Nos meandros entre o imaginário e a realidade: proposta de uma leitura da obra da artista plástica M. H. Vieira da Silva sob a luz da Física Quântica Christiane Schmidt (Instituto de Artes, UNICAMP, Brasil) Roberto de Andrade Martins (Instituto de Física Gleb Wataghin da UNICAMP, Brasil) Je peins dans le vide. [...] Quelquefois, je me dis: Au fond nous, les peintres qui vivons longtemps, Nous avons beaucoup de savoir, Mais c’est un savoir qu’on ne peut transmettre, On ne peut le transmettre que par les yeux! Maria Helena Vieira da Silva A artista franco-portuguesa Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992), cuja obra é ligada à corrente do Abstracionismo Lírico1, foi freqüentemente repreendida pelo fato de ter mantida a perspectiva matemática. O historiador francês e co-autor da monografia de referência sobre Vieira da Silva, Jean-Luc Daval relata, por exemplo, o seguinte encontro entre o pintor alemão Wols (Alfred Otto Wolfgang Schulze) e a pintora: “Um dia, pouco tempo depois da guerra, Wols me perguntou: <<Diga-me, eu gosto muito do que você faz, mas porque você utiliza a perspectiva ?>> Eu respondi que sabia que isto já não se fazia mais na arte moderna, mas que apesar disto eu deveria fazê-lo.”2 Contudo, como “podemos utilizar o termo (conceito) de perspectiva no contexto da obra de Vieira da Silva, considerando que ela fez o possível para destruir este conceito?” 3, retorque Daval. De fato, a pintura de Vieira da Silva é baseada em uma intrigante ambigüidade entre efeitos “planos” e “perspectivos”; caracterizando espaços que se querem dar a aparência de quartos, ateliês, bibliotecas, túneis, etc., mas que, ao demorar nosso olhar neles, têm, sim, tão pouco em comum com estes espaços ao mesmo nome de nossa experiência cotidiana. O universo pictórico da artista trama-se, pelo contrário, entre espaços reais e espaços imaginários, envolvendo o espectador nos meandros incertos entre o espaço tridimensional e o plano bidimensional. Esta pintura abre as facetas virtuais de uma única preocupação temática: esquadrinhar o limite entre o espaço e o plano. Desafiando implicitamente a distinção nítida entre percepção e imaginação, a artista retoma como temática um conflito intrínseco à pintura iniciado com o Renascimento e problematizado em termos pictóricos pela primeira vez explicitamente por Paul Cézanne na virada entre o século 19 e 20, a saber, o conflito entre o plano prescrito pelo suporte da tela e a percepção do espaço tridimensional evocado pela perspectiva central. Gostaríamos de apresentar com este trabalho como Vieira da Silva superou este conflito com uma proposta pictórica singular cuja particularidade, a saber, permitir em pé de igualdade a percepção de ambas características: aquelas do plano e aquelas da perspectiva matemática, mostra uma afinidade surpreende com as experiências da Física Quântica. A pintora criou uma intermitência que hospeda tanto os aspectos de uma realidade referente à nossa percepção tridimensional como aqueles da memória e de realidades criadas pela imaginação. Quando o poeta brasileiro Murilo Mendes4 carateriza a linguagem pictórica de Vieira da Silva como uma “poética baseada na arquitetura da memória”5, ele evoca por um lado uma fonte de inspiração real que qual a lembrança de sua cidade de infância, Lisboa; cidade mergulhada em uma luz que é refletida dos azulejos, que espalham-se nas superfícies dos velhos edifícios. Por outro lado, Mendes leva também em consideração um outro aspecto desta memória sendo um objetivo e ao mesmo tempo uma caraterística da pintura do século XX, isto é a procura e a abordagem de uma realidade distinta da realidade restrita à nossa 1 percepção sensorial (definida e limitada pela capacidade de perceber o mundo em três dimensões). A memória funcionaria no caso de Vieira da Silva como instância criando um espaço de afastamento entre a realidade sensorial e a realidade sensível. O termo arquitetura usado por Mendes faz portanto referência à arquitetura real da cidade assim como dos interiores constituindo um conjunto temático das obras da pintora, mas faz também alusão à arquitetura pictórica, isto é à construção de uma realidade pictórica autônoma através dos inúmeros minúsculos quadrados, rombos e suas variações que caracterizam o estilo da artista. Vieira da Silva mantém um diálogo contínuo entre a dimensão psicológica interior e a pesquisa existencial da realidade exterior através de sua pintura. Ao projetar seus sentimentos, conflitos e angústias íntimas ao espaço pictórico, esperando um retorno através da pintura, o trabalho de Vieira da Silva pode ser ligado ao Abstracionismo Lírico, que se cristalizou na Europa, e em particular em Paris, à partir dos anos 30, para atingir seu paroxismo ao fim dos anos 40. Daval definiu esta pintura como sendo uma “experiência do presente, do agora, da prova de estarmos aqui, milagre do instante”6 no contexto das experiências da Segunda Guerra Mundial. Em sua análise da cena artística, e em particular do aspecto abstrato na pintura do pós-guerra, o biografo e secretário de Vieira da Silva, Guy Weelen vê como elo comum dos pintores a reflexão, interrogação e mesmo a rejeição da noção do “humano”. Nas suas investigações em relação às formas geométricas ou livres, Weelen reconhece uma postura de alienação do mundo das aparências, das anedotas e completamos, das convenções, quando constata: “Eles declaravam, por um lado, que não existiria mais uma diferença essencial entre o mundo interior e mundo real, pois estariam perpetuamente em comunicação um com o outro, e por outro lado, que não seriam abstratos porque, manteriam sempre os olhos abertos diante do espetáculo oferecido pela natureza a fim de sempre encontrarem nela inspiração. Para eles, a realidade se ocultaria através dos objetos [pictóricos], e esta realidade assim vislumbrada seria mais verdadeira que o simples sistema de convenções aplicado para descrever as aparências.”7; o que Vieira da Silva confirma quando relata: “A pintura é muito difícil de ser realizada sem que haja uma primeira impressão inspirada pela natureza. Meu imaginário não é o imaginário no sentido próprio. Meu imaginário é uma construção. Ele é uma maneira de construir a mim mesma através da pintura”.8 Nesta característica seu trabalho apresenta uma base por excelência para estudar o poder da imagem no processo de elaboração de novas concepções de compreender, ou talvez seria mais preciso de dizer, de pensar o mundo, efetuada na área das Artes como, assim queremos demostrar, na área da