ENGRUPEDança 2013 ISSN 2359-3806 Apontamentos sobre a dança e o conceito de aura em Walter Benjamin Notes on the concept of dance and aura Walter Benjamin Odilon José Roble (UNICAMP) Karen Adrie de Lima (UNICAMP) Resumo: Este texto aborda o conceito de aura na filosofia de Walter Benjamin a partir de suas possíveis aproximações com a dança. Buscamos uma argumentação sobre a existência de um tipo de aprendizado do bailarino que é específico do momento do espetáculo, do “aqui e agora” da cena, o que é conceituado por Benjamin como o hic et nunc da obra de arte. Inferimos que um espetáculo de dança jamais será o exatamente o mesmo em todas as suas performances e que o hic et nunc, pode ser capaz de propiciar ao bailarino uma gama de percepções que lhe são singulares. Evidentemente, não desejamos uma posição ingênua, que considere a dança como uma arte imune aos problemas da reprodutibilidade, porém, destacamos a possibilidade de preservação consciente da aura por meio das potencialidades da cena e da educação que dela emerge. Palavras-chave: Dança. Bailarino. Espetáculo. Hic et Nunc. Abstract: This paper addresses the aura’s concept in the philosophy of Walter Benjamin from their possible approaches to dance. We seek an argument about the existence of a type of the dancer's learning which is specific of the presentation's moment the, the "here and now" of the scene, which is conceptualized by Benjamin as the hic et nunc of the artwork. We infer that a dance will never be the same in all his performances and the hic et nunc, may be able to provide the dancer a range of insights that are unique. Of course, we don’t want a naive position to consider dance as an art immune to the reproducibility’s problems, however, highlight the possibility of preserving the aura through conscious of the potential of the scene and of education that emerges. Keywords: Dance. Dancer. Entertainment. Hic et Nunc. Introdução Esse artigo ensaia um argumento em torno do conceito de aura na filosofia de Walter Benjamin e, para isso, faz uso de uma metodologia filosófico-conceitual, mais especificamente, da área da filosofia denominada de Estética. A Estética, como estudo sistemático sobre o belo, o sensível e a produção de beleza, debruça-se com especial atenção às experiências. No curso dessas experiências destaca-se a arte e as formas de 180 ENGRUPEDança 2013 ISSN 2359-3806 relação que se estabelecem entre aqueles que produzem o dado estético e aqueles que o apreciam. Também é pertinente a esse escopo uma reflexão sobre as formas de aprendizado decorrentes desse processo e suas formas de propagação e desenvolvimento. No primeiro momento desse artigo introduzimos as linhas gerais dessa metodologia quando focamos a pesquisa em dança, buscando articular as possibilidades da Filosofia Estética com as poéticas da dança. Preocupamo-nos ainda, nesse sentido, em propor certa diferenciação entre Ciência e Estética, de modo a consolidar o coração de nossa abordagem. Isso posto, faremos uso justamente dessa forma de aproximação filosóficaconceitual para nos aproximarmos da Estética de Walter Benjamin, mais especificamente ao seu conceito de "aura" e da atrofia dessa aura na modernidade por meio da reprodutibilidade técnica da obra de arte. Ainda com a preocupação filosófica que nos guia buscamos, mesmo que brevemente, articular a Estética de Benjamin com a de outro filósofo alemão, Arthur Schopenhauer, não para construir um argumento sobre sua similitudes mas para ampliar os nexos de inteligibilidade que estamos propondo em torno do tema. Nossa intenção passa a ser então a de mergulhar a dança nesse extrato de apontamentos estéticos que investigamos, refletindo em alguma medida sobre o contexto da dança na contemporaneidade, mais especificamente sobre a relação entre aura e repetição nos processos de ensaio e apresentação das obras coreográficas. Esta pesquisa ainda está em andamento e os dados são, evidentemente, provisórios, mas justamente pelo suporte epistemológico escolhido, trata-se de colocá-los em debate o quanto antes, para