Apontamentos sobre a dança e o conceito de aura

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ENGRUPEDança 2013
ISSN 2359-3806
Apontamentos sobre a dança e o conceito de aura em Walter Benjamin
Notes on the concept of dance and aura Walter Benjamin
Odilon José Roble (UNICAMP)
Karen Adrie de Lima (UNICAMP)
Resumo: Este texto aborda o conceito de aura na filosofia de Walter Benjamin a partir de
suas possíveis aproximações com a dança. Buscamos uma argumentação sobre a
existência de um tipo de aprendizado do bailarino que é específico do momento do
espetáculo, do “aqui e agora” da cena, o que é conceituado por Benjamin como o hic et
nunc da obra de arte. Inferimos que um espetáculo de dança jamais será o exatamente o
mesmo em todas as suas performances e que o hic et nunc, pode ser capaz de propiciar
ao bailarino uma gama de percepções que lhe são singulares. Evidentemente, não
desejamos uma posição ingênua, que considere a dança como uma arte imune aos
problemas da reprodutibilidade, porém, destacamos a possibilidade de preservação
consciente da aura por meio das potencialidades da cena e da educação que dela
emerge.
Palavras-chave: Dança. Bailarino. Espetáculo. Hic et Nunc.
Abstract: This paper addresses the aura’s concept in the philosophy of Walter Benjamin
from their possible approaches to dance. We seek an argument about the existence of a
type of the dancer's learning which is specific of the presentation's moment the, the "here
and now" of the scene, which is conceptualized by Benjamin as the hic et nunc of the
artwork. We infer that a dance will never be the same in all his performances and the hic et
nunc, may be able to provide the dancer a range of insights that are unique. Of course, we
don’t want a naive position to consider dance as an art immune to the reproducibility’s
problems, however, highlight the possibility of preserving the aura through conscious of the
potential of the scene and of education that emerges.
Keywords: Dance. Dancer. Entertainment. Hic et Nunc.
Introdução
Esse artigo ensaia um argumento em torno do conceito de aura na filosofia de
Walter Benjamin e, para isso, faz uso de uma metodologia filosófico-conceitual, mais
especificamente, da área da filosofia denominada de Estética. A Estética, como estudo
sistemático sobre o belo, o sensível e a produção de beleza, debruça-se com especial
atenção às experiências. No curso dessas experiências destaca-se a arte e as formas de
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relação que se estabelecem entre aqueles que produzem o dado estético e aqueles que o
apreciam. Também é pertinente a esse escopo uma reflexão sobre as formas de
aprendizado
decorrentes
desse
processo
e
suas
formas
de
propagação
e
desenvolvimento.
No primeiro momento desse artigo introduzimos as linhas gerais dessa metodologia
quando focamos a pesquisa em dança, buscando articular as possibilidades da Filosofia
Estética com as poéticas da dança. Preocupamo-nos ainda, nesse sentido, em propor
certa diferenciação entre Ciência e Estética, de modo a consolidar o coração de nossa
abordagem.
Isso posto, faremos uso justamente dessa forma de aproximação filosóficaconceitual para nos aproximarmos da Estética de Walter Benjamin, mais especificamente
ao seu conceito de "aura" e da atrofia dessa aura na modernidade por meio da
reprodutibilidade técnica da obra de arte. Ainda com a preocupação filosófica que nos
guia buscamos, mesmo que brevemente, articular a Estética de Benjamin com a de outro
filósofo alemão, Arthur Schopenhauer, não para construir um argumento sobre sua
similitudes mas para ampliar os nexos de inteligibilidade que estamos propondo em torno
do tema.
Nossa intenção passa a ser então a de mergulhar a dança nesse extrato de
apontamentos estéticos que investigamos, refletindo em alguma medida sobre o contexto
da dança na contemporaneidade, mais especificamente sobre a relação entre aura e
repetição nos processos de ensaio e apresentação das obras coreográficas.
Esta pesquisa ainda está em andamento e os dados são, evidentemente,
provisórios, mas justamente pelo suporte epistemológico escolhido, trata-se de colocá-los
em debate o quanto antes, para que a interlocução seja também um processo de
construção de nossas inferências.
Abordagem estética, filosofia e dança
Toda obra de arte é filha de seu tempo e, muitas vezes, mãe de
nossos sentimentos.
