Os Delírios de Estamira

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VII JORNADA DE SOCIOLOGIA DA SAÚDE
Saúde como objeto do conhecimento: história e cultura
ISSN: 1982-5544
OS DELÍRIOS DE ESTAMIRA: DA INVISIBILIDADE À EXCLUSÃO SOCIAL1
Alexandre Szabô2
Egon Sulivan Stevani 3
Fabrício Álvaro da Silva4
Leide da Conceição Sanches5
Maria Cecília Da Lozzo Garbelini6
RESUMO
Trata-se de um trabalho que retrata o impacto da exclusão social sobre a saúde física e mental
da personagem Estamira, do documentário de Marcos Prado. O objetivo deste trabalho é
relacionar a vida da personagem do documentário, a Estamira, com o contexto social mais
amplo, (in)sustentável, e perceber o impacto deste sobre a sua saúde (mental). Este trabalho
consiste na utilização de material bibliográfico e na interpretação de alguns trechos dos
conteúdos manifestos no documentário, com base na análise de conteúdo que visa perceber o
que está por trás dos conteúdos expressos no comunicado. O documentário aponta o descaso
social e seu contexto que influencia e contribui para uma construção patológica em um
indivíduo diagnosticado como doente mental. A forte ligação de Estamira com a ideia de lixo
está relacionada com a invisibilidade, que é conforme Bauman (1998), na sociedade
contemporânea a maneira mais sutil e perversa de excluir o outro, tornando-o invisível.
Estamira sofreu as consequências em sua própria saúde de um processo de exclusão social, e
neste sentido, considerar que ao ser humano é de direito uma vida com qualidade, é torná-lo
visível, perceber que a dignidade humana é indissociável do meio ambiente. Nesta
perspectiva os mais pobres são aqueles que devem ser considerados sujeitos, e não objetos do
desenvolvimento, e a dignidade humana, neste sentido, não é uma afirmação científica, mas
social.
Palavras-chave: Estamira; Exclusão Social; Saúde Mental; Sustentabilidade; Dignidade
humana.
1
Artigo produzido pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética - NEB da Faculdades Pequeno Príncipe,
Curitiba, Novembro de 2013, [email protected]
2
Membro do NEB/FPP, Acadêmico do 8º período de Biomedicina FPP.
3
Membro do NEB/FPP, acadêmico do 8º período de Biomedicina da FPP, graduado em Gastronomia pela
PUCPR.
4
Membro do NEB/FPP, acadêmico do 4º período de Psicologia da FPP.
5
Coordenadora do NEB/FPP, Mestre e Doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná,
Professora de Sociologia e Antropologia da FPP, Membro do Grupo de Pesquisa em Sociologia da Saúde/UFPR.
6
Coordenadora do NEB/FPP, Doutora em Biologia Celular pela USP, Professora de Biologia Celular da FPP.
Curitiba –08 de novembro de 2013
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INTRODUÇÃO
Trata-se de um trabalho que retrata o impacto da exclusão social sobre a saúde física e
mental da personagem Estamira, do documentário de Marcos Prado, cujo objetivo inicial era
retratar o Jardim Gramacho, área que vem recebendo aproximadamente 85% do lixo
produzido no Estado do Rio de Janeiro. No ano 2000, Prado encontra Estamira, personagem
que manifestou uma vontade espontânea de conversar e contextualizar uma realidade que até
então não tinha nome, idade e tampouco expressão facial. Fascinado por essa mulher, o
diretor voltou a procurá-la, cerca de um mês depois, dando início ao premiado filme e
Documentário Estamira.
O que se percebe pela narrativa, é que Estamira, antes de sofrer as violências que serão
retratadas neste artigo, não apresentava qualquer quadro clínico anterior a este momento de
sua vida, o que levanta um questionamento: Será que se Estamira tivesse vivido outra
realidade, o desfecho de sua vida teria sido diferente?