Física na primeira metade do século XX. Nosso trabalho propõe uma leitura do universo pictórico da artista que o aproxima de conceitos da Física Quântica e, em particular da modelização matemática do universo microscópico do físico americano Richard Philipps Feynman (1918-1988). Achamos elucidativo de apresentar este raciocínio matemático apoiado em uma visualização através de diagramas do Método das Integrais da área da Eletrodinâmica Quântica aos quadros de Vieira da Silva, com o objetivo de sugerir uma solução para o aparente “paradoxo perspetivo” de um universo pictórico que oscila entre efeitos planos e espaciais. Neste sentido é importante destacar que o desenvolvimento da Física Quântica –particularmente no período da elaboração da Teoria da Eletrodinâmica Quântica– e a conseqüente mudança da compreensão da natureza na Física coincidem com as pesquisas picturais (e não teóricas) sobre o espaço pictórico e ontológico de Vieira da Silva. Nas décadas de 1930 a 1950, vislumbra-se na sua obra uma modificação radical de conceitualização espacial, desafiando não só o conceito do espaço estático, mas também aqueles de causalidade e sequencialidade. Ao tentar reconstruir os espaços de Vieira da Silva no espaço tridimensional de nossa experiência imediata, isto é, tentar traçar um limite nítido entre os efeitos espaciais e as partes planimétricas, somos desarmados de nossos conceitos deterministas: sua espacialidade não pode ser reduzida a um palco estável dirigido pelas leis da Física Clássica. Se quisermos abordar a complexidade do universo pictórico de Vieira da Silva teremos que recorrer a conceitos alternativos como os propostos pela Física Quântica que abriu caminho para uma nova forma de compreender a natureza. 2 Mas além da coerência temporal, existe também um liame conceitual fundamental entre a abordagem de Feynman e Vieira da Silva na maneira comum como eles consideraram o meio de expressão respectivo na relação com a realidade. Ambos concediam, à teoria física e respectivamente à tela pintada, a autonomia para revelar traços caraterísticos da realidade. Como a arte acadêmica, isto é figurativa, impunha durante quatro séculos a réplica das informações perceptivas ao espaço pictórico, os representantes da Física Clássica tinham tentados igualmente impor uma conceitualização visual abstraída do mundo da experiência imediata às teorias físicas – o que foi somente possível até o início do século XX quando os avanços no terreno da Física Atômica conflitaram com as propriedades duais da luz e de outras entidades do mundo microscópico. A fim de destacar os aspectos da singularidade do espaço pictórico da artista e poder revelar os aspectos que o aproximam de conceitos da Física Quântica9 queremos agora apresentar dois quadros representativos da obra da artista: O quarto dos azulejos (1935, fig. 1) e O passeante invisível (1949-51, fig. 2). Nosso objetivo de perscrutar o espaço pictórico do Quarto dos azulejos (óleo sobre tela, 1935, 60x92 cm, col. part., Inglaterra, fig. 1) – à primeira vista, um objetivo simples já que, como o título indica, o espaço de um quarto e as quatro linhas de fuga facilitam a identificação de um espaço perspectivo – torna-se um inesperado desafio para a nossa percepção. O óleo sugere a impressão de que nos encontramos frente a um quarto revestido com uma multiplicidade de azulejos de várias cores. No teto e no solo, estes azulejos são dispostos em quadrados, nas paredes em diagonal e no fundo como rombas, definindo através desta diversidade os cinco lados que fecham o quarto. As linhas de fuga do lado direito são mais curtas que aquelas do lado esquerdo, mas a implicação lógica do deslocamento da perspectiva para a direita, ou seja, que os horizontais do plano do fundo devem ser desloca os alguns graus, segundo as regras da perspectiva matemática, não é respeitada. As linhas horizontais do fundo concordam com os limites horizontais da tela. A irregularidade dos azulejos e a coloração provocam uma dinâmica gráfica própria, sobrepondo ao espaço perspectivo uma rede de faixas coloridas ou caminhos ondulados. De fato, este quarto é vazio, mas ao mesmo tempo cheio de um tumulto colorido e rítmico. Estas seqüências de azulejos verdes, azuis, rosa e amarelo parecem ser fitas voando que destacam-se ainda mais, pois a maioria dos azulejos é pintada de uma variação de marrom-claro. Estes laços efetuam uma dança diabólica, interligando-se com o único objetivo de contradizer toda lógica perspectiva. Eles dinamizam o espaço de maneira que as paredes parecem se curvar, parecem perder sua rigidez e amolecer, aproximando-se e afastando-se do espectador. Ao focalizar o solo por exemplo, percebemos que este invade aparentemente o canto direito ao fundo transformando a parede plana do fundo em um espaço penetrável. Na verdade, este fundo dá ares de ser móvel, elástico. Do lado esquerdo ele recua (impressão provocada pela fiada de azulejos verdes e marrons que criam um canto escuro), do lado direito ele avança. Porém, estes dados de nossa percepção não conferem com a realidade da tela: constatamos, de posse da regra, que de fato existem quatro retas que delimitam um retângulo. Nosso olhar oscila continuamente entre a visão do ambiente, que abrange globalmente o espaço, e a visão focal, que apreende os detalhes. A princípio, as duas lógicas deveriam entrar em um conflito perpétuo, deveriam atrapalhar nosso bom-senso. Mas, magicamente, nossa percepção deixa-se envolver nos infinitos jogos entre momentos ilusórios e elementos reais. A espacialidade que Vieira da Silva construiu reconcilia as duas lógicas. Como espectador conseguimos perceber o espaço de um quarto profundo e ao mesmo tempo um plano gráfico de quadrados, como os dois são inseparavelmente entrelaçados. Ao tentar definir qual azulejo pertence ao espaço e qual quadrado constitui o plano, não conseguimos dar uma resposta definitiva: cada quadrado faz parte simultaneamente das duas realidades. O universo pictórico de Vieira da Silva nos oferece aqui três leituras. Podemos ver nesse quadro só um quarto fingindo ser um espaço tridimensional. Neste momento, temos que apagar nossa sensação de uma superfície decorada com quadrados e losangos. Quando optamos por ver o plano, focalizamos um círculo de quadrados verdes, um de losangos vermelhos e um terceiro de quadrados e rombos azuis. Estes azulejos com cores fortes destacam-se da multidão dos outros quadradinhos de cores diferentes, mais luminosos e pastéis, reconduzindo todos os planos a um só primeiro