Kandinsky
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O corpo humano e a sua gestualidade suscitam interesses inspirados em áreas do
saber bastante diversas, entre elas, a Filosofia e as Artes. Isso se dá, em grande medida,
por serem o corpo e a gestualidade temas polissêmicos, sugerindo, assim, um tratamento
interdisciplinar ou multi-facetado. De fato, é impossível supor que um gesto humano não
seja fruto de uma variedade de influências que vão desde os fatores biológicos até as
diversidades culturais. Como então propor um estudo sistemático, que seja capaz de
apreender essa polissemia do gesto? Como elaborar uma abordagem que se situe em tal
complexidade e não na tradicional redução dos fenômenos?
Talvez essa intenção faça parte de um problema mais amplo, pertinente ao grande
desafio do conhecimento atual. Em um mundo que cada vez mais oferece variáveis, a
pesquisa ainda tem, como apontou Bruyne (1991, p. 27), o papel de encontrar invariantes.
Não que, com isso, o pesquisador planifique ou simplifique os fenômenos, o que ele faz é
oferecer uma inteligibilidade, um modo de apreensão dessa complexidade que é o real.
Sobre as artes do movimento temos então a tarefa de construir um saber que seja
capaz de apresentar reflexões consistentes e de algum modo inteligíveis, sistemáticas,
conceituais, frente à realidade complexa e polissêmica que nos é apresentada. Essa é
uma função da teoria. Em Filosofia, assim como em ciência, a teoria não é mero jogo de
conceitos. Como nos explica Angeles (1992, p. 312), a teoria, desde Aristóteles, é
“conhecimento intelectual”, ou seja, uma espécie de apreensão da realidade na sua
universal relação entre os fenômenos. Por essa apreensão, somos capazes de formular
modelos, de criar expectativas, de compor, em suma, uma lógica intrínseca para os temas
de nossas pesquisas.
A Estética, como área de conhecimento filosófico que busca entender o “sentir em
comum” é um esforço teórico de compreensão dessa realidade polissêmica, mais
especificamente, em relação à construção de nossa sensibilidade. Assim, no que tange à
pesquisa em dança, uma abordagem fundamentada na Estética não tentaria isolar o
objeto de estudo “coreografia”, "cena" ou "performance" por exemplos, da massa de
sentimentos e reflexões que os constroem. A Estética, como teoria, como sistematização
filosófica, quer compreender a obra e, para isso, não tenta isolá-la e, sim, situá-la. Não se
trata, portanto, de “desmontar” ou “escavar” o gesto ou a obra de arte em busca de um
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sentido não evidente, o que acabaria pondo em risco a própria inteireza do gesto e da
arte, mas, antes, propor uma inteligibilidade possível para um processo de conhecimento
e crítica sobre essa gestualidade.
O que as pesquisas fazem são sistematizações, aproximações, generalizações.
Mas sem dúvida, esses procedimentos podem ser realizados sem que se destrua a
essência estética do objeto de análise. Essa é a complexidade da proposta de estudos
em Estética. Se essa complexidade pode nos parecer, em um primeiro olhar, por demais
flexível é por ser o atual modelo de ciência ainda influenciado, sobremaneira, pelo
paradigma da análise (separação) e da dicotomia que imperou no pensamento científico
desde a absorção do pensamento cartesiano. Para Descartes, em seu cogito, a matéria
pensante (res cogitans) é diferente e superior à matéria física (res extensa). Portanto,
teoria e prática são distintas e o corpo humano, nesse modelo de análise, foi estudado tal
como uma máquina inanimada, apartado da matéria pensante. O corpo em movimento,
vivo, ativo, não faz parte das preocupações do modelo de ciência moderna, sobre ele não
se faz teoria científica. Essa teoria não é, assim, material como o corpo e sim,
transcendente como o pensamento. As “Meditações Metafísicas” são este caminho do
material ao transcendente. A primeira meditação, “Das coisas que se podem colocar em
dúvida” é um primado da razão sobre a sensibilidade, mostrando que toda e qualquer
experiência pode ser, de um modo ou de outro, posta em dúvida, inclusive a do próprio
corpo. A segunda meditação “Da natureza do espírito humano e de que ele é mais fácil de
conhecer do que o corpo” já é a tomada de posição transcendente que desprezará o
sensível ou como incognoscível (não resistível à dúvida metódica) ou como enganador
(quando não se toma o cuidado de aplicar a dúvida). A terceira Meditação “De Deus, que
ele existe” é o ponto alto desta transcendência que já nada mais deve ao materialismo e
que se confirmará pelas próximas três meditações (DESCARTES, 2000).