No contexto de Estamira, o lixão no qual ela vive é um exemplo de interação negativa
entre o ambiente e a população humana, onde a falta de sanitização compromete a segurança e
a qualidade de vida das pessoas. Mesmo na maioria dos aterros sanitários não há tratamento
adequado para o chorume e resíduos tóxicos. Esses problemas fazem parte do contexto social
de uma determinada população e/ou geração. Contudo, saúde ambiental também pode ser
entendida como os agravos à saúde, devidos a fatores físicos, químicos e biológicos,
intimamente relacionados com a poluição – enfatizando a relação entre saúde e meio
ambiente. Neste sentido, o documentário aponta o descaso social e seu contexto influenciando
e contribuindo para uma construção patológica em um indivíduo diagnosticado como doente
mental.
O objetivo deste trabalho é relacionar a vida da personagem do documentário, a
Estamira, com o contexto social mais amplo e perceber o impacto deste sobre a sua saúde.
Este trabalho consiste na análise do documentário e na interpretação de alguns trechos de
conteúdos nele manifestos, com base na análise de conteúdo que visa perceber o que está por
trás dos conteúdos expressos no comunicado (GOMES in MINAYO, 2008, (p.84).
A HISTÓRIA DE ESTAMIRA
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É com a célebre frase de Oscar Wilde7 “A vida imita a arte muito mais do que a arte
imita a vida”, que partimos para compreensão do Documentário Estamira, com o enfoque da
saúde mental e seu contexto situacional. Dirigido por Marcos Prado 8, o Documentário deve
início em seu projeto fotográfico no ano de 1993, cujo enfoque era retratar o Jardim
Gramacho 9 com o objetivo de compreender o que levava inúmeros catadores de lixo a se
submeterem a condições de vida tão degradantes e insalubres.
No ano 2000, Prado percebeu que seu trabalho formulava-se incompleto, faltava algo
de visceral no roteiro. Nesse momento surge Estamira, mulher de 62 anos que há 20 anos
tirava seu sustendo do lixão. Estamira demonstrava em suas frases um viés filosófico e de
grande relevância, incomum ou despercebido para uma mulher que se aproximavada
invisibilidade social. Ela por sua vez, manifestou uma vontade espontânea de conversar e
contextualizar uma realidade que até então não tinha nome, idade e tampouco expressão
facial. Fascinado por essa mulher, o diretor voltou a procurá-la cerca de um mês depois, o que
desencadeou longos encontros e conversas, culminando no premiado filme e Documentário
Estamira.
Dona Estamira narra sua história de 62 anos de vida, sendo que 20 deles foram vividos
no Jardim Gramacho. Seus filhos Hernani, Carolina e Maria Rita também participam da
narrativa, e tecem uma trajetória de vida pouco poética e uma realidade sofrida e miserável.
Antes de chegar no Jardim Gramacho Estamira conta que perdeu o pai muito cedo e ficou sob
os cuidados da mãe que sofria de distúrbios mentais e do avô, vindo a sofrer por este abusos
sexuais. Com apenas doze anos, o avô a leva para um prostíbulo, onde vive por cinco anos,
até encontrar seu primeiro marido. O casamento não é duradouro e Estamira é abandonada
com um filho. Descontextualizados, estes fragmentos entre o término do primeiro casamento
e início do segundo, deixam uma lacuna atemporal, devido à não linearidade cronológica que
o documentário é construído.
7
Oscar Wilde foi um dramaturgo, escritor e poeta irlandês. Expoente da literatura inglesa durante o período
vitoriano, sofreu enormes problemas por sua condição homossexual, sendo preso e humilhado perante a
sociedade.
8
Marcos Prado (Rio de Janeiro, 1961) é um fotógrafo, produtor e diretor de cinema brasileiro. Como fotógrafo,
recebeu diversos prêmios nacionais e internacionais, entre eles o World Press Photo 92 e o Focus on Your World
92, do PNUMA. Escolhido, em 2002, como Hasselblad Master, Marcos possui fotos nos acervos permanentes do
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM), do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand
(MASP), e do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM).
9
Área que desde de meados da década de 70, vem recebendo aproximadamente 85% do lixo produzido no
estado do Rio de Janeiro.
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O fato é que ela se casa novamente com um emigrante italiano, com quem tem um
segundo filho, e conforme descreve, nutre por ele um amor profundo. O novo marido a fez
internar em um hospício a própria mãe, também doente mental. As duas vivências
matrimoniais são fracassadas, por motivos comuns a outras realidades, como a bebida e a
traição. Expulsa da casa do segundo marido, Estamira encontra no Jardim Gramacho um local
para sobreviver. Sua primeira providência quando ali chegou, foi tirar a mãe do Hospital
Pedro II, sanatório psiquiátrico reconhecido até os anos de 1980 pelos maus tratos a seus
pacientes.