plano. Enfim, memorizando as duas sensações, percebemos uma terceira imagem que oscila, continuamente, 3 entre os planos criados pelas fitas de quadrados fortemente coloridos e os efeitos de perspectiva. Ressaltamos que não existe nenhuma hierarquia ou ordem lógica entre estes planos, no sentido de uma seqüência gradual. Esta última imagem contém uma dinâmica própria: ao interagir, os dois sistemas, aquele do plano e aquele do espaço, conservam suas propriedades, sendo correlacionados mesmo quando distanciados um do outro. Eles apresentam uma característica global ou holística, não podendo ser reduzidos à soma de suas partes. Para acentuar esta particularidade do espaço pictórico de Vieira da Silva podemos citar, como termo de comparação, a pintura impressionista, em particular a obra da última fase do impressionista francês Claude Monet (1840-1926)10. Nestes quadros encontramos uma dualidade semelhante entre efeitos planimétricos e perspectivos, mas diferente em um aspecto crucial. Quando o espectador observa um quadro de Monet de muito perto, ele vê uma miríade de manchas coloridas sem distinção de tema, isto é, de objeto. Por outro lado, à medida que ele se afasta, os pontos começam formar massas, das quais nascem objetos de plasticidade até que seja construído um espaço perspectivo inteiro. A diferença entre este universo e o universo dual de Vieira da Silva reside no fato de que os aspectos planos e perspectivos não se superpõem nas obras de Monet. A partir de cada posição diante da obra, o espectador percebe só uma imagem: uma imagem definida em si, estável, sem movimento próprio. Trazemos um outro caso para comparação: um artista francês que foi, como Vieira da Silva, ligado ao Abstracionismo Lírico: Jean Fautrier (1898-1964). Na sua composição As latas redondas de 1954 (óleo sobre papel e tela, 38x46 cm, col. part.). Fautrier sugere também duas leituras: podemos, seguindo o título, identificar duas latas brancas em um espaço azul e branco pouco definido, ou ver nesta obra uma composição não figurativa que tematiza a textualidade de uma aplicação de tinta de textura grossa. As duas leituras entrelaçam-se como na obra de Vieira da Silva. Alguns traços rápidos de cor preta, quase retos, acentuam o plano da composição abstrata e definem, ao mesmo tempo, o tema da tela ou seja a lata; Sejamos mais precisos: não podemos falar, na verdade, de duas latas brancas. Observamos dois retângulos de tinta grossa de cor branca superpostos por quatro círculos pintados com o mesmo gesto rápido visto nas retas. Os dois elementos não estão ligados. Porém, combinando as retas e os círculos com os retângulos brancos associamos imediatamente a idéia de duas latas redondas. Fautrier consegue igualmente casar várias perspectivas contraditórias de maneira a permitir num primeiro olhar identificar latas redondas, isto é, volumes colocados em um espaço. Mas, ao demorar-se na observação da composição, as incongruências perspectivas começam a aparecer de forma cada vez mais aguda. Porém, como no exemplo de Matisse, o espaço pictórico em si mesmo não é envolvido neste vai-e-vem entre aspectos planos e perspectivos. Ele continua sendo um espaço predefinido contendo elementos pictóricos que não estendem sua aparência ambígua ao espaço inteiro da composição. Não existe diálogo inextricável entre o fundo pictórico e os elementos. O fundo é caracterizado como o plano da tela, claramente preparado com azuis esfumados, antes que os traços pretos e as camadas de branco tivessem sido colocados. Nenhum colega de Vieira da Silva portanto tematizou o paradoxo entre o plano pictórico imposto pela tela e o espaço perspectivo imposto pela percepção em três dimensões como podemos observar nas obras da artista. De fato, a dualidade plano-perspectiva intrínseca às obras de Vieira da Silva transforma o espaço pictórico em si mesmo, torna-o dinâmico através de seus opostos, e tematiza assim a dualidade entre a propriedade plana inerente à tela e o espaço perspectivo da pintura figurativa, fingindo compartilhar nossa experiência imediata da visão tridimensional. Espaço e objeto não formam mais duas entidades separadas, mas condicionam-se reciprocamente. Esta caraterística implica também numa mudança da relação com o espectador. Seu olhar não é mais banido do espaço pictórico para uma posição, como no caso de Fautrier, ou para várias posições, como no caso de Monet, fora do quadro, mas faz parte integrante da dinâmica do espaço pictórico. Como espectadores temos que percorrer com nosso olhar todos os caminhos que surgem da tensão entre os efeitos planimétricos e perspectivos. A 4 tela O passeante invisível (óleo sobre tela, 132x168 cm, San Francisco Museum of Modern Art, San Francisco, fig. 2), realizada entre 1949 e 1951, evidencia claramente este contexto e apresenta ainda uma nova dimensão das obras de fins dos anos 40 e começo dos anos 50, a saber, uma ampliação do aspecto perspectivo. Já nas obras anteriores, em particular nos interiores dos anos 30, o espaço perspectivo não seguiu as regras da perspectiva central. Temos a impressão de um espaço tridimensional habitual, mas ao medir as linhas de fuga, elas não são construídas matematicamente. Com obras como Enigma de 1949 (óleo sobre tela, 89x116 cm, col. João Vasco Marques Pinto, Porto) ou O corredor infinito, realizado entre 1942 e 48 (óleo sobre tela, 1942-48, 81x100 cm, col. part., Suíça) a aparente perspectiva central do espaço inteiro subdivide-se em outros espaços perspectivos que se abrem nas laterais, no teto, no solo e no fundo e desfiam perpetuamente nosso olhar. O título do Passeante invisível é evocador: nós encarnamos, na verdade, o passeante, perscrutando os infinitos espaços que se abrem de todos os lados. Porém, estes sub-espaços, que compõem o espaço central, seguem todos uma lógica própria. Assim, sendo um espaço é mostrado a partir de um ponto de vista à esquerda, aquele ao lado de um ponto de vista à direita; existem vistas lado a lado, vistas de cima e de baixo; um teto ali constitui ao mesmo tempo um solo do espaço a cima; muros de apoio formam simultaneamente fileiras de piso; fundos avançam e recuam. A composição apresenta, por um lado, uma estrutura geométrica com grandes eixos verticais e horizontais que subdividem o plano da tela em vários outros planos, cujo aspecto bidimensional é sustendo por vários quadrados e faixas cinzas e bege. Por outro lado, abre-se dentro de cada plano um espaço perspectivo. Estes faixas e quadrados planos, mais traços pintados que planos geométricos exatos, concentram-se