A ciência moderna é, não raro, a expressão polarizada dessa dicotomia cartesiana.
Por um lado, a crueza dos dados empíricos, das estatísticas, dos números absolutos, que
devem falar por si. As palavras de Foucault (2004 e 2008) já foram determinantes para
nos mostrar como toda uma forma de dominação foi imposta pela lógica das estatísticas
auto explicativas e o abuso político que delas se fez. Por outro lado, as ciências humanas
produziram,
muitas
vezes,
saberes
desconexos,
teorizações
abstratas
e
sem
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aplicabilidade, dando a impressão vulgar de que não eram “científicas” segundo esse
padrão cartesiano.
Essa polarização, claro, não deve ser tomada como expressão única da ciência
moderna, mas se a apontamos aqui, é para expor uma face do problema que envolve a
pesquisa e a produção do conhecimento que tematizam o corpo, o movimento e o gesto,
objetos tão imprecisos para uma ciência que se quer tão meticulosa. Desde o século XIX,
como aponta Gadamer (1983, p. 08), há um esforço intenso de se reconciliar certa
herança da metafísica (mistérios, belezas, magias), com o espírito da ciência moderna.
Atualmente, é efervescente o intuito dessa união, na qual os fenômenos sejam
compreendidos em sua pluralidade.
Por esse panorama é que podemos vislumbrar a importância de algumas formas
de interpretação que tragam para as pesquisas em Dança essa dinâmica da pluralidade e
da sensibilidade. Entre elas, um dos ramos clássicos da Filosofia e que hoje oferece
subsídios para abordagens em diversas áreas é a Estética. Como apontou Ariano
Suassuna (2004), "a Estética é uma espécie de reformulação da Filosofia inteira em
relação à Beleza e à Arte".
A aura e a dança
Tudo o que aqui se disse se pode resumir no conceito de aura, e
pode dizer-se então que o que estiola na época de possibilidade de
reprodução técnica da obra de arte é a sua aura.
Walter Benjamin
O presente trabalho corresponde a uma das etapas de pesquisa que vem sendo
desenvolvida no Programa de Pós Graduação em Artes da Cena, no Instituto de Artes da
Universidade Estadual de Campinas, na linha Arte e Contexto, a partir do Grupo de
Pesquisas em Filosofia e Estética do Movimento. Ela visa refletir sobre as considerações
elaboradas por Walter Benjamin (1994) em seu ensaio sobre A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica e aproximá-las ao contexto da dança. Partimos da seguinte tese:
“Talvez possamos considerar a existência de um tipo de aprendizado do bailarino que é
específico do momento do espetáculo”. Essa premissa parece encontrar amparo na
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filosofia de Benjamin, em especial nos argumentos do autor sobre o papel singular da
obra de arte. Articulam-se com tal posição uma constelação de autores como
Schopenhauer e Nietzsche, para os quais a obra de arte surge como uma alternativa ao
racionalismo.
Para Barba (2012), a técnica do ator-bailarino consiste no uso do corpo em uma
situação de performance cotidiana não cotidiana e, para isso, ele se vale da sua
personalidade, da particularidade em que está inserido e de aprendizados técnicos. Esses
aprendizados têm lugar, basicamente, na preparação do bailarino e do intérprete. O que
se pretende investigar com esse estudo é a natureza do aprendizado técnico quando
pensado em seu hic et nunc, ou seja, no momento em si da cena e através das inúmeras
repetições do espetáculo. É nesse contexto que os conceitos chaves vão se erigindo a
partir da leitura de Benjamin e da constelação de autores citada. A aura, como conceito
chave da estética benjaminiana, nos permite refletir sobre a questão da cópia, da
repetição e da manifestação artística. Em que medida a dança perde sua aura nos
processos de exaustivas repetições? Por outro lado, o dado vivo da cena é capaz de
preservar a aura que em outras artes se perde em razão da reprodutibilidade?
Justificativa e contextualização
De acordo com Muricy (In: HADDOCK, 2010), Walter Benjamin é um filósofo que
considera a experiência concreta e não faz um “pensamento sobre a arte”, mas sim a vê
como condição de possibilidade para seu pensamento. Sua filosofia não está atrelada a
abstrações, tampouco faz uso de uma construção da verdade a partir de processos
abstratos. A realidade sensível e a experiência material constituem o campo fecundo de
suas reflexões, para os quais toda sua filosofia converge. Dessa forma, sua estética
absorve praticamente toda sua filosofia e a obra de arte converte-se em um espaço
privilegiado para sua crítica.