Passou cinco anos trabalhando no lixão de Gramacho, até ser convencida pelos filhos a
buscar outro emprego, para fornecer à família melhores condições de vida. Nesta busca por
uma qualidade de vida, foi estuprada pelo menos duas vezes. Tudo indica na narrativa, que
Estamira não apresentava qualquer quadro clinico posterior e este momento de sua vida, o que
certamente levanta questões importantes, porém, complexas para serem respondidas: - Será
que se Estamira tivesse vivido outra realidade, o desfecho de sua vida teria sido diferente?
ESTAMIRA INVISÍVEL: UMA VIDA SUSTENTÁVEL?
O desfecho de Estamira encontra-se na complexidade do amplo debate sobre a saúde
ambiental, que envolve as interferências dos problemas ambientais sobre a saúde humana.
A caracterização das diretrizes da saúde ambiental pelo Ministério da Saúde se dá sob
duas perspectivas, a da promoção da saúde e a avaliação dos possíveis riscos decorrentes dos
problemas ambientais que possam interferir sobre a saúde. Estas são as bases contidas na
definição de saúde ambiental, da Organização Mundial da Saúde - OMS, que preconiza que a
saúde ambiental compreende vários aspectos da saúde humana,
[...] incluindo a qualidade de vida, que são determinados por
fatoresfísicos,químicos, biológicos, sociais e psicológicos no meio
ambiente.Refere-se também à teoria e prática de avaliação, correção,
controle e prevenção daqueles fatores que, presentes noambiente,
podem afetar potencialmente de forma adversa a saúdehumana das
gerações do presente e do futuro” (RADICCHI, 2009)
A interação entre meio ambiente e a população, assim como suas consequências, é o
que define a saúde ambiental, contudo, esta também pode ser entendida como os agravos à
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saúde, devidos a fatores físicos, químicos e biológicos, intimamente relacionados com a
poluição, enfatizando a relação entre saúde e meio ambiente.
No caso de Estamira, muitas correções diretas ou indiretas teriam que ocorrer para que
seu problema se amenizasse, como a desigualdade social, se focada a condição social em que
se encontrava, habitação, desemprego, segurança, entre outros problemas que teve que
enfrentar no decorrer de sua vida. Fica claro que a promoção de saúde depende do combate
dos determinantes sobre as condições de saúde.
No contexto de Estamira, o lixão no qual ela vive é um exemplo de interação negativa
entre o ambiente e a população humana, no caso, da parte da população que interage e
sobrevive do lixão. A falta de sanitização compromete a segurança e a qualidade de vida das
pessoas. Mesmo na maioria dos aterros sanitários não há tratamento adequado para o chorume
e resíduos tóxicos.
Se ampliado, o debate assume feições mais amplas, e segundo Augusto L.G.S. et al
(2003), os problemas ambientais e ocupacionais tem como gênese a produção e o consumo.
Estes apresentam características comuns, inerentes aos processos civilizatórios com os quais
estão relacionados, e dos quais dependem, e assumem idiossincrasias dentro dos grupos, ou
pelos grupos que os originam. Dessa forma, uma população que consome desmedidamente
um determinado tipo de material, sofrerá as consequências para lidar com a produção desse,
ou mesmo com o destino do mesmo, após o uso. Esses problemas fazem parte do contexto
social de uma determinada população e/ou geração.
Nesta análise, parte-se da percepção de que a dignidade humana é intrínseca às
dimensões sociais e ecológicas, e toda esta complexidade deve ser analisada na perspectiva da
ética ambiental, que remete ao fato de que toda consciência é uma antecipação do futuro. O
ser humano não deixou de depender da natureza e, se não conservá-la adequadamente
comprometerá sua própria existência(SILVA, 2006).
O meio ambiente, nesta perspectiva, deve ser pensado nas suas inter-relações dos
diferentes tipos de vida e recursos naturais existentes. Como em uma teia, ser humano, fauna,
flora, água, solo e poluição, se apresentam interligados. Qualquer alteração em algum desses
fatores produz efeitos sobre os outros. Somos dependentes e participantes do meio, logo nossa
influência sobre o mesmo pode nos prejudicar ou nos ajudar (SZABÓ, 2010).