nas bordas enquanto que os espaços perspectivos multiplicam-se no meio da composição. Desta maneira, a profundidade da composição inteira é reforçada. Observa-se também uma diagonal que se estende do canto direito abaixo ao canto esquerdo acima, mas cuja continuidade é interrompida no meio. Nas suas extremidades ela ressalta o aspecto plano da tela. Porém, uma parte desta diagonal forma ao mesmo tempo uma linha de fuga destacada à direita que, com uma linha de fuga à esquerda, define um espaço profundo e central para composição como um todo. Este espaço profundo atrai em um primeiro momento o nosso olhar. Ele nos engana, pois temos a impressão de que uma única perspectiva central rege a composição. Na verdade, em cada quadrado do espaço pictórico inteiro nasce um novo espaço com sua própria realidade. E de fato, toda mágica deste quadro evaporar-se-ia ao se tentar perceber a composição sob uma só perspectiva, ao tentar focalizar um só espaço. O segredo é percorrer todos os passeios espaciais cuja memória representa um papel central. A memória dos espaços já percorridos acompanha a caminhada do passeante, permitindo desta maneira a coexistência de realidades contraditórias. A obra de Vieira da Silva constitui uma ponte para vencer um abismo entre duas realidades, que é intrínseco à pintura: aquela do plano da tela e aquela da experiência da visão tridimensional do espectador. Sua obra dinamizou o antigo espaço estável predefinido. Vieira da Silva criou um novo espaço pictórico que é caracterizado pela sua dualidade intrínseca: uma característica que conduz direitamente à propriedade da luz. A luz revelou-se para os físicos de todos os tempos um objeto de pesquisa bem caprichoso com suas características de refração, reflexão e gama de cores. O pai da mecânica clássica, Isaac Newton (1642-1727) considerou a luz como um fluxo de corpúsculos, criticando a hipótese ondulatória. Já, a hipótese do físico holandês Christian Huygens, publicada em 1690, explicava a luz como fenômeno ondulatório. Corpúsculo ou onda? Para se responder a essa pergunta era necessário submeter a luz a várias provas. Os fenômenos conhecidos por Newton pareciam apontar para a explicação corpuscular, e essa hipótese foi aceita de um modo geral durante o século XVIII. No entanto, a situação mudou no século seguinte, quando em 1801, o físico inglês Thomas Young (1773-1829) defendeu a hipótese de que a luz se propagaria como uma onda. Os estudos sobre óptica realizados durante o século 5 XIX foram confirmando a hipótese ondulatória, e ela se tornou ainda mais forte quando a teoria eletromagnética de James Clerk Maxwell (1831-1879) unificou a óptica com o eletromagnetismo, interpretando a luz como uma onda eletromagnética de alta freqüência. No final do século XIX, no entanto, surgiu um problema grave, relacionado com o estudo da radiação térmica. O físico alemão Max Planck (1858-1947), professor de física em Berlim, estava tentando explicar o espectro da radiação emitida por uma cavidade aquecida (“corpo negro”). Inicialmente ele adotou a teoria eletromagnética da luz, mas em 1900 ficou claro que a equação a que ele chegou não satisfazia os dados experimentais. Ele acabou chegando, depois de várias tentativas, a uma equação que satisfazia os dados experimentais, mas precisou introduzir uma hipótese nova. Era preciso supor que a energia dos osciladores atômicos que emitiam a luz era dividida em pacotes discretos de energia, ou “quanta”. Essas unidades de energia dependiam da freqüência: quanto maior a freqüência ν (ou quanto menor o comprimento de onda), maior a energia ε de cada quantum, de acordo com a equação ε = hν, onde h é a constante de Planck (h = 6,625 x 10-34 m2kgs-1 ou joule.segundos). Essa constante representava uma unidade básica da grandeza chamada “ação”. Esta descoberta do quantum universal de ação revelou uma característica de atomicidade nas leis da natureza que superava a antiga doutrina da divisibilidade limitada da matéria. O próprio Planck não considerou, no entanto, que sua hipótese levasse à idéia de que a energia luminosa é quantizada. Foi Albert Einstein (1879-1955) quem introduziu essa nova interpretação, cinco anos depois. Einstein reconheceu que alguns fenômenos físicos de troca de energia entre radiação e matéria, tais como o efeito fotoelétrico, podem depender diretamente de efeitos quânticos individuais. Ele adotou a idéia de que a luz é dividida em pacotes de energia (mais tarde denominados “fótons”), que obedeceriam à relação E = hν – ou seja, a radiação de maior freqüência teria “pacotes” de energia maiores. Esses quanta de luz teriam também um momento mecânico, dado por p = h/λ, onde λ é o comprimento de onda da radiação. A idéia de Einstein era engenhosa e servia para explicar alguns fenômenos, mas o quantum de luz gerou um dilema imprevisto, pois qualquer modelo corpuscular simples da radiação seria irreconciliável com os efeitos de interferência, que são um aspecto essencial dos fenômenos radiantes e só podem ser descritos nos termos de um modelo ondulatório. Alem disso, os efeitos de interferência fornecem o único meio de definir os conceitos de freqüência e comprimento de onda, que entram nas próprias expressões da energia e do momento do fóton. Einstein não sabia como conciliar essas duas idéias, e sugeriu de forma vaga que as propriedades ondulatórias da luz poderiam ser efeitos estatísticos produzidos quando há um grande número de fótons. Poucos físicos da época, no entanto, consideraram que a proposta de Einstein tivesse algum valor, por ser incompatível com a teoria ondulatória. Os trabalhos sobre os efeitos da luz e sua conseqüente interação com a matéria durante os anos da década 20 evidenciam, porém, que há um elemento essencial de ambigüidade. Louis de Broglie (18921987) foi a primeira pessoa que aceitou a existência de uma dualidade onda-corpúsculo para a luz, e além disso a generalizou para abranger também as partículas da matéria, em 1923. Tanto em um caso quanto em outro, ele supôs que as concentrações de energia estão associadas a certas “ondas de fase” que conduzem essas concentrações pelo espaço. Essas ondas, sozinhas, não podem ser observadas, pois aquilo que se observa é uma troca de energia entre a radiação e os detetores, e por isso apenas as concentrações de energia são observáveis. No entanto, são essas ondas inobserváveis que conduzem as concentrações de energia e que as dirigem, fazendo com que seja mais provável observá-las em certos pontos do que em outros. Nessas circunstâncias, os físicos lidavam