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Campinas, 27 de agosto a
Fausto Castilho
traduz ‘Ser e Tempo’,
obra maior de Heidegger
Professor do IFCH, que foi aluno do filósofo
alemão, começou a verter livro para o português
em 1949, quando estudava na Sorbonne
A
LUIZ SUGIMOTO
[email protected]
Editora da Unicamp está lançando a primeira edição bilíngue (alemão-português) de Sein und Zeit (Ser e Tempo), considerada a obra
mais importante de Martin Heidegger, para muitos o principal filósofo do século 20. O responsável pela tradução é Fausto Castilho,
professor emérito da Unicamp, que frequentou o curso de Heidegger na Universidade de Friburgo. Na opinião do professor, Ser
e Tempo é um livro singular “porque pressupõe a leitura por Heidegger
de toda a história da filosofia”. O lançamento ocorre em parceria com a
Vozes, editora que detém os direitos de publicação de títulos do filósofo
alemão no Brasil.
Em sua graduação em filosofia na Universidade de Sorbonne, Fausto
Jornal da Unicamp – O que representa o livro Ser e Tempo para o campo da filosofia?
Fausto Castilho – É um livro bastante
singular, excepcional entre os livros de filosofia do século 20. Em primeiro lugar, porque a obra pressupõe a leitura por Heidegger de toda a história da filosofia. Em 1951,
filólogos importantes na área da filosofia
(alemães, suíços e de outras nacionalidades)
promoveram um seminário em Zurique e
convidaram Heidegger para presidi-lo. Um
dos filólogos presentes, o suíço Emil Staiger,
grande nome da crítica literária, perguntou
a Heidegger o seguinte: “Por que o senhor,
para enunciar o seu pensamento, precisa se
apoiar no comentário dos filósofos?”. Ele
respondeu: “Nunca enunciei nada que me
coubesse. Sempre disse o que os filósofos e
alguns grandes poetas disseram”.
Heidegger comenta os autores contemporâneos, como por exemplo, [Edmund]
Husserl, de quem foi aluno e discípulo; era
um grande intérprete de Kant; um dos maiores adversários de Descartes; e um grande
crítico de Hegel. Conhecia não só toda a filosofia moderna, mas também a filosofia medieval, o que é igualmente excepcional: em
geral, quem gosta dos modernos, não gosta
dos medievais. E, mais do que isso, passou
os últimos 30 ou 40 anos da vida comentando os pré-socráticos: Parmênides, Anaximandro e assim vai...
Então, qual é a excepcionalidade deste
livro? É que se trata de um livro de história
da filosofia, sem dizer que o é. Heidegger
não faz história da filosofia, vai direto aos
filósofos como se fossem contemporâneos
seus, e os examina fora de qualquer esquema de desenvolvimento histórico. Isso é
excepcional porque pressupõe um conhecimento direto dos filósofos, principalmente
os gregos, o que é raro. A filosofia da moda
americana é a filosofia analítica, que simplesmente ignora a história da filosofia. E
por que um alemão, um francês ou um escandinavo têm essa possibilidade? Por causa
do liceu. A Finlândia, país cuja língua não é
sequer europeia, exige cinco anos de latim
no liceu. Por aí, vemos que a possibilidade
de ter acesso aos gregos depende do liceu. É,
portanto, um exemplo flagrante da formação que um liceu alemão (que lá se chama
gymnasium) produz.
JU – O senhor manifesta inconformismo
com a adesão de Heidegger ao nazismo. Que
explicação encontra para que ele tenha tomado tal posição?