Miller JR (2011) define sustentabilidade como a capacidade dos diversos sistemas do
nosso planeta, incluindo as economias e culturas, de sobreviverem e se adaptarem às
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condições ambientais em mudança, cuja finalidade é garantir qualidade e vida e conforto para
as gerações atuais e futuras. O autor argumenta que viver de maneira sustentável é aproveitar
os recursos disponíveis sem exaurí-los ou desgastá-los, além da capacidade de autorenovação
dos mesmos.
Como cada parte nesse sistema, seja humana, social ou ambiental, está ligada e
depende uma da outra, também a dignidade humana é inerente a essa teia de relações. Um
importante fator que nem sempre é considerado, quando se discute sustentabilidade ou fatores
ambientais, é a pobreza. Por definição pobreza é a incapacidade de satisfazer as necessidades
econômicas básicas. Essa é uma das cinco maiores causas de problemas ambientais no
mundo, além de intimamente ligada a efeitos prejudiciais à saúde. Assim, combater a pobreza
traz efeitos positivos para o meio ambiente. O crescimento econômico, quando ocorre junto a
uma distribuição de renda adequada, permite que a receita fiscal recebida pelos trabalhadores
ajude-os a se ajudarem. Esse efeito é chamado de escoamento (trickle-down effect). O
escoamento possibilita que mais empregos sejam criados, com melhores condições de vida,
ampliando os efeitos do próprio escoamento, que resulta em uma redução de desgaste
ambiental. Contudo, para reduzir a pobreza é necessário lidar com corrupção de governos,
ausência de direitos de propriedade, proteção legal insuficiente e incapacidades para aquisição
de empréstimos ou criação de pequenos negócios (MILLER JR, 2011).
Percebe-se, portanto, que tanto a ocupação, quanto o desenvolvimento de espaços
habitáveis não podem ocorrer de forma acidental ou como resultado de interesses privados e
coletivos. A harmonização entre os interesses particulares e objetivos é alcançada quando há
um desenvolvimento econômico-social, sendo este, fruto de estudos acerca da ocupação, sua
finalidade, avaliação da geografia local e capacidade de comportar tal ocupação sem danos
para o meio ambiente. Esses estudos permitem boas condições de vida para as pessoas, além
de ser uma forma pertinente e adequada para diminuir os problemas urbanos, que se
intensificaram, e das consequências desses. O aumento da concentração populacional, sem
educação ambiental, planejamento sustentável e condições dignas de trabalho e moradia, gera
danos ao meio ambiente e, por conseguinte, às partes que interagem com ele (LOUREIRO,
2013).
No Brasil, o crescimento urbano, ocorre num fenômeno chamado de macrocefalia – a
população concentra-se em grandes centros urbanos, numa redução gradativa das populações
de pequenas cidades. Esse aumento populacional não permite que o desenvolvimento urbano
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acompanhe a demanda necessária para uma qualidade de vida aceitável, levando a
intensificação das consequências das atividades antropogênicas. Dessa forma, pequenos
problemas são expandidos e novos eclodem.
Cidades informais (favelas), loteamentos clandestinos e similares, são o maior
problema eco-urbanístico do sul do planeta, pois crescem sem qualquer planejamento,
gerando poluição atmosférica, hídrica, sonora, visual e dos solos, escapando ao controle
citadino. Sendo a poluição da água a de maior urgência para a saúde pública, esta não deve ser
excluída, contudo não é fulcral ao presente trabalho. A mais pertinente a ser considerada neste
texto é a poluição dos solos. Essa é gerada, principalmente, pelo acúmulo de resíduos. O
tratamento adequado dos resíduos urbanos deve ser feito em aterros sanitários, com
planejamento adequado. Quando fora de controle, o acúmulo de resíduos gera lixões, que
poluem água e solo, permeia o desenvolvimento de vetores e intoxicação de plantas.
Esta discussão tem grande relevância no contexto de Estamira, onde os lixões agridem,
ainda, a integridade psíquica das pessoas, como uma forma de poluição visual, principalmente
àqueles com eles interagem (EDLER, 2013); (MILLER, 2011).
