A natureza e a ação humana

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21/02/2014
A natureza e a ação humana
Por José Eli da Veiga | Para o Valor, de São Paulo
Obra de Charles Darwin está aberta a avanços e controvérsias que Sanderson deixa de lado
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“Human Nature and the Evolution of Society”
Stephen K. Sanderson. Westview Press. 464 págs., US$57,00
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Ao comentarem a fotografia de um adolescente negro, nu, espancado e preso pelo
pescoço por trava de bicicleta a um poste da orla carioca, nove entre dez colunas e
editoriais evocaram o uso de pelourinhos para castigo público de escravos rebeldes.
Os perpetradores de tão repulsiva barbárie também tiveram sua árvore genealógica
decifrada: tataranetos de escravocratas, bisnetos de esbirros do Estado Novo, netos
das marchadeiras de 1964, e filhos de torcedores do esquadrão da morte. E foi além
Vladimir Safatle: não se deve esperar que tais pessoas mudem. Sempre estiveram
no mesmo lugar. Só mudaram as gerações (Em "A barbárie de sempre", Folha de S.
Paulo, 11/02/14, pág. 2).
Por mais que seja de retórica bem duvidosa esse uso do advérbio "sempre", tais
frases formam uma ótima amostra da complexa relação que a mudança social
necessariamente entretém com a natureza humana. Em poucos séculos,
transformou-se profundamente a sociedade da casa grande e senzala, mas
indivíduos e grupos revelaram nesse processo padrões de comportamento muito
mais estáveis e duradouros do que se poderia supor.
Muita atenção, porém: a esmagadora maioria dos cientistas sociais continua a
abominar esse tipo de conjectura, pois fatos sociais só deveriam ser explicados por
razões sociais, sem qualquer interferência de dimensões biológicas da natureza
humana, segundo o basilar princípio constitutivo da sociologia enunciado por
Émile Durkheim (1858-1917), um de seus três principais fundadores.
Claro, não poderia deixar de declinar a fidelidade a tal princípio, pois ele impede
que comportamentos biologicamente determinados possam ser considerados fatos
sociais. Discriminação tão abusiva, que forçosamente gerou dissidência, mesmo que
bem minoritária. Hoje, o punhado de sociólogos agastados por esse viés
antimaterialista da disciplina nem mais frequenta suas próprias associações de
pesquisa. Prefere desfrutar do estimulante intercâmbio interdisciplinar propiciado,
desde finais dos anos 1980, por outras duas: a Human Behavior and Evolution
Society (HBES), com sua revista "Evolution & Human Behavior" (www.hbes.com),
e a International Society for Behavioral Ecology (ISBE), com sua revista "Behavioral
Ecology" (www.behavecol.com).
Minuciosa sistematização das principais evidências resultantes das pesquisas dessa
corrente científica passa a estar disponível neste 12º livro do sociólogo Stephen K.
Sanderson. Para esses evolucionistas, o entendimento da mudança social
permanecerá muito precário se os estudiosos das humanidades continuarem a
desprezar, ou mesmo subestimar, o peso relativo da natureza humana.
Principalmente, no que diz respeito a um conjunto de 25 questões muito mal
enfrentadas pelas ciências sociais, que vão desde as que se referem à violência ou ao
matrimônio, até temas como religião ou artes, passando pelas relações entre status
e riqueza, poder e política, ou, obviamente, raça e etnia.
Do ponto de vista pedagógico, o livro cai como uma luva para as legiões de céticos
sobre o darwinismo que assolam as humanidades
Sanderson foi ganho para o darwinismo, mas em versão ultra "light". Discorda de
eminentes colegas, para os quais o entendimento da evolução social e da evolução
biológica deveria recorrer às mesmíssimas bases teóricas, como propõe, por
exemplo, Walter Garry Runciman, do Trinity College. Contra essa generalização
darwinista, Sanderson realça até demais o contraste entre os três vetores da
evolução biológica darwiniana - variação genética, seleção, sucesso reprodutivo - e
as quatro condições materiais mais decisivas da evolução social: ecológica,
demográfica, tecnológica e econômica.
Várias de suas publicações anteriores foram consagradas à árdua elaboração de
uma teoria híbrida, que denominou "DCT" ("Darwinian conflict theory"), na qual
sua leve abordagem darwinista foi conjugada à estratégia teórica do "materialismo
cultural", proposta no final da década de 1970 por seu principal inspirador, o então
influente antropólogo Marvin Harris (1927-2001). Mas a "DCT" nem sequer é
mencionada nesta obra lançada pela Westview Press.
Também não há nesse novo livro qualquer referência a dois cruciais debates
darwinistas que hoje atravessam biociências e humanidades.
O primeiro decorre de séria contestação à poderosa teoria geral da aptidão
inclusiva, baseada nos pressupostos da seleção de parentesco. Isso tende a reforçar
a visão de que a seleção darwiniana possa ser multinível, fruto de contradição
extremamente desigual entre seleção individual e seleção de grupo.
O outro foi suscitado pela ideia de que o darwinismo tenha quatro dimensões, pois,
além da tão celebrada seleção genética, sobre a qual se concentraram os esforços de
pesquisa, comprova-se a existência de seleção epigenética (heranças que não
envolvem o DNA) e de seleção comportamental. Além disso, há fortes indícios de
que também ocorra seleção no âmbito eminentemente cultural, chamada por
alguns de seleção "simbólica".
A explicação para a ausência da "DCT" e desses dois debates ao lado de tão vasta
sistematização de evidências empíricas certamente está na ambição pedagógica de
um livro que cai como luva para as legiões de céticos sobre o darwinismo que
assolam as humanidades. Para poder conquistar mais leitores, o autor foi didático,
a ponto de espremer em meras treze páginas (de 464) só um rápido sobrevoo dos
indispensáveis fundamentos teóricos.
Então, se for possível que uma novidade seja tão bem-vinda quanto frustrante, tal é
seguramente o caso deste novo lançamento do professor Stephen K. Sanderson,
agora na Universidade da Califórnia em Riverside. Há muito fazia falta uma obra
que organizasse com clareza as evidências acumuladas em quatro decênios sobre o
papel exercido pela natureza na ação humana, pois ele continua ignorado, e até
vilipendiado, pelas já incontáveis disciplinas em que se dividem as humanidades. É
muita pena, contudo, que o preço de tão hercúleo esforço tenha sido a lamentável
opção de escantear as promissoras controvérsias teóricas que se impuseram com os
mais recentes avanços dos estudos darwinistas.
José Eli da Veiga é professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP e
autor de "A Desgovernança Mundial da Sustentabilidade" (Editora 34, 2013).
Página na web: www.zeeli.pro.br
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