que a interlocução seja também um processo de construção de nossas inferências. Abordagem estética, filosofia e dança Toda obra de arte é filha de seu tempo e, muitas vezes, mãe de nossos sentimentos. Kandinsky 181 ENGRUPEDança 2013 ISSN 2359-3806 O corpo humano e a sua gestualidade suscitam interesses inspirados em áreas do saber bastante diversas, entre elas, a Filosofia e as Artes. Isso se dá, em grande medida, por serem o corpo e a gestualidade temas polissêmicos, sugerindo, assim, um tratamento interdisciplinar ou multi-facetado. De fato, é impossível supor que um gesto humano não seja fruto de uma variedade de influências que vão desde os fatores biológicos até as diversidades culturais. Como então propor um estudo sistemático, que seja capaz de apreender essa polissemia do gesto? Como elaborar uma abordagem que se situe em tal complexidade e não na tradicional redução dos fenômenos? Talvez essa intenção faça parte de um problema mais amplo, pertinente ao grande desafio do conhecimento atual. Em um mundo que cada vez mais oferece variáveis, a pesquisa ainda tem, como apontou Bruyne (1991, p. 27), o papel de encontrar invariantes. Não que, com isso, o pesquisador planifique ou simplifique os fenômenos, o que ele faz é oferecer uma inteligibilidade, um modo de apreensão dessa complexidade que é o real. Sobre as artes do movimento temos então a tarefa de construir um saber que seja capaz de apresentar reflexões consistentes e de algum modo inteligíveis, sistemáticas, conceituais, frente à realidade complexa e polissêmica que nos é apresentada. Essa é uma função da teoria. Em Filosofia, assim como em ciência, a teoria não é mero jogo de conceitos. Como nos explica Angeles (1992, p. 312), a teoria, desde Aristóteles, é “conhecimento intelectual”, ou seja, uma espécie de apreensão da realidade na sua universal relação entre os fenômenos. Por essa apreensão, somos capazes de formular modelos, de criar expectativas, de compor, em suma, uma lógica intrínseca para os temas de nossas pesquisas. A Estética, como área de conhecimento filosófico que busca entender o “sentir em comum” é um esforço teórico de compreensão dessa realidade polissêmica, mais especificamente, em relação à construção de nossa sensibilidade. Assim, no que tange à pesquisa em dança, uma abordagem fundamentada na Estética não tentaria isolar o objeto de estudo “coreografia”, "cena" ou "performance" por exemplos, da massa de sentimentos e reflexões que os constroem. A Estética, como teoria, como sistematização filosófica, quer compreender a obra e, para isso, não tenta isolá-la e, sim, situá-la. Não se trata, portanto, de “desmontar” ou “escavar” o gesto ou a obra de arte em busca de um 182 ENGRUPEDança 2013 ISSN 2359-3806 sentido não evidente, o que acabaria pondo em risco a própria inteireza do gesto e da arte, mas, antes, propor uma inteligibilidade possível para um processo de conhecimento e crítica sobre essa gestualidade. O que as pesquisas fazem são sistematizações, aproximações, generalizações. Mas sem dúvida, esses procedimentos podem ser realizados sem que se destrua a essência estética do objeto de análise. Essa é a complexidade da proposta de estudos em Estética. Se essa complexidade pode nos parecer, em um primeiro olhar, por demais flexível é por ser o atual modelo de ciência ainda influenciado, sobremaneira, pelo paradigma da análise (separação) e da dicotomia que imperou no pensamento científico desde a absorção do pensamento cartesiano. Para Descartes, em seu cogito, a matéria pensante (res cogitans) é diferente e superior à matéria física (res extensa). Portanto, teoria e prática são distintas e o corpo humano, nesse modelo de análise, foi estudado tal como uma máquina inanimada, apartado da matéria pensante. O corpo em movimento, vivo, ativo, não faz parte das preocupações do modelo de ciência moderna, sobre ele não se faz teoria científica. Essa teoria não é, assim, material como o corpo e sim, transcendente como o pensamento. As “Meditações Metafísicas” são este caminho do material ao transcendente. A