O meio ambiente é imprescindível para a existência de qualquer tipo de vida,
conforme entendemos vida atualmente. Constitui um valor essencial para a vida humana.
Entretanto não é preciso, nem devido, visar apenas o meio ambiente, pois o ser humano tem
diversos direitos. Com essa visão multidimensional, busca-se um equilíbrio entre os direitos
econômicos e ao desenvolvimento, para interagir com o conceito de sustentabilidade.
Percebe-se, então, que uma vida sustentável, não é apenas uma vida privada dos benefícios
econômicos ou de aquisições particulares e coletivas, mas um reconhecimento dos limites do
meio e de uma conscientização sobre as atitudes necessárias para uma vida harmônica
(RAMINELLI et al,2012)
A dignidade, ou suas condições, permeiam todas as discussões acerca do ser humano,
sendo que os movimentos social e tecnológico centraram-se nele após a Revolução Industrial.
Como a dignidade tem caráter social, ela passa a ter importância central, junto à existência
humana. A palavra dignidade vem de dignitas, do latim, e significa honra, virtude ou
consideração. Entende-se então, que a dignidade é uma qualidade moral inata, inerente à
essência humana, ligada aos conceitos sociais – tendo em vista que mudam de acordo com a
época.
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Considerando que ao ser humano é de direito uma vida com qualidade, para alcançar
esse objetivo o meio ambiente é indispensável, e o conceito aplicado de sustentabilidade e
uma sociedade sustentável, aproximam-se da manutenção da dignidade da pessoa humana.
Então sustentabilidade pode ser considerada um direito consagrado e fundamental, além das
fronteiras e soberanias, dentro dos Direitos Humanos. Assim, todos devem receber os
benefícios de uma vida sustentável, sem que fiquem à margem do desenvolvimento ou
tornem-se vítimas de problemas sociais ou urbanos. Os mais pobres são aqueles que devem
ser considerados sujeitos, e não objetos do desenvolvimento. Este e o meio ambiente são
meios e não fins, no que se refere a qualidade de vida e sustentabilidade (CUNHA, 2005).
A dignidade humana não é uma afirmação científica, mas social. Afirmar a dignidade
é o mesmo que afirmar que a vida humana ocupa no sentido de sua própria existência. O ser
humano atribui à vida humana uma dignidade fundamental, buscando um sentido para a
própria existência. Como indivíduo, avalia a própria dignidade e a dos outros e, não
raramente, coloca-se como modelo humano. Passa a valorizar sua dignidade (de seu grupo e
sua classe) como aquela a ser defendida. A dignidade alheia é defendida somente à medida
que se parecer com a sua. Essa forma de pensar não é ética, e sim etnocêntrica. Defender a
dignidade humana, na perspectiva ética situa-se na direção oposta ao etnocentrismo. Ela deve
ser afirmada em sua máxima extensão: a vida humana de todos os humanos é digna; e em sua
máxima compreensão: a vida humana inteira, em todas as suas dimensões é digna, sem
nenhum reducionismo (SANCHES, 2004.).
A resposta à pergunta que se fez anteriormente, se acaso Estamira tivesse vivido outra
realidade o desfecho de sua vida teria sido diferente, vem sendo aos poucos delineada neste
texto, quando se coloca que os determinantes da saúde ou da doença tem que ser percebidos
amplamente, e seu combate, como vimos, é consequentemente amplo.
DELÍRIOS COMO MECANISMOS DE FUGA DO MUNDO REAL INSUPORTÁVEL
Estamira como muitas Estamiras, que vivem em condições de vida precárias e em
ambiente insalubre,são por ele condicionadas, e no caso da nossa personagem, foi o segundo
estupro que sofreu, possível fator desencadeante do quadro psíquico que se desencadeou, um
quadro mental de fuga, onde desacredita em seus valores de fé e de vida, abandona sua
realidade, para encontrar acalanto em seu mundo místico. Seus delírios, frutos do distúrbio
nada mais são que a maneira que seu aparelho psíquico encontrou para transportar o
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insuportável mundo real para um “lugar” inacessível. A mente parece ter encontrado uma
trajetória de escape pelas alucinações.
