Efeitos e afectos de Kant na estética fenomenológica de M.Dufrenne

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João Tiago Pedroso de Lima
Efeitos e afectos de Kant na estética
fenomenológica de M.Dufrenne. A
noção de "a priori" afectivo
No seu livro com o título que consideramos mais intempestivo, Pour l’homme,
Mikel Dufrenne sublinha, a abrir o capítulo que se reporta às relações entre o sujeito e o
objecto, um ponto simples mas não menos essencial, afirmando: «se a filosofia se
preocupa com o homem é com o homem concreto»1. E logo depois explicita a sua tese:
«claro que não se trata, para a filosofia, de ajudar materialmente o homem, mas de o
pensar»2. Revela-se aqui uma evidente familiaridade com o programa da fenomenologia
de Merleau-Ponty em aceder à camada expressiva de que se reveste a presença do
homem no mundo anterior a qualquer predicação. De resto, é também comum aos dois
filósofos franceses a convicção de que a experiência estética (que, ainda assim, não
significa exactamente o mesmo em ambos3) constitui um veículo privilegiado para dar
conta desse habitar humano anterior a qualquer economia, no sentido grego deste termo.
Com efeito, em Phénoménologie de l’éxpérience esthétique, Dufrenne começa
por estabelecer o que aqui vamos considerar como sendo os contornos metodológicos
decisivos do seu programa fenomenológico, a saber:
1. circunscrição da experiência estética à experiência do espectador.
2. distinção entre obra de arte e objecto estético.
1
MIKEL DUFRENNE, Pour l’homme, Col. “Esprit”, Paris, Éditions du Seuil, 1967, p. 125.
Ibidem.
3
Às relações entre as estéticas fenomenológicas de Dufrenne e de Merleau-Ponty, dedicámos o
nosso estudo “Fenomenologia e Pintura. Ensaio a partir da noção de objecto estético em Mikel
Dufrenne”, Colóquio Internacional A Estética de Mikel Dufrenne. No 50 anos da publicação de
Phénomènologie de la Perception Esthétique, Universidade de Évora, 22/IV/2003, actas no prelo.
2
2
3. a natureza trinária da experiência estética que comporta o que poderíamos
chamar, na senda do dizer de Roberto Figurelli, «três aspectos noemáticos»4:
a presença, a representação e o sentimento.
Ora, é no contexto das reflexões que dedica ao poderíamos chamar
terceiro plano da sua descrição da experiência estética, precisamente quando
esboça o quadro das relações entre a expressividade do objecto estético e o
sentimento de quem vive a (ou, se se preferir, de quem é o receptor da)
experiência estética, que Dufrenne, num gesto à primeira vista surpreendente,
introduz a noção do que denomina «a priori de afectividade»5. De resto, fá-lo
num capítulo também significativamente intitulado “Crítica da Experiência
Estética”. A surpresa do gesto prende-se com o facto de ele surgir numa obra
que tinha o escopo principal de alargar o método husserliano à experiência
estética. Ora, não nos parece despiciendo que Dufrenne tenha feito culminar a
experiência estética (a expressão é dufrenniana) em pleno horizonte téorico
kantiano. Mais: esse diálogo com Kant não é propriamente, no caso do autor de
Esthétique et Philosophie, um desvio, por assim dizer, acidental. A prová-lo com
absoluta segurança está o facto de Dufrenne não ter tomado como resolvidas as
implicações que o conceito de a priori transporta para o âmbito da reflexão
estética e, num sentido mais lato, para o âmbito da filosofia contemporânea e,
circunstância que também não pode deixar de ser assinalada, igualmente o facto
do próprio Dufrenne ter meditado incessantemente acerca do poderíamos chamar
destino filosófico do a priori. A este propósito, relembre-se apenas dois títulos
4
ROBERTO FIGURELLI, «A Contribuição da Estética para a Filosofia», prefácio a MIKEL
DUFRENNE, Estética e Filosofia, Col. “Debates”, nº 69, São Paulo, Perspectiva, 2002, (3ª reimp.), p. 11.
5
MIKEL DUFRENNE, Phénoménologie de l’éxpérience esthétique, Vol. II ‘La perception
esthétique’, Col. «Épiméthée», Paris, P.U.F., 1953, 1993 (3ª ed.), p. 539.