primeira meditação, “Das coisas que se podem colocar em dúvida” é um primado da razão sobre a sensibilidade, mostrando que toda e qualquer experiência pode ser, de um modo ou de outro, posta em dúvida, inclusive a do próprio corpo. A segunda meditação “Da natureza do espírito humano e de que ele é mais fácil de conhecer do que o corpo” já é a tomada de posição transcendente que desprezará o sensível ou como incognoscível (não resistível à dúvida metódica) ou como enganador (quando não se toma o cuidado de aplicar a dúvida). A terceira Meditação “De Deus, que ele existe” é o ponto alto desta transcendência que já nada mais deve ao materialismo e que se confirmará pelas próximas três meditações (DESCARTES, 2000). A ciência moderna é, não raro, a expressão polarizada dessa dicotomia cartesiana. Por um lado, a crueza dos dados empíricos, das estatísticas, dos números absolutos, que devem falar por si. As palavras de Foucault (2004 e 2008) já foram determinantes para nos mostrar como toda uma forma de dominação foi imposta pela lógica das estatísticas auto explicativas e o abuso político que delas se fez. Por outro lado, as ciências humanas produziram, muitas vezes, saberes desconexos, teorizações abstratas e sem 183 ENGRUPEDança 2013 ISSN 2359-3806 aplicabilidade, dando a impressão vulgar de que não eram “científicas” segundo esse padrão cartesiano. Essa polarização, claro, não deve ser tomada como expressão única da ciência moderna, mas se a apontamos aqui, é para expor uma face do problema que envolve a pesquisa e a produção do conhecimento que tematizam o corpo, o movimento e o gesto, objetos tão imprecisos para uma ciência que se quer tão meticulosa. Desde o século XIX, como aponta Gadamer (1983, p. 08), há um esforço intenso de se reconciliar certa herança da metafísica (mistérios, belezas, magias), com o espírito da ciência moderna. Atualmente, é efervescente o intuito dessa união, na qual os fenômenos sejam compreendidos em sua pluralidade. Por esse panorama é que podemos vislumbrar a importância de algumas formas de interpretação que tragam para as pesquisas em Dança essa dinâmica da pluralidade e da sensibilidade. Entre elas, um dos ramos clássicos da Filosofia e que hoje oferece subsídios para abordagens em diversas áreas é a Estética. Como apontou Ariano Suassuna (2004), "a Estética é uma espécie de reformulação da Filosofia inteira em relação à Beleza e à Arte". A aura e a dança Tudo o que aqui se disse se pode resumir no conceito de aura, e pode dizer-se então que o que estiola na época de possibilidade de reprodução técnica da obra de arte é a sua aura. Walter Benjamin O presente trabalho corresponde a uma das etapas de pesquisa que vem sendo desenvolvida no Programa de Pós Graduação em Artes da Cena, no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, na linha Arte e Contexto, a partir do Grupo de Pesquisas em Filosofia e Estética do Movimento. Ela visa refletir sobre as considerações elaboradas por Walter Benjamin (1994) em seu ensaio sobre A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica e aproximá-las ao contexto da dança. Partimos da seguinte tese: “Talvez possamos considerar a existência de um tipo de aprendizado do bailarino que é específico do momento do espetáculo”. Essa premissa parece encontrar amparo na 184 ENGRUPEDança 2013 ISSN 2359-3806 filosofia de Benjamin, em especial nos argumentos do autor sobre o papel singular da obra de arte. Articulam-se com tal posição uma constelação de autores como Schopenhauer e Nietzsche, para os quais a obra de arte surge como uma alternativa ao racionalismo. Para Barba (2012), a técnica do ator-bailarino consiste no uso do corpo em uma situação de performance cotidiana não cotidiana e, para isso, ele se vale da sua personalidade, da particularidade em que está inserido e de aprendizados técnicos. Esses aprendizados têm lugar, basicamente, na preparação do bailarino e do intérprete. O que se pretende investigar com esse estudo é a natureza do aprendizado técnico quando pensado em seu hic et nunc, ou seja, no momento