J. D. Nasio (1997) constrói uma explicação referente ao impacto na construção mental
que a vivência de luto (perda) proporciona no indivíduo que o vivencia. No caso de Estamira,
rompe um luto pela vida que sonhou em ter, e a realidade em que se encontra. O encerramento
das esperanças e da fé pode ser contextualizado como um luto ou sentimento de morte e um
estopim para seu quadro.
de fato, a ruptura de um laço amoroso provoca um estado de choque semelhante
àquele desencadeado por uma violenta agressão física: a homeostase do sistema
psíquico é rompida, e o princípio de prazer, abolido. Sofrendo a comoção, o eu
consegue, apesar de tudo, autoperceber o seu transtorno, isto é, consegue
detectar dentro de si o enlouquecimento das suas tensões pulsionais
desencadeadas pela ruptura”, “a dor é a desorientação que sentimos quando,
tendo perdido um ente querido, somos invadidos por uma extrema tensão
interna, somos confrontados com um desejo louco no interior de nós mesmos,
com uma loucura do interior desencadeada pela perda (NASIO, 1997, pag.
32/72)
Podemos dizer então, que a dor de uma vida miserável e o desmoronamento das
crenças e da esperança, produziu em Estamira, um efeito dominó em seu clichê mental.
Atestada como psicótica, seus delírios e alucinações não podem ser considerados um discurso
vazio, e sem conteúdo reflexivo. Seu delírio é uma irrealidade que aponta um movimento
psíquico em busca de equilíbrio. Uma tentativa de ordenar o caos, de dar alguma forma ao
que está fragmentado e desconexo. Estamira lança seu grito delirante numa tentativa de dar
algum sentido a sua tragédia. Ela tem uma verdade pra anunciar que um simples diagnóstico
não revela. Conforme descrito por Ferenczi (2003), em seu Diário Clínico, “o louco tem um
olhar agudo para as loucuras da humanidade”. Assim tecemos o que no documentário é
brilhantemente impresso, o descaso social e seu contexto influenciando e contribuindo para
uma construção patológica em um indivíduo diagnosticado como doente mental.
Estamira mal sabe ler, como se percebe numa cena do filme na qual ela mesma lê em
voz alta seu prontuário médico, que diz o seguinte: “Atesto que Estamira Gomes de Souza,
portadora de quadro psicótico de evolução crônica, alucinações auditivas, idéias de influência,
discurso místico, deverá permanecer em tratamento psiquiátrico continuado” (PRADO, 2005).
O prontuário é deveras superficial, nada diz sobre a Estamira enquanto sujeito, enquanto
paciente e ser social. Retrata uma pessoa invisível até mesmo para os médicos, que tinham o
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dever ético de enxergá-la. Daí compreende-se sua revolta e sua acusação de serem eles (os
médicos) meros copiadores de receitas, que dopam e viciam seus pacientes.
Para Freud (1996, pg. 78), “A formação delirante, que presumimos ser o produto
patológico, é, na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução”.
Qualquer tratamento consistente das psicoses deve levar os delírios em consideração como
material clínico a ser trabalhado. A tentativa médica de eliminar os fenômenos elementares da
psicose de Estamira por meio de uma super-dosagem medicamentosa mostrou-se
catastrófica 10 . Visivelmente sedada e esvaziada afetivamente, Estamira queixa-se de estar
desgovernada, de nervosismo, de agonia, por tentar falar, e não conseguir. Calou-se seu
delírio, as vozes que escutava tornaram-se meros zumbidos, no entanto, ao invés de alívio,
Estamira relata que sua cabeça parece um copo cheio de Sonrisal®.
A doutora passou um remédio pra raiva. (...) Aqui, oh! Oh!, o retorno, quarenta
dias. Presta atenção nisso! (...) Ela [a médica psiquiatra] é copiadora! (...) Ela é
copiadora! Eles [os médicos] estão fazendo sabe o que? Dopando quem quer
que seja com um só remédio. Não pode! (...) eles vão lá e só copeiam, uma
conversinha pra cá e só copiar. (...) Ah! Que é que há rapaz! Isso não pode, não
senhor! Como é que eu vou ficar todo dia, todo mês, cada marca..., e eu vou lá
apanhar o mesmo remédio? Não pode! (...) Aqui, oh!, pra você ver como é que é
o remédio. Eu ia devolver a ela porque os viciados deles ― porque não sou eu
―, às vezes, pode precisar. Está aqui! (PRADO, 2005).