3
que representam, digamos assim, as balizas mais destacadas de uma temática
que preocupou o filósofo ao longo de todo o seu percurso: La notion d’«a
priori»6, volume publicado logo em 1959 e, vinte e dois anos volvidos,
L’inventaire des «a priori». Entre estas duas referências mais significativas, não
esquecendo um texto quase contemporâneo de Phénoménologie de l’éxpérience
esthétique sobre a significação dos a priori7, cumpriria recuperar outros ensaios
dedicados aos a priori da imaginação8, ao a priori como mundo9 ou às relações
entre a priori e a filosofia da natureza10.
O trabalho que agora apresentamos insere-se, portanto, no contexto de
uma investigação mais alargada que visa articular, na esteira do pensamento
dufrenniano e de alguns dos seus efeitos mais importantes11, o conceito de a
priori a partir da sua matriz kantiana, designadamente sublinhando a vocação
constituinte que ele assume na Crítica da Razão Pura, com o programa
fenomenológico de regressar às Sachen selbst, destacando sobretudo como a
6
IDEM, La notion d’«a priori», Col. «Épiméthée», Paris, P.U.F., 1959.
IDEM, «Signification des a priori », Bulletin de la Societé française de Philosophie, Paris,
1955, pp. 97-132
8
IDEM, «Les a priori de l’imagination», Archivio di Filosofia, Pádua, 1965, pp. 53-63.
9
IDEM, «L’a priori comme monde», Annales de l’Université de Paris, Paris, Janeiro-Março de
1966, pp. 1-15
10
IDEM, «A priori et philosophie de la nature», Filosofia, 1967, pp. 732-736
11
Não ignoramos, como é evidente, que a temática do a priori na filosofia de Dufrenne mereceu
já a atenção de vários e valiosos estudos. Cf., por ordem apenas cronológica, PAUL RICOEUR,
“Philosophie, sentiment et poésie. La notion d’a priori selon Mikel Dufrenne”, Esprit, nº 293, Março de
1961, pp. 504-512 [texto reimpresso em Lectures 2 – La contrée des philosophes, Paris, Seuil, 1992, pp.
325-334 ]; JEANNE DELHOMME, “D’un nouvel a priori”, AAVV, Vers une esthétique sans entrave.
Mélanges offerts à Mikel Dufrenne, Col. “Esthétique”, Paris, 10/18, 1975, pp. 89-92 ; ROBERTO
FIGURELLI, “La notion d’a priori chez Mikel Dufrenne”, ibidem, pp. 133-141 ; DANIEL
GIOVANNANGELLI, “Présence et a priori ”, Écriture et répétition. Approche de Derrida, Col.
“Esthétique”, Paris, 10/18, 1979, pp. 81-108; BALDINE SAINT GIRONS, “Dufrenne et l’a priori
materiel”, AAVV, Mikel Dufrenne et les arts, Col. “Le Temps Philosophique”, Paris, Université Paris X –
nanterre, 1998, pp. 43-56; ANTÓNIO PEDRO PITA, “Experiência do mundo e a priori: a condição da
experiência”, A Experiência Estética como Experiência do Mundo. A estética segundo Mikel Dufrenne,
Col. “Campo da Filosofia”, Porto, Campo das Letras, 1999, pp. 177-210; IDEM, “Experiência estética e a
priori”, AAVV, O Homem e o Tempo. Liber Amicorum para Miguel Baptista Pereira, Porto, Fundação
Eng. António de Almeida, 1999, pp. 139-178.
Contudo, acreditamos que esta é uma temática à qual nem sempre tem sido conferida a
importância merecida. Dir-se-ia que há tendência para reduzir o pensamento dufrenniano à sua reflexão
estética, o que não é propriamente justo, no duplo sentido da palavra.
7
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especificidade da experiência estética se apresenta como um veículo privilegiado
para aceder à nossa peculiar condição de ser no mundo. Por agora, visamos
apenas destacar o papel que, em Phénoménologie de l’éxpérience esthétique,
assume o conceito de a priori afectivo, assinalando a especificidade que lhe é
conferida por Dufrenne e, ao mesmo tempo, pondo em evidência a sua
importância no quadro da descrição fenomenológica da experiência estética.
Será essa, julgamos, uma das maneiras possíveis de mostrar como Dufrenne
protagonizou um diálogo, simultaneamente rigoroso e fecundo, com as duas
tradições filosóficas que, em boa hora, este colóquio se propôs fazer debater: o
kantismo e a fenomenologia.
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