com imagens contrastantes, cada qual referindo-se a um aspecto essencial dos dados empíricos. Um aparente abismo instalou-se entre a realidade de nossa experiência imediata (resultado de observação) e a realidade atômica. O elétron é a síntese de dois aspectos contraditórios – ondulatório e corpuscular – e só podemos pensar em cada instante sobre um desses aspectos. Nossa mente, adaptada a um mundo macroscópico que não manifesta essa dualidade, não consegue fundir as duas idéias em uma só. 6 Este é um ponto em que a física quântica e a pintura de Vieira da Silva se aproximam. Na pintura figurativa, o quadro retrata uma realidade coerente, que tem uma única interpretação de sua perspectiva. Na pintura abstrata, o quadro não possui perspectiva, mas é trabalhado como um plano sobre o qual o artista desenvolve seu trabalho. São duas formas opostas de tratar a pintura, aparentemente irreconciliáveis, pois não podemos pensar a pintura ao mesmo tempo como algo plano (uma tela plana com áreas coloridas) e como representação de um espaço perspectivo. Assim, sob o ponto de vista espacial, a pintura figurativa e a abstrata se opõem e complementam, mas não encontram uma síntese.11 Uma tensão intrínseca de superposição de duas realidades, aquela do plano da tela e aquela de nossa experiência imediata da visão perspectiva caracteriza, porém, a pintura de Vieira da Silva. Sua obra tematizou explicitamente esta tensão entre as ambas realidades quando transformou o espaço pictórico –que fingiu na pintura figurativa pertencer à mesma realidade de nossa experiência de percepção– em um espaço flexível ou em um estado que contém as características das duas realidades. Ao se observar a pintura de Vieira da Silva, o observador oscila entre duas visões: a do plano da tela, com suas manchas coloridas, e a de um espaço perspectivo, dotado de profundidade. Essa fusão das duas realidades não parece encontrar-se, com igual força, em nenhum outro artista, e isso determina a singularidade de Vieira da Silva. A Teoria Quântica tinha ultrapassada uma oposição imposta pela natureza ao aceitar que o elétron não corresponde exatamente nem ao modelo da onda nem aquele do corpúsculo, ou melhor, que ele funde em si esses opostos aparentemente irreconciliáveis. Nos últimos anos da década dos 20 novos aspectos surgiam com o desenvolvimento da área da Eletrodinâmica Quântica que é uma teoria que procura explicar as interações eletromagnéticas utilizando a Teoria Quântica. De acordo com essa teoria, as forças eletromagnéticas entre partículas carregadas não são forças à distância nem produzidas por um “campo” no sentido clássico. São o resultado da troca de fótons entre as partículas. Na física clássica imagina-se um elétron, que seria a origem de um campo eletromagnético, como um corpúsculo no meio de um campo de energia eletromagnética. Agora, quando um outro elétron aproxima-se do primeiro, ele “sente” o campo e daí surge uma força de repulsão. Nesta imagem do Eletromagnetismo Clássico as informações ou “mensagens” entre as partículas são transmitidas através das ondulações do campo eletromagnético em um processo que liga todas as partículas a uma rede de ações e reações. A Eletrodinâmica Quântica conserva em princípio esta imagem de um campo, mas com algumas modificações consideráveis. A interação eletromagnética entre duas partículas inclui a troca de fótons. O fóton age quase como mensageiro que transmite as mensagens entre os elétrons e outras partículas, efetuando a transmissão de energia e de momento. Assim, um elétron emite um fóton que é absorvido por um segundo elétron. Esses processos de emissão e absorção de fótons não são observados. Apenas observamos o resultado, que é a repulsão aparente entre os dois elétrons. Vamos explicar o motivo pelo qual esses fótons não podem ser observados. A emissão espontânea de um fóton por um elétron é um processo que viola a conservação da energia. A energia do fóton mais a energia do elétron, após a emissão, é maior do que a energia do elétron sozinho que existia antes. Esse tipo de emissão não poderia acontecer, de acordo com a física clássica. Mas pode ocorrer, de acordo com a Teoria Quântica, desde que essa violação da conservação da energia obedeça ao Princípio de Incerteza formulado pelo físico Werner Heisenberg em 1927 que implica que qualquer medida da posição de um elétron por meio de um aparelho estará associada a uma troca de momento e energia entre o elétron e o instrumento de medida, que será tão maior quanto mais exata for a medida da posição que se procurar obter: ΔE x Δt ≈ h/2π. Uma variação de energia ∆E que ocorra durante um tempo ∆t menor do que h/(2π. ∆E) não pode ser observada (por causa do princípio de Heisenberg) e portanto, nessas condições, é como se não tivesse ocorrido nenhuma violação da conservação da energia. Assim, o princípio de Heisenberg permite 7 uma violação da conservação da energia durante um tempo pequeno, e durante esse tempo pode existir um fóton inobservável emitido espontaneamente por um elétron. Esse tipo de fóton é chamado de “fóton virtual”, para distingui-lo dos fótons observáveis. São esses fótons virtuais que transmitem as interações eletromagnéticos, segundo a Eletrodinâmica Quântica. Estes fótons-mensageiros possuem uma espécie de existência fantástica ou virtual. A indeterminação quântica permite que a partícula mensageira nasça, dure apenas um instante e desapareça imediatamente. Assim, a energia deste quantum efêmero é determinada pela duração de sua existência e vice-versa; um quantum de uma existência curta pode ter mais energia que aquele com uma existência mais longa. Como esses fótons virtuais possuem velocidade c igual à velocidade da luz no vácuo, eles não podem se afastar muito do elétron: somente podem atingir uma distância d=c. Dt que vai depender de sua energia. Os que podem se afastar mais são os que duram mais tempo e que, portanto, possuem menor energia. Um elétron pode ser imaginado cercado de uma nuvem de fótons virtuais. Cada fóton emitido do elétron é rapidamente absorvido, em um processo no qual os fótons mais perto do elétron são mais energéticos que os mais distantes, que são aqueles que têm que existir durante um tempo mais longo. Esta energia total relacionada aos fótons virtuais pode ser calculada. O resultado é surpreende, se não absurdo, a saber: infinito. Na verdade, não existe limite mínimo para a distância do fóton, e conseqüentemente não existe um limite máximo para sua energia. A quantidade de energia de todos os fótons próximos é