A intensa produção de delírios é perceptível em quase todas as cenas. Muitos de seus
delírios, contudo, são muito bem organizados e com certa coerência que seria capaz até de
enganar alguns. Eis alguns exemplos: “Inocentes não, esperto ao contrário.”, “Ninguém pode
viver sem mim. Ninguém pode viver sem Estamira” “todos precisam de Estamira”, “Só eu
consigo distinguir as coisas, porque sou a Estamira!”(delírio de grandeza), “Meus pais
(mortos) estão perto de mim, minha mãe meus amigos... Ó, tô vendo” (delírio associado à
alucinação), “controle remoto universal e controle remoto dentro do corpo, etc..” Outros
delírios são citados pela família, tais como estar sendo seguida por alguém no ônibus ou
perseguida pelo FBI (delírios persecutórios), quadros clínicos perfeitamente aceitos no
enfoque esquizofrênico.
10
Vide a cena, já no final do documentário, na qual Estamira fala visivelmente alterada pelos efeitos
colaterais adversos dos antipsicóticos: aumento de peso, inchaço, tremor fino nas mãos e nos pés,
distonia etc.
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Muito se conquistou com a gradual extinção do modelo manicomial, mas, hoje em dia,
nos fica a pergunta: devolver o paciente para onde? Não se trata de uma simples questão
social, mas trata-se de uma questão ética! Segundo Benjamim (1999) “não se trata de
simplesmente tornar o mundo igualitário a todos, mas de resgatar o Homem em sua própria
condição humana”.
Estamira não é uma paciente psiquiátrica asilar, mas sim alguém que desfruta de uma
aparente liberdade. Porém, falar em liberdade no aspecto apresentado no Documentário é no
mínimo contraditório, trata-se sim, de uma liberdade alforriada, ou ainda uma escravidão
assistida e “aprovada” pela sociedade. Em seu discurso delirante, Estamira afirma
convictamente estar em todo lugar, mas em termos sociais, ela não está em lugar algum.
Estamira é invisível! Ela fala, grita, pensa, demonstra, faz, olha, argumenta. Sua voz é o fio
condutor de toda a narrativa do documentário, e revela um extremo sofrimento. No meio dos
escombros e dos detritos, diante da tela, fazemos contato com nossa cegueira, contato com
nosso desprezo pelos miseráveis, pelos não adequados nos padrões sociais, contato com o que
é abjeto de nojento, de escoria social. Sensação que nada mais é, do que ver o que produzimos
como lixo, como refugo, nas mãos e nas bocas de outros.
A forte ligação de Estamira com a ideia de lixo está relacionada com a invisibilidade,
que é conforme Bauman (1998), na sociedade contemporânea a maneira mais sutil e perversa
de excluir o outro, tornando-o invisível. Estamira sofreu as consequências em sua própria
saúde de um processo de exclusão social, e neste sentido, considerar que ao ser humano é de
direito uma vida com qualidade, é torná-lo visível, perceber que a dignidade humana é
indissociável do meio ambiente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos dizer que Estamira foi vítima até do tratamento de sua insanidade, vítima de
uma sociedade com práticas excludentes. Estamira fez parte do contingente de pessoas que
são sistematicamente tachadas de pobres e loucas. Macos Prado, ao falar da morte de
Estamira11, em entrevista a um jornal local, diz que: “Ela acreditava ter a missão de trazer os
11
O desfecho final de Estamira Gomes de Sousa, personagem-título do premiado documentário se deu em 28 de
julho de 2011. Segundo a Secretaria Municipal de Saúde do Estado do Rio de Janeiro, Estamira estava internada
no Hospital Miguel Couto, na Gávea, Zona Sul da cidade, e morreu com consequência de uma septicemia
(infecção generalizada).
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princípios éticos básicos para as pessoas que viviam fora do lixo onde ela viveu por 22 anos.
Para ela, o verdadeiro lixo são os valores falidos em que vive a sociedade”.
Estamira, como muitas Estamiras, foi mais uma vítima por sua invisibilidade social,
morreu pelo descaso, sem ser percebida.
REFERÊNCIAS
AMARANTE, P. (org ). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio
de Janeiro: SDE / ENSP, 1995.
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