espaços de poder” que eventualmente ocupem; e também no
nível local da política, entre elites e frações de classe em luta pelo poder) e para a reprodução do
sistema de poder, ou seja, das estruturas de longa duração e larga escala que operam tanto no campo
quanto na arena das relações interétnicas. As ações e políticas afirmativas, e as medidas concretas que
expressam, não tem um conteúdo “em si”, mas adquirem significado político e sociológico em meio
aos processos de dominação e resistência políticas. É essa a discussão que realizaremos abaixo.
3 – Ações afirmativas e estratégias de dominação estatal.
O regime tutelar é uma das engrenagens de um modo de dominação/exploração do trabalho
indígena e as transformações nele tem de ser contrastadas com as transformações em outras instituições
como o duplo mercado de trabalho e com forças econômicas como as migrações temporárias e relações
de produção doméstica. E mais que isso, o regime tutelar historicamente se estabeleceu na seqüência de
políticas de colonialismo interno, e como é o caso de Mato Grosso em áreas de “fronteira fechada”.
Mas na realidade, este próprio modo de dominação/exploração “regional” está integrado num circuito
mundial, numa cadeia imperialista. Uma vez que as plantations agro-exportadoras, nas quais se
colocam as Usinas e Destilarias, fazem parte de cadeias mercantis internacionais e orienta seus modos
de organização pela lógica de competição e pelas relações centro-periferia da economia mundial. Nesse
sentido, o próprio regime tutelar está a serviço de uma cadeia mais ampla de relações do imperialismo
que visa extrair mais valia dos países da periferia do capitalismo.
O regime tutelar passou por transformações importantes. O Estatuto do Índio (1973), mantendo
todas as bases ideológicas e políticas da tutela, já previa a abertura do órgão indigenista aos índios, e o
incentivo à especialização indigenista. Assim, foi incentivada a participação dos índios na
administração pública, ainda sob a Ditadura Militar.
A abertura do órgão indigenista aos índios era uma extensão da política de alianças
estabelecidas dentro das aldeias, e que possibilitava a formação de uma burocracia indígena. Ao mesmo
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Estamos falando de reprodução do poder no sentido de reprodução: 1) da autoridade, do poder decisório e legalidade de
uma decisão ou gestão; 2) da força, das bases materiais do exercício e da imposição de decisões e ações políticas. As
técnicas de luta política que expressam essa reprodução das relações de dominação são a) requisições administrativas; b)
abaixo assinados reivindicando intervenção de organismos superiores.
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tempo, a participação indígena na negociação de contratos de trabalho dentro da aldeia abre campo para
a reflexão acerca da dominação política e dos diferentes projetos políticos do grupo étnico. A presença
de funcionários indígenas representando a FUNAI não afeta em nenhum momento a estruturação da
relação consagrada pelo regime tutelar.
No que tange a FUNAI enquanto órgão da administração pública, a idéia da co-gestão tem um
duplo efeito: 1) resolve o problema do recrutamento de funcionários, muitas vezes contratados de
forma precarizada, temporária, que os coloca sob domínio direto da burocracia superior do órgão, como
o caso dos Chefes de Posto; 2) assegura a criação de um interesse indígena na forma de organização do
Estado-Nacional, já que possibilita que facções monopolizem recursos e tenham asseguradas vantagens
pela sua colaboração com os empreendimentos da administração através dos espaços criados na
instituição (secretarias, comissões, cargos e etc).
Assim, as ações afirmativas devem ser vistas tanto do ponto vista das estratégias indígenas e
dos grupos subalternos, quanto das estratégias de dominação estatal. A abertura da administração
estatal é uma medida prática que pode servir tanto a uma política quanto a outra. A reconstrução
histórica da mudança da tutela internacional pode ajudar a pensar essas políticas de um ângulo crítico.
O fim da primeira Guerra Mundial em 1918 levou a formulação do sistema de mandatos para
avaliar os destinos das colônias da Alemanha e do Império Otomano. No final da Segunda Guerra
Mundial um problema similar foi colocado. As conferências internacionais do Cairo (Egito) em 1943 e
de Hot Springs, no estado da Virgínia, EUA, em janeiro de 1945, abordaram o problema colonial. “O
mais debatido problema foi o destino das colônias européias no sudeste asiático" (Dilner, 1952, p. 35)
“Os primeiros projetos relativos a um sistema de tutela internacional foram elaborados na
Conferencia de Hot Springs” (Dilner, op.cit). Os EUA apresentaram uma proposta de carta de
administração colonial (charter of trusteeship), baseada em alguns princípios, como a formação de
“governo próprio” e formação de “comissões coloniais internacionais”.
A Conferência de Yalta, 1945, atribuiu a ONU alguma jurisdição sobre a questão colonial.
Delineia-se que o “sistema de tutela internacional” aplicaria-se aos territórios sob o “mandato” da
Liga das Nações, os territórios desmembrados dos inimigos depois da guerra, a qualquer “território
colocado voluntariamente sob tutela”. Na Conferência de São Francisco várias propostas para
regulamentar o sistema de tutela foram apresentadas pela Austrália, China, EUA, França e URSSS.