infinita. Na física clássica, o campo eletromagnético que cerca um elétron possui também energia, mas essa energia é finita. O campo quântico de fótons virtuais que cercam um elétron, no entanto, parece ter uma energia infinita – e assim, o próprio elétron teria uma energia (e massa) infinita. Consequentemente, o tratamento das equações da Eletrodinâmica Quântica contêm divergências infinitas. Esse problema foi solucionado no final dos anos 40, com os trabalhos de Sin-itoro Tomonaga12, Julian Schwinger, Freeman Dyson e Richard Feynman. Esses físicos conseguiram não só resolver o problema, mas até mesmo ultrapassá-lo com a Teoria da Renormalização. Sem querer saber com certeza, o que é na verdade a energia ou a massa de um elétron, a teoria restringe-se a um procedimento que permite calcular sua massa. A idéia é a seguinte: imaginemos a possibilidade de dissociar o elétron de sua carga, e portanto, de seu campo elétrico e da energia a ele associada. A este elétron “nu” atribuímos uma massa negativa infinita. Quanto ao seu campo elétrico, associamos também uma energia infinita. Mas, de fato, como não é possível observar o elétron sem o próprio campo, devemos considerar a soma dos dois – a massa do elétron “nu” mais a massa do campo engendrada pela carga. Temos assim, a possibilidade de conseguir que a soma algébrica dos dois infinitos seja finita. Como é impossível “apagar” a carga, a única quantidade mensurável então, é esta soma finita, e o paradoxo desaparece. Os infinitos persistem ainda, mas não aparecem em nenhuma quantidade observável. Eles são simplesmente intermediários de cálculo. A idéia engenhosa reside no fato de se mudar o nível de referência para medir as massas ou as energias. Graças a esta passagem matemática, a descrição do elétron encontra-se liberada dos infinitos que ameaçavam tornar a teoria absurda. Este procedimento de mudança de nível de uma quantidade física chama-se Renormalização. O trabalho que Richard Feynman elaborou em 1949 na área da Eletrodinâmica Quântica tem um aspecto interessante, que não se encontra nos trabalhos dos outros físicos que contribuíram para o desenvolvimento dessa teoria. Ele introduziu diagramas para representar as interações quânticas (diagramas de Feynman) e também um método de cálculo, a chamada Teoria das Integrais (Integral de Trajetórias ou “sum over histories”)13. Segundo Arthur Miller, “O ponto principal é que podemos considerar que a matemática da Mecânica Quântica oferece um vislumbre do mundo subatômico onde entidades podem ser simultaneamente contínuas e descontínuas. Os diagramas de Feynman representam interações entre as partículas elementares de uma maneira realista – existe um conteúdo ontológico nestes diagramas.14 Como veremos, este modelo apresenta uma base por excelência de comparação para compreender melhor como o espaço pictórico de Vieira da Silva apresenta uma totalidade de tendências ao criar espaços perspectivos. 8 A proposta de Feynman contém a idéia básica da possível coexistência de um encadeamento de ações alternativas, para todos os processos quânticos. Esse método ultrapassa o Princípio de Incerteza de Heisenberg, pois tem como objetivo adicionar todas as possibilidades e não só efetuar o cálculo da probabilidade. O modelo de cálculo de Feynman para responder, primeiro, ao aspecto dual da luz, contém uma base relativamente “simples”: ela reside na adição de todas as trajetórias possíveis que uma partícula percorre entre dois pontos de observação. No entanto, é necessário associar dois números a cada trajetória da partícula: um deles representa a amplitude ou grandeza de uma onda associada àquele caminho; o outro representa a fase desta onda. Como a fase pode ser representada por um ângulo, é possível associar a cada trajetória da partícula um vetor com determinado tamanho (correspondente à amplitude) e com determinada direção (correspondente à fase). A soma de todos esses vetores fornece o resultado final, que irá determinar a probabilidade de que a partícula seja detectada naquele ponto. Pode-se representar graficamente esse método. Para cada possibilidade desenha-se uma flecha, que representa o vetor associado a essa possibilidade. Estas flechas são adicionadas, ligando-se a ponta de uma flecha ao início da outra, correspondendo a uma soma vetorial. O início da primeira flecha é depois ligado com a ponta da última. Esta última flecha chama-se a flecha resultante cujo quadrado indica a probabilidade do evento em sua totalidade. A probabilidade do acontecimento de um evento é proporcional ao quadrado da amplitude (representada pelo comprimento da flecha) Por exemplo, uma flecha de um comprimento de 0,4 representa uma probabilidade de 0,16 ou 16%. Um experimento com um espelho pode ser ilustrativo de como esse método de cálculo aplica-se para reduzir o número infinito de todas trajetórias possíveis da luz a uma trajetória otimizada. A montagem existe em um espelho, e em cima deste, uma fonte de luz (S), um detector (P) que conta os fótons, e uma tela (Q) que evita que o fóton se desloque direitamente até o detector. Segundo a física clássica e o bom-senso, a luz deve ser refletida no meio do espelho onde o ângulo incidente corresponde ao ângulo de reflexão. Mas na verdade, a luz atinge todos os pontos do espelho, e é refletido por todos eles, percorrendo assim todas as trajetórias entre a fonte, o espelho e o detector. Segundo Feynman há uma amplitude associada a cada uma das trajetórias que a luz pode percorrer, e há uma fase associada a cada caminho entre a fonte de luz e o detector. Para calcular a probabilidade do acontecimento de um evento corretamente, devemos então, adicionar os vetores que estão associados a cada caminho que a luz poderia percorrer. Feynman destaca ao mesmo tempo, que estes vetores (as flechas) correspondem sempre a amplitudes de probabilidade e resultam, quando elevadas ao quadrado, na probabilidade de um evento completo. O mesmo método de análise pode ser aplicado, de acordo com Feynman, aos outros processo quânticos, como a interação entre dois elétrons. Como já foi explicado, a Eletrodinâmica Quântica interpreta as forças entre dois elétrons como sendo produzida pela troca de fótons virtuais. No entanto, esse processo não é tão simples quanto poderíamos imaginar. Ao se deslocar entre um elétron e o outro, esse fóton pode passar por infinitos caminhos diferentes e, além disso, pode sofrer infinitas séries de transformações diferentes. Um fóton real de alta energia pode, colidindo com a matéria, produzir um par elétron-pósitron; e