em si da cena e através das inúmeras repetições do espetáculo. É nesse contexto que os conceitos chaves vão se erigindo a partir da leitura de Benjamin e da constelação de autores citada. A aura, como conceito chave da estética benjaminiana, nos permite refletir sobre a questão da cópia, da repetição e da manifestação artística. Em que medida a dança perde sua aura nos processos de exaustivas repetições? Por outro lado, o dado vivo da cena é capaz de preservar a aura que em outras artes se perde em razão da reprodutibilidade? Justificativa e contextualização De acordo com Muricy (In: HADDOCK, 2010), Walter Benjamin é um filósofo que considera a experiência concreta e não faz um “pensamento sobre a arte”, mas sim a vê como condição de possibilidade para seu pensamento. Sua filosofia não está atrelada a abstrações, tampouco faz uso de uma construção da verdade a partir de processos abstratos. A realidade sensível e a experiência material constituem o campo fecundo de suas reflexões, para os quais toda sua filosofia converge. Dessa forma, sua estética absorve praticamente toda sua filosofia e a obra de arte converte-se em um espaço privilegiado para sua crítica. Benjamin (1994) evidencia que as obras de arte sempre foram reprodutíveis, seja por meio da imitação de alunos e mestres, seja por indivíduos interessados no lucro proveniente de sua circulação. É nesse sentido que ele nos apresenta a reprodução técnica como um novo processo, no qual pela primeira vez na história, as mãos são 185 ENGRUPEDança 2013 ISSN 2359-3806 liberadas das principais responsabilidades artísticas e substituídas pelo olho. Como suas considerações são feitas a partir do advento da fotografia e do cinema, o autor compreende esta nova condição pelo fato de que “[...] o olho apreende mais rápido do que a mão desenha [...]” (BENJAMIN, 1994, p. 167) e assim, considera que o processo de reprodução acelerou e equiparou-se com a palavra oral. Para Benjamin (1994), mesmo as mais perfeitas reproduções em arte necessitam de sua existência única, no local e momento de origem. Nesta linha de raciocínio, uma obra de arte reproduzida pelas mãos do homem, até mesmo uma falsificação, ainda é original, visto que houve um novo momento e situação para sua confecção. Com o advento da filmagem e fotografia – reprodução técnica - há uma espécie de desvalorização do hic et nunc, o “aqui e agora”, pois ressalta apenas alguns aspectos do original. Por outro lado, essa reprodução técnica ganha autonomia e se prolifera, podendo chegar à completa ausência de naturalidade (de perda da aura). Aplicada à dança, acredita-se que tais reflexões façam emergir profícuas considerações, principalmente no que tange o aprendizado do bailarino no momento do espetáculo, uma vez que este pode apresentar-se com o mesmo repertório diversas vezes e em cada uma delas ser capaz de apropriar-se de um conhecimento distinto, o que contribuiria para ampliar suas memórias, aguçar sua percepção e ocasionar um ambiente mais favorável à sua imaginação. Em outros termos, trata-se de considerar que a possibilidade da cena é uma alternativa de abrandamento à inevitável perda da aura na reprodução da obra de arte e que, tal processo, pode ser pensado em termos de uma educação hic et nunc em dança. O que se atinge ou se altera com a reprodutibilidade técnica da obra de arte é o que Benjamin considera “aura” – a aparição única de uma coisa distante. A ânsia pela reprodução provém do desejo de propiciar um domínio maior do objeto; o desejo de possuir. Isto torna o que era singular, massificado, e sua estandardização despoja o objeto de sua aura. Há, então, a emancipação da obra de arte de sua existência parasitária, imposta pelo papel ritualístico. A obra de arte reproduzida é cada vez mais a reprodução de uma obra de arte criada para ser reproduzida (BENJAMIN, 1994). Sobre a “aura” apresentada por Benjamin, Muricy (apud HADDOCK, 2010) relata: O declínio de experiência equivale ao processo de perda da “aura”, 186 ENGRUPEDança 2013 ISSN 2359-3806 entendida como conteúdo de