Fausto Castilho – Esta adesão ao nazismo é realmente uma coisa insuportável na
biografia dele. Eu tenho lá as minhas ideias
a respeito disso. Eu o conheci pessoalmente por frequentar suas aulas, nunca tive um
contato direto. Mas era um tipo rústico de
camponês (aliás, um montanhês, nascido
nas montanhas do sul do país), o que você
Fotos: Antonio Scarpinetti
“
Qual é a excepcionalidade
deste livro? É que se trata
de um livro de história da
filosofia, sem dizer que o é
“
Em minha opinião, a opção
pelo nazismo não vem apenas
da sua origem montanhesa,
mas também de arrivismo
“
Do ponto de vista do conteúdo,
procurei cotejar os conceitos de
Heidegger, alguns bastante inusitados,
com os conceitos dos outros filósofos
Castilho foi aluno de Merleau-Ponty, Jean Piaget e Gaston Bachelard.
Paralelamente, como convém a um futuro filósofo, cuidou de aprender o
alemão com um grupo de colegas, quando já começou a traduzir a obraprima de Heidegger, ao mesmo tempo em que a estudava. Foi fazendo a
tradução por partes, conforme as necessidades de estudante, professor
e palestrante, até se dar conta, no início dos anos 1980, de que havia
traduzido praticamente todo o livro.
Fausto Castilho, na entrevista que segue, conta como nasceu seu interesse por Heidegger, dimensiona a importância de Ser e Tempo no campo da filosofia e apresenta a sua explicação para a adesão do filósofo alemão ao nazismo, grande mácula em sua trajetória. Perto de completar
83 anos de idade, o professor emérito retoma neste semestre os estudos
sobre a interpretação do Brasil – o outro tema de seu interesse –, prevendo inclusive a realização de seminários multidisciplinares a respeito.
sentia logo na primeira vez que o encontrasse. Ao contrário, por exemplo, de Sartre, que
era uma pessoa delicadíssima. Essa origem
marca Heidegger, que depois de concluir o
curso universitário não tinha nenhuma perspectiva de ascensão social. Quando aparece
o movimento nazista, seus antecedentes de
família – o pai sacristão de uma igrejinha na
montanha e de um catolicismo atrasadíssimo, reacionário – já predispunham o rapaz para atitudes políticas que fugiam das
soluções citadinas, urbanas. Quando Hitler
toma o poder, Heidegger recebe o apoio de
praticamente todo o corpo docente para que
assumisse a reitoria da Universidade de Friburgo, inclusive – e talvez principalmente –
dos judeus, amigos dele. Em minha opinião,
a opção [pelo nazismo] não vem apenas da
sua origem montanhesa, que é uma razão
fortíssima, mas também de arrivismo, isto
é, vontade de subir na vida. Isso contou
muito.
Minha compreensão deste episódio, em
face da imensa obra escrita e publicada, no
fundo é de apenas um episódio em toda a
sua vida. Como dizia Hannah Arendt, que
era judia e foi aluna dele, o curso que nós
assistimos de Heidegger sobre O Sofista, de
Platão, nunca mais vai haver igual numa
universidade alemã. Porque a voz de Heidegger, isto é, o modo como ele interpretava o
texto de Platão, dizia Hannah Arendt, não
era contemporânea, vinha dos primórdios,
como se ele tivesse a capacidade de se transportar até a Grécia. Isso para quem estuda
filosofia é uma coisa importantíssima. Então, quando você compara os textos de filosofia propriamente ditos, com esta atitude
que durou alguns meses em que Heidegger
permaneceu na reitoria, tem de optar: ou
considera o filósofo, ou considera aquele
político ocasional – e não pode confundir as
coisas, de jeito nenhum.
JU – Como surgiu o projeto de traduzir
Ser e Tempo?
Fausto Castilho – Surgiu quando fui para
Paris em 1949. A primeira vez que ouvi falar em Heidegger foi em 1946 (eu tinha,
portanto, 17 anos), na revista do Sartre,
Les Temps Modernes, que começou a circular
em São Paulo; chegavam alguns exemplares
na Livraria Francesa. Eu estudei no Liceu
Franco-Brasileiro, que se chama Liceu Pasteur – o Getúlio [Vargas] tinha eliminado as
denominações estrangeiras – e lia o francês
correntemente. Nessa revista do Sartre apareceu um debate entre dois filósofos, [Karl]
Löwith, que é um alemão, e [Alphonse] De
Waelhens, um belga: os dois discutiam justamente a opção de Heidegger pela reitoria
nazista.