Benjamin (1994) evidencia que as obras de arte sempre foram reprodutíveis, seja
por meio da imitação de alunos e mestres, seja por indivíduos interessados no lucro
proveniente de sua circulação. É nesse sentido que ele nos apresenta a reprodução
técnica como um novo processo, no qual pela primeira vez na história, as mãos são
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liberadas das principais responsabilidades artísticas e substituídas pelo olho.
Como suas considerações são feitas a partir do advento da fotografia e do cinema,
o autor compreende esta nova condição pelo fato de que “[...] o olho apreende mais
rápido do que a mão desenha [...]” (BENJAMIN, 1994, p. 167) e assim, considera que o
processo de reprodução acelerou e equiparou-se com a palavra oral.
Para Benjamin (1994), mesmo as mais perfeitas reproduções em arte necessitam
de sua existência única, no local e momento de origem. Nesta linha de raciocínio, uma
obra de arte reproduzida pelas mãos do homem, até mesmo uma falsificação, ainda é
original, visto que houve um novo momento e situação para sua confecção. Com o
advento da filmagem e fotografia – reprodução técnica - há uma espécie de
desvalorização do hic et nunc, o “aqui e agora”, pois ressalta apenas alguns aspectos do
original. Por outro lado, essa reprodução técnica ganha autonomia e se prolifera, podendo
chegar à completa ausência de naturalidade (de perda da aura).
Aplicada à dança, acredita-se que tais reflexões façam emergir profícuas
considerações, principalmente no que tange o aprendizado do bailarino no momento do
espetáculo, uma vez que este pode apresentar-se com o mesmo repertório diversas
vezes e em cada uma delas ser capaz de apropriar-se de um conhecimento distinto, o
que contribuiria para ampliar suas memórias, aguçar sua percepção e ocasionar um
ambiente mais favorável à sua imaginação. Em outros termos, trata-se de considerar que
a possibilidade da cena é uma alternativa de abrandamento à inevitável perda da aura na
reprodução da obra de arte e que, tal processo, pode ser pensado em termos de uma
educação hic et nunc em dança.
O que se atinge ou se altera com a reprodutibilidade técnica da obra de arte é o
que Benjamin considera “aura” – a aparição única de uma coisa distante. A ânsia pela
reprodução provém do desejo de propiciar um domínio maior do objeto; o desejo de
possuir. Isto torna o que era singular, massificado, e sua estandardização despoja o
objeto de sua aura. Há, então, a emancipação da obra de arte de sua existência
parasitária, imposta pelo papel ritualístico. A obra de arte reproduzida é cada vez mais a
reprodução de uma obra de arte criada para ser reproduzida (BENJAMIN, 1994). Sobre a
“aura” apresentada por Benjamin, Muricy (apud HADDOCK, 2010) relata:
O declínio de experiência equivale ao processo de perda da “aura”,
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entendida como conteúdo de experiência da obra de arte. A noção
de aura unifica certas características essenciais da obra de arte
tradicional, destruída pelo advento dos meios técnicos de produção.
(HADDOCK, 2012, p. 201).
Segundo Gomes (2006), na leitura de Benjamin, a obra de arte é um processo
histórico único, inerente ao objeto original, que se manifesta com o que o autor denomina
por “aura”. Sua proliferação subsequente - ou seja, suas cópias - transportam consigo
apenas uma similitude imaginária com a original, contudo sem “aura” ou relação com a
dimensão histórica real. Para ele, a temporalidade da obra se fundamenta no ritual em
que se adquire seu valor, portanto, as cópias técnicas que são desprovidas da presença
da original obra de arte não são cópias e sim criação, afinal, não contemplam o tempo e
espaço original – o aqui e agora.
Apoiando-nos em Ciane Fernandes, em sua obra Pina Bausch e o Wuppertal
Dança-Teatro (2007), é possível pensar o espetáculo de dança como obra de arte que
valoriza a “aura” e o Belo justamente por meio da repetição. Fernandes apresenta, ao
longo de sua obra, uma análise investigativa das implicações e funções emocionais,
estéticas e performáticas dos espetáculos dirigidos por Pina Bausch, com especial
atenção ao uso intencional da repetição pela coreógrafa alemã. Traz o gesto como
movimento corporal realizado na vida diária, parte de uma linguagem do dia a dia,
associada a determinadas atividades e funções (ou no palco - onde ganham função
estética) estilizados e tecnicamente estruturados.