experiência da obra de arte. A noção de aura unifica certas características essenciais da obra de arte tradicional, destruída pelo advento dos meios técnicos de produção. (HADDOCK, 2012, p. 201). Segundo Gomes (2006), na leitura de Benjamin, a obra de arte é um processo histórico único, inerente ao objeto original, que se manifesta com o que o autor denomina por “aura”. Sua proliferação subsequente - ou seja, suas cópias - transportam consigo apenas uma similitude imaginária com a original, contudo sem “aura” ou relação com a dimensão histórica real. Para ele, a temporalidade da obra se fundamenta no ritual em que se adquire seu valor, portanto, as cópias técnicas que são desprovidas da presença da original obra de arte não são cópias e sim criação, afinal, não contemplam o tempo e espaço original – o aqui e agora. Apoiando-nos em Ciane Fernandes, em sua obra Pina Bausch e o Wuppertal Dança-Teatro (2007), é possível pensar o espetáculo de dança como obra de arte que valoriza a “aura” e o Belo justamente por meio da repetição. Fernandes apresenta, ao longo de sua obra, uma análise investigativa das implicações e funções emocionais, estéticas e performáticas dos espetáculos dirigidos por Pina Bausch, com especial atenção ao uso intencional da repetição pela coreógrafa alemã. Traz o gesto como movimento corporal realizado na vida diária, parte de uma linguagem do dia a dia, associada a determinadas atividades e funções (ou no palco - onde ganham função estética) estilizados e tecnicamente estruturados. Nas obras de Bausch, o gesto técnico é repetido até ganhar uma significação social e estética crítica, enquanto o cotidiano é repetido até se tornar abstrato, não necessariamente conectado com sua função diária. Com este jogo de interpretações, Fernandes defende que na primeira vez que o gesto é colocado no palco pode ser mal interpretado e, com a repetição, permanece exposto como elemento estético, podendo provocar sentimentos e experiências no bailarino e na platéia, sendo que seus significados são transitórios. De modo geral, “[...] a repetição é usada pelo professor de dança, pelos coreógrafos, ou pelo próprio dançarino, para reconstruir ou rearranjar e confirmar vocábulos de movimento no corpo dançante” (FERNANDES, 2007, p. 46). Mas, para Bausch, que induz a contribuição criativa dos bailarinos quando expressa algo e pede para que eles respondam a isso verbal ou gestualmente, a repetição é parte 187 ENGRUPEDança 2013 ISSN 2359-3806 estrutural, é um instrumento criativo usado para desarranjar. Aproximando suas obras ao que Benjamin traz como importância do momento presente nas obras de arte, é cabível uma citação de Fernandes, na qual afirma que “Qualquer apresentação cênica realizada mais de uma vez lida com a repetição. Em cada dia de espetáculo, o grupo supostamente repete a mesma peça, mas que é necessariamente outra, já que acontece em outro momento.” (FERNANDES, 2007, p. 52). Também não podemos deixar de considerar um contraponto no qual a arte moderna, assumida como pós-aurática, é entendida por autores como Fátima de Paula (1994), como um fenômeno também social que se funda justamente no novo tipo de percepção do homem moderno, voltado para vida presente. A destruição da aura, nesse caso, o aproxima das massas. A dança contemporânea e seu foco no cotidiano pode estar aderida justamente a essa lógica. Como defende Christoph Turcke (2010), vivemos em uma "sociedade excitada", na qual o fluxo das sensações vale mais do que qualquer estímulo duradouro. Evidentemente a dança está imersa nessa tendência e, paradoxalmente, o academicismo do balé clássico pode representar uma dança mais aural do que as pesquisas contemporâneas, contrariando as inferências que vínhamos desenhando. Sem dúvida a complexidade do cenário é essa e a lógica cotidiana fundamenta-se em uma prática que espontaneamente vai mais resultar desse paradoxo do que refletir sobre ele. Desse modo, o que talvez se coloque em termos de desafio para a pesquisa e reflexão em dança na atualidade resida nas formas de relação com o