Em 1949, ingressei na graduação em filosofia da Sorbonne. Quando cheguei a Paris,
tinha uma carta do Antonio Candido pedindo para o Paulo Emílio Salles Gomes me dar
Fotos: Reprodução
Merleau-Ponty,
Jean Piaget e
Gaston Bachelard
foram professores
de Fausto Castilho,
na França: docente
da Unicamp “acordava
ouvindo o tocar
dos sinos da igreja
da Sorbonne”
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a 2 de setembro de 2012
Fotos: Antonio Scarpinetti
cobertura. Fui morar num pequeno
apartamento que Paulo Emílio tinha
ocupado antes da Guerra – ele era
muito amigo da proprietária, madame
Jeanne – e, ao se despedir, me disse:
“Agora, você é prisioneiro aqui da Praça da Sorbonne”. Realmente, fiquei lá
por quatro ou cinco anos. E digo sempre que tive muita sorte de encontrar
aquele apartamento: acordava ouvindo o tocar dos sinos da igreja da Sorbonne e me vestia rapidamente para
ir à aula – foi um ponto de disciplina
formidável.
Morei diante da Livraria Vrin. Pedi
ao velho Joseph Vrin que conseguisse
um exemplar do texto de Ser e Tempo
em alemão, que ele conseguiu com um
confrade livreiro. É a famosa edição
nazista, toda censurada [sem a dedicatória de Heidegger ao mestre Edmund
Husserl, judeu] e que guardo até hoje.
Ao mesmo tempo da graduação, passei a estudar alemão com um grupo de
colegas e também o Ser e Tempo. Um
dia, acho que em 1951, Merleau-Ponty, meu professor, perguntou se eu sabia que
Heidegger ia voltar a dar
aulas – ele estava afastado por causa da “desnazificação” e, só quando
foi “desnazificado”, os
militares franceses que
ocupavam a região autorizaram a sua volta. Passei a ir até Friburgo uma
vez por semana.
Tinha muito interesse
por esta obra de Heidegger e comecei a sua tradução ainda como estudante em Paris, ao mesmo
tempo em que estudava
o alemão. Nunca fiz uma
tradução contínua, fui
fazendo por partes, para
utilizá-las como professor e em seminários. Isso
desde 49 até o início dos
80, quando me dei conta
de que já havia traduzido
Este volume oferece, em
praticamente todo o liedição bilíngue (alemãovro. Foi então que procuportuguês), a Primeira Parte
rei a Editora da Unicamp
incompleta de um tratado
sugerindo a publicação,
concebido para abranger
com a condição de que
duas grandes partes. Esse
ela fosse bilíngue.
texto, denominado Ser e
tempo, é amplamente considerado a contribuição maior
JU – Quais foram as dificuldades que encondaquele que muitos têm
trou na tradução?
como o principal filósofo do
Fausto Castilho – As dificuldades foram não
século XX.
só de conteúdo, isto é, de filosofia propriamente
Sobre
‘Ser
e Tempo’
O filósofo e professor Fausto Castilho: trabalho de décadas está sendo publicado pela Editora da Unicamp
Quem foi
Heidegger
Martin Heidegger nasceu
em Meßkirch, distrito de Baden,
no interior da Alemanha, em 26 de
setembro de 1889, e faleceu em Friburgo, em
26 de maio de 1976. O filósofo alemão, um
dos principais pensadores do século XX,
estudou na Universidade de Friburgo,
com Edmund Husserl, o fundador da
fenomenologia, de quem foi assistente. Professor por alguns anos na Universidade de
Marburgo, em 1929 sucedeu Husserl na
cátedra de filosofia em Friburgo. Em 1927
publicou sua obra mais importante: Ser e tempo.