Nas obras de Bausch, o gesto técnico é repetido até ganhar uma significação social
e estética crítica, enquanto o cotidiano é repetido até se tornar abstrato, não
necessariamente conectado com sua função diária. Com este jogo de interpretações,
Fernandes defende que na primeira vez que o gesto é colocado no palco pode ser mal
interpretado e, com a repetição, permanece exposto como elemento estético, podendo
provocar sentimentos e experiências no bailarino e na platéia, sendo que seus
significados são transitórios. De modo geral, “[...] a repetição é usada pelo professor de
dança, pelos coreógrafos, ou pelo próprio dançarino, para reconstruir ou rearranjar e
confirmar vocábulos de movimento no corpo dançante” (FERNANDES, 2007, p. 46). Mas,
para Bausch, que induz a contribuição criativa dos bailarinos quando expressa algo e
pede para que eles respondam a isso verbal ou gestualmente, a repetição é parte
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estrutural, é um instrumento criativo usado para desarranjar.
Aproximando suas obras ao que Benjamin traz como importância do momento
presente nas obras de arte, é cabível uma citação de Fernandes, na qual afirma que
“Qualquer apresentação cênica realizada mais de uma vez lida com a repetição. Em cada
dia de espetáculo, o grupo supostamente repete a mesma peça, mas que é
necessariamente outra, já que acontece em outro momento.” (FERNANDES, 2007, p. 52).
Também não podemos deixar de considerar um contraponto no qual a arte moderna,
assumida como pós-aurática, é entendida por autores como Fátima de Paula (1994),
como um fenômeno também social que se funda justamente no novo tipo de percepção
do homem moderno, voltado para vida presente. A destruição da aura, nesse caso, o
aproxima das massas. A dança contemporânea e seu foco no cotidiano pode estar
aderida justamente a essa lógica. Como defende Christoph Turcke (2010), vivemos em
uma "sociedade excitada", na qual o fluxo das sensações vale mais do que qualquer
estímulo duradouro. Evidentemente a dança está imersa nessa tendência e,
paradoxalmente, o academicismo do balé clássico pode representar uma dança mais
aural do que as pesquisas contemporâneas, contrariando as inferências que vínhamos
desenhando. Sem dúvida a complexidade do cenário é essa e a lógica cotidiana
fundamenta-se em uma prática que espontaneamente vai mais resultar desse paradoxo
do que refletir sobre ele. Desse modo, o que talvez se coloque em termos de desafio para
a pesquisa e reflexão em dança na atualidade resida nas formas de relação com o
cotidiano e, nesse contexto, com uma espécie de dialética aural conflituosa, intermitente e
imprecisa.
A dança, como arte da cena, tem como pressuposto a imanência do corpo. A
presença em cena do bailarino traz consigo a imediatidade expressiva do dado corporal,
numa perspectiva pré coreográfica. De certa forma essa imediatidade recusa alguns
elementos da reprodução pela imanência do dado corporal. Em um exemplo, uma dança
ao vivo não é a mesma obra de arte representada por essa mesma dança gravada em
vídeo. A reprodução imagética da coreografia furta a imanência corporal e, com isso,
muito de sua manifestação aural. Por outro lado, apenas a imanência do corpo do
bailarino não é suficiente para produzir a aura da obra coreográfica, pois as disposições
poéticas anunciadas pela imediatidade do corpo precisam ser desdobradas em tempo e
espaço de modo a erigirem o dado sensível que lhes é objetivado.
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É nesse ponto que a reflexão sobre a aura tal como proposta por Benjamin
encontra ampara na estética vitalista de Schopenhauer. Para esse filósofo alemão do
século XIX, tempo, espaço e causalidade são recursos de inteligibilidade da obra, mas
constituem meramente seu "princípio de razão". Falta ainda à obra, para que seja de fato
bela, uma natureza suprassensível de sua expressão (SCHOPENHAUER, 2003). A aura,
ainda que completamente relacionada com seu momento histórico e suas condições
particulares de existência, expressa algo que não está contido ou subordinado ao
princípio de razão. Vejamos, pelas palavras do próprio Schopenhauer como a arte é
capaz de isolar seu objeto contemplativo e, ao mesmo tempo, fazê-lo representante do
todo:
A arte encontra em toda parte o seu fim. Pois ela retira o objeto de
sua contemplação da torrente do curso do mundo e o isola diante de
si: e esse particular, que era na torrente fugidia uma parte ínfima a
desaparecer,
torna-se
um
representante
do
todo
(SCHOPENHAUER, 2003, p.59).