um elétron e um pósitron, quando se encontram, se aniquilam, produzindo fótons. De modo semelhante, um fóton virtual pode se transformar em um par elétron-pósitron (também virtual), e esse par elétron-pósitron virtual pode produzir um fóton. Assim, quando dois elétrons trocam um fóton virtual (ou mesmo quando um elétron isolado emite um fóton virtual), podem ocorrer muitos processos intermediários. O elétron emite um fóton, e este produz por exemplo um par elétron-pósitron, e os membros deste novo par trocam por sua vez outro fóton virtual. A seguir eles se aniquilam e engendram um terceiro fóton virtual, que é enfim, absorvido pelo elétron. Esta, porém, não é a única seqüência possível de eventos. Podem ocorrer processos muito mais complicados entre a emissão do fóton e sua absorção, e deve-se levar em conta todas essas possibilidades ao efetuar os cálculos. Em certo sentido, todos esses processos mutuamente exclusivos ocorrem ao mesmo tempo, paralelamente. Feynman mostrou como era possível calcular a “soma” de todas essas possibilidades, e obteve resultados quantitativos 9 importantes. Seu cálculo leva em consideração a trajetória direta que uma partícula pode ter entre dois instantes, assim como as correções que incluem a possibilidade de emissão e absorção de um ou vários fótons. Assim, a teoria de Feynman mostra a necessidade de integrar em uma unidade um número infinito de processos conflitantes, que não poderiam ocorrer ao mesmo tempo, de acordo com a física clássica. Em um primeiro momento, vimos que era possível fazer um paralelo entre a pintura de Vieira da Silva e a dualidade quântica. Agora, daremos um novo passo, tentando transpor o método de Feynman para a interpretação da obra de Vieira da Silva. A interpretação de uma perspectiva não se dá pela análise de uma linha ou um quadrado isolado, mas pela percepção produzida pela interação de diversas linhas ou figuras planas. Se isolarmos um único quadrado, retângulo ou losango de uma pintura de Vieira da Silva, esse elemento isolado não transmitirá nenhuma noção de profundidade. Ao considerarmos uma região com muitos desses elementos (como, por exemplo, uma região de O passeante invisível, fig. 2), podemos começar a vislumbrar perspectivas tridimensionais. No entanto, ao contrário de uma pintura figurativa clássica, a perspectiva da pintura de Vieira da Silva não apresenta um caráter estático. Os elementos planos interagem entre si de uma forma complexa e inesgotável, levando a uma constante mutação de visões. Desafio do nosso bom-senso: a luz, como uma onda criando uma rede infinita de novas ondas ao espalhar-se a cada ponto de encontro, percorre um número infinito de caminhos entre sua partida, isto é, a fonte, e sua chegada, por exemplo uma tela. Porém, ao detectá-la isoladamente, por exemplo no momento de uma colisão com um elétron, ela se mostra como uma partícula. Quanto à pintura de Vieira da Silva, ousamos avançar uma primeira paralela: podemos dizer da mesma forma que a partir de um quadradinho qualquer desenvolve-se um número infinito de espaços perspectivos cujo percurso termina na quadratura da tela. Cada elemento pictórico isolado não apresenta nenhum aspecto contraditório em sua definição formal, encontrando-se em um estado estável. No momento de entrar em relação com seu contexto pictórico, ao contrário, ele perde seu aspecto definido para tornarse uma tendência, encontrando-se agora em um estado dinâmico. Como no caso de dois elétrons trocando um fóton, que envolve uma diversidade de infinitos processos diferentes e incompatíveis em um mar de fenômenos virtuais, um quadradinho da linguagem pictórica de Vieira da Silva entra em colisão com um outro quadrado criando um número infinito de interações entre planos perspectivos. Assim nascem diante nosso olhar espaços que desaparecem com a mesma velocidade formando um mar de fenômenos fantasmas, de todas as variedades, interligados. Como os diagramas de Feynman, o espaço pictórico de Vieira da Silva reconcilia formas definidas, estáveis com processos dinâmicos virtuais. A ambigüidade da ligação do espaço perspectivo e dos planos pictóricos, ou seja a dificuldade de não encontrar uma posição definida de percepção, pode ser ultrapassada: o espectador não deve compreender toda colisão entre plano e espaço pictóricos como um cruzamento de ou isso ou aquilo, ou de sim ou não, mas como uma totalidade, isto é como uma somas de todas as trajetórias possíveis para construir perspectivas infinitas. Assim não existe mais a questão sobre qual das formas faz parte do fundo ou do primeiro plano, se faz parte do espaço perspectivo ou do plano pictural, se os quadrados ou as linhas que construem uma rede de espaços indicam uma profundidade ou um efeito plástico em direção do espectador, pois os espaços aproximam-se e afastam-se ao mesmo tempo do espectador. Fazemos referência ao quadro O passeante invisível (fig. 2). O fenômeno, ao primeiro olhar, de um espaço perspectivo só, é refletido em todas as partes da composição (não existe mais nenhuma referência posicional fixa, visto de um ponto exterior), como a luz é refletida em todas as partes de um espelho. Seguindo a análise de Feynman, podemos associar um vetor a cada uma das trajetórias possíveis, a cada uma das possibilidades de nosso fenômeno. Nenhuma delas é a única, nenhuma é a trajetória real. A realidade é a soma de todas essas possibilidades. Para calcular a probabilidade do acontecimento de um evento corretamente, referente à nossa entrada como espectador e identificada com a trajetória de nosso olhar, devemos então adicionar os vetores para cada caminho no qual o evento pudesse acontecer. A soma das trajetórias do olhar percorrendo simultaneamente todas as 10 perspectivas seria reduzida desta maneira à trajetória direta entre um quadradinho e o plano da tela em sua concordância formal através das linhas de fuga constituídas das infinitas perspectivas intrínsecas ao espaço pictórico para evocar a impressão de um espaço perspectivo só. Nosso olhar oscila entre os vários caminhos interpretativos, que não esgotam a obra. A obra é a totalidade infinita, a síntese de todas essas trajetórias que percebemos em cada momento. O fascinante na pintura de Vieira da Silva é o fato dela tornar palpável, tangível mesmo, aquilo que (na física quântica) a abstração do cálculo matemático afasta de nossa capacidade de percepção. Os quadros de Vieira da Silva tornam sensível o jogo de processos virtuais envolvendo o tempo, o espaço, a massa, as cargas (imaginárias) reduzidas