Quem é
Fausto Castilho
Fausto Castilho é licenciado
em filosofia pela Sorbonne (Paris,
França). Foi professor de filosofia na
Universidade Federal do Paraná (UFPR),
na Universidade Estadual Paulista
(Unesp), na Universidade de São Paulo
(USP), no Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas (IFCH) da Unicamp, onde
é professor emérito, e na
Universidade de Besançon, na França.
Dirige as coleções Multilíngues de
Filosofia Unicamp e Estudos de Filosofia
Moderna e Contemporânea, desta Editora.
dita, mas também de linguagem. A solução que
encontrei para a maior parte dessas dificuldades
foi lançar mão dos três índices que menciono no
livro e que tratam da linguagem de Ser e Tempo.
[São os índices de Hildegard Feick, Index zu Heideggers “Sein und Zeit”, 1961; de Theodore Kiesel,
“Lexicon”, in Being and Time, traduzido por J. Stambaugh, 1972; e de Rainer A. Abast/Heinrich
P. Delfosse, Handbuch zum Textstudium von Martin
Heideggers “Sein un Zeit”, vol. 1, 1980].
Evidentemente que as duas traduções para o
inglês, as duas para o francês e a tradução para o
italiano me ajudaram muito, porque são línguas
afins. No fundo, a solução final sempre esteve
na possibilidade de criar neologismos, não só de
termos, mas de locuções. A coisa é complicada.
Do ponto de vista do conteúdo, procurei cotejar
os conceitos de Heidegger, alguns bastante inusitados, com os conceitos dos outros filósofos,
principalmente dos modernos a partir de Descartes, como Kant e Hegel.
Fausto Castilho — que
frequentou o curso de Heidegger na Universidade
de Friburgo, transformado no livro Que significa
“pensar”?, e o seminário
de Eugen Fink sobre a Monadologia de Leibniz — é o
responsável por esta tradução que constitui um marco
na história da recepção desta
obra no Brasil.
Serviço
Autor: Martin Heidegger
Tradução, organização,
nota prévia, anexos e
notas: Fausto Castilho
Ficha técnica: 1a
edição, 2012
Páginas: 1200 páginas
Formato: 16 x 23 cm
Editora da Unicamp
Coedição: Editora Vozes
Área de
interesse: Filosofia
Preço: R$ 160,00 (de 5 a 28
de setembro, por R$ 96,00
nas livrarias da Editora da
Unicamp, na BC e no IEL
JU – Houve dificuldade, também, na obtenção
da autorização do Comitê Heidegger para a publicação da obra em português.
Fausto Castilho – As dificuldades não foram
minhas, mas do doutor Maiorino [José Emílio, assistente de direção da Editora da Unicamp], que
fez toda a negociação. Até alguns anos atrás, havia
uma secretária do Comitê que tinha mais simpatia pela nossa proposta, mas depois a editora das
obras de Heidegger foi vendida para uma editora
americana, o que tornou a negociação ainda mais
demorada. E ainda surgiu a Editora Vozes [detentora dos direitos de publicação de Heidegger no
Brasil], que começou a influir em nossas decisões – esta é a primeira edição bilíngue de Ser e Tempo, mas existe outra tradução
para o português, feita por um professor carioca. Finalmente,
chegou-se ao entendimento de uma edição comum.
JU – Sem falsa modéstia, qual é a contribuição que o seu
livro traz?
Fausto Castilho – Sendo uma edição bilíngue, obviamente
vai facilitar muito o entendimento de uma obra de leitura dificílima. Do ponto de vista didático, isso é importante, porque
entrar no texto de Heidegger sem nenhuma ajuda é uma árdua tarefa. Eu costumo fazer seminários, mas eles já pressupõem um conhecimento de filosofia.
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