“Finalmente, o regime de tutela internacional ficou consubstanciado nos capítulos XII e XIII, artigos
75 a 91, das Cartas das Nações Unidas” (Dilner, op.cit, p.40). A carta das Nações Unidas previa o
seguinte:
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“Art.76: Os objetivos básicos do sistema de tutela, de acordo com os propósitos das Nações
Unidas enumerados no art. 1 da presente carta serão: a) favorecer a paz e a segurança
internacionais; b) fomentar o progresso político, econômico, social e educacional dos habitantes
dos territórios tutelados e o seu desenvolvimento progressivo para alcançar governo próprio ou
independência, como mais convenha as circunstancias particulares de cada território e de seus
habitantes e aos desejos livremente expressos dos povos interessados, e como for previsto nos
termos de acordo de tutela...”. (apud Dilner, op.cit, p.43).
Os objetivos do regime de tutela internacional se relacionavam a “manutenção da paz” e a “formação
de governos locais ou da independência dos territórios tutelados”. Os “acordos de tutela” começaram a
ser firmados a partir de 1946. Os territórios de Camarões, Togo e as Ilhas do Pacífico foram alguns dos
primeiros aprovados pela ONU. Alguns acordos mencionam a proibição do trabalho forçado, mas o
autorizam à Administração Colonial em caso de necessidades públicas (Dilner, 1952, p.47).
Dilner notou em sua análise do sistema de tutela internacional que ao mesmo tempo em que a
manutenção da paz dava a Autoridade Colonial ou Tutor o direito de movimentar forças militares nas
colônias, para manutenção da “paz e da ordem”, a idéia de um “Governo Próprio” não implicava
necessariamente em independência política. O poder de “dissolução” do acordo de Tutela dependia do
consentimento da ONU e o tutor, investido dos poderes necessários a sua manutenção (Dilner,op.cit, p.
48). Houve muita resistência dos países tutores (Inglaterra, França, Bélgica) em aceitar a idéia do
governo próprio nos primeiros acordos de tutela e a mais ainda a independência.
Em contrapartida “O acordo de tutela para a Nova Guiné assegurava aos habitantes do
território – ex-vi do artigo 8, alínea “e” – um aumento progressivo na administração do território e
em outros serviços públicos, conforme as circunstancias particulares” e ainda “Os acordos de tutela
para Camerum e o Togo franceses estatuem, no artigo 5, que a Autoridade Administradora tomará
medidas no sentido de “assegurar a população local” a administração no território através do
desenvolvimento de corpos representativos democráticos e a promover as consultas necessárias para
capacitar os habitantes a desenvolverem livremente suas opiniões a ser alcançada a finalidade
prevista no artigo 76, letra `b´”. (Dilner,op.cit, p.50)
Nesse sentido, assim como no “regime de tutela” do caso brasileiro estabelece a idéia de
“emancipação”, o regime de tutela internacional reconhece à constituição de “governo próprio” e/ou a
“independência” como objetivos da tutela. Ao mesmo tempo, os acordos de tutela firmados na prática
apontavam para a subordinação dos territórios tutelados ao Tutor e a ONU, os quais guardavam o poder
de conceder a independência e determinar o ritmo de formação dos “governos próprios”. Tais poderes
foram denunciados nas assembléias da ONU por delegados dos territórios tutelados.
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Analisando os exemplos histórico, podemos ver que várias medidas que se incluem no campo
das ações afirmativas, também compõem o repertorio das políticas colonialistas e imperialistas. A “cogestão indígena” cria então uma interseção direta entre as políticas e estratégias de ação afirmativa
indígenas, e as políticas e estratégias de dominação e exploração estatal. No caso especifico dos povos
indígenas, podemos dizer que experiência da co-gestão na FUNAI e outras instituições (como
secretarias de estado), ao mesmo tempo que abre espaço para a representação política de facções,
acirra conflitos e dominações internas as comunidades locais indígenas, viabilizando através disso a
centralização e resolvendo problemas de gestão centralizada baseadas exclusivamente no uso da força
ou autoridade.
Nesse sentido, poderíamos indicar que é necessário problematizar e contextualizar as políticas e
ações afirmativas em face das dinâmicas concretas – locais e globais – em que essas políticas se
inserem, tentando compreender os efeitos de poder e as contradições sociais que ela engendra. Se por
um lado tais ações estão efetivamente modificando a estrutura do Estado, por meio do acesso aos
cargos públicos e espaços de poder, esse processo não implica a eliminação das estruturas e relações de
dominação, muito pelo contrário. As políticas afirmativas podem atender não somente as demandas dos
grupos subalternos e suas estratégias, mas também dialeticamente, constituir um mecanismo importante
de fortalecimento dos processos de dominação estatal e resolução de problemas de gestão dos grupos
dominados pelos grupos dominantes.
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