a signos numéricos pela Teoria da Eletrodinâmica Quântica. Afastando-se da arte tradicional, o espaço pictórico de Vieira da Silva deixou o terreno da determinação em que cada ponto podia ser localizado inconfundivelmente em um eixo temporal e espacial. Agora estes pontos abrangem uma multidão de tendências ao criar seus espaços perspectivos. O histórico do desenvolvimento da Eletrodinâmica Quântica demostrou um ponto convergente entre a Física e as Artes quanto à mudança da visão de mundo e do encontro do homem com a realidade, ao aceitar características da realidade reveladas através de suas respectivas linguagens. A matemática da Mecânica Quântica, no sentido de uma sintaxe, gerou sua própria significação no sentido semântico, conduzindo Feynmam a um método ideográfico (diagramas) gerado pela matemática e a uma interpretação mais rica dos processos quânticos. Da mesma maneira, a linguagem pictórica conduziu Vieira da Silva a uma expressão artística, que memorizou os infinitos percursos de sua própria gênese e levou a uma criação de um novo tipo de espaço pictórico com infinitas possibilidades. Sua obra constitui um espaço de simultaneidade que tornou palpável uma característica intrínseca da imagem, a saber, que nenhum imagem é isolável de todas as que a precedem e das que a sucedem; ela está baseada nesta mobilidade e ao mesmo tempo a revela. A imagem da realidade pictórica de Vieira da Silva pode ser considerada análoga aos resultados da Mecânica Quântica. 11 Referências bibliográficas Feynman, R. P., Leighton, R. B., Sands, M., The Feynman Lectures on Physics. Quantum Mechanics, Addison-Wesley Publishing Company, Massachusetts, 1965. Feynman, R. P., QED. Die seltsame Theorie de Lichts und der Materie, Piper, Munique, 1997, do original, QED – The Strange Theory of Light and Matter, foi publicado em 1985, Princeton University Press, Princeton. França, J.-A., Vieira da Silva, Editora Artis, Lisboa, 1958. Haber-Schaim, U., Cross, J. B., Dodge, J. H., Walter, J. A., Physics, 4. Ed., D. C. Heath and Company, Massachusetts, 1976. Miller, A., I., Insights of Genius. Imagery and Creativity in Science and Art, Editora Springer, Nova Iorque, 1996. Philipe, A., O Fulgor da luz. Conversas com Maria Helena Vieira da Silva e Arpas Szenes, Lisboa, Editora Rolim, 1978. Weelen, G., “Vieira da Silva et la peinture de l’après-guerre”, in: Colóquio (Lisboa), n° 58, Abril de 1970. Weelen, G.; Jaeger, F.; Daval, J.-.L.; Deval Béran, D.; Duval, V., Vieira da Silva, Monografia, Editora Skira, Genebra, 1993. Weelen, G, Jaeger, J.-F., Daval, J.-L., Daval Béran, D., Vieira da Silva: catalogue raisonné, Editora Skira, Genebra, 1994. 12 Notas 1 Especificamos que a obra de Vieira da Silva foi também ligada pela literatura especializada (por exemplo Haddad, H., “La Perspective du vertige”, in: L’Éducation, Outubro de 1981) ao ramo do Paisagismo abstrato agrupando Bazaine, Bissière, Estève, Manessier, Nicolas de Stäel e Ubac. 2 Weelen, G.; Jaeger, F.; Daval, J.-.L.; Deval Béran, D.; Duval, V., Vieira da Silva, Monografia, Editora Skira, Genebra, 1993, p. 109. 3 Ibid., 1993, p. 110. 4 Murilo Mendes conhecia o casal Arpad Szenes e Vieira da Silva durante sua estadia de 1940 a 1947 em Rio de Janeiro. 5 Mendes, M., Vieira da Silva, texto manuscrito (2 páginas) redigido em 1969 em Roma, arquivos Arpad Szenes e Viera da Silva, Fundação Vieira da Silva, Paris (sem n° de inventário), p. 2. 6 Weelen, G; Jaeger, F., Daval J.-L.; Deval Béran, D.; Duval V., op. cit., 1993, p. 86. 7 Weelen, G., “Vieira da Silva et la peinture de l’après-guerre”, in: Colóquio (Lisboa), n° 58, Abril de 1970, p. 21. 8 Citação segundo Weelen, G.; Jaeger, F.; Daval, J.-.L.; Deval Béran, D.; Duval, V., op. cit., 1993, p. 12. 9 Estamos conscientes de que o caráter interdisciplinar de nosso trabalho implica em incursões em uma área diversa (a Física) da nossa especialização (a História de Arte) acarretando talvez, a problemática de não satisfazer de maneira equänime as exigências das duas disciplinas. Por outro lado, para não nos limitarmos somente a alusões, achamos necessário expor o histórico, os conceitos fundamentais e as implicações filosóficas da Física Moderna a fim de evidenciar os paralelos existentes entre a conceitualização do espaço feita pelos físicos e artistas na primeira metade do século XX. 10 Citamos por exemplo a paisagem Manhã à beira da Sena de 1897 (óleo sobre tala, 81x92 cm, Amherst College, Mead Art Museum). 11 Veja o artista plástico Paul Klee que dizia que pintura em si mesma é um paradoxo. Ela somente existe pela colocação formal gráfica mas – como o cosmos – ela é uma verdadeira condensação do movimento invisível da criação. Sendo causa e efeito ao mesmo tempo, movimento fingido e espaço temporal, a obra, para poder conservar o signo de sua mobilidade, deve ser viva e produtiva. Klee, P., “Le Credo du créateur” (1920), in: Théorie de l’art moderne, Editora Gonthier, Paris, 1980, p. 34. Citação segundo Quentel, “Paul Klee. Le lieu de la cosmogenèse”, in: Vision Machine, catalogue de exposição, Musée des Beaux Arts de Nantes, 13 de maio a 10 de setembro de 2000, p. 66. Citação original: “La seule voie optique ne correspond plus à la totalité de nos besoins actuels, de même qu’elle ne couvrait pas celle d’avant-hier. [...]. D’anatomique, l’optique devient de plus en plus physiologique.”. 12 Em 1949 quando Feynman publicou seu método de representação do mundo atômico através de diagramas Schwinger e Tomonoga propunham simultaneamente uma outra formulação matemática da Eletrodinâmica Quântica. Segundo Arthur I. Miller, Insights of Genius. Imagery and Creativity in Science and Art, Editora Springer, Nova Iorque, 1996, p. 400, a proposição de Schwinger foi em termos matemáticos mais elegante, mas difícil na sua aplicação, porém ela continha o rigor que faltou ao método de Feynman. Pouco tempo depois Dyson demonstrou a equivalência das formulações de Feynman e Schwinger. Feynman, R. P., QED. Die seltsame Theorie de Lichts und der Materie, Piper, Munique, 1997, do original, QED – The Strange Theory of Light and Matter, foi publicado em 1985, Princeton University Press, Princeton. 14 Miller, A. I., op. cit., 1996, p. 248. Citação original: “The essential point is that we can assume that the mathematics of quantum mechanics offers a glimpse of the subatomic world, where entities can be simultaneously continous and discontinous. Feynam diagrams represent interactions among elementary particles in a realist manner – there is ontological content in these diagrams.” 13 13