cotidiano e, nesse contexto, com uma espécie de dialética aural conflituosa, intermitente e imprecisa. A dança, como arte da cena, tem como pressuposto a imanência do corpo. A presença em cena do bailarino traz consigo a imediatidade expressiva do dado corporal, numa perspectiva pré coreográfica. De certa forma essa imediatidade recusa alguns elementos da reprodução pela imanência do dado corporal. Em um exemplo, uma dança ao vivo não é a mesma obra de arte representada por essa mesma dança gravada em vídeo. A reprodução imagética da coreografia furta a imanência corporal e, com isso, muito de sua manifestação aural. Por outro lado, apenas a imanência do corpo do bailarino não é suficiente para produzir a aura da obra coreográfica, pois as disposições poéticas anunciadas pela imediatidade do corpo precisam ser desdobradas em tempo e espaço de modo a erigirem o dado sensível que lhes é objetivado. 188 ENGRUPEDança 2013 ISSN 2359-3806 É nesse ponto que a reflexão sobre a aura tal como proposta por Benjamin encontra ampara na estética vitalista de Schopenhauer. Para esse filósofo alemão do século XIX, tempo, espaço e causalidade são recursos de inteligibilidade da obra, mas constituem meramente seu "princípio de razão". Falta ainda à obra, para que seja de fato bela, uma natureza suprassensível de sua expressão (SCHOPENHAUER, 2003). A aura, ainda que completamente relacionada com seu momento histórico e suas condições particulares de existência, expressa algo que não está contido ou subordinado ao princípio de razão. Vejamos, pelas palavras do próprio Schopenhauer como a arte é capaz de isolar seu objeto contemplativo e, ao mesmo tempo, fazê-lo representante do todo: A arte encontra em toda parte o seu fim. Pois ela retira o objeto de sua contemplação da torrente do curso do mundo e o isola diante de si: e esse particular, que era na torrente fugidia uma parte ínfima a desaparecer, torna-se um representante do todo (SCHOPENHAUER, 2003, p.59). Evidentemente, os caminhos da estética dos dois filósofos seguem por orientações distintas e essa aproximação tem um esforço meramente reflexivo em torno de nosso argumento central. Notemos que, à medida que pensamos em um acontecimento aural da obra de arte, por exemplo em um espetáculo de dança, podemos considerar a possibilidade dessa manifestação suprassensível compreender uma forma de aprendizado singular fundamentada, em suma, pela experiência estética da dança. Por fim, podemos ainda notar uma sincronia entre o ponto de partida do pensamento de Benjamin e certas imanências estéticas pertinentes à reflexão atual em dança. Tais imanências se fazem sentir em especial na cena da dança contemporânea, dada a sua busca por incorporar o cotidiano em sua expressão. No ensaio sobre a reprodutibilidade da obra de arte Benjamin inicia seu argumento preocupando-se em expor que o cenário a ser descrito tem origem no desenvolvimento evidente da sociedade capitalista e seus meios de produção. De modo semelhante é possível percebermos que o processo de pesquisa em dança contemporânea se esforça por perceber como a expressão poética da dança na atualidade se coaduna com o dado sensível do atual, ou seja, com as bases da existência nas sociedades em que vivemos da forma como nos é possível viver. Essa sincronia não é de menor relevo se nos atentarmos que a dança 189 ENGRUPEDança 2013 ISSN 2359-3806 corresponde justamente a uma das artes que por mais tempo e de modo mais convicto permaneceu oclusa por um formalismo acadêmico, representado em especial pelo Balé Clássico. A ruptura desse modelo que se deu em cena, como nas propostas de Isadora Duncan ou Mary Wigman, também encontrou paralelo na filosofia como, por exemplo, de Garaudy (1980). O que se coloca, portanto, é a questão Estética e a sua inerente tarefa de construir nexos de inteligibilidade entre a obra de arte e o pensamento. Isso nada tem em comum com o processo mais raso de "interpretação" da obra, que em última análise, torna-se também um produto reproduzível, acumulando camadas de interpretação que obliteram