Evidentemente, os caminhos da estética dos dois filósofos seguem por orientações
distintas e essa aproximação tem um esforço meramente reflexivo em torno de nosso
argumento central. Notemos que, à medida que pensamos em um acontecimento aural da
obra de arte, por exemplo em um espetáculo de dança, podemos considerar a
possibilidade
dessa
manifestação
suprassensível
compreender
uma
forma
de
aprendizado singular fundamentada, em suma, pela experiência estética da dança.
Por fim, podemos ainda notar uma sincronia entre o ponto de partida do
pensamento de Benjamin e certas imanências estéticas pertinentes à reflexão atual em
dança. Tais imanências se fazem sentir em especial na cena da dança contemporânea,
dada a sua busca por incorporar o cotidiano em sua expressão. No ensaio sobre a
reprodutibilidade da obra de arte Benjamin inicia seu argumento preocupando-se em
expor que o cenário a ser descrito tem origem no desenvolvimento evidente da sociedade
capitalista e seus meios de produção. De modo semelhante é possível percebermos que
o processo de pesquisa em dança contemporânea se esforça por perceber como a
expressão poética da dança na atualidade se coaduna com o dado sensível do atual, ou
seja, com as bases da existência nas sociedades em que vivemos da forma como nos é
possível viver. Essa sincronia não é de menor relevo se nos atentarmos que a dança
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corresponde justamente a uma das artes que por mais tempo e de modo mais convicto
permaneceu oclusa por um formalismo acadêmico, representado em especial pelo Balé
Clássico. A ruptura desse modelo que se deu em cena, como nas propostas de Isadora
Duncan ou Mary Wigman, também encontrou paralelo na filosofia como, por exemplo, de
Garaudy (1980).
O que se coloca, portanto, é a questão Estética e a sua inerente tarefa de construir
nexos de inteligibilidade entre a obra de arte e o pensamento. Isso nada tem em comum
com o processo mais raso de "interpretação" da obra, que em última análise, torna-se
também um produto reproduzível, acumulando camadas de interpretação que obliteram o
dado sensível. O nexo de inteligibilidade é a função mesma da filosofia quando essa se
direciona à arte, pois o filósofo é, necessariamente, um não-artista que se envolve
umbilicalmente com a arte. O pensamento de Benjamin parece fluir exatamente por esse
caminho, estruturando o que Susan Buck-Morss (2002) chamou de uma "dialética do
olhar", procedimento singular de sua análise estética.
Considerações parciais
Nossa pesquisa, em fase inicial, abordou sistematicamente o conceito de aura em
Benjamin, a questão do hic et nunc na cena e as articulações possíveis com o contexto da
dança, como nas considerações acerca da obra de Pina Bausch expressas por
Fernandes. Inferimos que um espetáculo de dança jamais será exatamente o mesmo em
todas as suas performances e que o hic et nunc, provavelmente, será capaz de propiciar
ao bailarino-intérprete uma gama de percepções que lhe são singulares. Evidentemente,
não desejamos uma posição ingênua, que considere a dança como uma arte imune aos
problemas da reprodutibilidade. O que destacamos até o presente é a possibilidade de
preservação consciente da aura por meio das potencialidades da cena e da educação que
dela emerge.
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Minicurrículo
Odilon José Roble é graduado em Filosofia, Licenciado em Educação Física, Mestre em Educação
(Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte), Doutor em Educação. Professor da Faculdade de Educação
Física da UNICAMP e do Programa de Pós Graduação em Artes da Cena (Dança, Teatro e Performance) do
Instituto de Artes da UNICAMP. Líder do “Grupo de Pesquisa em Filosofia e Estética do Movimento” (CNPq).
E-mail: [email protected]
Karen Adrie de Lima é graduada em Educação Física pela Faculdade de Educação Física da UNICAMP,
tendo desenvolvido como Trabalho de Conclusão de Curso a pesquisa: “Dança do Ventre: evoluções e
proposições de uma década”. Atualmente, mestranda em Artes da Cena, na linha de pesquisa Arte e
Contexto no Instituto de Artes da UNICAMP, com a pesquisa intitulada “A aura do espetáculo de dança: o
aprendizado do bailarino no hic et nunc”. Membro do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Estética do
Movimento (CNPq).
E-mail: [email protected]
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