o dado sensível. O nexo de inteligibilidade é a função mesma da filosofia quando essa se direciona à arte, pois o filósofo é, necessariamente, um não-artista que se envolve umbilicalmente com a arte. O pensamento de Benjamin parece fluir exatamente por esse caminho, estruturando o que Susan Buck-Morss (2002) chamou de uma "dialética do olhar", procedimento singular de sua análise estética. Considerações parciais Nossa pesquisa, em fase inicial, abordou sistematicamente o conceito de aura em Benjamin, a questão do hic et nunc na cena e as articulações possíveis com o contexto da dança, como nas considerações acerca da obra de Pina Bausch expressas por Fernandes. Inferimos que um espetáculo de dança jamais será exatamente o mesmo em todas as suas performances e que o hic et nunc, provavelmente, será capaz de propiciar ao bailarino-intérprete uma gama de percepções que lhe são singulares. Evidentemente, não desejamos uma posição ingênua, que considere a dança como uma arte imune aos problemas da reprodutibilidade. O que destacamos até o presente é a possibilidade de preservação consciente da aura por meio das potencialidades da cena e da educação que dela emerge. Referências ANGELES, P. A. Philosophy. New York: Harper Collins, 1992. BARBA, E.; SAVARESE, N. A arte secreta do ator. São Paulo: É Realizações, 2012. 190 ENGRUPEDança 2013 ISSN 2359-3806 BENJAMIM, W. Obras Escolhidas Vol.1 – Magia e técnica, arte e política – ensaios sobre a literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. BUCK-MORSS, S. Dialética do olhar: Walter Benjamin e o projeto passagens. Belo Horizonte: UFMG, 2002. BRUYNE, P.; HERAMAN, J.; SCHOUTHEETE, M. Dinâmica da pesquisa em Ciências Sociais. São Paulo: Francisco Alves, 1991. DESCARTES, R. Meditações metafísicas. São Paulo: Martins Fontes, 2000. FERNANDES, C. Pina Bausch e o Wuppertal dança-teatro: repetição e transformação. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2007. FOUCAULT, M. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 2004. ______, M. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. GADAMER, H. G. A razão na época da ciência. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. GARAUDY, Roger. Dançar a vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. GOMES, F. Universidade de Lisboa - Faculdade de Belas Artes. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, Walter Benjamin: recensão crítica. Jun/2006. Publicado em: <http://www.arte.com.pt/text/filipag/walterbenjamin.pdf>. Acesso em: dez/2012. MURICY, K. Walter Benjamin: Alegoria e crítica. In: HADDOCK, Rafael. Os filósofos e a arte. Rio de Janeiro: Rocco Ltda., 2010. PAULA, F. Tensões e ambiguidades em Walter Benjamin: a modernidade em questão. Plural, São Paulo, v. 1, 1º semestre, pp.106-130, 1994. SCHOPENHAUER, A. Metafísica do belo. São Paulo: Unesp, 2003. SUASSUNA, A. Introdução à Estética. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004. TÜRCKE, Christoph. Sociedade excitada – filosofia da sensação. 1. ed. Ed. Unicamp, 2010. 191 ENGRUPEDança 2013 ISSN 2359-3806 Minicurrículo Odilon José Roble é graduado em Filosofia, Licenciado em Educação Física, Mestre em Educação (Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte), Doutor em Educação. Professor da Faculdade de Educação Física da UNICAMP e do Programa de Pós Graduação em Artes da Cena (Dança, Teatro e Performance) do Instituto de Artes da UNICAMP. Líder do “Grupo de Pesquisa em Filosofia e Estética do Movimento” (CNPq). E-mail: [email protected] Karen Adrie de Lima é graduada em Educação Física pela Faculdade de Educação Física da UNICAMP, tendo desenvolvido como Trabalho de Conclusão de Curso a pesquisa: “Dança do Ventre: evoluções e proposições de uma década”. Atualmente, mestranda em Artes da Cena, na linha de pesquisa Arte e Contexto no Instituto de Artes da UNICAMP, com a pesquisa intitulada “A aura do espetáculo de dança: o aprendizado do bailarino no hic et nunc”. Membro do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Estética do Movimento (CNPq). E-mail: [email protected] 192