UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO CURSO DE DOUTORADO EM ADMINISTRAÇÃO Raimundo Santos Leal O ESTÉTICO NAS ORGANIZAÇÕES: uma contribuição da filosofia para a análise organizacional Salvador - Bahia 2003 Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional RAIMUNDO SANTOS LEAL O ESTÉTICO NAS ORGANIZAÇÕES: uma contribuição da filosofia para a análise organizacional Tese apresentada ao Curso de Doutorado em Administração da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial para obtenção do grau de DOUTOR EM ADMINISTRAÇÃO. Área de Concentração: Redes Organizacionais, Culturas e Inovações. Orientadora: Profª. Dra. Tânia Maria Diederichs Fischer. Salvador - Bahia 2003 Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional L435 Leal, Raimundo Santos. O estético nas organizações: uma contribuição da filosofia para a análise organizacional/ Raimundo Santos Leal, orientação Tânia Maria Diederichs. Fischer. - Salvador: R. S. Leal, 2003. 360 f.: il Tese (Doutorado em Administração) - Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia. Núcleo de Pós-Graduação em Administração. 1. Estética. 2. Análise organizacional. 3. Organização 4. Filosofia. 5. Kant, Immanuel, 1724-1804. 6. Objetividade. 7. Subjetividade. I. Fischer, Tânia Maria D., orientadora. II. Título. 111.85 CDD 20. ed. Ficha elaborada pela Biblioteca da Escola de Administração - UFBA RAIMUNDO SANTOS LEAL O ESTÉTICO NAS ORGANIZAÇÕES: UMA CONTRIBUIÇÃO DA FILOSOFIA PARA A ANÁLISE ORGANIZACIONAL TESE PARA A OBTENÇÃO DO GRAU DE DOUTOR EM ADMINISTRAÇÃO Salvador, 22 de julho de 2003. BANCA EXAMINADORA: Tânia Maria Diederichs Fischer ___________________________________ Doutora em Administração – USP. Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia (Orientadora). José Crisóstomo de Souza_______________________________________ Doutor em Filosofia Política – UNICAMP. Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. Dante Augusto Galeffi ___________________________________________ Doutor em Educação – UFBA. Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. Pedro Lincoln C. L. de Mattos ____________________________________ Doutor em Government – University of London. Departamento de Ciências Administrativas da Universidade Federal de Pernambuco. José Antonio Gomes de Pinho ___________________________________ Doutor em Planejamento Urbano – University of London. Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional Para o Mestre Jair Tércio, em reconhecimento pela indicação e orientação do CAMINHO em direção ao IMUTÁVEL; Para Florisneide, companheira de todas as horas, sem a qual esta tese e outros viveres não se fariam possível com beleza, riqueza e significação; Para Sâmia, Maíra e Samitha pelas oportunidades de aprender e ensinar amorosamente; Para Germano e Estelita pelos princípios éticos para o meu viver. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional AGRADECIMENTOS A Deus pela oportunidade e possibilidade de abreviar a jornada em sua busca. A mãe, mestra e serva Natureza pela oportunidade e colaboração. Aos guias, mentores e protetores que favoreceram, contribuíram, intuiriam, sem tirar o livre-arbítrio no experimentar e aprender. À minha orientadora, Profª Drª Tânia Maria Diederichs Fischer, zelosa guardiã da qualidade teórica e exemplo que sua conduta denuncia de respeito, confiança e apoio nos momentos críticos e decisivos do processo de intenção, projeto construção e execução desta tese. Aos funcionários e colaboradores do NPGA pela contribuição, disposição e apoio prestados nos diferentes momentos, verdadeiros exemplos de profissionalismo e dedicação, em especial, a Dacy, Anaélia, Jardilina, Eliana, Geovana e Cristina. Aos funcionários e bibliotecários da Escola de Administração/UFBA pela gentileza, presteza, paciência no atendimento às solicitações, em especial, a Ângela, Conceição, Alda, Rosa, Miralva e Jackson. Aos meus amados irmãos com os quais tenho compartilhado a busca do viver significativo pautado em princípios éticos e estéticos elevados. À amiga Karen pelo apoio na adequação deste trabalho às exigências e formatos acadêmicos. A todos que direta e/ou indiretamente ajudaram no meu viver e conviver na Escola de Administração – UFBA, cujo aprendizado redundam, também, na presente tese, o meu obrigado a todos. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional A arte não é um produto, mas sim origem, não é criada, mas sim criação e está presente no ente humano quando este deixa de existir na qualidade mental de pensador e experimenta com a qualidade mental de perceptor. A Arca Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional RESUMO A tese tem como propósito refletir acerca da contribuição da Estética para os estudos organizacionais, enquanto alternativa complementar, diante da lacuna existente, decorrente da enorme ênfase nas dimensões teórica e empírica, em tais estudos. Para considerar tal possibilidade e apontar a contribuição da dimensão estética buscou-se resgatar e destacar a relevância da Estética, a partir de considerações teóricas e filosóficas quanto a presença da mesma no cotidiano humano, logo, também, presente e inerente ao fenômeno organizacional. Construiu-se um referencial teórico que considerou a contribuição epistemológica e histórica da Estética, no âmbito da Filosofia e dos estudos organizacionais, com maior ênfase a contribuição de Immanuel Kant, em face de suas obras considerarem a presença da dimensão teórica (razão pura); dimensão empírica (razão prática) e a dimensão estética (crítica do juízo) na ação humana. Diante da formulação de uma tese cujo tema pode ser apontado como de fronteira, a construção da mesma se fez sob uma abordagem teórica. A tese foi construída em dez capítulos divididos em três partes. A primeira parte intitulada “o fazer ciência e os estudos organizacionais” subdividida em três capítulos, onde foram considerados aspectos relativos à modernidade e pós-modernidade, objetividade e subjetividade, bem como, os reflexos desses elementos na pesquisa e análise organizacional. A segunda parte intitulada “Estética e conhecimento humano” está subdividida em cinco capítulos que versam sobre a estética enquanto campo do conhecimento, trajetória histórica, o kantianismo, a Estética em Kant, e a Estética enquanto dimensão da ação humana. A terceira parte intitulada “estética e organizações” está subdividida em dois capítulos que versam sobre a Estética e análise organizacional e a articulação entre Estética e gestão organizacional. Concluiu-se pela presença e contribuição para análise organizacional da dimensão estética, enquanto elemento complementar as dimensões teórica e empírica, tendo sido identificado trabalhos e autores que consideram individualmente a presença e influência da Estética. A tese traz, portanto, como maior contribuição a proposição de que nos estudos e análise organizacional seja considerada a dimensão estética conjuntamente com as outras duas dimensões, possibilitando uma perspectiva de análise integrada das dimensões subjetivas e objetivas da ação humana e organizacional. PALAVRAS-CHAVE: 1. Estética. 2. Organizações. 3. Análise Organizacional. 4. Filosofia. 5. Kant. 6. Objetividade. 7. Subjetidade. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional ABSTRACT The thesis has as intention to reflect on the aesthetic contribution for the organizational studies as a complementary alternative for the existing gap from the enormous emphasis in the theoretical and empirical dimensions in such studies. In order to consider such possibility and to point the contribution of the aesthetic dimension we searched to rescue and to detach the relevance of the Aesthetic from the theoretical and philosophical considerations in relation to the presence of it in the daily life of the human being. Then, it is also present in the organizational phenomenon. It was built a theoretical reference that considered the epistemological and historical contribution of the Aesthetic in the philosophy area and the organizational studies with a bigger emphasis in Immanuel Kant’s contribution because his works consider the presence of the theoretical dimension (pure reason), empirical dimension (practical reason) and the aesthetic dimension (critical common sense) in the human being’s action. Face to the development of this thesis whose subject can be pointed as the border, the construction of it was made under a theoretical approach. There are ten chapters divided in three parts in this thesis. The first part is entitled "making science and the organizational studies" which is subdivided in three chapters, where some features called modernity and post-modernity were considered objectivity and subjectivity, as well as the consequences of these elements in the research and organizational analysis. The second part is entitled "aesthetic and human knowledge" that are subdivided in five chapters. They talk about the aesthetic as a field of the knowledge, a historical trajectory, the “Kantianism”, Aesthetic based on Kant and the Aesthetic as a dimension of the human action. The third part is entitled "Aesthetic and organizations" that is subdivided in two chapters. They talk about that is the Aesthetic and the organizational analysis and the connection between the Aesthetic and the organizational management. It was concluded by the presence and contribution for the organizational analysis of the Aesthetic dimension as a complementary element of the theoretical and empirical dimensions. They have been identified as works and authors who consider individually the presence and influence of the aesthetic. Therefore, this thesis brings as the biggest contribution a proposal of the studies and organizational analysis that is considered the Aesthetic dimension with the other two dimensions, making possible a perspective of analysis integrated with the subjective and objective dimensions of the human being and organizational action. KEY-WORDS: 1. Aesthetic. 2. Organizations. 3. Organizational analysis. 4. Philosophy. 5. Kant. 6. Objectivity 7. Subjectivity Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional SUMÁRIO INTRODUÇÃO ......................................................................................................13 PARTE I O FAZER CIÊNCIA E ESTUDOS ORGANIZACIONAIS CAPÍTULO I - MODERNIDADE E OS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS 1.1 O CONTEXTO CONTEMPORÂNEO E AS ORGANIZAÇÕES..................................28 1.2 A MODERNIDADE E O PARADIGMA CLÁSSICO DO FAZER CIÊNCIA................31 1.2.1 Racionalidade Individual................................................................................35 1.2.2 Empirismo Sistemático ..................................................................................41 1.3 A MODERNIDADE E OS CLÁSSICOS DA ADMINISTRAÇÃO.................................45 1.4 VERTENTES EPISTEMOLÓGICAS DOS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS...........52 1.5 PARADIGMAS NOS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS ............................................62 1.6 LIMITAÇÕES DO POSITIVISMO LÓGICO .............................................................65 CAPÍTULO II - PÓS-MODERNIDADE E OS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS 2.1 PREMISSAS E ELEMENTOS HISTÓRICOS DA PÓS-MODERNIDADE ...................73 2.2 ESTUDOS ORGANIZACIONAIS RECENTES ...........................................................81 2.3 ESTUDOS ORGANIZACIONAIS NO BRASIL............................................................90 CAPÍTULO III - OBJETIVIDADE E SUBJETIVIDADE NOS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS 3.1 RACIONALIDADE E OBJETIVIDADE .......................................................................99 3.2 RACIONALIDADE E SUBJETIVIDADE....................................................................107 3.3 OBJETIVIDADE E SUBJETIVIDADE .......................................................................112 3.4 SUBJETIVIDADE VERSUS OBJETIVIDADE ...... ....................................................118 Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional PARTE II ESTÉTICA E CONHECIMENTO HUMANO CAPÍTULO IV - ESTÉTICA 4.1 ESTÉTICA COMO FILOSOFIA DO BELO ...............................................................128 4.2 ESTÉTICA COMO FILOSOFIA DA ARTE................................................................132 4.3 ESTÉTICA ENQUANTO CIÊNCIA DA ARTE...........................................................134 4.4 ESTÉTICA ENQUANTO FORMA DE SABER..........................................................137 4.5 ESTÉTICA ENQUANTO CIÊNCIA...........................................................................140 4.6 ESTÉTICA COMO CONHECIMENTO INTENCIONAL.............................................145 4.7 ESTÉTICA COMO CONHECIMENTO CRÍTICO......................................................148 4.8 UTILIDADE DA ESTÉTICA......................................................................................153 4.9 DIMENSÃO OBJETIVA E SUBJETIVA DA ESTÉTICA ............................................156 4.9.1 Objetivismo Estético ......................................................................................156 4.9.2 Subjetivismo Estético ....................................................................................160 4.9.3 Dimensões Objetivas e Subjetivas em Interação...........................................162 CAPÍTULO V - TRAJETÓRIA HISTÓRICA DA ESTÉTICA 5.1 A ESTÉTICA............................................................................................................168 5.2 O BELO ...................................................................................................................172 5.3 O GOSTO E O SUBLIME ........................................................................................183 5.4 O DESCENTRAMENTO DO BELO..........................................................................191 CAPÍTULO VI - KANTIANISMO E ESTÉTICA 6.1 PRÉ-KANTIANOS: FONTES DA ESTÉTICA DE KANT ...........................................204 6.2 PÓS-KANTIANOS: A CONTINUIDADE E APRIMORAMENTO ...............................208 6.3 O MÉTODO KANTIANO E A NOÇÃO DE IDÉIA CRÍTICA ......................................219 6.4 O IDEALISMO TRANSCENDENTAL: A RUPTURA KANTIANA ..............................224 CAPÍTULO VII - A ESTÉTICA EM KANT 7.1 ELEMENTOS DA ESTÉTICA KANTIANA...... ..........................................................232 7.2 A ESTÉTICA TRANSCENDENTAL E A PRIMEIRA CRÍTICA..................................241 7.3 A ESTÉTICA E A TERCEIRA CRÍTICA ...................................................................245 7.4 A CONTRIBUIÇÃO DE KANT .................................................................................250 Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional CAPÍTULO VIII - ESTÉTICA ENQUANTO DIMENSÃO DA AÇÃO HUMANA 8.1 O ESTÉTICO E O EXTRA-ESTÉTICO NA AÇÃO HUMANA ..................................255 8.2 A AÇÃO HUMANA E A ATITUDE ESTÉTICA.........................................................263 8.3 A FUNÇÃO ESTÉTICA ENQUANTO DIMENSÃO DA AÇÃO HUMANA .................275 PARTE III ESTÉTICA E ORGANIZAÇÕES CAPÍTULO IX - ESTÉTICA E ANÁLISE ORGANIZACIONAL 9.1 A NOÇÃO DE ESTÉTICA NOS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS............................289 9.2 AS PERSPECTIVAS DOS ESTUDOS ENVOLVENDO A ESTÉTICA ......................296 9.3 ESTÉTICA ENQUANTO ELEMENTO DE AÁLISE DOS VALORES E DA CULTURA ORGANIZACIONAL ................................................................................................303 9.4 POSSIBILIDADES DE ANÁLISE ORGANIZACIONAL A PARTIR DA ESTÉTICA...309 CAPÍTULO X - ESTÉTICA E GESTÃO 10.1 ESTÉTICA E CRIATIVIDADE NAS ORGANIZAÇÕES...........................................316 10.2 INOVAÇÃO E ESTÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES.................................................322 CONCLUSÕES ................................................................................................... 332 REFERÊNCIAS................................................................................................... 337 Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 13 INTRODUÇÃO Pode ser constatada, neste início de novo milênio de século, a ocorrência de profundas mudanças, circunscritas por graves crises e rupturas, caracterizadoras de períodos de substanciais transformações. Essas transformações, enquanto processo de mudanças, podem se dar de maneira natural ou através de rupturas e crises. É notório que a crise, ou que nome venha a ser dado, não é meramente, instrumental ou estrutural, é multifacetado, perpassando diferentes dimensões que vão desde um caráter pessoal, consciencial que se desdobra coletivamente em viéses de natureza epistemológica, ideológica, econômica, social, tecnológica. As transformações por que passam as organizações humanas, nas três últimas décadas têm gerado mudanças no quadro teórico utilizado na análise organizacional, sempre na tentativa de compreender tais transformações e as alterações sociais delas decorrentes, bem como seus antecedentes e, na medida do possível, delinear o rumo que elas apontam. Em um momento civilizatório tão efervescente, as diferentes áreas do conhecimento humano abrem-se para contribuições de outras áreas, passando a incorporar elementos conceituais e valores, que ampliam a percepção das questões de pesquisa, apontando novos elementos, novas respostas, modificando e ampliando a busca de elementos explicativos aos problemas sociais. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 14 É necessário considerar que, enquanto origem ou solução, o elemento central, seja qual for a área do conhecimento, é o ser humano. Naturalmente, as organizações, enquanto criações e construções humanas, podem ser mais bem compreendidas, a partir de arcabouços que valorizem as diferentes dimensões e possibilidades de ações humanas, perpassando-as de maneira interdisciplinar, ou seja, de maneira não excludente das inúmeras possibilidades e percepções (Ver SÁNCHEZ VÁZQUEZ,1992; REED,1995; HASSARD, 1990; REED & HUGHES,1992). O TEMA E A JUSTIFICATIVA DA ESCOLHA O campo de estudos organizacionais, historicamente, tem demonstrado receptividade e interesse pelas leituras e contribuições de outros campos do conhecimento humano, incorporando referenciais de áreas dantes não consideradas na incessante busca de compreender e fazer face às novas demandas organizacionais. eUma das incorporações recentes, ainda pouco explorada, na análise organizacional, é a contribuição da Estética, tratada habitualmente como a ciência do belo - relativa ao campo da arte, das percepções artísticas - portanto, pouco associada ao cotidiano e muito menos ao mundo organizacional (Ver DEGOT,1987; GALIARDI,1996; CLEGG; HARDY E NORD,1996; STRATI,1990;1999). Até a década de 70 as propostas de análise organizacional, com vistas a responderem a variações ambientais ou estratégias de crescimento, mostravam-se vinculadas à visão clássica, funcionalista e comportamentalista da empresa, com alteração de organogramas e trocas de pessoal. Ressalta Fleury (1992) que há um reconhecimento cada vez maior, desde então, que os estudos das características objetivas do mundo das organizações mostram-se incapazes de explicar muitos dos processos organizacionais, especialmente aqueles envolvidos com mudanças, conflitos e reações. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 15 Já nos anos 80, observa-se nos estudos organizacionais a falta de entendimento que vise a integração dessas diferentes e multifacetadas percepções da organização. Assiste-se - e perdura desde o final do século passado - ao emergir de opções teóricas e/ou práticas, as quais são lançadas em seqüência, numa tentativa desesperada de amenizar os efeitos de um contexto ambiental tão instável. Nos anos 90, persiste a profusão de contribuições teóricas fazendo uso de diferentes aparatos conceituais e aumentando a confusão e a crise. Ainda assim, percebe-se um deslocamento dos estudos organizacionais que passaram a preocupar-se com os complexos determinantes mentais do comportamento humano e com significações subjetivas, desviando-se um pouco mais do caminho tradicional que se apega, de modo totalizante, às explicações objetivas dos fenômenos organizacionais. Os estudos organizacionais que buscam incorporar as contribuições dos pósmodernistas – considere-se que a tentativa de delinear o que venha a ser a pósmodernidade ou pós-moderno é objeto de divergências entre os próprios estudiosos – auxiliam, inicialmente, na explicação das razões intrínsecas e inerentes a crise das organizações, sua compreensão e possibilidades de reordenamento social (REED,1985). Importa vislumbrar que através da Estética, torna-se possível integrar, ao olhar organizacional, uma dimensão de compreensão que permite considerar, enquanto possibilidade, o até então denominado de ilógico, irracional, emocional, intuitivo, sentimental. Ou seja, a dimensão estética permite considerar ações e escolhas organizacionais, tidas como incompreensíveis ou irracionais, como possíveis, a partir de uma outra referência de análise. Dentre os campos pouco explorados nos estudos organizacionais, ainda que um dos mais presentes e influentes, está a Filosofia. Por sua vez, poucos trabalhos, no âmbito da administração, têm buscado fazer uso de um aporte teórico aparado pela Filosofia como referência central para a análise e discussão da dinâmica organizacional. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 16 Não cabe aqui discorrer sobre os motivos e razões para tal fato, mas, sim, ressaltar a enorme contribuição da Filosofia. Tanto que um dos traços marcantes do presente trabalho centra-se no uso de um aporte teórico fortemente centrado nesta, em especial, em um dos principais ramos e objetos de estudos analisado por parte de grandes filósofos da nossa civilização. Devem também ser mencionadas a receptividade existente no âmbito dos estudos organizacionais e a utilização de referencial que incorpore contribuições das diferentes ciências humanas e sociais, ampliando o quadro analítico das organizações de espectros limitados e restritivos para novas possibilidades que não invalidam ou se preocupam em invalidar as contribuições dos estudos tradicionais (Ver REED & HUGHES, 1992; REED, 1985; CLEGG, HARDY E NORD, 1996). Enquanto o ambiente organizacional evidencia, de modo geral, princípios, amplitudes, objetivos, percepções etc., claramente instrumentais, mensurativas, lógicas, racionais, o campo estético, por sua vez, esteia-se na premissa de que a percepção de cada indivíduo, acerca de um dado objeto, é única e deve ser respeitada enquanto tal, valorizando, respeitando, estimulando tal percepção, tal sentimento e, por conseqüência, o lado intuitivo, ilógico, abstrato, das relações individuais e coletivas (Ver STRATI, 1998; ABRAHAMSON, 1997; DAFT, 1983; TURNER, 1990). É importante ressaltar que entre os dois elementos centrais da presente tese a Estética e as organizações - há um elemento comum o ser humano, seja como princípio, meio e/ou fim das ações organizacionais. Este ser humano, transita entre percepções estéticas, empíricas e teóricas, três dimensões de uma mesma realidade, que, quando ignorada, deixa a desejar e explicita uma das possíveis causas do conflito, crise e contradição presentes nas ações e escolhas organizacionais. A contribuição da Estética, frente à Filosofia possibilita considerar a ação humana, incorporando uma terceira dimensão, até então pouco enfatizada, a nível organizacional, e parte da premissa de que há diferentes possibilidades de percepção e apreensão de um dado objeto ou contexto. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 17 Através da Estética, vislumbra-se a possibilidade de refletir sobre a organização, considerando aspectos, ações, escolhas e situações, até então, denominados de ilógicos, irracionais, emocionais, intuitivos, sentimentais que, como se sabe, afetam as escolhas organizacionais. Abarcar o lado subjetivo não significa, de modo algum, deixar de lado o conhecimento racional, empírico; entretanto, efetuar a consideração desses dois aspectos com a Estética tornou-se crucial e decisiva tanto para a ampliação da percepção e compreensão, como para a própria sobrevivência. O PROBLEMA DE PESQUISA A tese busca contribuir para o estudo e compreensão do fenômeno organizacional, a partir da consideração da Estética enquanto uma das dimensões do agir humano. A presente tese centra-se, portanto, na análise e discussão acerca da Estética enquanto detentora de status próprio e elemento auxiliar na compreensão do fenômeno organizacional, sem com isso descaracterizar ou excluir as demais possibilidades de análise organizacional – teórica e/ou prática. O problema de pesquisa que norteia a elaboração do presente projeto parte do pressuposto básico acerca da existência de uma atitude, de uma dimensão de natureza estética, buscando considerar a presença e possível influência dessa dimensão no cotidiano das organizações. Para tanto, busca-se considerar não apenas a Estética enquanto campo do conhecimento filosófico, mas como elemento presente e inerente às ações humanas. Mostra-se necessário, ainda, investigar como os estudos organizacionais têm compreendido tal possibilidade e sob que bases têm desenvolvido as pesquisas sobre tal tema. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 18 Os estudos organizacionais pouco consideram as possibilidades e presença da Estética no cotidiano e essência das organizações, por isso, a presente tese tem como principal preocupação demonstrar tal contribuição e importância. Enquanto PROBLEMA norteador da tese tem-se o seguinte enunciado: EXISTEM CONTRIBUIÇÕES DA ESTÉTICA PARA ANÁLISE E COMPREENSÃO DAS ORGANIZAÇÕES? Para elucidar academicamente esta indagação procurou-se estabelecer questões menores, que permitissem ao serem respondidas, a descoberta de elementos que respondam à questão acima, as quais estão dispostas a seguir: • QUAL A CENTRALIDADE DA ESTÉTICA ENQUANTO ELEMENTO DE INFLUÊNCIA NAS ESCOLHAS E AÇÕES NO COTIDIANO DAS ORGANIZAÇÕES? • QUAL A RELEVÂNCIA DA ESTÉTICA ENQUANTO DIMENSÃO DE INFLUÊNCIA NAS ESCOLHAS E AÇÕES NO COTIDIANO DAS ORGANIZAÇÕES? • QUE CONTRIBUIÇÃO TEM A ESTÉTICA ENQUANTO ELEMENTO DE ANÁLISE ORGANIZACIONAL? • A DIMENSÃO ESTÉTICA POSSIBILITA AMPLIAR A COMPREENSÃO E ESTUDO DO UNIVERSO ORGANIZACIONAL POR PARTE DOS TEÓRICOS ORGANIZACIONAIS? OS OBJETIVOS Correlacionar o campo da estética com o campo organizacional, comumente associado às relações produtivas, certamente chama a atenção e, por certo, causa espécie, mas tal correlação se insere no intercâmbio com outros campos do conhecimento humano, a exemplo da filosofia, proporcionando melhor compreensão das escolhas e ações organizacionais. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 19 O incorporar da Estética, campo do conhecimento filosófico, ainda que possa parecer estranho, mostra-se natural, assim como é natural considerar que sem Filosofia não há métodos e sem métodos não há ciência, afinal, os diferentes métodos científicos nascem na Filosofia, partindo da antevisão de que a Estética amplia a compreensão do objeto ou fenômeno organizacional sem esgotá-lo e sem excluir as outras possibilidades de compreensão - dimensão teórica e dimensão prática. Também, já foi afirmado, como nas últimas décadas, que pesquisadores com diferentes formações, a exemplo de: sociólogos, antropólogos, psicanalistas, historiadores, dentre outros, cuja formação e atuação não estão diretamente ligadas ao cotidiano e interesses das organizações produtivas, têm auxiliado, através de construções teórico-metodológicas inovadoras, o estudo organizacional, ampliando a percepção e interpretação do mundo das organizações formais. Esses pesquisadores têm como traço característico privilegiar a dimensão subjetiva, considerando aspectos abstratos do cotidiano das organizações. Tais pesquisadores têm conquistado cada vez mais espaço e adeptos, auxiliando, desse modo, novas incursões e ampliando as possibilidades, perspectivas e contribuições para a análise das organizações. Os trabalhos de Strati (1990; 1992); Gagliardi (1996); Hassard (1990); Reed & Hughes (1992), dentre outros, são referências e exemplos dessa tendência no âmbito da análise organizacional. O objetivo geral da presente tese foi efetuar a análise das possibilidades de contribuição da dimensão estética da ação humana enquanto elemento para a pesquisa, análise e compreensão dos fenômenos, escolhas e ações organizacionais. Enquanto objetivos específicos, norteadores desta tese têm-se: • resgatar os fundamentos epistemológicos da Estética enquanto ciência filosófica; • traçar a trajetória histórica da Estética e os usos e apropriações contemporâneas; Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 20 • mapear os estudos organizacionais que fazem uso de quadros analíticos envolvendo a Estética; • estabelecer pontos de correlação entre a Estética, enquanto ciência filosófica, e os quadros de referências utilizados nos estudos organizacionais; • elaborar quadro analítico que considere a Estética enquanto dimensão do conhecimento humano e influenciadora da ação humana; • identificar e apontar a validade e contribuição de um quadro teórico centrado na Estética para o estudo e análise dos fenômenos organizacionais. Propõe-se um novo âmbito no uso da dimensão estética, enfatizando-a enquanto elemento de análise no campo organizacional que não esteja concentrado nas características do serviço ou produto; no ambiente de trabalho, particularmente nos equipamentos e acessórios; e, mais recentemente, nos estudos relativos à cultura organizacional, como elemento integrante da organização e de suas escolhas. Há, portanto, uma perspectiva auxiliar na consideração da dimensão estética presente de modo intrínseco nas atividades cotidianas do ser humano e relevante para o processo de estudo e conhecimento das dinâmicas organizacionais, ainda pouco explorada nos estudos organizacionais. É pacífico o reconhecimento de limites e do baixo grau de inserção dos elementos de natureza subjetiva nos estudos organizacionais, assim como, das restrições metodológicas, tornando mais árduo o empreender em discussões que envolvam o subjetivo, nesta tese, a dimensão estética. Procura-se aqui, ao reconhecer a existência de lacunas teóricas, empreender e ousar na busca de elementos que permitam continuidade e aperfeiçoamento das bases teóricas e mesmo práticas Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 21 O desafio permanece, no que tange a apontar métodos, possibilidades de percepção e compreensão, além da dimensão racional-empírica, que permitam analisar a dimensão subjetiva - a Estética - e o simbólico, de modo geral, com aparatos mais adequados. A METODOLOGIA A elaboração da tese teve um caráter eminentemente teórico, tendo por objetivo ampliar generalizações, estruturar um referencial para análise organizacional que considere a contribuição da Estética enquanto dimensão presente e, portanto, referência central para compreensão das organizações. Considerando que todas as ciências caracterizam-se pela utilização de métodos científicos, em contrapartida, nem todos os ramos de estudo que empregam estes métodos são ciências. 1Os diversos passos do método científico não foram estabelecidos aprioristicamente; de fato, os homens procuraram agir cientificamente e, só depois, pararam para examinar o caminho que conduzira seu trabalho ao êxito (DEMO, 1997). O estudo efetuado teve caráter eminentemente de estudo teórico, tendo por objetivo ampliar generalizações e estruturar um referencial para análise organizacional que considere a contribuição da Estética enquanto dimensão presente e, portanto, referência central para compreensão das organizações. Foi observada uma estrutura de construção da tese considerando os passos recomendados para construção de um trabalho de natureza acadêmica e em face da ausência de trabalhos acadêmicos que considerem a Estética enquanto elemento presente nas organizações, logo, essencial na análise organizacional. 1 A palavra método é de origem grega e significa o conjunto de etapas e processos a serem vencidos ordenadamente na investigação dos fatos ou na procura da verdade. Assim, o método é o conjunto das atividades sistemáticas e racionais que, com maior segurança e economia, permite alcançar o objetivo - conhecimentos válidos e verdadeiros -, traçando o caminho a ser seguido, detectando erros e auxiliando as decisões do cientista. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 22 Portanto, a tese adotou um espectro de caráter eminentemente teórico, sem a construção e utilização de elementos de natureza empírica, no qual a capacidade de síntese e reflexão será fundamental para o alcance dos objetivos propostos. Tal escolha decorre do fato de que o uso da Estética nos estudos organizacionais tem considerado apenas algumas das possibilidades do âmbito da Estética e antes de tratar-se de escolhas conceituais ou perspectivas de análise, evidencia uma visão parcial do entendimento das possibilidades de estudo e compreensão estética. Tal constatação levou o autor a decisão de elaborar uma tese que centre-se no resgate da Estética considerando os diferentes entendimentos do termo e as diferentes possibilidades de uso, inclusive no âmbito dos estudos e análises organizacionais, envolvendo o uso de referencial estético; podendo-se formular ou demonstrar a tese a ser defendida quanto às reais possibilidades e perspectivas da Estética que não incorram nos mesmos equívocos, nos quais o uso de aparato conceitual deixa a desejar quanto ao verdadeiro propósito, sendo feito uso de acordo com as conveniências e interesses pessoais e/ou grupais. ESTRUTURA DA TESE Quanto a sua construção, argumentação e apresentação a tese está estruturada em três partes envolvendo dez capítulos. A primeira parte intitulada “O FAZER CIÊNCIA E OS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS” abarca três capítulos e teve como propósito efetuar a articulação entre a modernidade e seus desdobramentos, a nominada pós-modernidade, e a questão da objetividade e subjetividade enquanto referência da/na análise organizacional. O capítulo 1 resgatou os fundamentos do fazer ciência afeito à modernidade para tanto são identificadas as bases epsitemológicas e suas repercussões nos estudos e ações organizacionais, pressupondo o paradigma clássico do fazer ciência a partir de dois componentes: a racionalidade individual e o empirismo Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 23 sistemático. Além disso, é efetuada uma articulação entre a modernidade e sua influência na administração, assim como os reflexos da modernidade nos estudos organizacionais. O capítulo 2, por sua vez, buscou identificar e analisar as origens, premissas e desdobramento da pós-modernidade nos estudos organizacionais, com particular destaque aos estudos desenvolvidos no âmbito dos pesquisadores brasileiros. A preocupação ao construir o capítulo foi identificar as possibilidades teóricas resultantes das críticas e limitações apontadas pela modernidade influenciando a análise das organizações. O capítulo 3 considerou a questão da objetividade e da subjetividade e seus desdobramentos no âmbito organizacional, enfatizando a origem dessas perspectivas, bem como seus reflexos sobre os estudos organizacionais e sobre o cotidiano das organizações. Neste capítulo também, é efetuada a articulação entre racionalidade e objetividade, assim como entre a racionalidade e a subjetividade e enfatizada a questão da objetividade versus subjetividade, a partir da contribuição recente da Sociologia. A segunda parte da tese intitulada “A ESTÉTICA E O CONHECIMENTO HUMANO” foi subdivida em cinco capítulos, quarto ao sétimo, sendo eminentemente filosófica, ou seja, refere-se à contribuição da filosofia. Sua construção tem como referência autores filosóficos que se debruçaram sobre a estética, sobre diferentes perspectivas, dando-se enfâse a Kant e sua concepção de estética. O capítulo 4 foi desenvolvido com o propósito de resgatar as diferentes possibilidades de considerar a estética frente ao conhecimento humano, seja por perspectivas objetivistas ou subjetivistas, como conhecimento crítico, como conhecimento sensível ou enquanto filosofia, ciência, forma de saber, ou conhecimento intencional. O propósito foi possibilitar, a partir de um conjunto de contribuições teórico-filosóficas, considerar a estética enquanto dimensão do conhecimento humano. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 24 O capítulo 5 teve como propósito efetuar um resgate da trajetória histórica da estética, no intuito de considerar as questões centrais e as respectivas fases históricas, desde a antiguidade até a contemporaneidade. Nessa construção pontuou-se três momentos: no primeiro considerou-se a Estética enquanto uma questão atinente ao belo; no segundo, ao gosto e ao sublime; e no terceiro, entatizou-se o descentramento do belo, enquanto foco central da Estética. O capítulo 6 foi construído visando identificar as bases de uma ruptura fundamental na história da Estética ocorrida a partir das obras de Kant. Buscou-se demonstrar a influência dos estetas pré-kantianos e dos pós-kantianos. Neste sentido são explorados autores que afetam e influenciam de maneira determinante o trabalho de Kant, assim como, aqueles que dão continuidade, ampliam ou questionam as idéias kantianas. O capítulo 7 versa sob a concepção da Estética kantiana, seus fundamentos, a similaridade com outros filósofos e a contribuição para o entendimento estético, dentro de uma perspectiva transcendental. Neste capítulo é apontada a ruptura ontológica na compreensão da Estética enquanto dimensão humana, sem a qual, as demais dimensões fazem-se de modo incompleto. Através do capítulo 8 buscou-se efetuar a articulação entre a Estética e a dimensão da ação humana, considerando que o cotidiano das organizações são resultantes das ações humanas. Para tanto, explorou-se como a Estética se faz presente no cotidiano humano, no estético e no extra-estético. Resgatando-se em seguida duas noções filosóficas influenciadas por Kant - o ato e a atitude - sempre articuladas com a Estética. E com base nas noções mencionadas, construiu-se as noções de função humana e de ação humana articulada com a Estética e sua presença no cotidiano humano. A terceira parte intitulada “ESTÉTICA E ORGANIZAÇÕES” desenvolvida em dois capítulos tem como propósito estabelecer a articulação duas partes anteriores com as organizações, constituindo-se, portanto, no cerne do presente trabalho, na medida em que quer evidenciar e demonstrar a presença e contribuição da Estética nos estudos e na análise das escolhas e ações organizacionais. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 25 Com o capítulo 9 busca-se resgatar e analisar a presença da Estética nos estudos organizacionais, suas motivações, os direcionamentos das pesquisas e as principais contribuições até então promovidas. O propósito do capítulo é identificar e analisar como e em que medida a Estética é vista enquanto elemento e possibilidade para análise e interpretação do cotidiano das organizações. No capítulo 10 busca-se apontar como a Estética se faz presente na ação organizacional, em particular no escopo gerencial, e como seu reconhecimento favorece a compreensão e interação da vida organizacional. Estabelece-se a articulação da Estética com a criatividade e com a inovação e as transformações organizacionais. E, ainda aponta-se as possibilidades e perspectivas de análise que considere a Estética e a gestão. Por fim, há a apresentação das conclusões decorrentes das três partes construídas partindo da questão inicial apontando os elementos que permitem considerar a existência de uma dimensão estética e sua influência e presença no cotidiano humano e por consequência no cotidiano das organizações. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 26 PARTE I O FAZER CIÊNCIA E ESTUDOS ORGANIZACIONAIS Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 27 CAPÍTULO I A MODERNIDADE E OS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS A maior caridade que o homem deve fazer a outro é sacudir-lhe as poeiras das falsas teorias, dos aéticos procedimentos, aéticos costumes e encaminhá-lo com e pela Luz, à Luz para a vitória por sua própria luta, por seu próprio trabalho. A Arca O presente capítulo tem como propósito resgatar os fundamentos do fazer ciência afeito à modernidade, algo fundamental para compreensão dos limites e impasses nos estudos organizacionais. Para tanto são identificados as bases epsitemológicas e suas repercussões no desenvolvimento do conhecimento científico e nos estudos e ações organizacionais. O capítulo está estruturado em seis tópicos, tendo por ponto de partida o contexto atual das organizações; a ciência tradicional, com destaque para a racionalidade individual e o empirismo sistemático; os reflexos da modernidade sobre a administração; as vertentes epistemológicas dos estudos organizacionais; os Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 28 pretensos paradigmas; e finalmente os limites do positivismo lógico2 enquanto base para os estudos organizacionais. 1.1 O CONTEXTO CONTEMPORÂNEO E AS ORGANIZAÇÕES Em um momento civilizatório tão efervescente, no tocante às diferenças sociais caracterizadas por violência, corrupção e volúpia, as diversidades de áreas do conhecimento humano começam a abrir-se para as contribuições de outras áreas, passando a incorporar elementos conceituais e valores, que ampliam a percepção das questões de pesquisa, apontando novos elementos, novas respostas, modificando e ampliando a busca de elementos explicativos aos problemas sociais. No entanto, ainda que não priorizado, o elemento central e “foco de atenções”, seja qual for a área do conhecimento, é o ser humano e, por consequência, as sociedades, enquanto criações e construções humanas. As transformações pelas quais passam as relações sociais têm gerado mudanças e intensas reflexões acadêmicas no quadro teórico da análise organizacional, sempre na tentativa de compreender tais transformações e os impactos sociais delas decorrentes, seus antecedentes e, na medida do possível, delinear o rumo que elas apontam. Sabe-se que é impossível pensar nas transformações sociais sem levar em consideração os problemas humanos, pois não pode ser esquecido que a história não é um processo sem sujeitos e/ou identidades sociais, mas sim o resultado da luta entre indivíduos e grupos fortemente implicados que se utilizam, para tanto, não só da sua racionalidade, mas também da sua afetividade. 2 O positivismo lógico traduz uma postura filosófica proveniente do positivismo que procura aplicar os princípios da lógica, da matemática e das ci~encias empíricas a todos os campos do pensamento. Afirmam que todas as investigações intelectuais deviam se realizar nos mesmos padrões da investigação científica. Assim o conceito de verificabilidade é fundamental excluindo com base nesse critério de cientificidade todos os enunciados metafísicos, religiosos e éticos. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 29 A partir da década de setenta, um processo complexo de transformações sociais, econômicas, institucionais e tecnológicas foi colocado em marcha, concretizando evidências de um novo modelo de desenvolvimento do capitalismo em escala mundial. No plano micro das atividades de transformação, esse processo tem na nova base tecnológica microeletrônica e nas inovações tipicamente organizacionais explicações importantes para os resultados de produtividade das firmas contemporâneas. Esses fatores, tomados em conjunto com outros no plano macroeconômico da liberalização financeira e comercial, modelam em parte as alternativas políticas, econômicas e sociais dos Estados-nações ao final do século XX. Há um entendimento geral que, pelo menos dentro do mundo ocidental, a maior parte do século passado foi dominada por uma ordem engendrada de concepções que pode ser nominado de moderna. As características desse período têm como destaque a ênfase na tecnologia, nas condições materiais, nas muitas formas de vida institucional e de práticas culturais envolvendo a literatura, arte e arquitetura. Os estudos organizacionais, em particular, nas últimas três décadas, têm buscado acompanhar as mudanças sociais, fazendo uso de novos aportes teóricos que possam auxiliar na reflexão teórica da sociedade. Burrell & Morgan (1979) apontam a necessidade de novas abordagens teóricas para os estudos organizacionais, ressaltando que não apenas novas abordagens são necessárias, mas também novas possibilidades de reflexão e análise diante da crise e contradição presentes na área. A época em que vivemos mostra-se marcada pela confusão de conceitos, percebida, inclusive, no âmbito dos estudos organizacionais. Pode-se observar, por exemplo, como diferentes terminologias têm sido utilizadas para descrever contextos Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 30 semelhantes, como: autonomia dos trabalhadores, flexibilidade, estrutura horizontais etc., ainda que estes pareçam ter diferentes sentidos e significados. Portanto, o relativismo, onde tudo pode e tudo é bem-vindo, é traço marcante, com a conseqüente perda ou abandono de referenciais teóricos que possibilitem o aprofundamento da reflexão sobre os problemas. O trabalho de Parker (1992), por exemplo, aponta para uma questão essencial, habitualmente escamoteada, ao refletir quanto ao equívoco comum de apontar uma ruptura ou mudança, quando ainda não há efetivamente um quadro ou perspectiva nova, levando minimamente a panacéias e descrenças. Já Hassard & Parker (1993) consideram o problema do entendimento, no âmbito dos estudos organizacionais, como algo crucial, apontando as influências da epistemologia pós-moderna ao evidenciar que o todo social é constituído por nossas linguagens compartilhadas e só podemos conhecê-lo através de formas particulares de discursos que nossa linguagem cria, mas necessitam de aceitação por parte dos estudiosos da área. Esta afirmação não é tão fácil e simples, como aponta Burrell (1988), em face das dificuldades, resistências e divergências presentes no campo dos estudos organizacionais, no sentido de haver um entendimento acerca de como estabelecer pontos de concordância quanto ao caminho a ser seguido. Clegg (1990), por sua vez, afirma que em um mundo pós-moderno as organizações modernas, ou seja, as organizações “burocráticas” e tayloristas perderam espaço para as organizações pós-modernas. Nessas organizações, os trabalhadores seriam acompanhados de forma menos autoritária, menos explícita, formando grupos e equipes que se autocontrolariam e o trabalho exigiria múltiplas habilidades dos funcionários. Entretanto, os fatos ainda não apontam tal característica como um traço definidor das novas organizações. Considera-se que para essas “novas” organizações, a estrutura organizacional seria mais orgânica e flexível, tirando proveito da tecnologia, o que é muito pouco para distinção enquanto “novas” organizações, ou melhor, o padrão Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 31 organizacional predominante continua o mesmo, o qual flexibiliza e adapta-se aos novos contextos. Portanto, não há uma efetiva transformação, mas adaptações aos novos tempos e exigências visando a própria sobrevivência, sem mudanças significativas. Cooper (1989); Cooper & Burrell (1988) efetuam críticas voláteis da orientação sistêmica presente nos estudos organizacionais modernos, numa tentativa de engendrar convicções que interessam à dita ciência organizacional, enquanto campo de conhecimento gerador de práticas organizacionais homogeneizadas, ou seja, as premissas teóricas não são colocadas em questão ou sua discussão não é aprofundada. Há uma organizacionais? trajetória Quais que os aponte caminhos novas percorridos perspectivas até então? nos estudos Que novas contribuições têm sido propostas? Quais foram as bases predominantes nos estudos organizacionais? Quais os reflexos da modernidade sobre os estudos organizacionais? E quanto à pós-modernidade? Que proposições podem ser feitas enquanto contribuição teórica? Para dar conta de tais questões, o próximo tópico apresenta as influências do desenvolvimento dos estudos organizacionais e os caminhos que permitem apontar contribuições advindas de outros campos do conhecimento humano, em particular da Filosofia envolvendo a Estética. 1.2. A MODERNIDADE E O PARADIGMA CLÁSSICO DO FAZER CIÊNCIA Segundo Kuhn (1992) denomina-se de paradigmas “as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 32 Capra (1983) atribui a René Descartes (1596-1650) a base filosófica que, ao lado dos trabalhos de Galileu Galilei (1564-1642) e de Isaac Newton (1643-1727), veio a se constituir no paradigma que dominou o meio científico por aproximadamente três séculos. Para Descartes, a “natureza derivava de uma divisão fundamental em dois reinos separados e independentes: o da mente ‘res cogitans’ e o da matéria ‘res extensa’” (DESCARTES, 1981, p. 25). Santos (1991, p. 31) aponta que: Descartes havia separado a realidade em dois segmentos: de um lado o espiritual, metafísico; de outro lado, o material mensurável. A isso correspondia o dualismo do pensamento (relacionado com as verdades metafísicas) e a extensão (área da realidade a ser atingida pela ciência experimental). Da possibilidade desta divisão, resulta a essência da objetividade científica. E nesse particular, Bombassaro (1992, p. 80-1) chama a atenção para um segundo aspecto da obra de Descartes: com o rompimento da tradição como fonte do conhecimento, esta “passa a ser vista como uma fonte de enganos, assim como eram os sentidos", e conclui que "a certeza e a evidência devem ser buscadas na razão, que se contrapõe à história". Todavia, uma das contribuições mais relevantes de Descartes para a forma de pensar hegemônica na Modernidade, foi a obra publicada em 1637, o Discurso do Método, na qual enumera os seus preceitos. Antes de enumerar os seus preceitos Descartes (1981, p. 4) esclarece: o meu propósito não é ensinar aqui o método que se deve seguir para conduzir bem a razão, mas apenas mostrar de que maneira me esforcei para conduzir a minha. O que, por um lado explica o tratamento na primeira pessoa utilizado na obra e por outro, chama a atenção para um equívoco histórico: a responsabilidade, com os prós e contras decorrentes, pela generalização do seu procedimento como se uma metodologia fosse, não deve ser atribuída ao autor. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 33 Descartes aponta então seus preceitos enunciando-os: O primeiro preceito era o de jamais aceitar alguma coisa como verdadeira que não soubesse ser evidentemente como tal, isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu espírito que eu não tivesse nenhuma chance de colocar em dúvida. O segundo, o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas partes quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las. O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, a começar pelos objetos mais simples e mais fáceis de serem conhecidos, para galgar, pouco a pouco, como que por degraus, até o conhecimento dos mais complexos e, inclusive pressupondo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros. E o último, o preceito de fazer toda sorte de enumerações tão completas e revisões tão gerais que eu tivesse a certeza de nada ter omitido. (DESCARTES, 1981, p.44-5). Francis Bacon (1561-1626) e David Hume (1711-1776) têm a sua contribuição associada à tese de que nenhum agir ou pensar ocorre no vácuo, justifica-se antes, pela sua utilidade imediatista (BOMBASSARO, 1992), origem da ênfase nos aspectos funcionalistas também predominantes na Modernidade. Bombassaro (Op. cit., p. 47) citando Diderot (1713-1784), afirma que como “era impossível escrever a história daquilo que os homens sabiam, ele (F. Bacon) traçou um mapa do que eles deveriam aprender”. Assim, R. Descartes, D. Hume e F. Bacon assinaram as primeiras páginas da Modernidade. A objetividade científica, o método, a crítica, o experimentalismo e o imediatismo utilitarista são, pois, características que possuem suas origens localizadas nos autores acima, não sendo, portanto, naturais, e que, na opinião de muitos autores, ainda caracterizam tanto o modo de pensar ocidental quanto são responsáveis pelas mazelas deste final de milênio. Capra (1993, p. 25), por exemplo, é de opinião que: posteriormente, cada indivíduo foi dividido num grande número de compartimentos isolados de acordo com as atividades que exerce, seu talento, seus sentimentos, suas crenças etc., todos estes engajados em conflitos intermináveis, geradores de constante confusão metafísica e frustração. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 34 Isaac Newton, tendo como ponto de partida os fundamentos filosóficos mencionados acima, vem a constituir a base da física clássica, alicerce do que veio a ser denominado de Modelo Mecanicista da natureza, estrutura articulada de princípios e leis que fornecia a explicação para os fenômenos até então conhecidos (BOMBASSARO,Op. cit). Decorre do modelo Cartesiano-Newtoniano uma visão de mundo acentuadamente determinista onde, além de explicáveis, os fenômenos são previsíveis posto que regulados por leis imutáveis que, na essência, encontram-se definidas por Deus. A utilização, bem sucedida, do Modelo Clássico levou à crença da sua universalidade e da sua subseqüente extensão não só às demais áreas das ciências da natureza (química, biologia etc.), como também à sua gradual e progressiva aplicação no campo das ciências sociais, sendo acentuadas as influências observadas no desenvolvimento das Teorias Econômicas. Apreciar os elementos emergentes do pensamento pós-moderno permite isolar presunções fundamentais que estão a nortear os estudos organizacionais, presunções essas decorrentes do arcabouço modernista, afetando as formas principais de pesquisa, compromissos teóricos e práticas dentro do ambiente organizacional. Tais convicções modernistas têm efeito, seja na sala de aula, seja no local de pesquisa, em formas de publicação, nos conteúdos teóricos, assim como nas orientações levadas por consultores e especialistas para as organizações onde atuam. Embora haja muito para ser dito sobre ciência em molde modernista, será considerado aqui dois elementos fundamentais caracterizadores da modernidade: a racionalidade individual e o empirismo sistemático. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 35 1.2.1. Racionalidade Individual Como na maioria dos estudos, o pensamento modernista no século passado tem raízes importantes no Iluminismo, um período quando os trabalhos de filósofos como Descartes, Locke e, posteriormente, Kant estavam dando voz sofisticada a concepções centradas no indivíduo. Embora a história aponte muitos desvios significantes (por exemplo, o romantismo do século XIX), pressupostos iluministas continuaram no século seguinte a proporcionar muitos avanços científicos e tecnológicos, assim como o crescimento da indústria e, infelizmente, a prevalência da guerra. Curiosamente, com o advento da industrialização e da guerra, há uma dependência, cada vez maior, da sociedade em relação à ciência e à tecnologia. O Iluminismo valorizou e considerou a racionalidade individual, questionando todas as formas de totalitarismo - real e religioso. Essa valorização da mente individual veio servir como dispositivo racionalizante principal, para o começo do Século XX, período inicial da ciência organizacional, especialmente sua aplicação, no âmbito das organizações produtivas. Tradicionalmente à idéia de racionalidade está associado o conhecimento objetivo da realidade. Para tanto, é necessário reduzir o espaço para interferências oriundas de paixões, crenças e demais expressões de subjetividade. Isto permite uma progressiva identificação entre racionalidade e verdade, objetividade e necessidade, não sendo considerado racional aquilo que é meramente subjetivo e contingente. (CHAUÍ, 1999) De acordo com esta perspectiva, a racionalidade consistiria na singular capacidade da mente humana em buscar a verdade. Isto seria possível através da adoção de uma forma de pensar capaz de estabelecer uma relação de necessidade entre os pontos de partida e os pontos de chegada. Assim, duas pessoas diferentes Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 36 poderiam chegar aos mesmos resultados apesar da diferença entre suas vivências e experiências pessoais (NUDLER, 1996). Entretanto, tal perspectiva representa apenas uma possibilidade de racionalidade, exacerbada na modernidade é verdade, mas que uma análise histórica permite descortinar um quadro bem mais amplo sobre os limites e possibilidades de um pensamento racional. Ao considerar o racionalismo, tem-se como ponto de partida um problema vigente e recorrente no âmbito do pensamento ocidental, um viés que tem, de certa forma, guiado as mais diversas concepções, seja de senso comum, científico, filosófico etc.: a questão das dicotomias. Aprende-se no Ocidente a ver as coisas sempre a partir de uma base dicotômica, na qual os pares em jogo se excluem: sociedade em oposição a indivíduo, estrutura em oposição a sujeito, e assim sucessivamente. Esta perspectiva dicotômica pode ser presenciada nas próprias ciências sociais. Durkheim, por exemplo, privilegia a sociedade em detrimento do indivíduo, enquanto Weber vai pelo caminho inverso. No máximo consegue-se chegar a um terceiro termo: tese-antítese-síntese que não deixa de ter uma base fundamentada na dualidade. Esta forma de perceber o real exclui, em última análise, o diálogo entre as partes, acabando por privilegiar uma dimensão em detrimento da outra. A palavra racionalismo é utilizada para distinguir-se do empirismo britânico, pois defende que o homem nasce com verdades inatas ou "a priori". Para os racionalistas todo conhecimento procede por dedução, ao contrário dos empiristas que tudo concluem por indução. Para considerar historicamente o racionalismo tem-se como ponto de partida o pensamento filosófico da antiguidade clássica. Nesta época, reverenciada pelos historiadores como o alvorecer de toda a tradição que fundamenta a cultura ocidental, encontra-se uma clara preocupação com a explicação racional dos eventos da natureza e da sociedade. É quando o pensamento mítico vai Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 37 paulatinamente cedendo espaço para as explicações racionais. É o momento da afirmação do logos sobre o mythos, da razão sobre a crença, da objetividade sobre a subjetividade, da episteme sobre a doxa3. Pode-se de fato dizer que a razão se resume em dois traços relacionados, um ao outro: um negativo, o outro positivo. Negativamente é a rejeição de toda autoridade, em particular de toda autoridade exterior ao julgamento de cada um (preconceitos, tradições, crenças a priori, julgamento do mestre, texto sagrado etc.). Positivamente, é uma capacidade de universalização, uma conduta, uma crença, um discurso são geralmente qualificados de racionais se são universalizáveis, isto é, se dependem, cada um deles, apenas de sua faculdade discursiva, ou seja, de um discurso por direito enunciável e aprovável por todos (WOLFF, 1999). Como se percebe, o pensamento filosófico do ocidente parece valorizar a unidade em detrimento da multiplicidade. Esta tendência tem origem na busca pelo ser, pela essência das coisas. Nesse sentido, “o ser é aquilo que é uno e é uno aquilo que não muda, aquilo que necessariamente permanece, e que sempre permaneceu, idêntico a si mesmo” (GRÁCIO, 1998, p.17). Conhecida é a polêmica entre Heráclito e Parmênides, que representa justamente a busca pelo ser. Afirma Heráclito que uma coisa é e não é ao mesmo tempo, posto que em permanente devir: “tudo flui”. Mas Parmênides, preocupado em identificar elementos que permitam a caracterização do ser, acaba por afirmar que uma coisa não pode “ser” e “não ser” ao mesmo tempo. Uma coisa é ou não é, daí a origem de um dos princípios lógicos fundamentais - o princípio da identidade (CHAUÍ, 2002). Há uma busca incessante pela superação do contingente em busca do necessário, universalmente generalizável. Essa busca bem pode ser percebida também na perspectiva platônica atribuindo menor valor a toda forma de raciocínio 3 O logos significa a razão enquanto primeira substância ou causa do mundo, sendo tal doutrina defendida por Heráclito, concebendo-a como a própria lei cósmica: “todas as leis humanas alimentam-se de uma só lei divina: porque esta domina tudo o que quer e basta para tudo e prevalece a tudo” (CHAUÍ, 2002). Quanto a doxa (opinião) abre espaço para a epsiteme (conhecimento embasado em pressupostos teóricos). Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 38 que não conduza à essência do ser. Desse modo, “todos os discursos que se alimentem da divergência de pontos de vista ou que vinquem a diferença de perspectivas só poderão roçar a charlatanice ou demonstrar errância” (GRÁCIO, Op. cit., p. 22). Já no Renascimento destaca-se como racionalista, Descartes (1981) que sustentava que existiam dois tipos de substâncias: a corpórea e a espiritual e esses dois tipos podem se unir. Deus seria o liame entre o espírito e o corpo. Descartes (Op. cit.) tomando seu cogito ergo sum4 como ponto de partida, divide o homem em corpo e mente, determinando esta última como o lugar onde reside a essência da natureza humana, instituindo o método analítico, método através do qual os objetos do conhecimento são decompostos, gerando uma fragmentação. Esse homem cartesiano dicotomizado, como observa Capra (1996), tem um profundo efeito sobre o pensamento ocidental, na medida em que passa a ver-se como egos isolados, privilegiando o trabalho mental em detrimento do manual. Assim, a base fundamental do pensamento cartesiano está centrada na dicotomização da res cogitans e da res extensa como dimensões distintas, separadas e independentes. Já para Espinosa (1632-1677) que ao contrário de Descartes, era monista, para ele só há um tipo de substância, que é a substância Divina, possuidora de uma pluralidade de atributos: o pensamento e a extensão. Para Leibniz (1646-1716) para quem existe um número infinito de substâncias, cada substância é uma mônada. Todas as mônadas5 são imateriais e o conjunto delas forma um conjunto harmonioso que é Deus. Sendo que a origem do 4 O que exprime a auto-evidência existencial do sujeito pensante, ou seja, a certeza que o sujeito pensante tem da sua existência enquanto tal. (DESCARTES, 1981). 5 Designa uma unidade real inextensa, logo espiritual. Para Leibniz (2000) o termo designava a substância espiritual enquanto componente simples do universo, ou seja, a Mônada é um átomo espiritual, uma substância desprovida de partes e de extensão, portanto indiviisível, só Deus pode cria-la ou anula-la. Cada uma é diferente das outras, pois não existem na natureza dois seres perfeitamente iguais. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 39 conhecimento está na razão (a norma da verdade) e quem coordena o conhecimento é o sujeito. Apesar de certa dificuldade conceitual, para a Historiografia é possível identificar a caracterização da modernidade com o Renascimento. Durante os séculos XV e XVI, influenciada por ideologias libertárias e criatividade individual no resgate da cultura greco-romana, os novos tempos representavam o prenúncio de uma forma inédita de conceber o mundo. É nesse período que estão compreendidos acontecimentos substancialmente significativos como o são a Ilustração e as revoluções burguesas. E todos estes acontecimentos são galhos de uma mesma árvore sustentada por uma mesma raiz. Mas, em verdade, o projeto da modernidade bem pode ser compreendido como um amplo processo em que a racionalidade encontra um campo fértil para o seu desenvolvimento. A Razão moderna representa um doloroso momento de ruptura com o passado teológico e quando afirma a si própria como porta voz dos “novos tempos” funda também os limites dos “velhos tempos”. Neste âmbito, a nova racionalidade representa a “orfandade” do homem diante da perda dos deuses enquanto oráculos teológicos para as respostas sobre o início e o fim da vida (CASULLO, 1996, p. 25). O espetáculo da modernidade erige a Razão ao centro do universo. Onde a realidade será idealizada a partir dos indicadores da razão reinante e a busca da verdade absoluta torna-se a mais clara tradução do que seja a racionalidade moderna. A modernidade provoca um superdimensionamento da lógica formal de fundo analítico em detrimento da racionalidade argumentativa. Em certa medida deve-se esta concepção a Descartes para quem a idéia de verossimilhança não se compadece com os propósitos da ciência. O pensamento da modernidade caracterizou-se pela predominância da busca da verdade, sem espaço para o meramente contingente: “a racionalidade trabalhava Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 40 no sentido de eliminar o acaso na natureza, a contingência na história e a fortuna na ética e na política” (CHAUÍ, 1999b, p. 22). Este movimento consiste em uma racionalização da experiência, sendo o marco do estabelecimento das dicotomias sujeito-objeto, consciência-coisa, verdade-aparência, natureza-homem, razão-experiência, enfim, necessidade- liberdade. Na percepção de Santos (1994), a tensão representada pelo advento da modernidade permite admitir que o seu projeto está assentado em dois pilares: de um lado o pilar da regulação; de outro, o pilar da emancipação. O pilar da regulação é representado pelos princípios do Estado (Hobbes), mercado (Locke) e comunidade (Rousseau). Na outra ponta, o pilar da emancipação repousa sobre três esferas distintas de racionalidade: esfera científica (racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da técnica), esfera da moralidade (racionalidade moral-prática da ética e do direito) e esfera artística (racionalidade estéticoexpressiva da arte e da literatura) (SANTOS, 1997; HABERMAS, 1987). Na interpretação de Habermas (1996) a emancipação pretendida pela modernidade consiste em organizar o cotidiano social de modo racional. Isto permitiria não apenas o controle das forças naturais, mas também a compreensão do mundo e do indivíduo e, por conseqüência, o progresso moral, a justiça institucional e a felicidade humana. A outra influência presente e concomitante ao racionalismo individual é o empirismo sistemático, seu desenvolvimento se faz em período de semelhante e ainda que visto, entre si, como divergente na concepção do que é o fazer ciência, será posteriormente objeto de aproximação. O empirismo sistemático é o objeto de análise no próximo tópico. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 41 1.2.2. Empirismo Sistemático Além da celebração de racionalidade, um segundo legado de discurso iluminista que prevalece nos estudos organizacionais é uma forte ênfase no poder de observação individual. Esta ênfase na experiência concreta é importante na filosofia empirista durante séculos e aparece vigorosamente no século passado (Século XX) presente no positivismo lógico. Para empiristas lógicos, só essas proposições podem unir ambigüidade à observação enquanto candidata para consideração científica. Assim, só a prova cuidadosa de proposições científicas é que pode conduzir a incrementos em conhecimento. O empirismo afirma ser da experiência sensível que obtemos todos os nossos conhecimentos, constituídos e controlados pelas experimentações sucessivas. Tem por princípio fundamental a tese enunciada por John Locke (1999) de que todas nossas idéias vêm da experiência, da percepção sensível e da introspecção. Ou seja, é somente através dos sentidos que passamos a perceber, a apreender um objeto, a conhecê-lo. A sensação que temos do objeto já é percepção e apenas por abstração é que isolamos a sensação para estudá-la. Em geral, essa corrente filosófica caracteriza-se pela negação do caráter absoluto da verdade, ao menos, da verdade acessível ao homem, ao mesmo tempo em que reconhece a necessidade de toda e qualquer verdade pode e deve ser posta à prova, logo eventualmene modificada, corrigida ou abandonada. Fundamentalmente o que os empiristas rejeitam no raciocínio é o inatismo6. O empirismo não se opõe à razão ou não a nega, a não ser quando a razão pretende estabelecer verdades necessárias, que valham em absoluto, de tal forma que seria inútil ou contraditório submetê-las a controle. O empirismo tem como premissas a negação de qualquer conhecimento ou 6 Doutrina segundo a qual o homem seria dotado de idéias inatas e, portanto, anteriores a qualquer dado dos sentidos. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 42 princípio inato, que deva ser necessariamente reconhecido como válido, sem quarquer atestação ou verificação e, ainda, a negação do supra-sensível7, entendido como qualquer realidade não passível de verificação e controle de qualquer tipo. Além disso, enfatiza a importância da realidade atual ou imediatamente presente aos órgãos de verificação e comprovação, ou seja, no fato, sendo essa enfâse fruto do recurso a evidência sensível. Bem como reconhece o caráter limitado, parcial ou imperfeito dos instrumentos que o homem dispõe para verificar e comprovar a verdade, além da aplicação e do uso desses instrumentos em todos os campos de pesquisa acessíveis ao homem e só neles. A preocupação com a matemática influenciou os filósofos racionalistas e também os empiristas. Porém, enquanto os racionalistas acreditavam chegar a certezas absolutas, os empiristas nunca afirmarão esta certeza argumentando que pelo fato do conhecimento vir da experiência, não pode-se chegar a certezas absolutas. Para os empiristas, o raciocínio procede sempre por indução CHAUÍ (1999b; 2002). Francis Bacon (1561-1626), considerado o primeiro empirista, insistiu na experiência da ciência e na necessidade da indução. Thomas Hobbes (1588-1679) também insiste em que o conhecimento se origina pelo sensível, mas não despreza o método matemático (dedução). Se para Descartes a razão é substância pensante, para Hobbes a razão é pura atividade, é razão operativa, é ato de raciocinar. Ou seja, é cálculo, adição de juízo a utilizar sinais convencionais: as palavras. John Locke (1632-1704) se deu ao trabalho de criticar veementemente a teoria das idéias inatas. Ele afirma que o conhecimento nasce da experiência, mas as idéias não estão todas ligadas às experiências sensíveis. Isto é, apenas as idéias simples estão imediatamente ligadas às experiências sensíveis, pois somente assim teremos condições de construir idéias mais complexas (substância material). O 7 Aquilo que diz respeito à faculdade especulativa da razão, mas de que nenhum conhecimento é possível, portanto o supra-sensível é o domínio das idéias da Razão Pura, com tudo o que elas implicam para a vida moral do homem. (KANT, 2002) Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 43 substrato material não é ele próprio perceptível. Para George Berkeley (1685-1753) a substância material de que fala Locke é incognoscível, pois não podemos ter desta uma percepção imediata. Berkeley (2000) afirma ainda, que o que é incognoscível pela percepção não existe. O que podemos ter garantia é apenas da nossa percepção, pois as coisas que percebo, digo apenas que percebo. Berkeley (Op. cit.) completa o seu pensamento afirmando que nunca se percebe a pluralidade das coisas, mas apenas a coisa em si. O que nós temos são fenômenos. O que nós captamos é o modo de como a coisa nos aparece, mas não a coisa em si. Ele nega a substância material, porém diz que podemos ter substância espiritual, pois estas são de outra ordem de conhecimento que não nos é perceptível. Já David Hume (1711-1776) afirma que tudo o que nós conhecemos depende das impressões que estas coisas causam em nós. Então, não existe nem substância material nem substância espiritual, pois elas não nos causam quaisquer impressões. O que podemos afirmar são fatos que mostram a percepção de uma associação. Não temos impressão direta da causalidade. Não podemos exrapolar os fatos em si e usar a idéia de causalidade para afirmar impressões. O século XVII teve, na Matemática, os fundamentos para os primeiros passos no sentido de uma investigação e observação do mundo mais rigorosa e precisa. Tem-se início a observação da premissa: toda causa tem um efeito diretamente relacionado, formulada por Galileu Galilei; o desenvolvimento da ciência newtoniana e sua contribuição fundamental na descrição do sistema solar e do movimento dos planetas e por fim, as contribuições de Bacon. Já no século XVIII, têm-se as contribuições dos filósofos iluministas e a Revolução Francesa (1789), influenciando o pensamento de Augusto Comte (17981857), em especial suas implicações na unificação das culturas científica e humanística - em um novo humanismo - e suas teorizações sobre o progresso e a ordem social. (JAPIASSU, 1979; STENGERS, 1989). Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 44 Percebe-se que o conhecimento e o processo científico efetua uma aproximação racional em direção a uma “verdade”, tida como insofismável. Desse modo, a compreensão da ciência e o processo científico adotam como padrão uma visão mecanicista do mundo e das coisas do universo, centrada numa perspectiva de ordem e regularidade presente nos fenômenos estudados. É esse modelo científico que prevalece no século XX fundado na tradição do empirismo e do positivismo lógico, sendo inevitáveis os seus reflexos sobre a Teoria do Conhecimento, enviesando respostas as questões basilares acerca da origem do conhecimento, das possibilidades do conhecer, do conhecimento e a busca da verdade. Dentro das ciências do comportamento, a ênfase nessa crença tornou a perspectiva racionalizante um elemento central na pesquisa, como já ocorria com as ciências básicas, a exemplo da Química e Física – e, desse modo, estimulou um enorme interesse em metodologia de pesquisa de natureza quantitativa, com destaque para a Estatística. Dentro dessa seara, os estudos organizacionais arraigaram-se, inicialmente. A presunção é que há uma realidade organizacional concreta, um mundo objetivo, capaz de estudo empírico, tipo: podemos descrever uma organização como uma coisa viva, composta de um ambiente social concreto, uma estrutura formal, metas reconhecidas e uma variedade de necessidades. Este caráter concreto da organização também é evidente na contribuição de Talcott Parsons. Parsons (1960) definiu uma organização como um “sistema social" normalmente orientado à obtenção de diferentes tipos de metas que contribuem para uma função principal de um sistema mais inclusivo – a própria sociedade. Fica evidente, e não poderia ser diferente, a presença e influência do racionalismo individual e do empirismo sistemático, no modo tradicional de fazer ciência, e, por consequência, de modo similar, nos estudos organizacionais. Independentemente dos aspectos limitadores que possam ser apontados, cabe considerar que tais fundamentos possibilitaram o desenvolvimento e construção de Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 45 um modo de gerir as organizações que não seria possível sem o método racional e empírico e é sobre tal influência que o próximo tópico será desenvolvido. Vale dizer que é a razão, em combinação com a observação, que permite a opinião do indivíduo contar com o reforço do mensurável, e é a articulação desses dois elementos com o âmbito dos estudos clássicos da administração, o que será desenvolvido no próximo tópico. 1.3. A MODERNIDADE E OS CLÁSSICOS DA ADMINISTRAÇÃO A Revolução Industrial, alterando a matriz energética, promovendo transformações na essência da matéria (insumos), definindo novas formas de produção e organização do trabalho, exigiu que fossem desenvolvidos procedimentos administrativos compatíveis com o novo ordenamento. Embora Smith (2000), já em 1776, tivesse chamado a atenção para o relacionamento divisão do trabalho-especialização-produtividade (eficiência), foi somente no início do século XX que surgiu a primeira “escola administrativa” voltada para o aumento da eficiência. A sistematização das práticas administrativas tem origem, pois, com a preocupação sobre o nível de desperdício (ineficiência) verificado no sistema produtivo, no eixo central de todo o desenvolvimento subseqüente. Os trabalhos de Taylor (1987), Henry Fayol (1990), Henry Ford e Weber (1944; 1977; 1991; 2001) constituem os alicerces sobre os quais se apóiam os modelos gerenciais das organizações do século XX. A influência que essas obras ainda hoje exercem na estrutura e no funcionamento das organizações demonstra a seminalidade e a força das idéias nelas contidas. Uma análise mais acurada, inclusive, identifica a linha mestra do Taylorismo e do Modelo Burocrático Weberiano delineando a malha e os relacionamentos Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 46 institucionais da moderna sociedade ocidental. Se os princípios e as técnicas propostas por Taylor não foram de todo inusitadas, guardam o indiscutível mérito de se constituirem no primeiro corpo teórico que veio em resposta aos problemas de gestão pós-Revolução Industrial. Os trabalhos de Fayol, Ford e Weber, ainda que dotados de conteúdo próprio, vieram a complementar o de Taylor, contribuindo para alavancar a utilização dos recursos, aumentando, exponencialmente, a eficiência das organizações. A preocupação de Taylor (1987, p. 31) com os níveis de eficiência e em “assegurar o máximo de prosperidade ao empregador e, ao mesmo tempo, o máximo de prosperidade ao empregado" levou-o a elaborar os seus Princípios Fundamentais da Administração Científica que evidenciam a forma de pensar dominante na época. Taylor (Op. cit., p.107) assim enumerou os seus Princípios: substituição do critério individual do operário por uma ciência; seleção e aperfeiçoamento científico do trabalhador, que é estudado, instruído, treinado e, pode-se dizer, experimentado, em vez de escolher ele os processos e aperfeiçoar-se por acaso; cooperação íntima da administração com os trabalhadores, de modo que façam juntos o trabalho, de acordo com leis científicas desenvolvidas, em lugar de deixar a solução de cada problema, individualmente, a critério do operário. Seguindo outra abordagem, Fayol (1990, p. 43-44) percebeu a organização do ponto de vista da sua funcionalidade orgânica enunciando os seus Princípios Gerais de Administração: a divisão do trabalho; a autoridade e a responsabilidade; a disciplina; a unidade de comando; a unidade de direção; a subordinação do interesse particular ao interesse geral; a remuneração do pessoal; a centralização; a hierarquia; a ordem; a eqüidade; a estabilidade do pessoal; a iniciativa; e, a união do pessoal. Igualmente relevantes são os Elementos de Administração identificados por Fayol: previsão, organização, comando, coordenação, e controle. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 47 Traduzida por Talcott Parsons, a obra de Max Weber foi, em parte, apropriada à Administração notadamente no que se refere às relações de poder e autoridade mediadas pela burocracia. Entretanto é Etzioni (1983) quem irá destacar a contribuição precursora de Weber para o estruturalismo nas organizações. A burocracia weberiana (Weber, 1991) pode ser sintetizada pelas seguintes características: 1) sistemática divisão do trabalho; 2) estrutura de cargos estabelecida segundo o princípio hierárquico; 3) normas e técnicas para o desempenho de cada cargo - trabalho prescritivo; 4) seleção, ingresso e progressão na organização com base nos méritos (meritocracia) do trabalhador e não em preferências pessoais – profissionalização; 5) organização baseada na separação entre a propriedade e a administração; 6) completa previsibilidade de funcionamento. Por fim, os trabalhos de Taylor, Fayol, Ford e Weber resultaram na consolidação do que veio a ser denominado por Organização Científica do Trabalho (OCT), cuja síntese pode ser expressa em: • a divisão social do trabalho, isto é, há na organização aqueles que planejam, concebem, integram e desintegram o processo de trabalho e, os que tão somente executam o que os primeiros definiram; • a divisão técnica das atividades, isto é, ênfase no uso da especialização como instrumento para atingir níveis crescentes de eficiência; Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 48 • a sequencialização articulada dos processos coordenados e controlados por uma estrutura (de poder) hierárquica. O confronto entre as idéias (princípios) daqueles que estabeleceram os fundamentos do Modelo Clássico (R. Descartes, I. Newton, F. Bacon, entre outros) e as idéias daqueles que estabeleceram as bases da OCT (Taylor, Fayol, Weber e Ford, entre outros) evidencia que as diferenças, quando existem, situam-se mais no plano da forma do que da essência; tanto nos Princípios de Taylor e Fayol, quanto na estrutura Weberiana, identifica-se elementos que direta e explicitamente estão relacionados com o Modelo Clássico. O ponto que se pretende destacar é que o pensamento administrativo clássico é uma extensão natural da rationale científica que teve início e foi hegemônica durante toda a Modernidade. Motta (1995, p. 21, 53) expressa bem isso, ao afirmar: a visão ordenada do mundo organizacional, implícita na própria idéia de organização, induzia a se pensar a realidade administrativa como racional, controlável e passível de ser uniformizada; o ideal racional presume que a decisão é provocada unicamente pela detecção de um problema e que o processo decisório se constituirá de um fluxo de produção e análise de informações que, criteriosamente coletadas e analisadas, resultarão em identificação e opção de alternativas para o alcance eficiente dos objetivos organizacionais. Ao encontro deste argumento, cabe mencionar que Burrel e Morgan (1979), Séguin e Chanlat (1992) e Aktouf (1996), ao apresentarem as Escolas Administrativas em perspectiva sociológica registram que as diferenças, se existem, são de grau, não de substância, pois todas podem ser enquadradas num mesmo paradigma, o funcionalista. Aktouf (Op. Cit.) é de opinião que, após Fayol, em 1916, não encontramos nada melhor que o famoso PODC - planejamento, organização, direção e controle para resumir as coordenadas do trabalho do dirigente. Contudo, é importante destacar que os trabalhos de cada um dos autores citados, entre outros, resultaram em sucessivos acréscimos na amplitude do conteúdo e da forma como a atividade administrativa deveria ser conduzida. A cada Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 49 novo desafio os gerentes identificavam as soluções inovadoras que, posteriormente, após a sistematização acadêmica, era difundida como a mais nova técnica (ferramenta) administrativa. Foi assim até a década de 60. A crise energética ocorrida na década de 70 tem sido citada como o marco de importantes mudanças que desde então passaram a dominar a sociedade ocidental neste final de século, colocando em xeque o conhecimento administrativo até então acumulado. A crise econômica, sucedendo a crise energética, assinalou o auge e o declínio relativo das proposições (neo)clássicas das abordagens administrativas. Inflação, recessão, perda de competitividade, entre outros desajustes emergentes (e persistentes) em diversas economias ocidentais, contrastando com a emergente economia japonesa, foram evidências de que as práticas recomendadas pelas abordagens administrativas possuíam fragilidades, não mais respondendo a contento às exigências do novo ambiente concorrencial. No plano científico e tecnológico, a revolução do microchip foi a senha para incontáveis inovações nas mais diversas áreas, impactando, sobremodo, a gerência das organizações. Forrester (1997, p. 26) chama a atenção que “por causa da cibernética, das tecnologias de ponta, o mundo vive à velocidade do imediato... em espaços sem interstícios. A ubiqüidade, a simultaneidade aí é lei”. Em que pese a administração contar com um vasto arsenal de técnicas e ferramentas voltadas para níveis sempre crescentes de eficiência e eficácia Administração por Objetivos, Pesquisa Operacional, Planejamento Estratégico, entre outras - , a crise persistente engendrou a busca de novas soluções, em todos os campos. Assim é que no plano da economia regional foram identificados os distritos e redes industriais (Benko & Lipietz, 1994; Pyke, Becattini e Sengenberger, 1990; entre outros) como respostas alternativas ao tradicional modelo de eficiência calcado no taylorismo-fordismo. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 50 No plano interno da gestão (processo decisório, motivação, criatividade etc.), dentre outras, destacam-se as iniciativas de Wrapp (1967), Mintzberg (1976, 1987) e Lapierre (1989). Percebe-se que ao identificar a racionalidade individual enquanto fonte principal de conduta humana, vislumbrou-se então que destrancar seus segredos é ganhar a capacidade de antecipar o futuro da organização. Ao mesmo tempo é o investigador individual, treinado em pensamento racional sistemático, que é equipado melhor para levar a cabo tal estudo e desse modo fazer uso deste adquirindo um diferencial sobre as demais organizações. Mais explicitamente, estas suposições podem ser percebidas nas concepções do indivíduo e nas organizações que emergem desde então dos estudos organizacionais. Para muitos estudiosos, o taylorismo proveu o modelo modernista de vida organizacional por excelência. Segundo este ponto de vista o trabalhador individual era percebido como um agente “quase-racional” que responde a várias ações de modo sistemático. Embora intitulado de gerador de ambientes de trabalhos desumanizados, o taylorismo ainda dá guarida a orientações de natureza geral presentes nas convicções contemporâneas da administração. Mais recentemente, planejamento-programação-orçamento, ou melhor, sistemas (PPBS) e Administração de Qualidade Total (TQM) são demonstrações da presença e contribuição da racionalidade individual delineando o mundo do trabalho. Para tanto, o gerente é ajudado pelos consultores para fazer previsões baseadas na suposição de racionalidade individual. Os gerentes criam previsões de curto e longo prazo sobre o desempenho organizacional diante da suposição de que os empregados são seres racionais que atuam apenas centrados na racionalidade e que, para aperfeiçoar os resultados do trabalho realizado, reagirão positivamente às várias contribuições, de modo a melhorarem o produto das suas atividades. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 51 O trabalho de Simon (1960; 1961;1965) centra-se na racionalidade individual, ainda que reconhecendo limitações na capacidade humana para processar informação. Pressupõe a satisfação individual, insinuando que a procura por alternativas racionais não cessa com uma ótima solução, mas uma solução satisfatória. Propõe então o desenvolvimento de uma formação para administração e o uso de programas de treinamento para fornecer aos gerentes competências administrativas cruciais para melhor desempenho. Além de proporcionar a visão do trabalhador individual e a função do gerente, o compromisso com o processo racional amoldou também os contornos de teorias macro-organizacionais. Esse aspecto é destacado por Cooper e Burrell (1988) que dão ênfase ao significado da corporação moderna, precisando a idéia de desempenho, especialmente em seu modo economizante e criando uma realidade então fora da idéia ordenada de relações sociais, de acordo com o modelo de racionalidade funcional. Concepções de sistemas cibernéticos e gerais - como esses patrocinados por Boulding, Bertalanffy e Weiner - contribuiram diretamente para as perspectivas de sistemas abertos de teoria organizacional, segundo Shafritz & Ott (1987) que consideram a orientação de sistemas filosoficamente e metodologicamente amarrada ao taylorismo. Finalmente há de ser considerado que a convicção na racionalidade individual e a importância do papel do cientista organizacional, em particular da percepção sobre a organização, dificultam a aceitação da limitação de tal tipo de racionalidade, pois ao apontar que aquela teoria organizacional é o resultado requintado do pensamento racional, tal presunção concede ao teorista profissional um grau de superioridade. Esta lógica é ampliada por uma segunda convicção modernista, o empirismo. Pugh et ali. (1963) propôs analisar a estrutura organizacional em termos de seis variáveis – especialização, padronização, formalização, centralização, configuração e flexibilidade. Estes seriam relacionados de modo causal a tais variáveis como tamanho da empresa, propriedade, controle, escritura e tecnologia. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 52 Na linha dos paralelos já destacados, pode-se dizer que a administração passou a experimentar questionamentos típicos das crises que antecedem as grandes rupturas (Kuhn, 1989, 1996). Segundo alguns autores, a persistência da crise, é o sinal mais evidente de um momento de transição da Modernidade para a Pós-Modernidade e que será objeto de análise no tópico que se segue. No presente tópico buscou-se demonstrar como os autores clássicos da administração fizeram uso, na construção de suas respectivas contribuições, da área de administração de um conhecimento sistematizado tendo como método de referência para sistematização de tais conhecimentos o empirismo sistemático e o racionalismo individual. Ainda que tal conclusão possa parecer óbvia e previsível, mostra-se necessário resgatar tal similaridade para que o âmbito da administração possa reconhecer e aceitar os limites apontados e já aceitos em outras ciências sociais e humanas, acerca dos entraves que decorrem quando são considerados somente como esferas do conhecer, ou seja, a experiência e a razão. O próximo tópico tem como propósito identificar tais influências, ainda presentes nos estudos organizacionais, principalmente as que apontam os desdobramentos recentes para a ampliação das perspectivas de análise do modo tradicional e do modo moderno de apreender e interpretar o cotidiano das organizações. 1.4. VERTENTES EPISTEMOLÓGICAS ORGANIZACIONAIS DOS ESTUDOS No campo da teoria organizacional, vive-se atualmente não mais uma fase de ciência normal – utilizando o termo na acepção kuhniana, mas a aproximação de um novo período, onde as limitações das premissas de análises anteriores são reconhecidas como objeto de formulação de novos olhares. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 53 Segundo Reed (1998), desde meados da década de 70 que a supremacia da ortodoxia funcionalista/positivista vem sofrendo abalos. As certezas ideológicas que serviram de base aos estudos das organizações vêm sendo questionadas e, aparentemente já começaram a recuar no debate sobre a natureza dos fenômenos organizacionais. Fundamentar-se em pressupostos de que qualidades racionais e éticas são inerentes à organização moderna é algo cada vez mais contestado por vozes alternativas que criticam radicalmente a linearidade, a objetividade e a obtenção de consenso natural das organizações. A visão reducionista inerente ao funcionalismo explica o todo organizacional pelo estudo analítico de suas partes e, muitas delas, acabam “esquecidas” ou diluídas no todo, evidenciando a preponderância da idéia do todo sobre as partes. Percebe-se que a complexidade presente no âmbito das interações parte-todo não é devidamente abordada pela Teoria das Organizações. Serva (1997b, p. 33) duvida da aparente “naturalidade” desse processo de encobrimento das partes. Segundo ele, em última análise, nas partes residem a atividade e a ação, sendo a base de reprodução da subjetividade. Assim sendo, pode-se perguntar qual seria exatamente o papel do todo. Essa questão leva a uma linha de debate reconhecidamente complexa. Ele ainda completa: ... é necessário refletir sobre quantas vezes a mudança no campo social tem sido abordada pela desvalorização da ação da parte frente à tirania simbólica do todo, e perguntar até que ponto a reificação do todo não é o passo crucial na negação da ação das pessoas enquanto elaboradoras de sua própria história. Nesse sentido, a epistemologia dos estudos organizacionais visa contribuir no processo de resgate de elementos que valorizem, primeiramente, os aspectos humanos, para então se direcionar para os princípios éticos (ou a falta deles), os conflitos de poder e as ambiguidades, os quais estão presentes nas organizações como resultado das diferentes interações entre as partes e não podem ser minimizados por relações lineares de causalidade. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 54 Em segundo lugar, a epistemologia de tais estudos pode contribuir para a inserção do sujeito no contexto da construção das realidades como também na produção científica. Ela incorpora seriamente a subjetividade como uma dimensão que torna as organizações menos objetiva e simples do que poderiam parecer. Em terceiro lugar, a complexidade clama pela transgressão dos limites da abstração universalista que elimina a singularidade, a localidade e a temporalidade (MORIN, 1998). Dessa forma, num momento em que “gurus” internacionais e modismos gerenciais avançam sobre as organizações no Brasil, a teoria da complexidade pode ser uma importante abordagem para alimentar a reflexão sobre a teoria das organizações nas escolas de administração brasileiras. Nesse sentido, Morin (Op. cit.) afirma que a complexidade não tem metodologia, mas pode ter um método. Assim como o método de Marx era estimular a percepção dos antagonismos de classe dissimulados sob a aparência de uma sociedade homogênea e, o de Freud, ver o inconsciente escondido sob o consciente e o conflito no interior do ego, o método da complexidade tem importantes características próprias: pede para pensarmos nos conceitos, sem nunca dá-los por concluídos, para quebrarmos as esferas fechadas, para estabelecermos as articulações entre o que foi separado, para tentarmos compreender a multidimensionalidade, para pensarmos na singularidade com a localidade, com a temporalidade, para nunca esquecermos as totalidades integradoras. [...] a organização não se resume a alguns princípios de ordem, a algumas leis; a organização precisa de um pensamento complexo extremamente elaborado. Um pensamento de organização que não inclua a relação profunda e íntima com o meio ambiente, que não inclua a relação hologramática entre as partes e o todo, que não inclua o princípio de recursividade, está condenado à mediocridade, à trivialidade, isto é, ao erro [...] (MORIN, Op. cit., p. 192) No entanto, em meio às possibilidades, necessário é chamar a atenção para duas ordens de sérios limites ao emprego da teoria da complexidade no estudo das organizações. A primeira delas diz respeito à utilização da complexidade como metáfora ao entendimento da dinâmica das organizações. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 55 Qualquer aprendiz seja das ciências naturais ou das ciências sociais, sabe que, quando se comparam sistemas de diferentes ordens de complexidade, as diferenças existentes são, muitas vezes, mais importantes que as similaridades encontradas. Isso traz a necessidade de se desenvolverem métodos de estudo específicos para as organizações formais. Uma organização não é uma entidade de valor neutro. É um sistema complexo na qual existem processos de manutenção e configurações de poder que são qualitativamente distintos de outros sistemas complexos. A transposição de conceitos deve ser feita com extremo rigor e cuidado, levando em conta as dificuldades epistemológicas relativas aos contextos próprios de cada ciência, o sentido e as particularidades presentes quando da criação dos conceitos originários e a sua viabilidade no campo social. Essa constatação é necessária para que não se caia na falácia de uma internalização ingênua do paradigma funcionalista. De fato, pode ser constatado que na grande maioria da bibliografia que trata da teoria da complexidade no estudo das organizações são utilizados “conceitos-camaleões” que trivializam irresponsavelmente o novo campo. A segunda limitação provém da própria natureza do conhecimento científico. Por mais bem elaborado que possa parecer, ele sempre será insuficiente, precário e impreciso em face do real. A nova corrente científica, quando puder ser considerada um paradigma constituído, sê-lo-á sempre no sentido Kuhniano, com todas as decorrências dessa constatação. O seu possível emprego na análise organizacional nunca deverá ser mitificado como panacéia para desvendar todos os mistérios do fenômeno organizacional. É necessário, também certa parcimônia para que ele também não seja apropriado como mais uma moda, processo tão comum no campo da teoria organizacional, especialmente quando levadas em consideração as características apresentadas pela sociedade pós-moderna. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 56 A teoria da complexidade no campo das ciências sociais e, em especial na teoria das organizações, ainda que venha utilizar por meio de metáforas, conceitos importados de outros campos do conhecimento, deve sempre ancorar-se na história, nos valores e crenças, enfim, nas características subjetivas e humanas dos verdadeiros construtores da realidade organizacional. Efetuando um retrospecto, desde a Escola da Administração Científica até às discussões mais recentes sobre as perspectivas da “Ecologia Organizacional” constata-se que os impasses no plano micro parecem ter sido minimamente resolvidos (CLEGG; HARDY; NORDY, 1999). Entretanto, outros permanecem sem uma resposta mais objetiva diante do que se desenha no macroambiente de uma sociedade globalizada. Guillén (1994, p. 37), ao discutir os três grandes paradigmas organizacionais deste século, procura compor sua análise a partir da definição restrita daquilo que, para ele, deveriam ser as condições básicas para a sustentação desses paradigmas: Paradigmas são sistemas de idéias e técnicas interrelacionadas que oferecem diagnósticos e soluções distintas para um conjunto de problemas. Um modelo ou paradigma na Teoria Organizacional é um sistema de idéias e técnicas sobre a gestão dos trabalhdores e a administração de instituições econômicas e não-econômicas. [....] Os paradigmas organizacionais normalmente apresentam uma visão ideológica das organizações, dos trabalhadores, da gerência e do sistema de hierarquia nas firmas. Nem todos os paradigmas organizacionais teóricos com reputação acadêmica apresentaram um impacto nas organizações modernas. Para o autor, somente a Escola Científica, a Escola de Relações Humanas e o Estruturalismo conformariam os momentos paradigmáticos e de inflexão nos estudos organizacionais incorporando nessa análise as derivações mais imediatas de cada conjunto de teorizações, em leituras mais ou menos elaboradas e abrangentes dos fenômenos organizacionais. Na Escola Científica, a organização é observada como um sistema autônomo, centrado em sua eficiência interna e capaz de operar satisfatoriamente em limites bem específicos. Como desdobramento metodológico desses pressupostos, a Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 57 eficiência organizacional é passível de ser assegurada a partir de controles objetivos sobre o trabalho vivo. A partir das idéias de Frederick Taylor e, posteriormente, de Frank Gilbreth, Henry Fayol e Henry Ford, segundo Shafritz & Ott (1991), os problemas de planejamento e controle da produção resumiram-se em problemas de natureza técnica, cujos domínios nunca superaram a idéia simplista de assegurar o equilíbrio organizacional a partir do bom relacionamento entre objetivos pessoais e organizacionais, bem como da estrutura empresarial e da organização do trabalho. Dentro desse espírito, o conflito e a divergência natural de interesses aparecem aos olhos do administrador como anomalias, que devem ser sanadas a partir de um esforço de coordenação e integração por parte da organização. Ao administrador e aos psicólogos industriais estava reservada a tarefa de ajustar os conflitos à ordem dominante, tratando-os de forma eficiente e buscando o reequilíbrio e uma situação de estabilidade para o sistema como um todo. Por regra, os recursos econômicos colocaram-se no centro das explicações para a motivação pessoal destinada ao trabalho industrial, dentro de uma visão estreita e enganosa, mas que, hoje, curiosamente, ressurge como uma questão importante – evidentemente, por outros motivos – para um grande número de trabalhadores potencialmente desestabilizados em uma emergente sociedade do desemprego. Em sã consciência, não faz sentido debater hoje, seja sob o prisma sociológico ou psicológico, o problema da atitude ou da predisposição do indivíduo ao trabalho. Ao dar ênfase aos aspectos informais das interações entre indivíduos e entre grupos nos contextos produtivos, a Escola de Relações Humanas complementou os pressupostos da abordagem que lhe antecedeu, contribuindo, ao final, para o reforço de uma mesma trajetória. Essa abordagem manteve os problemas no nível da interação entre os indivíduos e os pequenos grupos, desviando, dessa forma, a atenção para a necessidade da formação de uma verdadeira transformação institucional (GUILLÉN, 1994). Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 58 Em linhas gerais, esse movimento contribuiu para preservar a integridade das formas de organização existentes, devendo ser retratado aqui o peso que essas primeiras descobertas exerceram nos estudos comportamentais subseqüentes e na edificação de parte do pensamento da Sociologia Industrial nas décadas de 30 e 40. Segundo Guillén (1994) a Escola de Relações Humanas e a Escola ClássicaCientífica chegaram a partilhar de um mesmo interesse, no sentido de viabilizar maior espírito de cooperação, produtividade e de internalização das relações de autoridade e de poder nesses ambientes. O autor acredita, ao mesmo tempo, que a Escola de Relações Humanas se difere da abordagem que a precedeu à medida que incorpora uma preocupação mais bem definida para com os aspectos da mecanização e racionalização excessivas nas organizações, focalizando, assim, aspectos pouco ou não explorados pela perspectiva Taylorista, como o absenteísmo, a monotonia do trabalho, as relações pessoais, as atitudes e o baixo moral entre a força de trabalho. Posteriormente, como uma derivação metodológica importante do positivismo lógico, o funcionalismo impactou fortemente a análise do campo organizacional: primeiro, com as conhecidas contribuições de Weber (1967), contribuições fundamentais também na análise da ética protestante da origem do capitalismo e das burocracias. Secundariamente, a partir de um conjunto de autores e cientistas sociais que, de esquemas weberianos, partiram para o entendimento das organizações em uma perspectiva mais ampla e menos restritiva. Como se sabe, os estudos dessa última corrente apoiaram-se vigorosamente nos postulados funcionalistas de Émille Durkheim (1998; 2001), segundo os quais as sociedades tendem à estabilidade e são integradas “organicamente”. As organizações, por sua vez, participam desse processo à medida que são vistas como meios para o atingimento de finalidades específicas. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 59 Conforme Zeitlin (1976), Weber foi chamado de Marx burguês por ter realizado uma aplicação não dogmática, mas hábil, dos princípios metodológicos de Karl Marx ao estudo do homem, da sociedade e da história. Marx elaborou sua própria teoria, relacionando a existência social e a consciência social. Isso significa, para os estudos organizacionais, que Marx analisou os fenômenos sociais no contexto das relações capitalistas e trabalhadores por meio da separação dos meios de produção. A sistematização destas relações, ao longo da história, foi chamada de concepção materialista da história em oposição direta à concepção idealista dessa mesma relação de Hegel. Weber (1991) afirmou que o interesse primário das ciências sociais é o aspecto qualitativo dos fenômenos socioculturais em comparação aos aspectos predominantemente quantitativos dos fenômenos físicos. Por isso, Weber insistiu na necessidade de um método especial nas ciências sociais e culturais. Considerava que as leis hipotéticas eram de grande valor, como meio heurístico para o estudo dos fenômenos socioeconômicos. Além disso, este autor considerou o método de abstração de Marx, em particular o modelo de duas classes antagônicas, como método ideal sobre o conhecimento da natureza socioeconômica do mundo moderno. Segundo Chia (1997), este grupo juntamente com outros pesquisadores, tais como Chandler, Woodward, Lawrence & Lorsch, utilizou a metodologia positivista ao considerar as organizações como entidades concretas e objetos de análises organizacionais. Assinala, também, que estes estudos, apesar de quarenta anos passados, ainda permanecem relevantes na construção da teoria das organizações. Pelos fundamentos epistemológicos do iluminismo resgatados por Marx cabe destacar os trabalhos da Escola de Frankfurt, onde Habermas (1972) enfatizou a teoria crítica e o pragmatismo, defendendo abordagens qualitativas, usando a hermenêutica e a crítica, incluindo a abordagem da pesquisa participativa. Segundo Astley (1985), os autores americanos, tais como Warriner, Hall, McKelvey, Daft, Pfeffer and Salancik, bem como Burns and Stalker’s e Mintzberg, Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 60 apoiaram que a ciência da administração deve ser uma verdade subjetivamente construída. Isto significa que a ciência da administração não é uma descrição da realidade, mas uma interpretação desta. Em suma, a opção epistemológica na ciência da administração, antes de tudo, é uma tarefa de criatividade teórica e de posicionamento ideológico, em vez de elaboração de relatórios e coleta de dados. O modernismo inicialmente representou a emancipação em relação ao mito, à autoridade e aos valores tradicionais, por meio do conhecimento, da razão e das capacidades elevadas do ser humano, mas em um segundo momento tornou-se um elemento limitador ou inibidor de outras possibilidades de entendimento do ambiente organizacional, em particular de elementos subjetivos. Para Clegg & Hardy (1996), a tradição do programa de pesquisa funcionalista na Teoria Organizacional está, em um primeiro momento, presa aos limites do pensamento convencional de Durkheim e à trajetória epistemológica do trabalho conceitual de Weber. Com o passar do tempo e o avanço das pesquisas, entretanto, o que se percebe é um conjunto de novas teorizações e perspectivas de análise a partir dos limites antes restritos da abordagem funcionalista. Assim, se tomamos como referência a perspectiva mais “fechada” e menos crítica dos estudos funcionalistas na Teoria Organizacional, consagra-se a idéia de que as funções deveriam ser desempenhadas satisfatoriamente para o bem de toda a estrutura, tudo isso centrado no princípio orgânico da teoria sistêmica. Nesse ambiente, nada interessaria mais à análise organizacional do que as normas e as estruturas dos papéis desempenhados que, de forma concreta, comporiam a unidade de análise e foco da pesquisa. Há um valor claro em relação à ação determinada pelos atores organizacionais ao emprego absoluto de uma racionalidade tipicamente instrumental-funcional. O enfoque é formalista, analítico e o princípio é totalmente sistêmico. Como bem coloca Vianello (1978), nesse caso tudo aproxima-se, na verdade, à banalidade. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 61 No mínimo, trata-se de uma formulação ingênua. Ao não considerar as contradições e “fissuras” internas à lógica hegemônica do poder institucional, tal perspectiva deixa também de relevar os mecanismos objetivos e subjetivos e as práticas de resistência que a todo momento estão presentes nas situações de trabalho (RODRIGUES & COLLISON, 1995). Seguindo a lógica estrutural-funcionalista, e isso já foi aqui discutido, um conjunto importante de pressupostos conforma o lado consensual desse processo: as sociedades (e as organizações produtivas evidentemente) representariam estruturas estáveis e tenderiam ao equilíbrio e ao consenso. Por esse enfoque, a convergência de valores e o consenso entre os indivíduos seriam possibilidades reais e, no limite, a sociedade seria totalmente integrada pelo funcionamento ótimo dos seus elementos constituintes. Há uma reorientação epistemológica, impressa nos estudos posteriores de análise organizacional das décadas de 70/80, que torna possível o exame detalhado das instituições como centros de poder, com efeitos importantes do ponto de vista da análise conjuntural e histórica das organizações, das classes trabalhadoras e da divisão social e técnica do trabalho em uma perspectiva mais ampla, bastante influenciada pelas idéias de Marx e pela crítica dos neo-marxistas. Tem-se, portanto, que recorrer à obra desenvolvida no século XIX por Karl Marx, responsável por enquadrar analiticamente uma interpretação histórica do desenvolvimento social. Seguindo essa construção ontológica, a atividade prática dos homens é a sua realidade concreta, verdadeiramente sensível; o homem é visto como integrante de um mundo social que possui uma realidade tão concreta quanto o próprio mundo natural (MARX, 2001). Destarte o homem modela o seu mundo através da sua objetivação, do seu trabalho, da sua atividade prática, mas também cognitiva e racional. Enfim, o homem se coloca à ação e se conscientiza ao mesmo tempo da sua realidade; ele é exatamente aquilo que produz ou a forma como produz (PRATES et. ali, 1991) . Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 62 Existe uma continuidade na história do pensamento administrativo, materializada nos padrões e formas de racionalidade, que se impuseram nesse campo de conhecimento nos últimos 100 anos. Não há mudança substantiva nesse processo, ainda que existam, sim, tentativas para se imprimir novos conteúdos sociais a um aparato de racionalidade já dominante. É sobre este aspecto que o próximo tópico discorrerá. Ficam evidenciadas com esse tópico as novas perspectivas de análise e seus fundamentos, que, sem se afastar dos estudos anteriores classificados como clássicos, efetuam uma nova leitura da realidade, as quais centradas em pressupostos distintos, buscam elaborar um embasamento teórico que permita avançar e superar as limitações teóricas anteriores. 1.5. PARADIGMAS NOS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS O presente tópico tem como propósito considerar as perspectivas de análise dos estudos organizacionais frente aos paradigmas, estabelecendo um continuum na compreensão da transição e aceitação de outras perspectivas de análise do cotidiano organizacional. Os paradigmas podem ser definidos como conjuntos básicos de crenças que guiam a ação e lidam com princípios iniciais ou fundamentos. São construções humanas que definem a visão de mundo do pesquisador. Um paradigma, segundo Schwandt (1994), encerra três elementos: • a ontologia, que levanta questões básicas sobre a forma e a natureza da realidade, se preocupando em entender o que pode ser conhecido; Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 63 • a epistemologia, que é um ramo da filosofia preocupada em entender como se pode conhecer o mundo e qual é a relação entre o inquisidor e o conhecimento; • e a metodologia, que se foca em como se obtém o conhecimento do mundo e em como pode o inquisidor (o possível conhecedor) buscar descobertas ou qualquer coisa que acredite poder ser conhecido. Já Burrel e Morgan (1979) propuseram que a teoria social poderia ser proveitosamente compreendida em termos de quatro paradigmas-chave – funcionalista, interpretativo, humanista radical e estruturalista radical – baseados em diferentes conjuntos de pressupostos metateóricos acerca da natureza da ciência social e da natureza humana. Destacam que cada um deles é fundamentado em visões mutuamente excludentes do mundo social e gera teorias e perspectivas as quais estão em oposição àquelas geradas nos outros paradigmas. Conforme Morgan (1980) o paradigma funcionalista é baseado na pressuposição de que a sociedade tem uma existência real e concreta e um caráter orientado para produzir um estado de acontecimentos ordenado e regulado. O paradigma interpretativo é baseado na visão de que o mundo social tem uma condição ontológica precária e o que se passa na realidade social não existe em qualquer sentido concreto, mas é o produto das experiências subjetivas e intersubjetivas dos indivíduos. O paradigma humanista radical, como o paradigma interpretativo enfatiza como a realidade é socialmente criada e sustentada, mas vincula a análise a um interesse sobre o que pode ser descrito com a patologia da consciência, pela qual o ser humano torna-se aprisionado dentro das fronteiras da realidade que ele cria e sustenta. Finalmente, no paradigma estruturalista radical a realidade é vista como existindo por si mesma independente do modo como é percebida e reafirmada pelas pessoas nas atividades cotidianas; e a concepção do mundo social é materialista, a qual é definida por estruturas sólidas, concretas e ontologicamente reais. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 64 Vale destacar que os limites que separam os quatro paradigmas propostos por Burrel e Morgan (1979), bem como os próprios paradigmas, são tênues, afinal enquanto construções teóricas, estão sujeitas ao crivo da intersubjetividade. Conforme Morgan (1980) cada um dos paradigmas reflete um conjunto de escolas a eles relacionadas, diferenciadas em abordagens e perspectivas, mas que compartilham de pressupostos fundamentais comuns sobre a natureza da realidade. Schwandt (1994) salienta que perspectivas teóricas não são tão solidificadas ou unificadas como os paradigmas, embora uma perspectiva possa compartilhar muitos elementos com um paradigma, tais como um conjunto comum de comprometimentos metodológicos. Hacth (1997) apresenta quatro grandes perspectivas, presentes no desenvolvimento da teoria organizacional, tendo como base o foco, o método utilizado assim como os resultados que propiciam seu uso nos estudos organizacionais. Percebe-se um perspectiva histórica e linear na construção dessas quatro grandes possibilidades: • a perspectiva Clássica, o objeto de pesquisa era tanto os efeitos da industrialização na sociedade, quanto como fazer as organizações mais eficientes e efetivas; • a perspectiva Moderna, em contrapartida, a qual tem como tema o estudo da própria organização, adota uma posição epistemológica objetivista na qual a organização é estudada como um objeto com dimensões que podem ser confiavelmente medidas; • a perspectiva Simbólico-Interpretativa, por sua vez, foca-se na organização sob uma posição predominantemente subjetivista, procurando apreciar e entender os significados existentes nas organizações. Os métodos de pesquisa simbólico-interpretativos freqüentemente empregam técnicas etnográficas (ex.: observação participante e entrevistas etnográficas) e resultam em descrições narrativas e análises de casos; e Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 65 • a perspectiva Pós-moderna tem como principal foco a teoria organizacional e a própria teorização, ponderando não apenas a organização como objeto de estudo, mas também o próprio pesquisador que tenta entendê-la. Segundo Hacth (Op. cit.) o estabelecimento de uma distinção entre epistemologias objetivistas e subjetivistas nas ciências sociais é típica dessa aréa no que concerne à construção teórica dos seus arcabouços de análise. Frente à epistemologia objetivista baseia-se na crença de que alguém só pode conhecer algo através de observação independente. Esta posição significa a crença de que o mundo existe independente do conhecimento existente sobre ele. Sob a abordagem subjetivista, todo o conhecimento do mundo, se o mundo existe em um senso objetivo, é filtrado através do pesquisador e desse modo é fortemente alterado por forças cognitivas e culturais. Portanto, os subjetivistas acreditam que o conhecimento é relativo ao pesquisador e pode apenas ser criado e entendido sob o ponto de vista dos indivíduos que estão diretamente com ele envolvidos. Morgan e Smircich (1980, p. 492) apresentam diversas perspectivas teóricas na ciência social que se posicionam entre estas abordagens (a subjetivista e a objetivista), formando assim um continuum. Para eles “a transição de uma perspectiva para outra deve ser vista como gradual e é freqüentemente defendido que alguma posição pode incorporar insights de outras” . Através do presente tópico buscou-se discutir a base de análise e construção do conhecimento no âmbito dos estudos organizacionais, a partir da perspectiva dos paradigmas, na tentativa de buscar evidenciar como há uma tendência crescente nas últimas duas décadas de ampliação das perspectivas de análise, por reconhecer as limitações dos aparatos teóricos funcionalista e objetivista caminhando para a utilização de quadro e pressupostos de análise eminentemente subjetivos, sem com isso ignorar a contribuição dos constructos objetivos. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 66 1.6. LIMITAÇÕES DO POSITIVISMO LÓGICO O presente tópico tem como propósito refletir sobre a influência do positivismo lógico8, enfatizando suas limitações e contradições, em particular, nos estudos organizacionais. Para tanto, retomam-se as bases iniciais da formulação do positivismo, sempre na perspectiva da análise organizacional estabelecida a partir dessa perspectiva. É propósito esclarecer e fortalecer a compreensão da necessidade de serem consideradas outras perspectivas de análise que não a de caráter funcional, instrumental e objetivista tão presentes no estudo e ação organizacional. Segundo Zeitlin (1976), para os pensadores do Iluminismo, todos os aspectos e obras da vida humana estão sujeitos à análise crítica: a ciência, a religião, a metafísica, a Estética etc. O progresso intelectual dos homens deve servir constantemente para promover o progresso geral da sociedade. Nesse sentido, segundo o Iluminismo, a razão humana conduz a uma compreensão mais clara do mundo das organizações. O pensamento do iluminista não é só reflexivo, nem trata somente das verdades axiomáticas, mas atribui ao pensamento, principalmente, uma função criadora e crítica. Em suma, os iluministas pregaram que a razão não se dobra perante o meramente fático, nem às evidências da tradição histórica. Com isso, os iluministas enfatizam que a razão, junto com a observação, é um meio para conseguir a verdade científica. Para combater o legado filosófico do iluminismo, o filósofo francês August Comte, no século XIX, de acordo com Hickson (1998), criou a filosofia do 8 Como esse nome indica-se a orientação instaurada pelo Círculo de Viena e depois seguida e desenvolvida por outros pensadores. A caracaterística fundamental dessa corrente é a redução da filosofia à análise da linguagem. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 67 positivismo. Comte achava que os princípios críticos dos iluministas faziam parte de uma filosofia negativista, e portanto, teriam de ser substituídos por uma filosofia positivista. O positivismo é definido como a filosofia sistematizada, a qual pretende que a mente humana deve renunciar a conhecer a natureza das coisas e contentar-se com as verdades retiradas da observação e da experiência dos fenômenos. Segundo Comte (1990), o positivismo tem as seguintes características: a) dá ênfase na idéia da verificação empírica como princípio fundamental da pesquisa científica. Isso significa que as proposições teóricas devem ser empiricamente testadas para determinar se tais proposições são ou não verdadeiras; b) é fundamentalmente observacional, o que significa que a ciência só pode ser criada para explicar coisas que podem ser vistas, sentidas e palpáveis; c) ressalta a explicação de causa e efeito, portanto, para os positivistas se o fenômeno pode ser observado, pode ser explicado de forma científica. Essas características fornecem a justificativa epistemológica do positivismo para a criação da ciência por meio da pesquisa científica e desse modo vêm a articular a adoção de procedimentos científicos eminentemente rígidos e instrumentais. Portanto, a doutrina positivista prega a teoria da natureza. A natureza é a unidade básica do acontecimento dos fenômenos. O conhecimento científico para os positivistas é dado pela realidade observável, enquanto para os iluministas o conhecimento científico é dado pela interpretação conceitual dessa realidade. Bertalanffy (1975, p. 37-8), um dos precursores da Teoria dos Sistemas, também chamou a atenção sobre o alcance (limitado) do Modelo Clássico: Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 68 A aplicação do procedimento analítico depende de duas condições. A primeira é que as interações entre as partes ou não existam, ou seja, [são] suficientemente fraca [sic] para poderem ser desprezadas nas finalidades de certo tipo de pesquisa. Só com esta condição as partes podem ser esgotadas real, lógica e matematicamente, sendo em seguida reunidas. A segunda condição é que as relações que descrevem o comportamento das partes sejam lineares, pois só então é dada a condição de aditividade, isto é, uma equação que descreve o comportamento do todo é da mesma forma que as equações que descrevem o comportamento das partes. Mais recentemente Capra (1983, p. 39) afirmou que “sabemos hoje, que o modelo newtoniano é válido apenas para objetos que consistem em grande número de átomos e exclusivamente para velocidades pequenas comparadas à da luz”, o que, de certo modo, justifica a sua grande aceitação durante muitos anos, pois explicava com precisão a maioria dos fenômenos observáveis com a tecnologia até então disponível. Se por um lado Galileu, Descartes, Bacon, Locke, Hume e Newton, entre outros, configuraram um modelo hegemônico para a Modernidade, por outro, também semearam o que viria proporcionar a sua implosão: a crítica epistemológica, denominada por Santos (1991) ao lado da ciência, da tecnologia e do empresamento econômico, como sendo um dos quatro elementos frios da Modernidade. Estavam assim, abertos os caminhos para a emergência de um novo paradigma, pois, de acordo com Kuhn (1996), as grandes descobertas são antecedidas pela constatação de "anomalias na natureza", ou seja, comportamentos que não podem ser adequadamente explicados pelo paradigma dominante. As teorias organizacionais criadas para um mundo estável e previsível vêm sendo questionadas e postas em xeque, por não mais responderem à complexa dinâmica da contemporaneidade. De acordo com Bell (1977), uma característica central do período moderno foi a primazia do método científico como forma suprema de pesquisa. A busca do conhecimento científico – fragmentado em áreas disciplinares estanques – passou a ser predominantemente utilitária, possuindo como valores principais a previsão, o controle e a capacidade de manipular o ambiente físico. Apesar de não ter sido este Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 69 no início – como se pode confirmar ao ler os textos dos filósofos iluministas –, hoje, o objetivo de maior parte da ciência é o avanço tecnológico. Dessa forma, pode-se constatar como promessa subjacente o progresso material ilimitado e, conseqüentemente, a melhoria da qualidade de vida para todos. Tal paradigma implicava na crença de um controle crescente do homem sobre a natureza e da sua “ilimitada” habilidade em compreender o universo a partir das informações provenientes dos sentidos físicos. O Iluminismo privilegiou a predominância de valores pragmáticos, segundo os quais os indivíduos estariam livres para irem buscar seus próprios interesses. Desse modo, o futuro era conseqüência da busca de conhecimento, por parte de unidades relativamente autônomas orientadas para necessidades práticas. Diante dos primeiros estudos sobre organização do século XX, percebe-se que eles foram estruturados em torno do desenvolvimento modernista e seus argumentos compartilhavam as mesmas premissas presentes em nossos discursos tradicionais acerca da ciência enquantro transformação da sociedade. O tratamento da racionalização em Taylor e as apropriações indiscriminadas das idéias de Weber traduzem a aplicação da lógica modernista ao projeto de racionalidade instrumental. Segundo Reed (1998), as raízes históricas dos estudos organizacionais estão profundamente inseridas em um conjunto de trabalhos que ganhou expressão a partir da segunda metade do século XIX, e que antecipava de forma confiante o triunfo da ciência – “neutra” – sobre a política, bem como a vitória da ordem e do progresso coletivos concebidos racionalmente, acima da irracionalidade humana. O exercício do reducionismo, uma das graves limitações trazidas pela modernidade, penetrou na literatura organizacional de forma deletéria. Segundo Campos (1997, p. 8), os exemplos claros de reducionismo são facilmente encontrados na literatura organizacional, quando vemos a racionalidade instrumental tomada como a Razão humana; a lógica econômica como a lógica da vida; a ação humana reduzida ao comportamento organizacional, o ser humano ao recurso humano, o trabalho ao emprego formal na organização econômica; a eficiência como critério exclusivo de desempenho; o lucro Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 70 financeiro como relevância social da organização; o desempenho bem avaliado do cargo como indicador seguro de auto-realização. Entretanto, parece estar cada vez mais distante a prometida garantia de progresso material e social por meio do incremento tecnológico contínuo, da organização moderna e da administração científica. Tanto a efetividade técnica quanto a virtude moral das organizações formais são questionadas por transformações intelectuais e institucionais que estão levando à fragmentação social, à desintegração política e ao relativismo ético. A tradição aponta como referência base da ciência moderna a Revolução Científica do século XVI. Nessa oportunidade ocorre o rompimento das antigas e limitadas formas de observação e de entendimento dos fenômenos do universo nas sociedades medievais, gerando um papel essencialmente diferente e que seria desenvolvido e fortalecido pela ciência e pelo conhecimento nos séculos XVII e XVIII. Fica patente que a concepção de ciência, a partir dos séculos XVII e XVIII, aproxima-se, cada vez mais, de uma “reificação” da ciência experimental, cujo reflexo é o enorme interesse pelo método científico e pelas regras de observação e quantificação dos fenômenos. Através desse modelo de racionalidade passou-se a observar as coisas do mundo, a natureza e os seus fenômenos, bem como a possibilidade concreta de domínio das forças naturais e a construção de um conhecimento genuinamente científico. Outrossim, adotou-se o pressuposto de que o conhecimento não se faz mediante a interação com elementos de natureza social, afetivo e/ou filosófico que afetem a busca do conhecimento verdadeiramente científico. Tal interação passou a ser hegemônica conhecida como racionalidade positivista. Considerando os estudos organizacionais verifica-se que esses passam por um momento de reflexão (REED, 1996), em que antigos quadros interpretativos, Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 71 referências e conhecimentos são objeto de uma crítica contínua e de reavaliações permanentes. Essa fase de ruptura dos estudos organizacionais, levada a cabo pelos teóricos críticos e pós-modernistas, nada tem a ver com o movimento incremental que caracteriza as “fases normais” dos processos científicos, onde os programas de pesquisa e as atividades operam dentro de um quadro teórico bem institucionalizado e pouco fragmentado. Enquanto traços caracterizadores dos estudos organizacionais e, particularmente, da gestão têm-se a fragmentação e descontinuidade. Os estudos nesse campo estão sujeitos a contribuições metodológicas e conceituais de áreas diversas do conhecimento, bem como a contestações e críticas ampliadas, que evidenciam bem o caráter das “conversações” e das múltiplas interpretações que caracterizam os estudos organizacionais que dão margem a críticas relativas à chamada teoria organizacional contemporânea (RODRIGUES, 1997). Efetuar a compreensão e a crítica dos estudos organizacionais como espaço privilegiado para as “conversações” significa aceitar as implicações desse processo, onde antigas referências e quadros interpretativos podem ser aceitos ou contestados diante da emergência de uma nova corrente intelectual dominante. Aceitando tal perspectiva a análise dos estudos organizacionais pode se dar em diferentes aspectos, seja ela histórica, dialética, antropológica, filosófica, e/ou psicanalítica, enfim, favorecendo a concorrência entre diferentes perspectivas e matrizes teóricas, no sentido de organizar e melhor explicar os problemas objetivamente colocados à compreensão e atuação no contexto organizacional. O presente capítulo buscou delinear as bases prevalecentes nos estudos organizacionais e o modo como tais estudos se desenvolvem de maneira similar ao desenvolvimento da ciência tradicional, mas que passa a ser objeto de questionamento acerca dos caminhos apontados. Objetivou-se também, através da reconstrução de aspectos históricos e epistemológicos, analisar a trajetória dos estudos organizacionais embasados na Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 72 perspectiva da modernidade, articulando as influências com o desenvolvimento do conhecimento científico no âmbito da administração e dos estudos organizacionais. Com essa perspectiva e em face das limitações apresentadas desenvolve-se um conjunto de estudos enfatizados como estudos pós-modernos, os quais serão objeto de análise e discussão do capítulo seguinte. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 73 CAPÍTULO II PÓS-MODERNIDADE E OS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS Não pode haver inteligência sem haver formas. Através da inteligência o homem alcança a VERDADE, a CONSCIÊNCIA e, por fim, a CIÊNCIA. A Arca O presente capítulo tem como propósito auxiliar a construção de um referencial que permita considerar, como uma possibilidade real de análise organizacional, a perspectiva centrada na subjetividade e em outras referências que busquem superar os limites decorrentes da perspectiva da modernidade. No capítulo busca-se identificar e analisar as origens, premissas e desdobramento da pós-modernidade nos estudos organizacionais, com particular destaque aos estudos desenvolvidos no âmbito dos pesquisadores brasileiros. A preocupação ao construir o capítulo foi identificar as possibilidades teóricas resultantes das críticas e limitações apontadas no capítulo anterior acerca da modernidade e suas influências para a análise organizacional. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 74 2.1 PREMISSAS E ELEMENTOS HISTÓRICOS DA PÓS- MODERNIDADE A partir de fins da década de 60 observa-se no âmbito mais amplo da teoria social, uma mudança radical no pensamento social e político sob a rubrica de pósmodernismo (HARVEY, 1999). No entanto, pesquisadores organizacionais interessaram-se pelos textos pós-modernos relativamente tarde, a partir dos anos 80, como nos apontam ALVESSON & DEETZ (1998). De acordo com esses autores, isso não é nenhuma surpresa, dados os pressupostos modernistas embutidos nas organizações e o caráter bastante dogmático e excludente da tradição dominante de pesquisa, seja de inclinação positivista ou marxista. Tanto que, não são poucos os autores (Harvey, 1999; Lyotard, 1998; Alvesson & Deetz, 1998; Reed, 1998; Demo, 1997; Featherstone, 1996; Kilduff & Mehra, 1997; Huyssen, 1991) que admitem não haver, até agora, uma definição consensual para o termo “pós-moderno”. Consoante a Parker (1992), a definição de pós-modernismo se apresenta como uma inútil tarefa. Não existe unanimidade, uma vez que a maioria de seus partidários recusa, em primeiro lugar, a linguagem e a lógica da definição, sugerindo que essa é uma das formas de imperialismo intelectual que ignora a fundamental incontrolabilidade do significado. Power (1990) sugere que, como não há uma linha absoluta que demarca a diferença entre moderno e pós-moderno, o último pode significar tanto o término como uma diferente continuação da modernidade. Esta ambigüidade inerente ao conceito é aceita para compensar a tendência de comentadores fazerem categorizações simplistas. Ao passo que Power (Op. cit. p. 110) nota, por exemplo, que enquanto a trajetória modernista nas artes visuais tem desafiado o conceito de representação Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 75 autônoma, o pós-modernismo aparece como ainda mais radical. A arte visual pósmodernista parece representar: a continuação da estética “avant-garde” sem a nostalgia para o contato direto com o mundo real... A estética pós-modernista do sublime é precisamente um tipo de consciência que escapa dos conceitos tradicionais da realidade artística. Isto parece tornar visível o fato de que há algo que pode ser pensado, mas não pode, em princípio, transformar-se em visível ou representável. A primeira e mais importante característica do pós-modernismo, portanto, é a rejeição à relação unívoca entre formas de representação (palavras, imagens etc) e um objeto externo ao mundo. “Na análise pós-moderna, o foco está sobre ‘as regras embasadas em práticas que precedem a subjetividade’, que é essencial, o ataque estruturalista sobre a filosofia da consciência” (POWER, 1990, p. 111). Entretanto, não há espaço real para o ator voluntário, ao invés disso seu espaço é fundamentado na noção da ação como um “jogo” ao invés de “lugar”. (LOYTARD & THÉBAUD, 1996). Para Power (Op. cit.), a análise pós-moderna ocorre distanciando-se dos pressupostos de unidade, implícitos na noção Iluminista de razão. Diferentemente do modernismo, onde há uma fé na recuperação da relação com a natureza, o posmodernismo aponta simultaneamente para a crescente liberação do mundo natural e para a separação da cultura em diferentes esferas. No pensamento pósmoderno, portanto, são liberadas energias que demandam reunificação e ao mesmo tempo, afirmam sua impossibilidade. Nesse sentido, Chia (1995) argumenta que o que basicamente distingue o pós-moderno do moderno é o pensamento crítico. Nos estudos organizacionais, a principal característica de pesquisadores defensores de uma abordagem pósmoderna é a visão crítica de termos comumente usados no campo de estudo, tais como organizações, indivíduos, ambiente, estrutura, cultura. Para Chia (Op. cit.), quando esses termos se referem à existência de entidades e atributos surgidos na perspectiva modernista, guardam em si a ideologia de um significado único. Isso porque, na sua opinião, o pensamento moderno se Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 76 alicerça na ontologia do “ser”, a qual privilegia o pensamento em termos de estados fenomênicos discretos, atributos estáticos e eventos seqüenciais. O pensamento pós-moderno, por outro lado, privilegia a ontologia do “vir a ser”, que enfatiza uma realidade múltipla, transitória, efêmera e emergente. No pósmoderno, a realidade é percebida como continuamente em fluxo e transformação e, conseqüentemente, impossível de ser representada sob qualquer senso estático. Parker (1992) afirma que a realidade é construída pelo discurso e pelas concepções discursivas coletivamente sustentadas e continuamente renegociadas ao longo do próprio processo de “dar sentido”. Dessa forma, para os pensadores pós-modernos, o papel da linguagem na construção da realidade é central e, toda e qualquer tentativa de descobrir a verdade única soa como um meta-discurso. Além disso, se a sociedade é entendida como um contínuo e complexo processo de “vir a ser”, novas formas de discurso e novas metodologias são necessárias para esses novos tempos, assim como se faz necessário um novo olhar sobre os processos sociais. Nos últimos anos, observa-se a existência de um número crescente de pesquisadores que, instigados por essas novas percepções, vêem inúmeras aplicações na teoria e prática organizacionais (COOPER e BURRELL, 1988; BURRELL, 1988; COOPER, 1989; GERGEN, 1991; PARKER, 1992; CHIA, 1995; GERGEN e THATCHENKERY, 1996; MORGAN, 1996; ALVENSSON e DEETZ, 1998; CALÁS e SMIRCICH, 1998). Para Cooper & Burrell (1988), a noção de um observador (separado de sua observação) capaz de construir uma meta-linguagem é essencial ao projeto modernista, no qual incrementos no estoque de conhecimento significam crescimento de poder. No mundo organizacional isso é particularmente verdadeiro quando se tem como objetivos máximos a eficiência, a lucratividade e a minimização de conflitos, tudo isso baseado na crença da metanarrativa do progresso ilimitado. Nesse modelo, segundo Cooper & Burrell (Op. cit.), a crescente complexidade organizacional é pretensamente trazida sob controle pelo ordenamento das relações Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 77 intra e interorganizacionais de acordo com o modelo de racionalidade funcional, incapaz de explicar as ambigüidades presentes nas organizações. Para esses autores, os partidários das abordagens pós-modernas nas organizações precisam se esforçar por clarificar essas relações de poder, visando expor a fragilidade da concepção clássica de organização e, conseqüentemente, dos mitos da estabilidade e previsibilidade. Em seu artigo, Burrell (1988) expande a metáfora da organização como prisão psíquica e aponta como a capilaridade do poder a estrutura dos significados e das ações. Segundo esse prisma, a organização pode ser representada como o espaço onde os sujeitos são constituídos e identificados. O sentido do mundo passa a ser dado pelas inter-relações entre indivíduos e organizações. Ou seja, “ser membro” de uma organização, gostando ou não, marca nossa individualidade. Parker (1992) constata que o tema mais comum na literatura organizacional é a afirmação do surgimento de um novo tipo de organização diferente das organizações clássicas na maioria dos aspectos, sugerindo que é possível testemunhar o nascimento de uma forma de organização mais flexível, que ele chama de “pós-burocrática”. Nesse tipo de organização, é completamente intencional e consciente a estratégia pós-moderna de flexibilização das estruturas sociais, tornadas maleáveis a novas e indiretas formas de controle internalizado, seja cultural ou ideológico. Uma estrutura numérica e funcionalmente flexível, na qual não esteja claro onde se situam os centros espacial e de poder. As organizações em rede, por exemplo são, dessa forma, facilmente categorizadas como pós-modernas. Morgan (1996), em seu trabalho pioneiro, preocupa-se em caracterizar as principais metáforas que podem ser utilizadas para explicar os processos organizacionais, enfatizando que, na maioria das vezes, é necessário “lançar mão” de várias delas visando melhorar a habilidade de compreensão dos diferentes aspectos que coexistem e se complementam dentro das organizações, por mais paradoxais que possam parecer. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 78 O autor citado no parágrafo anterior interpreta as organizações a partir de metáforas, comparando-as a imagens que permitem vê-las como máquinas, organismos vivos, cérebros, culturas, sistemas políticos, prisões psíquicas, fluxos e transformações e, finalmente, como instrumentos de dominação. Morgan (Op. cit.) enfatiza que o universo das organizações vem se tornando cada vez mais complexo e que, infelizmente, a forma de refletir sobre elas não está seguindo o mesmo curso. Nesse sentido, Reed (1998) chama a atenção para um movimento reativo da ortodoxia funcionalista que tenta, a todo custo, utilizar-se de uma estratégia de “imposição paradigmática” negligenciada da diversidade do mundo organizacional contemporâneo. Mas o fato é que, não obstante alguns subterfúgios defensivos do establishment para removê-los, esses novos campos, modos e perspectivas de pesquisa, diferentes e alternativos, estão se expandindo, multiplicando-se e sobrepondo-se. Assim sendo, a abordagem apresentada por Morgan (1996) reage a essa tendência geral, deixando claro que as organizações são geralmente complexas, ambíguas e repletas de paradoxos e o verdadeiro desafio é aprender a lidar com essa complexidade. Overman (1996), apud Lissack (1999), pondera que, nos dias de hoje, os métodos tradicionais das ciências sociais são incapazes de lidar com os problemas complexos e as indeterminações que permeiam as organizações. O casamento do reducionismo e empirismo lógico com a teoria e prática organizacionais tem se apresentado como um modelo obsoleto que torna lenta a percepção das possibilidades potenciais de novas abordagens. Ainda segundo Overman, a nova ciência da complexidade oferece valiosas metáforas e métodos que desafiam a agenda de pesquisa organizacional para o século XXI. Imagens como auto-organização, estruturas dissipativas e complexidade dinâmica podem oferecer um excelente arcabouço para os estudos organizacionais. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 79 No contexto mais abrangente das ciências sociais, Harvey (1999, p. 274) afirma: As peculiaridades do pós-modernismo devem ser vistas como sintomas e expressões de um dilema novo e historicamente original, dilema que envolve a nossa inserção como sujeitos individuais num conjunto multidimensional e complexo de realidades radicalmente descontínuas, cujas estruturas vão dos espaços ainda sobreviventes da vida privada burguesa ao descentramento inimaginável do próprio capitalismo global, incluindo tudo o que há entre eles. Nem mesmo a relatividade einsteiniana nem os múltiplos mundos subjetivos dos modernistas mais antigos conseguem dar qualquer configuração adequada a esse processo, que, na experiência vivida, se faz sentir pela chamada morte do sujeito ou, mais exatamente, pelo descentramento e dispersão esquizofrênicos e fragmentados deste último... Os fundamentos daquilo que denominamos realidade não são simples, mas complexos. Tal complexidade não está na espuma fenomenal do real, mas em seu próprio princípio. Assim como não é a palavra-mestra que vai explicar tudo. É a palavra que pode despertar e direcionar o Homem a melhor entender sua inserção no mundo, não mais como dominador, mas como co-participante responsável. Ainda que a teoria crítica e as abordagens pós-modernas tenham sido penetrantes e catalíticas, não têm sido suficientes para gerar um compartilhamento de valores e conceitos de modo a gerar um entendimento norteador dos estudos organizacionais. Enquanto tradições permanecem, o pós-moderno continua pouco aceito. Ao futuro permanece uma questão: que alternativas ou possibilidades podem ser apontadas para os estudos organizacionais? Como os estudos organizacionais estão intimamente atrelados às mudanças, tanto da sociedade como da reflexão teórica desta sociedade (Burrell & Morgan, 1979; Hatch, 1997) novos tempos parecem exigir novas teorias organizacionais e novas formas de pensar as organizações. Há uma importância extrema na análise da pós-modernidade como um novo referencial teórico para os estudos organizacionais, principalmente no que diz respeito a metodologia e novas abordagens para estes estudos, como nos mostrou BURRELL & COOPER (1988); CUMMINGS (1996) e CALÁS & SMIRCICH (1999). Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 80 Nesta linha, Hassard (1993) fornece uma contribuição importante ao mapear as influências da epistemologia pós-moderna e ao sugerir que o mundo é constituído por nossas linguagens compartilhadas. E somente pode ser conhecido através de formas particulares de discursos criadas por nossa linguagem para os estudos organizacionais. Hassard (Op. cit.) desenvolve cinco noções epistemológicas a saber: a representação, a reflexividade, a escrita, a diferença e a descentralização do sujeito. A partir destas noções, o autor nos mostra como elas afetam os estudos organizacionais. Não nos deteremos nas questões epistemológicas da pósmodernidade, mas sim, na pós-modernidade como época. A pós-modernidade como época tem provocado alguns efeitos sobre os estudos organizacionais. Encará-la como uma época tem por objetivo identificar características do mundo que dão força à hipótese de que ele está mudando para uma nova era: a Pós-Modernidade. O trabalho de Clegg (1990) desponta como um dos mais significativos a este respeito ao afirmar que em um mundo pós-moderno as organizações modernas, as “organizações como máquinas” - termo usado por Morgan (1986) para representar as organizações “burocráticas” e tayloristas -, perderam espaço. Destacam-se então, as maneiras criativas que franceses, italianos, asiáticos e suecos encontraram para “vencer” os desafios desta “nova aldeia global”, defendendo que tempos pós-modernos exigem organizações pós-modernas. Nestas organizações, os funcionários seriam controlados de forma menos autoritária, formando grupos e coletividades que se autocontrolariam e o trabalho exigiria múltiplas habilidades dos funcionários (CLEGG, 1990). Nota-se, nestas últimas três décadas, o surgimento de duas abordagens teóricas consonantes com estes novos tempos “pós-modernos” – a qualidade e a cultura –, deixando clara sua influência histórica na configuração das organizações, transformando-se em “um modelo ideal” para todos, inclusive os gerentes. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 81 Essas mudanças influenciam ao mesmo tempo em que são implementadas pelo gerente como formas de controle. Tais formas de controle gerencial precisam ter uma expressão na subjetividade daqueles que exercem no dia-a-dia a viabilização de tais políticas, ou seja, elas precisam estar, de alguma forma, presentes no comportamento dos gerentes. Percebe-se que a perspectiva pós-modernista vem sendo caracterizada na literatura organizacional como um momento de ruptura, de descontinuidade, ou como um momento de redirecionamento nos estudos organizacionais. As transformações na problemática, nas teorias e nas metodologias refletem mudanças substanciais que passam a constituir as novas formas organizacionais por meio das quais o comportamento social vem sendo estruturado e controlado. Também refletem as referências institucionais mais amplas nas quais essas novas formas organizacionais estão localizadas. Assim, o discurso pós-modernista é considerado como o mais óbvio exemplo da celebração da descontinuidade na teoria organizacional, nestes últimos anos (REED, 1993). Clegg (1990) desenvolve o argumento de que começaram a surgir, principalmente a partir da década de 80, formas organizacionais diferentes que questionam o modelo burocrático como a maneira mais eficiente para a organização do trabalho. A explicação deste fenômeno passou a exigir uma nova perspectiva para explicar a realidade. Da mesma forma que surgiram as teorias sociais que procuraram interpretar os fenômenos modernistas, a existência de organizações e contextos supostamente pós-modernistas também motivou interpretações teóricas que buscam acompanhar essas transformações (Clegg, Op. cit.). Neste sentido, a abordagem pós-modernista procura explicar a caracterização do novo contexto a partir de referencial próprio. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 82 O pós-modernismo é considerado por muitos autores como uma nova perspectiva a ser colocada no lugar do modernismo, oferecendo novas oportunidades dentro da teoria organizacional. As idéias enfatizadas pelos autores pós-modernistas podem ser distinguidas de duas maneiras: como forma de ver e entender a realidade social, mais precisamente como abordagem organizacional, ou como discussão das manifestações concretas de formas organizacionais alternativas, as quais constituem embriões da ruptura com o modelo burocrático, predominante na sociedade contemporânea. Como enfatiza Parker (1992), a primeira perspectiva, a epistemológica, questiona como se pode compreender o mundo. Na medida em que o mundo é constituído por uma linguagem comum, a resposta seria que somente se pode conhecê-lo a partir das formas particulares do discurso que nossa própria linguagem cria. Assim, novas formas de compreensão da realidade organizacional, diferentes da moderna, passam a ser solicitadas na forma de novas linguagens. O segundo sentido, refere-se à periodização, ou seja, à identificação de um período concreto ou uma época, após a modernização, a qual se caracteriza pela existência de casos concretos de formas organizacionais alternativas ao modelo burocrático, significando o prenúncio da queda das burocracias como modelo organizacional predominante. 2.2. ESTUDOS ORGANIZACIONAIS RECENTES A diversidade e a fragmentação nos estudos organizacionais têm favorecido várias discussões e polêmicas sobre a identidade da área. Por exemplo, algumas discussões mais recentes levantaram algumas limitações importantes que caracterizam as investigações neste campo feitas por CLEGG et ali. (1996), CHANLAT (1994) e WHITLEY (1995). Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 83 Esses autores apontam as principais deficiências contextuais e históricas, no processo de evolução dos estudos organizacionais, como uma disciplina independente, mas também questionam a posição hegemônica desfrutada, até então, pelas teorias anglo-saxônicas e a adoção de modelos universais para explicar o que se passa no interior das organizações, em outras regiões do mundo. Benson (1977) já escrevia que a evolução dos estudos organizacionais deveria ser compreendida como um processo de construção social e dialético, caracterizado por contradições e influenciado por grupos de interesses. Astley (1985, p. 504) também escreveu criticando o conhecimento organizacional como “uma coleção de tópicos frouxamente relacionados, culturalmente limitados ao contexto anglo-saxão e pouco ligados ao mundo da prática”. Para o autor, os estudos organizacionais poderiam ser descritos como sendo uma atividade social caracterizada por entendimento mútuo, dependente de consenso sobre o que se entende como sendo expressões de conhecimento legítimas. Nos anos 80, as críticas à área organizacional acusavam de um etnocentrismo exagerado, sem elaborarem propostas e/ou sugestões que levassem a mudanças significativas. Mais recentemente, nos anos 90, autores como, por exemplo, Wilson (1996) e Chanlat (1994) chamaram a atenção para o etnocentrismo que caracterizava os estudos organizacionais até aquele momento, argumentando sobre a necessidade de se incorporar maior diversidade nas abordagens e de se incluir novos colaboradores que pudessem trazer mudanças positivas no que se refere ao poder de explicação das suas teorias. Outra crítica bastante comum refere-se ao uso de conceitos universalistas, que ao serem aplicados podem ser estendidos a contextos industriais e culturais diversos (HOFSTEDE, 1980; 1994). Contudo, a prática da pesquisa comparativa tem tornado evidentes as limitações das alternativas metodológicas e a dificuldade em captarem-se os ‘significados comuns’ em ambientes não anglo-saxônicos. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 84 A maioria dos estudos comparativos não revela as particularidades institucionais das sociedades que estão sendo investigadas, e por este motivo detectar a natureza parcial das organizações em sociedades diferentes. Os estudos comparativos sobre culturas e mesmo a teoria crítica não podem, isoladamente, cobrir as deficiências deixadas pelo exagerado etnocentrismo que aparecem nos estudos organizacionais. O que chama a atenção nos artigos que mencionamos até o momento - que é de interesse para a América Latina e particularmente para o Brasil - não é tanto o caráter etnocêntrico do conhecimento organizacional por si só, pois isto já é muito bem conhecido e amplamente criticado aqui. O que parece relevante, para nós, neste debate é o reconhecimento da necessidade de haver uma maior sensibilidade às estruturas organizacionais em economias emergentes (Calás, 1994) e a necessidade de incluir-se ‘vozes’ diversas que não pertencem aos limites geográficos e lingüísticos dominantes (CLEGG et. al., 1996; CHANLAT, 1994; WHITLEY, 1995). Sabe-se organizações que o desenvolvimento nitidamente se dos desenvolveu estudos como uma em administração colcha de e retalhos multidisciplinares, mais ou menos articulados entre si. Reed (1996) considera que esses estudos são um terreno historicamente contestado, enquanto Burrell (1996) considera-os uma torre de Babel, tendo como características predominantes a fragmentação, a heterogeneidade e a falta de continuidade. A tensão existente nos planos da articulação, da fragmentação e da argumentação das teorias e estudos produzidos nesse campo do conhecimento revela variados panoramas, possibilidades de atuação e engajamentos acadêmicos. A partir da década de 70, diferentes abordagens que ofereciam alternativas à perspectiva funcionalista, até então amplamente dominante, começaram a ganhar corpo nos estudos organizacionais (Clegg & Hardy, 1996). Entre elas, destacamos a perspectiva crítica que se consolidou no contexto anglo-saxônico, nos anos 90, com Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 85 a criação e desenvolvimento do movimento denominado Critical Management Studies (ALVESSON & WILLMOTT, 1992a, 1996). Por sua vez, Bertero, Caldas e Wood Jr. (1998) definem o conhecimento científico como canônico por ser produzido na obediência a diversos cânones, isto é, "regras claras e aceitas" por diversas comunidades científicas, e acumulativo, por ser produzido ao longo do tempo. Esse conhecimento científico é feito embasado em paradigmas que funcionam como uma espécie de protocolos científicos. O caráter necessariamente paradigmático da produção científica, segundo Bertero, Caldas e Wood Jr. (Op. cit.), está associado ao seu caráter fundamentalmente social, considerando-se que a comunidade científica é estratificada e por isso permite lidar com conotações de centro e periferia ou produtores principais e produtores secundários. Cabe destacar ainda o caráter temporal na percepção de que o conhecimento científico é não só produzido socialmente, como também ao longo do tempo. A produção científica assume, pois característica de natureza paradigmática, social, temporal, canônica e acumulativa. A década de 90 marca uma rearticulação original entre os termos “crítico” e “administração” (Fournier & Grey, 2000), constituindo a emergência de uma subdisciplina denominada Critical Management Studies. Contudo, isso não significa que a crítica de um processo disciplinar, próprio ao desenvolvimento da administração, e o questionamento do controle da força de trabalho sejam problemáticas recentes. Ao longo do século XX vários autores exploraram e discutiram o aumento do poder social da administração (Burnham, 1945; Mills, 1956; Bendix, 1956). A abordagem crítica toma corpo sobre uma base teórica intimamente atrelada ao marxismo, mas não fica circunscrita a essa perspectiva. Na segunda metade da década de 80, a noção de pós-modernismo influenciou a sociologia, como uma forma de caracterizar a época atual e como uma Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 86 perspectiva epistemológica que rompe com a centralidade da razão e do objetivismo (BAUMAN, 1992). Com efeito, permeada pelas matrizes de poderes sociais e políticos, a administração foi, repetidamente, submetida ao crivo de análises críticas. Entretanto, é somente a partir da década de 90, em meio e tradição anglo-saxônicos, que se realizou um esforço para unificar esse tipo de análise sob um mesmo brasão denominado “Estudos Críticos em Administração”. Esse foi o título do livro precursor no assunto, publicado no início dos anos 90, que tem por base a aplicação dos ideais da Escola de Frankfurt aos estudos organizacionais e administrativos (Alvesson & Willmott, 1992a) e desencadeou uma proliferação de publicações, colóquios, conferências, workshops e redes acadêmicas, constituídos para discutir aquilo que poderíamos denominar de “administração crítica”. Nesse fervor de proliferação de eventos e publicações, os Estudos Críticos em Administração emergem com o objetivo de conferir a palavra àqueles e àquelas que são raramente considerado(a)s pelas teorias organizacionais tradicionais que tendem a idealizar a administração, ao se identificarem como racionais, indiscutíveis e indubitáveis. Expondo as faces ocultas, as estruturas de controle e dominação e as desigualdades nas organizações, a abordagem crítica busca questionar permanentemente a racionalidade das teorias tradicionais e mostrar que as coisas não são necessariamente aquilo que aparentam. Busca também desmascarar iniciativas ditas humanistas nas empresas, mas que, efetivamente, possuem um forte conteúdo de controle e dominação. O fato de os Estudos Críticos em Administração comungarem desse objetivo não implica que sejam constituídos por um corpo homogêneo e acabado de conceitos e afiliações teóricas. Ainda que a maioria dos autores se inspire e se baseie nos trabalhos da Escola de Frankfurt, os Estudos Críticos em Administração se desenvolvem como um rico tapete de tradições intelectuais (teorias sobre o Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 87 processo de trabalho, pós-estruturalismo, desconstrutivismo, feminismo, ambientalismo, estudos culturais, pós-colonialismo etc.). Essa diversidade favorece o exame de uma multiplicidade de problemáticas, tais como a dominação, o patriarcado e a condição das mulheres, o racismo e seus efeitos sobre as minorias, os impactos do pós-colonialismo sobre as nações historicamente dominadas pelas nações industrializadas, as questões ambientais etc. (JERMIER, 1998). As diversas influências teóricas que podemos encontrar no desenvolvimento dos Estudos Críticos em Administração - ECA (da Escola de Frankfurt ao pósmodernismo) refletem a diversidade de preocupações que têm animado os teóricos críticos. Enquanto as teorias administrativas do século XX se engajam em um duplo movimento de construção da realidade organizacional e de ornamentação desta realidade com racionalidade, cientificidade e naturalização, os Estudos Críticos em Administração são, em contrapartida, engajados no questionamento sistemático deste edifício teórico (FOURNIER & GREY, 2000). Assim, os Estudos Críticos em Administração consideram a organização como uma construção sócio-histórica, tornando-se importante compreender como as organizações são formadas, consolidadas e transformadas do interior e do exterior. Outro traço fundamental dos Estudos Críticos em Administração se deve ao fato de que tais estudos não buscam desenvolver conhecimentos que contribuam para a maximização de outputs contra um mínimo de inputs. Ou seja, os Estudos Críticos em Administração não visam celebrar conhecimentos inscritos em uma lógica instrumental de cálculo dos meios com relação aos fins ou que melhorem o desempenho econômico das organizações. Os estudos considerados como não críticos obedecem ao princípio da performance que subordina o conhecimento à eficiência, a eficácia e a lucratividade. Em uma perspectiva não crítica, a performance refere-se a um imperativo em volta Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 88 do qual todo conhecimento ou prática deve ser gerado sem jamais deixar espaço a questionamentos nem a dúvidas. O desenvolvimento de uma pesquisa na abordagem crítica não se preocupa em gerar conhecimento em função da melhoria da performance econômica da organização. Seu foco está na tentativa de emancipar os homens dos mecanismos de opressão, tendo, de fato, o humano como ponto fundamental. Os Estudos Críticos em Administração procuram enfatizar, nutrir e promover o potencial da consciência humana para refletir de maneira crítica sobre as práticas opressivas, facilitando, assim, a extensão dos níveis de autonomia e responsabilidade das pessoas. Por autonomia, entende-se a capacidade dos seres humanos de produzir julgamentos que não sejam impedidos ou deformados por dependências sociais inúteis associadas à subordinação e às desigualdades de riqueza, de poder e de conhecimento. Por responsabilidade entende-se o desenvolvimento de uma consciência de nossa interdependência social e, consequentemente, a compreensão de nossa responsabilidade coletiva para com os outros. A transformação emancipatória opera-se, então, à medida que as pessoas procuram mudar – pessoal, coletiva e progressivamente – seus hábitos e as instituições que impedem o desenvolvimento de sua autonomia e de sua responsabilidade (ALVESSON & WILLMOTT, 1996). Resumidamente e de forma geral, podemos perceber que a teoria crítica visa favorecer um desenvolvimento racional e democrático das instituições modernas, nas quais cidadãos responsáveis, auto-reflexivos e autônomos se tornam progressivamente menos dependentes de receberem entendimentos sobre suas necessidades. Eles se tornam menos direcionados pela aparente naturalidade e inevitabilidade da ordem político-econômica prevalecente (Alvesson & Willmott, Op. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 89 cit.). É importante frisar, contudo, que os Estudos Críticos em Administração não são, fundamentalmente, “antiadministração” (ALVESSON & WILLMOTT, 1992b, 1996). Dessa maneira a emancipação proposta pelos Estudos Críticos em Administração não visa, necessariamente, exterminar a administração e as organizações. Ao contrário, adota-se e enfatiza-se uma visão da emancipação que é de natureza parcial e realizável na administração e nas práticas organizacionais de todos os dias. Os Estudos Críticos em Administração objetivam, então, transformar a administração tradicional a fim de promover teorias e práticas administrativas que carreguem menos exclusão e dominação (WATSON, 1994; ALVESSON & WILLMOTT, 1996). Assim, é importante ter em mente que a abordagem crítica, em termos gerais, não pretende solucionar de forma definitiva o problema da dinâmica social e política que modela a maneira como as pessoas pensam, ressentem e agem. Tendo com pano de fundo o paradigma radical humanista, verificamos que o corpo teórico que nutre o desenvolvimento dos Estudos Críticos em Administração atravessa uma pluralidade de tradições intelectuais das ciências sociais, gerando uma arena de debates em que os críticos se criticam (BURRELL & MORGAN, 1979). Tais estudos se desenvolvem num território de relações de poder entre diversas tendências teóricas e aceitam a autocrítica. Além disso, a tensão que daí decorre lhes permite renovarem-se e atualizarem-se constantemente. Com efeito, o engajamento dos Estudos Críticos em Administração num processo de desnaturalização sugere que não formam uma entidade estática num campo intelectual neutro. Ao contrário, são resultantes de relações de poder e constituem-se de acordo com um processo contínuo de mudança e de revisão de suas idéias e argumentos. Tais estudos integram, pela abertura à autocrítica, níveis consideráveis de reflexividade em seu próprio desenvolvimento enquanto campo de conhecimento. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 90 Nessa arena intelectual de debates e tensões, podemos destacar três grandes conjuntos de tradições teóricas que têm sido, regularmente, mencionados pela literatura, em Estudos Críticos em Administração, como eixos de sua dinâmica (FOURNIER & GREY, 2000; ALVESSON & DEETZ, 1999). O primeiro conjunto engloba as tradições modernistas desenvolvidas no âmbito do marxismo, do neomarxismo e da Escola de Frankfurt. Já o segundo envolve o que é denominado de tradições pós-analíticas – baseadas na proposta de JACOBSON & JACQUES (1997). Para esses autores, o termo “abordagens pós-analíticas” é apropriadamente impreciso com a finalidade de referir-se às múltiplas correntes contemporâneas do pensamento social – a exemplo do pós-estruturalismo, pós-modernismo, póscolonialismo - que podem ser unidas somente por aquilo de que elas diferem: o conhecimento analítico. O terceiro grupo engloba as teorias feministas. Esses três conjuntos teóricos constituem o corpo dinâmico dos Estudos Críticos em Administração porque representam críticas efetivas do pensamento positivista, da noção de progresso e das formas mais sofisticadas de controle, ideologia e dominação. Todos comungam da busca pelo questionamento dos pressupostos tomados como verdadeiros sobre as formas como as pessoas escrevem, lêem e praticam a administração. Acompanhando o desenvolvimento dos Estudos Críticos em Administração na década de 90 em contexto anglo-saxônico, é possível notar um certo aprofundamento e especialização das análises críticas. Alvesson e Willmott (1996) destacam a importância de efetuar uma análise crítica das diferentes especialidades da administração (marketing, sistemas de informação, pesquisa operacional, contabilidade etc.). Percebe-se que os estudos organizacionais recentes abarcam um conjunto de temáticas ignoradas ou consideradas como de pequena relevância pela modernidade e percebe-se que, nessas temáticas, há uma valorização do homem Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 91 enquanto ser e não mais como objeto de relações objetivadas focadas nos resultados financeiros e econômicos. Evidencia-se as possibilidades de inclusão de novas temáticas que valorizem o homem e a compreensão das suas relações sob um espectro mais amplo que considere diferentes possibilidades de análise, ainda que trilhando uma perspectiva específica. Tais estudos também encontram receptividade nas instituições acadêmicas nacionais e é sobre esse contexto que o próximo tópico será desenvolvido. 2.3. ESTUDOS ORGANIZACIONAIS NO BRASIL Identifica-se nas instituições de pesquisa, no âmbito da administração, a presença de pesquisadores interessados no desenvolvimento de uma perspectiva de análise diferente dos apontados pela modernidade. Em associação com instituições internacionais, ainda que de modo incipiente e restrito a um pequeno número de pesquisadores, pode ser constatado o interesse por perspectivas de análise pós-moderna. A diversidade e a fragmentação nos estudos organizacionais têm levado a várias discussões e polêmicas sobre a identidade da área. Por exemplo, algumas discussões mais recentes levantaram algumas limitações importantes que caracterizam as investigações neste campo (CLEGG et. al., 1996; CHANLAT, 1994; e WHITLEY, 1995). Esses autores apontam não só as principais deficiências contextuais e históricas no processo de evolução dos estudos organizacionais, como uma disciplina independente, mas também questionam a posição hegemônica desfrutada até então pelas teorias anglo-saxônicas e a adoção de modelos universais para explicar o que se passa no interior das organizações em outras regiões do mundo. Clegg et al. (Op. cit.) tratam os estudos organizacionais como conversações; como uma atividade social igual a qualquer outra, na qual as regras dependem do Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 92 consenso sobre a identidade de determinado grupo. Sendo uma atividade socialmente construída e, portanto, sujeita ao ‘alcance’ do consenso grupal, cabe então a definição do campo como ‘um terreno contestável’, conforme REED (1996). Trata-se de um campo de conhecimento marcado por disputas teóricas, no qual o conhecimento se constrói através da disputa sobre a verdade inerente a conceitos e esquemas referenciais. Assim a identidade a ser assumida para o campo deveria ser não apenas flexível, mas incorporar a ‘inovação’ como sendo natural ou parte do processo de construção teórica. Ao adotar a idéia ‘conversações’, como elemento definidor do campo, Clegg et ali. (Op. cit.) sugerem que o conhecimento organizacional é produto da diversidade de locais, leitores e intérpretes, característica que lhe atribui uma identidade precária e constantemente sujeita a negociações. Esta idéia não apenas comporta a noção de que a teoria organizacional é um produto da cultura, mas trata-se também de um empreendimento, cujos produtos são frequentemente negociados e submetidos a ajustes de significados. Tendo por base a argumentação de Clegg et al. (Op. cit.) de que os estudos organizacionais desenvolvem-se através de conversações, esta pesquisa procura analisar a evolução dos estudos organizacionais no Brasil, quais temas têm sido eleitos como relevantes e qual a sua predominância no contexto da área de administração. No que se refere à produção científica em administração, Bertero, Caldas e Wood Jr. (1998) reconhecem o caráter social e temporal do conhecimento produzido neste campo, ao tempo em que, apontam a falta de caráter canônico, acumulativo e paradigmático que o impede de ser definido como conhecimento científico. No que se refere à produção científica brasileira em administração, Bertero, Caldas e Wood Jr. (Op. cit.) a caracterizam como: periférica, pouco original ou repetitiva e imitadora dos Estados Unidos. Quanto a produção científica brasileira em administração encontra-se em um estágio de desenvolvimento embrionário ou, mais Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 93 exatamente, em fase de construção teórica que deve ser vista como preliminar e, particularmente, distante ainda da fase de consolidação. Visando a melhoria da qualidade da produção científica brasileira em administração e o seu desenvolvimento no sentido de sair da fase preliminar e alcançar a fase de consolidação, Bertero, Caldas e Wood Jr. (1998) propõem, para esta comunidade científica e de acordo com a interpretação que fazem sobre a metáfora da "torre de Babel" usada por Burrel (1996), não apenas uma linguagem comum, mas principalmente um projeto comum de ciência em termos de critérios mais claros e bem definidos, ainda que se respeite a diversidade e multiplicidade de abordagens. No contexto brasileiro, o desenvolvimento dos estudos organizacionais e administrativos, originado há aproximadamente 20 anos, caracteriza-se pelo seu crescimento (especialmente na década de 90), pela sua qualidade duvidosa e pela influência (ou dependência) da literatura americana e britânica (RODRIGUES & CARRIERI, 2000; VERGARA, 2000). Analisando as publicações em administração com base nos paradigmas de Burrell e Morgan (1979), durante o período de 1985 a 1989, Machado-da-Silva, Cunha e Amboni (1990) mostraram que a análise organizacional feita em nosso país era amplamente situada no paradigma funcionalista, sendo que a utilização dos paradigmas radicais era minoritária. Tal fenômeno foi reforçado pela análise de Bertero e Keinert (1994) que, ao examinarem os artigos publicados na Revista de Administração de Empresas (RAE) no período de 1961 a 1993, apontaram a ausência quase total de perspectivas críticas ou radicais em análise organizacional brasileira. Essas pesquisas indicam que falta uma visão crítica da realidade na análise organizacional brasileira (VERGARA, 2000), na medida em que preponderam os artigos baseados em referenciais funcionalistas e positivistas, em detrimento de referenciais teóricos críticos. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 94 Os estudos críticos brasileiros não são oriundos (nem uma simples conseqüência) do movimento anglo-saxônico que emerge nos anos 90. Ao contrário, dispomos no Brasil de estudiosos críticos de grande profundidade e reconhecimento como Ramos (1981, 1983) e Tragtenberg (1980), que submeteram a administração e os estudos organizacionais ao crivo crítico, bem antes da década de 90, quando o movimento crítico anglo-saxão emerge de maneira articulada. Assim, ao passo que as abordagens críticas em administração evoluem e ganham respaldo em contexto internacional, análises da produção acadêmica brasileira da década de 80 e início de 90 demonstram que a perspectiva crítica, muito embora tenha sido levada em conta, ainda não é muito difundida nem devidamente utilizada em nosso país. Do ponto de vista epistemológico e metodológico, os estudos no campo da Administração poderiam ampliar o seu alcance à medida que se distanciassem dos aspectos normativos e hegemônicos dos discursos tipicamente funcionalistas, incorporando a esse ponto de vista uma análise sustentada por um tipo de racionalidade também substantiva, a par de todo interesse pela objetividade e prática de uma racionalidade puramente instrumental e formal. Essas considerações reforçam a necessidade de embasamento dos estudos, das teorias e das finalidades engendradas nos domínios da Administração preferencialmente em uma perspectiva histórica, crítica, plural e dialética. O que se espera é uma análise suficientemente mais abrangente, capaz de dar respostas para as empresas e para a sociedade em um momento de transformações sem precedentes na história do capitalismo, e que, por isso mesmo, exerce efeitos profundos nas relações técnicas e sociais de produção, em um contexto de mudança de base tecnológica. Espera-se, enfim, um devido “iluminar” desse processo, para além dos debates tradicionais que emergem do discurso reificante de uma “seleção natural” ou da ilusão em acreditar que as empresas, simplesmente, sobrevivem ou não, a ambientes competitivos de tamanha turbulência, como querem os teóricos da population ecology. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 95 Na verdade, nunca se mostrou tão necessário aproximar as teorizações no campo da Administração aos postulados das Ciências Sociais correlatas - como a Economia, a Política e a Sociologia - sob o risco desta se tornar, futuramente, uma ciência vazia, desprendida da realidade social e presa a antigas referências locais e formais de análise. Assim, recolocando o debate da perspectiva sistêmica sob novas bases, fundamentalmente diferentes, torna-se possível compreender a limitada perspectiva de racionalidade que se propõe a explicar o êxito das organizações e da prática administrativa. E, via-de-regra, o receituário já nos é bastante conhecido: ajustes estruturais, corte de custos, gerenciamento da qualidade, competitividade, “upgrade” tecnológico, qualificação e flexibilidade dos sistemas, dentre outros. Não há como negar que a resposta do capital à crise técnica, social e econômica do fordismo no final da idade de ouro do capitalismo pós-guerra fez com que, de alguma forma, a prática e a ação organizacionais fossem reinventadas de acordo com necessidades prementes. Mas essas mudanças e ajustes, claramente direcionados por uma racionalidade instrumental e funcional, não parecem sinalizar a existência de traços de racionalidade substantiva nos mesmos processos de modernização, nem tampouco mudanças muito profundas na democratização efetiva dos espaços organizacionais, o que é no mínimo um contra-senso diante das perspectivas que se abrem com o uso sistemático da nova base produtiva. Como dito, há uma proeminência no âmbito dos estudos críticos em administração que propicia espaço para novas abordagens da análise organizacional e considera não apenas os limites da análise na perspectiva moderna, mas que permite ir além de incorporar outras possibilidades como a aventada pela presente tese. Com o presente capítulo, evidencia-se um espaço e uma oportunidade para examinar a necessidade e premência de novas perspectivas de análise que Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 96 concebam outras possibilidades de análise, na presente tese como a contribuição da filosofia para a análise organizacional. Tendo em vista a existência de estudos organizacionais que demonstram a necessidade e as possibilidades do campo em construção de análise que considerem o ser humano nas suas diferentes dimensões e percepções, pode-se evidenciar a conseqüência e contribuição da reflexão e análise resultante da tese em apreciação. Mas, antes de adentrar na Estética e em sua contribuição será apreciada no próximo capítulo a perspectiva subjetiva e objetiva nos estudos organizacionais, de modo a considerar que diferentes perspectivas de análise, necessariamente, não são excludentes, embora possam ser consideradas como complementares. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 97 CAPÍTULO III OBJETIVIDADE E SUBJETIVIDADE NOS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS Na impossibilidade de compreender A Razão Absoluta, nos valemos de um recurso: observar suas evidências, seu modelo, sua consequência, enfim, seu efeito; para que, com isso, ao menos, nos aproximemos dela. A Arca Os estudos organizacionais podem ser categorizados de diferentes maneiras, uma delas é considerá-los sob a perspectiva subjetiva e/ou objetiva. O presente capítulo tem como propósito resgatar as diferentes contribuições sob tais perspectivas, sempre no sentido de complementação e não de exclusão. A construção se faz, então, considerando cada perspectiva, individualmente, para, em seguida, apontar as complementações referentes aos para os estudos organizacionais. Desta forma, é objetivo dos estudos organizacionais compreender as organizações enquanto fenômeno social; mas, boa parte dos arcabouços decorrentes desses estudos acaba por ser de caráter prescritivo e visa propor modelos que sugerem um modo melhor de organizá-las, traduzidos em instrumentos “úteis” para a prática organizacional. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 98 Um dos principais problemas, portanto, nos estudos organizacionais é a dificuldade de separar a interpretação da prescrição; bem como é difícil nos autores organizacionais, distinguir “o que a organização” é “do que a organização deve ser”. As contribuições interpretativas dos estudos organizacionais examinam as dinâmicas sociais observáveis nas organizações. A corrente prescritiva prevalece nas teorias gerenciais e de empresa, e as contribuições interpretativas estão mais presentes na sociologia organizacional. O modelo racional de organização, que encontra suas melhores contribuições em Taylor (1987) e Weber (1991), olha a organização como um instrumento para alcançar objetivos predefinidos a base de critérios de racionalidade instrumental. O objeto principal da análise são as estruturas legalmente prescritas e a conformidade do comportamento individual a tais estruturas (BONAZZI, 2000). Taylor (Op. cit.), baseado numa concepção puritana do trabalho humano, lança suas idéias de administração científica no fim do século XIX, partindo de algumas importantes premissas: natureza maléfica do ser humano, auto-interesse individual, existência de métodos organizativos inadequados, que propiciam o desperdício da energia humana nas organizações, e superioridade da ciência positivista. Para qualquer problema existe sempre o melhor modelo de se organizar e tal modelo pode ser alcançado por meio da aplicação de métodos científicos de pesquisa. Consequentemente, os quatro princípios básicos de organização são: estudo científico de métodos de trabalho; seleção e adestramento científico de mão de obra; relações de estima e colaboração cordial entre os dirigentes e a mão de obra; e, distribuição uniforme de trabalho e das responsabilidades entre a administração e a mão de obra. Weber (1963) contribuiu para o estudo da burocracia administrativa enquanto aparelho típico do poder legal. Os fundamentos de tal ação - enquanto tipos ideais são: ação racional com respeito ao fim: o sujeito atua racionalmente visando conseguir um determinado objetivo no mundo externo avaliam os meios em relação Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 99 aos fins, os fins em relação às consequências e, eventualmente, os diversos tipos de fins entre si. As decisões são tomadas com base em cálculos de custos e benefícios. Tal tipo de racionalidade, na opinião do Weber, é uma das características principais do mundo moderno, a base da ação capitalista, entendida como acumulação metódica, contínua e ilimitada de capital que visa a criação de outro capital. Com base no tipo ideal – um procedimento de abstração, conceito qualitativo construído por meio de seleções e acentuações unilaterais, que serve para comprar fenômenos – Weber (1963) examina a burocracia. Este tipo ideal é concebido como um aparelho ótimo dotado de racionalidade com relação aos fins. A partir de Weber, um pressuposto predominou no estudo das organizações: a burocracia como a única forma das organizações racionais. Vários estudiosos, como Blau (1955), Merton (1957) e Hall (1984) aplicaram a abordagem funcionalista aos termos weberianos da burocracia e confrontaram a intenção racional com a qual os sujeitos agem com as conseqüências não esperadas que derivam em nível da estrutura. Considere que, somente a partir dos anos 60, a pesquisa organizacional começou a questionar este pressuposto weberiano e reconhecer que outras formas organizacionais mais flexíveis podem existir ao lado das burocracias, a exemplo dos trabalhos de GOULDNER (1976); EISENSTADT (1976). 3.1. RACIONALIDADE E OBJETIVIDADE Não há como introduzir a questão da objetividade e subjetividade nas organizações sem fazer referência a Weber. Para Habermas (1972), o sociólogo alemão Max Weber, embora pretendesse afastar-se das premissas da filosofia da história e dos pressupostos fundamentais do evolucionismo, ainda descreveu a modernização da sociedade ocidental como resultado de um processo universal. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 100 Como afirma Mouzelis (1969), é a racionalidade que liga todas as características descritas no modelo ideal weberiano e é ela que dá a lógica e a consistência a todo o constructo. Na verdade, o conceito de racionalidade tem sido reconhecido como o componente mais importante do pensamento weberiano. Ele está intimamente relacionado a toda discussão sobre a desmagificação do mundo, a burocratização e a crescente perda de liberdade na sociedade moderna. A diferenciação dos tipos de racionalidade refere-se aos processos mentais e às referências utilizadas neles, que orientam as ações dos indivíduos no contexto social. Assim, de acordo com Weber (1991), as diferentes formas organizacionais encontradas na realidade social podem ser explicadas pela predominância do uso de tipos específicos de racionalidade. Para Habermas (1987), a novidade que Weber trouxe foi o projeto de descrever e explicar as transformações da sociedade moderna mediante o critério da “racionalidade”. Diante de tal critério, Weber recorta a racionalidade, no processo geral de desencantamento que ocorre na história das grandes religiões e que satisfaz as condições internas necessárias, para que surgisse o racionalismo ocidental. Para desenvolver essa análise, segundo Habermas (Op. cit.) Weber se vale de um conceito complexo, embora nem um pouco confuso, de racionalidade. Para Weber (Op. cit., p. 5), é preciso entender o conceito de racionalidade, sem separá-lo do contexto amplo das muitas formas de ação social, afirmando: ... por ‘ação’ deve entender-se uma conduta humana (quer ela consista em um fazer exterior ou interior, quer consista em omitir ou permitir) sempre que o sujeito – ou os sujeitos – da ação atribui a ela um sentido subjetivo. A ação social, portanto, é uma ação na qual o sentido atribuído pelo seu sujeito – ou sujeitos – se refere à conduta de outros, orientado-se por essa para o seu desenvolvimento. Uma vez que possui “sentido subjetivo”, a motivação da ação social depende do próprio sujeito. A ação social, para Weber (Op. cit., p. 20), sempre poderá ser Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 101 classificada em algum dos seguintes tipos, recortada a partir da racionalidade que a motive: • racional motivada pelos fins (racionalidade instrumental): determinada por comportamentos esperados tanto dos objetos do mundo exterior quanto dos outros homens. Esses comportamentos esperados são “as condições” ou “os meios” com que se pode contar para atingir fins próprios racionalmente ponderados e perseguidos; nesse caso se fala em ação social motivada pela racionalidade instrumental; • racional motivada pelos valores (que mais tarde será chamada por Ramos (1981) de “racionalidade substantiva”): determinada pela crença consciente em valores – éticos, estéticos, religiosos ou sob qualquer outra forma que se manifestem – próprios e absolutos de uma conduta, sem relação alguma com o resultado; nesse caso, se pode falar em ação social valorativa, motivada pela racionalidade valorativa; • afetiva: especialmente emotiva, determinada por afetos e estados sentimentais do momento; nesse caso se fala em ação social afetiva, motivada pela racionalidade afetiva; • tradicional: determinada por um costume arraigado; nesse caso se fala em ação social tradicional, motivada pela racionalidade tradicional. Cada um desses tipos de ação social – ao qual corresponde um tipo de racionalidade – tem suas peculiaridades, ensejando um grau de objetivo e/ou de subjetividade. A ação social puramente tradicional é uma resposta esperada e padronizada a estímulos habituais e comuns; quanto maior o grau de institucionalização do contexto em que for gerada, mais acentuado será o caráter tradicional da ação social. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 102 Na ação social tradicional não há espaço para a reflexão: a ação social ocorre porque tem de ocorrer, porque é daquela forma que se faz desde os tempos mais remotos (pelo menos para aquele grupo social). Freqüentemente confundem-se a ação afetiva e ação motivada por valores. As duas formas de ação são semelhantes porque, nos dois casos, a ação social não visa o resultado, mas o conteúdo da própria ação. Os dois tipos distinguem-se, contudo, porque a ação social afetiva é motivada por emoção momentânea, sem qualquer reflexão; no caso de ação social motivada por valores, os propósitos e o planejamento da ação social são resultado de elaboração consciente que jamais perde de vista a “causa” à qual serve o ator social. Em muitos casos, a racionalidade afetiva pode ser sacrificada à racionalidade motivada pelos valores. Na ação social regida pela razão instrumental, o agente se orienta pelos fins, meios e conseqüências de sua ação social. Ele pondera racionalmente os meios e os fins, os fins e as conseqüências da ação social, as pondera, umas em relação às demais, todas as conseqüências possíveis de sua ação social. Nesse tipo de ação social, o agente toma decisões sobre a ação, baseado no cálculo, na relação custo/benefício entre fins, meios e conseqüências da ação social que decida empreender (WEBER, 1991). Na ação social em que a racionalidade é motivada pelos fins que visa, os agentes não agem nem exclusivamente movidos pelos afetos nem movidos exclusivamente pela tradição. Por sua parte, a decisão entre os diferentes fins e conseqüências concorrentes e em conflito pode ser racionalmente motivada a valores; nesse caso, a ação é racionalmente motivada aos fins somente nos meios. Em outras palavras, pode acontecer de o agente de uma ação social motivada pelos valores considerar só os valores, até definir seus objetivos e, em seguida, passar a usar critérios da racionalidade instrumental para hierarquizar os Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 103 objetivos de sua ação social; por exemplo, para verificar a utilidade marginal daqueles objetivos. Considerada pela racionalidade instrumental, a ação social motivada unicamente por valores é sempre uma ação irracional (WEBER, 1991 p. 21), posto que, nesse tipo de ação social não se aferem quaisquer possíveis conseqüências ou, quando há alguma aferição, a medição é sempre “... tanto menor quanto maior seja a atenção concedida ao valor próprio do ato em seu caráter absoluto. Absoluta racionalidade instrumental, contudo, em ação social motivada pelos fins é casolimite”. Só raramente a ação social é orientada por um único tipo de motivação (racional motivada por fins, racional motivada por valores, afetiva ou tradicional). Todas essas motivações, às quais corresponde um tipo de racionalidade, são tipos conceituais puros, construídos para efeitos didáticos ou para orientar os métodos a serem selecionados para cada tipo de pesquisa social. Freqüentemente encontramse ações sociais motivadas por tipos híbridos de racionalidade. Apesar de admitir quase todos os tipos de ‘mescla’ na motivação – e, portanto, no tipo de racionalidade – que faz agir os agentes de ação social, Weber (Op. cit.), ainda assim, chocava-se de ver que todas as ações sociais em sociedades capitalistas – nas quais se esperava que o mercado estabelecesse o equilíbrio – são motivadas sempre pela racionalidade funcional, vale dizer, pela racionalidade instrumental. Como salienta Ramos (1981, p. 5): ... muito embora Weber se tenha recusado a basear sua análise sobre a indignação moral, como fizeram outros teóricos, de forma notável, é um erro atribuir-lhe qualquer compromisso dogmático com a racionalidade gerada pelo sistema capitalista. De acordo com Ramos (1981), Weber é um dos primeiros pensadores a interpretar a lógica de mercado como um requisito funcional próprio de um sistema social episódico, sendo somente um tipo de racionalidade, a formal, característica dessa lógica. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 104 Na verdade, observa-se que a racionalidade substantiva se transforma em um meio para a realização de padrões de ação da racionalidade formal. Ou seja, a calculabilidade das ações sociais tornou-se um novo valor para a sociedade moderna. Assim, o tempo, o cálculo de conseqüências, os interesses tornam-se os valores predominantes, norteando as ações ou o comportamento dos indivíduos. Esta discussão da racionalização é intensamente feita por Ramos (Op. cit.) entre outros autores. Ele resume suas idéias, salientando que na sociedade moderna a racionalidade passou a ser uma categoria sócio-mórfica, interpretada como atributo de um processo histórico e social e não mais como uma força ativa da psique humana, como em tempos passados. Como esclarece o autor, a razão é um conceito fundamental para o desenvolvimento de qualquer ciência da sociedade e das organizações. Serva (1997a, 1997b) utiliza-se das idéias críticas de Ramos (Op. cit.) sobre o domínio da racionalidade na vida social moderna para desenvolver estudos em organizações concretas. Muito próximo das discussões e da abordagem metodológica oferecida por Clegg (1990), Serva apresenta os dois tipos de racionalidade (a formal e a substantiva) e os processos organizacionais a serem analisados em sua pesquisa. Apoiando-se nas idéias de Ramos (Op. cit.) e de Habermas (1987) sobre a teoria da ação comunicativa, considerada fundamental para a operacionalização do conceito de racionalidade substantiva, o autor parte de algumas definições. Segundo ele, a ação racional substantiva é considerada um tipo de ação orientada para a dimensão individual e grupal. Na dimensão individual, ele se refere à auto-realização, compreendida como concretização de potencialidades e de satisfação; e na dimensão grupal, ao entendimento nas direções da responsabilidade e de satisfação social. Já a ação racional formal foi definida pelo autor como aquela ação baseada no cálculo, orientada para o alcance de metas técnicas ou de finalidades ligadas a interesses econômicos ou de poder social, por meio da maximização dos recursos disponíveis. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 105 Conforme as análises apresentadas em seu estudo, as ações de entendimento se mostraram indispensáveis para dar o tom da razão substantiva nos processos da prática administrativa das organizações estudadas, estando diretamente ligados à questão do poder, tais como a hierarquia, o estabelecimento de normas, a tomada de decisões e o controle. A autonomia revelou-se importante no processo de divisão do trabalho. O comprometimento efetivo dos seus membros com os valores emancipatórios foi considerado uma condição básica para a caracterização da predominância da racionalidade substantiva nas organizações pesquisadas. Salienta Serva (1997a, 1997b) que outras formas de ordenação social e de produção podem ser encontradas atualmente, e exigem, para sua análise, outros instrumentos de interpretação e também referenciais alternativos à lógica utilitarista. Em sua análise sobre a ética protestante e o desenvolvimento do capitalismo, Weber argumenta que o asceticismo da ética protestante no trabalho criou as condições para que se disseminassem a racional-instrumentalização da ação social e a burocratização (fruto da racional-instrumentalização). Essas, com o tempo acabariam por criar uma “gaiola de ferro” que tolheria a liberdade humana (Weber, 1991) e que aconteceria sempre que prevalecesse a racionalidade instrumental como única ou principal motivação de todas as ações sociais. As referências para a ação humana são tomadas em valores, independentemente dos resultados a serem obtidos. A quarta racionalidade, a racionalidade formal, oferece, como referência à ação humana, a aplicação de regras, leis e regulamentos tornados institucionalizados em determinado contexto, referenciado no cálculo utilitário de conseqüências no estabelecimento de relações meio-fim. Fica evidente que o modelo burocrático formalmente racional, com predomínio da ação orientada para normas, regras, regimentos e estatutos Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 106 considerados como os meios mais adequados para o contínuo funcionamento e alcance dos objetivos. Os demais tipos de racionalidade são ignorados ou desconsiderados enquanto possibilidade de entendimento da realidade; quando muito, a racional formais são utilizadas de modo subalterno. Tendo com exemplo, é facilmente observável como a racionalidade substantiva vem sendo utilizada enquanto um meio para a prevalência de atitudes e ações sociais e organizacionais centrados no padrão referenciado pela racionalidade formal. Tendo considerado as quatro racionalidades apontadas por Weber (1991), permite-se considerar e desmistificar o caráter predominante da racionalidade formal, evidenciando a necessidade de considerar as demais tipologias de racionalidade, sob pena de estar sendo parcial, ao utilizar a tipologia weberiana da racionalidade para explicar e legitimar as escolhas nas organizações. Na verdade, a racionalidade é una, desdobrada pelo autor enquanto recurso de construção, permitindo maior clareza e entendimento da construção do esquema conceitual. Esse modelo permite apontar como uma das possibilidades de compreensão das crises, contradições e conflitos organizacionais, ou mesmo, como a própria limitação e indução ao erro, presente nas escolhas de formatos ou modelo organizacionais, essa percepção da racionalidade de maneira limitada. E quando outros formatos organizacionais surgem e consegue ter perenidade, falta fundamentação teórica que permita compreender tal fato. Observa-se que a construção do conhecimento organizacional, especialmente daquele propugnador de ações, se faz predominantemente norteado por uma perspectiva eminentemente formal, ignorando as demais dimensões presentes e inerentes à própria compreensão e análise organizacional. O presente tópico resgatou as bases norteadoras do agir e entender a organização dentro da perspectiva da racionalidade instrumental, sendo essa a Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 107 prevalecente nos estudos organizacionais, ainda que ganhem corpo considerações que apontem os limites dessa perspectiva de análise. E são sobre essas outras possibilidades, de natureza subjetiva, o objeto de consideração do tópico que se segue. 3.2. RACIONALIDADE E SUBJETIVIDADE Ao desdobrar a articulação entre a racionalidade e a objetividade evidenciouse uma outra perspectiva de análise e consideração, ao discorrer sobre as dimensões de racionalidade presentes em WEBER (1991). Com o presente tópico pretende-se identificar a perspectiva de análise organizacional a partir de elementos eminentemente subjetivos. O propósito é, portanto, demonstrar que subjetividade9 e racionalide não são elementos incongruentes e que, portanto, podem auxiliar a compreensão e análise dos fenômenos organizacionais. A subjetividade humana apresenta componentes de individualização do sujeito que estão determinados pelos caracteres de autonomia e de autoorganização das pessoas por ele constituída, segundo Morin (1995), a partir de três princípios, que podem ser sintetizados em: • o do computo que se constitui na construção identitária do indivíduo a partir de aspectos de referência externa e interna intercomunicáveis; • o informático da realidade que se constitui segundo as percepções e interpretações do indivíduo da realidade; e 9 O termo subjetividade tem suas origens no desenvolvimento da consciência individual do pensamento humano e busca designar a essência ou fundamento que caracteriza e diferencia as pessoas umas das outras. Modernamente o subjetivismo é uma doutrina que reduz a realidade ou os valores a estados do sujeito (universal ou individual). Fala-se de subjetivismo moral e o subjetivismo estético quando o bem, o mal, o belo ou o feio são reduzidos às preferênciass individuais (ABBAGNANO, 1999). Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 108 • o do eu que se constitui das mudanças e transformações do si. Tal conceito determina uma construção ímpar e particularizada da subjetividade que a torna apropriação única, onde o indivíduo considera-se a partir da auto-subsistência e auto-sustentação frente a padrões pessoais de interpretação da realidade social. A construção de parâmetros definidores da individualidade e subjetividade humanas concentrou-se em fatores externos e garantiu uma maior tendência exógena em considerar alguns objetos como relevantes. Este posicionamento humano, segundo Morin (1995) desconstruiu alguns pilares da própria estruturação do eu, dentre eles: a) a diferenciação do EU (ato de ocupação do lugar central no próprio mundo) do NÃO-EU (em que há um questionamento de si próprio e se cria uma imagem – do outro – externa como responsável pela definição de si próprio); b) a percepção da continuidade dos atos e a permanência de determinadas concepções – a continuidade histórica do eu passa a ser fator secundário em relação àquilo que se deseja no agora, no presente, sem haver uma preocupação direta com passado e futuro e nenhuma interligação entre as fases temporais do homem; c) a possibilidade de exclusão centrada em si próprio e responsável pelas próprias realizações apresenta-se substituída pela centralidade do outro e da possibilidade de se perceber, em maior intensidade, a partir da realização própria percebida pelo outro; d) a possibilidade de inclusão passa a ser percebida a partir da inscrição dos outros em si mesmo; e, e) a intercomunicação torna-se válida segundo processos de alteridade em que há a necessidade de se estar com outro enquanto princípio estrutural e estruturante. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 109 Tais fatores estruturadores da subjetividade contemporânea podem ser percebidos sob a ótica do mundo do trabalho, cujas modificações estabeleceram novas formas e relações entre indivíduo e organização. Devido às mudanças provocadas pelas tendências macroeconômicas e dos fenômenos evidenciados na sociedade pós-industrial, assim denominada por De Masi (1997) e por Bell (1977), há uma redefinição da concepção de subjetividade humana contemporânea e estimula-se um processo de desconstrução de conceitos antes apresentados para instituir novas caracterizações e fatores à subjetividade moderna. Tal construção da análise da sociedade pós-industrial e as influências destas variáveis na subjetividade humana são percebidas de forma diferenciada por Baudrillard (1991) em que se identifica uma mentalidade individualista e consumista do homem, a qual é constituída pela manipulação dos objetos, a super variedade dos mesmos que determinam a “livre” possibilidade de escolha, ou seja, “não se pode deixar de não escolher”. Além destas, há a consumação da subjetividade humana, determinada pelo modo ativo de estabelecimento das relações definidas pelas escolhas feitas, que se apresentam segundo a satisfação dos desejos e a temporalidade com que definem tais satisfações. Assim sendo, a subjetividade contemporânea constituída pelo homem moderno, segundo caracterização de Rojas (1997), apresenta-se segundo três conceituações: a) a subjetividade neomoderna – que apresenta uma superação do paradigma estabelecido a partir da dimensão da reflexão e centralização do sujeito ou a reconstrução da mesma; b) a subjetividade pós-moderna – na qual o sujeito não apresenta capacidade de perceber as estruturas constituintes da consciência que Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 110 determinam uma rede global de significados sob os quais o homem não apresenta capacidade de domínio; c) e a negação da subjetividade – a partir de concepções anti-humanistas de caráter científico (destino pré-estabelecido do homem), filosófico (estruturalismo francês) e contestatório (atitudes da sociedade contemporânea que denunciam a repressão). A desconstrução do modelo paradigmático estabelecido e a possibilidade de reconstrução da subjetividade do homem desafiam a capacidade do indivíduo em encontrar a si mesmo como foco central a partir de um conceito diferente de subjetividade segundo o ego-transcendental, da capacidade de se perceber como ser do mundo – dasein – e da razão comunicativa que se centraliza na linguagem humana como foco. Os fenômenos contemporâneos que determinam tais mudanças na percepção do homem de sua própria caracterização e subjetividade são percebidos, segundo Rojas (Op. cit.), sob as seguintes perspectivas: a) a centralização da vida moderna no individualismo, ou seja, a invasão da sociedade pelo “eu” que determina a perda da dimensão histórica e o declínio da herança antropológica e a preocupação central do próprio “eu” no lugar do âmbito “religioso” (busca da saúde e da segurança psíquica), que determinam necessidades psicossociais devido ao excessivo individualismo a partir da exclusão do outro e da perda da liberdade; b) a era do vazio ou sedução “no stop” que se diferencia pela super multiplicação das escolhas e do processo de personalização das coisas e de erotização das mesmas; c) e a “pura indiferença” dos indivíduos, caracterizada pelo desinvestimento emocional, a partir do despir de alguns valores e virtudes com destruição de algumas instituições historicamente aceitas, Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 111 além do desaparecimento de ideologias sociais, da desarticulação de antigos valores e surgimento de novos, ocorrendo a substituição da sociedade “do discurso” pela sociedade “da imagem”. Assim sendo, exige-se um novo modelo de subjetividade, uma vez que o conceito paradigmático adotado não capta de maneira satisfatória as variáveis relevantes para interpretação do homem e da realidade contemporânea. Os processos de desconstrução e reconstrução do modelo estabelecido apresentam como um dos fatores relevantes à centralidade, ou a perda desta, da variável trabalho nas instituições e concepções consideradas prioritárias pelo homem. A predominância do “estar sendo”, que representa a aparência do “ser”, segundo Habermas (1987; 1996), define relações singulares na ‘identidade de papel’ e na ‘identidade do eu’, que constituem a incorporação de unidades simbólicas mediadas pela socialização a partir da integração dos papéis sociais representados. Estas relações existentes entre indivíduo e organização permitem o aparecimento de novos conceitos e de variáveis relevantes ao processo de construção da subjetividade humana no trabalho que anteriormente não eram consideradas. As mudanças no mundo do trabalho e as consideradas no contexto socialeconômico vigente ao final do século XX determinam novas formas de percepção da subjetividade humana e como esta vem sendo influenciada pelo mundo do trabalho. Percebe-se que a subjetividade, enquanto perspectiva de análise organizacional, ainda é pouco explorada, dentre outros aspectos, por não prometer ou apontar ganhos palpáveis ou resultados mensuráveis. Ainda assim, é inegável, a proximidade proporcionada por essa perspectiva, do indivíduo e suas escolhas de modo a considerar tais escolhas, como únicas, particulares mas envoltas em uma totalidade, em uma busca de unidade. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 112 3.3. OBJETIVIDADE E SUBJETIVIDADE Neste tópico busca-se estabelecer uma articulação entre os tópicos anteriores, tendo como pano de fundo os estudos organizacionais, de maneira a apontar as complementações existentes entre as perspectivas subjetivistas e objetivas, portanto, consideradas como auxiliares no entendimento do cotidiano organizacional. Os anos setenta marcam a maturação do debate subjetividade-objetividade, ação-estrutura, significado-função, na pesquisa organizacional. Partindo das premissas objetivistas do funcionalismo de Parsons (1960), pela contribuição de Simon (1960; 1961; 1965) e sua resistência a não reificar seu objeto de estudo e voltando novamente à reificação com a abordagem contingencial, o paradigma vigente entra em crise. Marcados pela influência de um número de escolas – fenomenologia, simbolismo, cognitivismo, etnografia etc. – os estudos organizacionais têm considerado nas últimas décadas o aspecto subjetivo. Merece referência, enquanto ponto de partida nos estudos que enfatizam o aspecto subjetivo, o trabalho de Weick (1973) centrado no ponto de vista que o mundo externo não tem um sentido em si, e que são os seres humanos que atribuem sentido ao mundo. Assim, segundo Weick, o processo cognitivo por meio dos quais os indivíduos dão sentido aos fluxos de experiência, deve ser objeto de estudo. Um dos seus conceitos mais utilizados nos estudos organizacionais relacionase com os mapas cognitivos, ou causais, construções dotadas de sentido e ordem lógica. Talvez seja esta uma das principais diferenças do cognitivismo da fenomenologia, segundo a qual, não devem existir premissas na análise do objeto, pois ele que vai nos mostrar, por meio da variação, as múltiplas e inesgotáveis facetas da sua compreensão. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 113 Com os mapas cognitivos tem-se uma abordagem subjetiva para os estudos organizacionais enfocados nos recursos simbólicos, com forte influência da fenomenologia e do cognitivismo. Elster (1989) apresenta algumas considerações acerca dos mecanismos causais que servem como unidade básica das ciências sociais, baseado, principalmente, na teoria da escolha racional. Segundo o autor, a unidade elementar da vida social é a ação humana individual. Explicar as instituições e a mudança social é mostrar como elas instituemse como resultado da ação e interação de indivíduos. Tal perspectiva, conhecida como individualismo metodológico serve como base para várias teorias no campo organizacional, caracterizando-se como uma abordagem subjetiva para os estudos organizacionais com foco nos recursos materiais dessa interação. Em nível individual, explicar uma ação é olhá-la como resultado final de dois filtros. O indivíduo encontra-se frente a uma ampla gama de ações possíveis. O primeiro filtro compõe-se de todas as limitações físicas, econômicas, legais e psicológicas que o indivíduo enfrenta. O segundo filtro determina quais ações, dentro do conjunto de oportunidades, serão, de fato, desempenhadas. Os principais mecanismos considerados no processo de escolha são: escolha racional e normas sociais. Para Elster (1989) os mecanismos geradores de escolha são mais fundamentais do que os mecanismos geradores de normas. Na perspectiva da escolha, as ações são explicadas por oportunidades e desejos: o que as pessoas podem fazer e o que elas querem fazer. Às vezes, as limitações são tão fortes, que pouco espaço é deixado para o segundo filtro (escolha ou norma) operar. O conjunto de oportunidades é reduzido numa única possibilidade de ação. O debate sobre a relativa importância de oportunidades ou preferências é controverso. No entanto, o autor aponta que, pelo menos num aspecto, as oportunidades são mais básicas que os desejos: são mais fáceis de serem Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 114 observadas, não apenas pelos cientistas sociais, mas também por outros indivíduos na sociedade. Outra razão tem a ver com a possibilidade de influenciar o comportamento. É mais fácil – no sentido custo-benefício - mudar as circunstâncias e oportunidades humanas do que mudar seus modos de pensar. As oportunidades são externas ao indivíduo, objetivas. Desejos são internos e subjetivos. A dificuldade reside em como os elementos objetivos e subjetivos interagem para produzir uma ação. Com base nestas considerações, apresenta-se a teoria da escolha racional, segundo a qual, quando as pessoas enfrentam diversos cursos de ação, elas geralmente farão o que acreditam alcançar o melhor resultado geral. Escolha racional é instrumental: é dirigida pelos resultados das ações, por isto está tão influente na teoria organizacional e tem a ver com o encontro dos melhores meios para dados fins. No entanto, as pessoas escolhem o que elas acreditam ser o melhor meio. O processo pode ser racional, mas não verdadeiro. A verdade é uma relação entre a crença e o objeto da crença. A racionalidade é uma relação entre a crença e em que esta crença baseia-se. Elster (1989) apresenta uma análise interessante sobre a ação humana e oferece contribuições interessantes sobre a interação. Ele considera que muitos eventos apresentam conseqüências não-intencionais – objeto das ciências sociais – devido à interação e interferência social. Segundo o autor, a ação coletiva se define com base na cooperação: “Cooperar é atuar contra o próprio interesse de modo a que todos possam se beneficiar, caso alguns, ou possivelmente todos, atuem da mesma maneira” (ELSTER, Op. cit., p. 26). Problemas da ação coletiva tornam-se evidentes porque é difícil fazer com que as pessoas cooperem para seu benefício mútuo. Resolver o problema é alcançar cooperação mutuamente benéfica. Dessa forma, parece óbvio que a existência de organizações deve-se principalmente à mediação de tais dilemas relativos à cooperação. Taylor (1987) foi Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 115 um dos primeiros a reconhecer que a organização é um corretivo das limitações humanas, mas baseia-se numa concepção perversa da natureza humana. Por sua vez, a relação entre as limitações humanas e a necessidade de recorrer à cooperação organizada é enfatizada por Barnard (1971), ele é um dos primeiros a ser influenciado pelo progressivo declínio do individualismo utilitarista (darwinismo social), a favor de uma filosofia que considera a sociedade como uma entidade cooperativa regulada por princípios morais. O autor define as organizações como sistemas cooperativos: complexos de componentes físicos, biológicos, pessoais e sociais, que se encontram numa relação sistêmica específica, em virtude da cooperação de duas ou mais pessoas visando a um alvo definido. A ação cooperativa de membros (sejam eles funcionários, gerentes ou proprietários) está na base da análise do Barnard (Op. cit.). Escrito no auge do sucesso da administração científica de Taylor (1987), o autor, um prático e agudo observador do fenômeno organizacional, introduziu vários conceitos relacionados com a psicologia e a sociologia das organizações, fortemente influenciada por Follet (1942) e Fayol (1990). Para Barnard (1971, p. 44) o indivíduo é como “coisa total, singular, única, independente, isolada, abarcando inúmeras forças e matérias passadas e presentes, que constituem fatores físicos, biológicos e sociais”, portanto, reconhece a existência de elementos de natureza subjetiva presente no indivíduo que não pode ser previamente previsível e normatizado. O livre-arbítrio também é limitado porque o poder de escolha dos seres humanos é paralisado, se for grande o número de oportunidades iguais. Tal limitação das possibilidades é necessária para a escolha. Eis que “a tentativa de limitar as condições de escolha, de forma que torne praticável o exercício de querer, é o que chamamos de criar ou realizar um ‘propósito’, ou finalidade” (BARNARD, Op. cit., p. 45). Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 116 Os objetivos são vistos como tentativas de limitar as condições de escolha. As limitações, dentro das quais a escolha é possível, são impostas pela presença conjunta de fatores físicos, biológicos e sociais. Em coerência com o arcabouço teórico oferecido por Elster (1989), o autor enfatiza que as escolhas são feitas com base em: propósitos, desejos, impulsos do momento; e, alternativas externas ao indivíduo, por ele reconhecidas como aproveitáveis ou úteis (ou seja, oportunidades). Eis algumas idéias do autor: A implicação mais comum da filosofia do individualismo, da escolha ou livre arbítrio, reside na palavra “propósito”. A expressão mais comum da filosofia oposta, da determinação, do behaviorismo, do socialismo, é “limitação”. Da existência de propósitos de indivíduos – ou da crença em sua existência – e da experiência de limitações, origina-se a cooperação para atingir propósitos e superar limitações (BARNARD, 1971, p. 52). Cooperação e organização, como são observadas e experimentadas, são sínteses concretas de fatos opostos, bem como de pensamentos opostos e emoções dos seres humanos. A função do executivo é exatamente a de facilitar a síntese de forças contraditórias em ação concreta, para reconciliar forças, instintos, interesses, condições, posições e idéias conflitantes (BARNARD, Op. cit., p. 51). Retomando a análise de Elster (1989) e em coerência com o pensamento de Barnard (1971), seria um erro supor que a motivação central da cooperação seria o interesse próprio do indivíduo, afinal existe um conjunto de fatores entre os quais sempre estão presentes motivações não-egoísticas. Na corrente de estudos organizacionais, o autor que mais se destaca na aplicação da perspectiva da escolha racional é SIMON (1960; 1963; 1965). Os objetivos da sua análise não são os fins e as funções desempenhadas pelas organizações, mas os comportamentos humanos concretos nas organizações. As pessoas nas organizações são vistas como sujeitos que tomam decisões continuamente, assim, a decisão torna-se o objeto principal do conhecimento administrativo. Simon, o único prêmio Nobel da área organizacional inova e vai de encontro à tradição, quando enfatiza o caráter limitado da racionalidade humana. As limitações Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 117 objetivas do conhecimento, a impossibilidade de prever todas as conseqüências, a incapacidade de considerar, simultaneamente, numerosas variáveis na tomada da decisão, a incerteza interna a qualquer hierarquia de preferências, a disposição mental e as convicções devidas à cultura e outros condicionamentos sociais fazem com que, na maioria dos casos, as decisões sejam tomadas com base no critério da satisfação, ao invés de otimização. Simon (1961) retoma o modelo proposto por Barnard (Op. cit.) ao considerar que as organizações oferecem o modo mais eficaz de integrar e coordenar o comportamento humano mantendo a racionalidade em nível alto. O equilíbrio entre os incentivos e as contribuições, proposto por Barnard como princípio geral do funcionamento de uma organização, é retomado na análise de Simon. Este é visto como o resultado deste fluxo de decisões – racionalmente limitadas - tomadas pelos indivíduos no âmbito das organizações. Assim, o sujeito confronta as contribuições de que é disposto a dar com os incentivos – materiais ou morais – que espera receber. Diferentemente dos funcionalistas, Simon (1961) não analisa apenas o consenso dos membros de uma organização, mas também as causas e as formas dos conflitos que possam ser de natureza individual ou organizacional. Atuar racionalmente é fazer bem, enquanto puder. “A noção da racionalidade é definida para um indivíduo, não para uma coletividade de dois ou mais indivíduos” (ELSTER, 1989, p. 9). No entanto, quando duas ou mais pessoas interagem, as conseqüências da interação podem ser diferentes das esperadas. Estudar a organização é estudar os efeitos da interação entre indivíduos. A análise de Simon olha a organização como resultado das ações – coordenadas e racionalmente limitadas – de um conjunto de pessoas que agem baseando-se em premissas internas e externas relativas à própria organização. Assim como Elster (1989), que é cético em relação à modelagem organizacional, para Simon, as decisões, em nível individual, são vistas como um Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 118 processo no qual determinados meios são escolhidos visando alcançar determinados fins. Baseado no positivismo lógico, Simon considera a adequação de meios como objeto de juízos de fato e a escolha dos fins como objeto de juízos de valor. Embora tal definição lembre Weber, Simon não reconhece a tensão criada entre estes juízos, mas os coloca numa contínua relação. Outros autores contribuíram na mesma linha de estudos que enfatiza o processo decisório nas organizações. Na administração pública, por exemplo, o processo decisório incremental, apresenta-se por Linbdlom (1981) como a melhor forma de fazer políticas públicas. Este autor observa que grande parte das decisões políticas é tomada com base num processo decisório incremental. “Rupturas” associam-se com grandes riscos políticos, que poucos governantes são capazes de enfrentar. Por meio de um processo decisório incremental - muddling through - assegura-se maior flexibilidade e adaptabilidade às condições incertas do ambiente. O presente tópico buscou enfatizar o processo de maturação decorrente dos debates envolvidos na questão subjetividade e objetividade, no âmbito da pesquisa organizacional nas últimas três décadas de modo a considerar a complementaridade entre as abordagens objetivas e as abordagens subjetivas considerando os recursos de natureza simbólica e os recursos de natureza material. A questão continua presente no tópico que se segue como maior enfâse agora a sociologia. 3.4. SUBJETIVIDADE VERSUS OBJETIVIDADE As contribuições de Giddens (1979; 1989;1990;1994) e Bourdieu (1972;1984) na área de sociologia têm em comum a tentativa de apresentar uma síntese das perspectivas que enfatizam a objetividade e a subjetividade, representando, para o campo da sociologia, a tentativa de superação da crise do funcionalismo parsoniano e do determinismo estrutural marxista. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 119 A principal contribuição de Giddens na área de estudos organizacionais relaciona-se à sua teoria de estruturação que, a partir de uma visão dinâmica, visa permitir o estudo da ação de atores individuais e os impactos da estrutura sobre estes, facilitando ou dificultando esta ação e possibilitando mudanças na ação dos indivíduos, assim como na sociedade. Como o autor reconhece, a teoria de estruturação visa preencher um vácuo: a falta de uma teoria de ação nas ciências sociais. Relendo as contribuições estruturalistas - em especial Saussure (1980) e Levi-Strauss (19960 - e funcionalistas em relação aos conceitos de estrutura e sistema, o autor propõe uma teoria de agência que visa captar as relações espaciais inerentes à constituição de todas as interações sociais. Giddens (1979) relaciona a ação humana com a explicação estrutural. Ele argumenta que as noções de ação e estrutura pressupõem uma a outra, mas o reconhecimento desta relação dialética requer a re-elaboração dos conceitos relacionados com cada um destes termos. A teoria de estruturação enfatiza que a compreensão dos sistemas sociais situados no tempo-espaço possa ser efetuada vendo a estrutura não no tempo e espaço, mas como ordem virtual de diferenças, produzida e reproduzida em interações sociais, como meio e produto. Giddens (1979; 1989) enfatiza a superação de dualismos: tipos voluntarísticos versus tipos determinísticos, sujeito-objeto, indivíduo-sociedade, estática-dinâmica e outros. A teoria de estruturações envolve o conceito de dualidade da estrutura que tem a ver com a recursividade essencial da vida social e expressa a dependência mútua de estrutura e agência, tal como se apresenta nas práticas sociais. A estrutura é meio e produto da reprodução das práticas. Neste sentido o ator social passa a ser visto como agente e conhece boa parte das condições da reprodução da sociedade a que ele pertence - perspectiva negada no estruturalismo e no funcionalismo. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 120 A partir da consciência e agência humana, Giddens (1979) diferencia os conceitos de consciência prática - conjunto de conhecimentos tácitos utilizados em práticas sociais, presente no nível do subconsciente e referente a intencionalidade, mas não se revela por meio de práticas discursivas; e de consciência discursiva referente ao conhecimento que os atores podem expressar por meio de discursos. Baseado em Wittgenstein, Giddens (1979, p. 34) escreve "o que não pode ser dito é (...) o que deve ser feito: os significados dos itens lingüísticos são intrinsecamente envolvidos com as práticas que abrangem as formas de vida", diferenciando-se do estruturalismo, para o qual, o tácito é identificado com o inconsciente. As atividades sociais humanas são recursivas, ou seja, elas não são criadas pelos atores sociais, mas são continuamente recriadas por eles. Envolvidos em tais atividades e por meio destas, os agentes reproduzem as condições que tornam as atividades sociais possíveis. No entanto, a ordem recursiva das práticas sociais, torna-se possível por causa da forma reflexiva de conhecimento dos agentes humanos. A continuidade das práticas sociais presume reflexividade, isto é a reflexividade torna-se possível como conseqüência da continuidade das práticas sociais, que se tornam distintivamente "as mesmas" no espaço e tempo (CASSELL, 1993). Assim, a intencionalidade do sujeito crucial para a fenomenologia, elabora-se com base no conceito de monitoramento reflexivo da conduta, de modo a abranger o conceito de consciência prática. Tal concepção considera as razões e intenções iniciadas rotineiramente e cronicamente na atividade social humana. O caráter intencional das ações humanas deve ser visto como um fluxo contínuo e não como um conjunto de estados de consciência que, de alguma forma, acompanham a ação. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 121 Giddens (1984; 1979) enfatiza a importância do ciclo que se estabelece entre as conseqüências não intencionais da ação dos atores - objeto da análise funcionalista e estruturalista - e as intenções da ação humana enfatizadas na filosofia da ação. Ele enfatiza que "a fuga da história das intenções humanas e o retorno das conseqüências desta fuga como influências causais na ação humana são características cruciais da vida social" (GIDDENS, 1979, p. 7). A contribuição de Bourdieu (1972) baseia-se em dois conceitos principais: habitus e campo. Assim como Giddens, Bourdieu oferece uma síntese das perspectivas subjetivista e objetivista, mas, caracteriza-se por uma propensão mais forte, estruturalista e mantêm vários conceitos marxistas na sua análise. Um filósofo de formação, mas convertido às ciências sociais, Bourdieu é influenciado pela tradição fenomenológica-existencialista que dominou o pensamento francês nos anos cinquenta, bem como pela nova corrente estruturalista. Os seus trabalhos de campo e o acesso ao campo teórico da antropologia estrutural lhe permitem re-construir o conceito de habitus, que visa explicar “as relações de afinidade entre as práticas dos agentes e as estruturas objetivas” (PINTO, 2000, p. 38). Bourdieu (1984) considera habitus como um sistema subjetivo, mas não individual de estruturas interiorizadas, esquemas de percepção, de concepção e de ação que são comuns a todos os membros do mesmo grupo ou da mesma classe. Considerando que: Habitus, uma relação objetiva entre duas objetividades, torna possível uma ligação inteligível e necessária a ser estabelecida entre as práticas e situação, o significado da qual é produzido pelo habitus por meio das categorias de percepção e apreciação que são, em si, produtos de uma condição social observável (Op. cit., p. 101). Ou seja, segundo Bourdieu o habitus é o conceito chave para a síntese subjetividade-objetividade, uma vez que este deve ser compreendido como uma Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 122 gramática gerativa de práticas conforme as estruturas objetivas de que é produto. O habitus não só interioriza o exterior, mas também exterioriza o interior. Tais estruturas interiorizadas, incorporadas pelos agentes sob a forma de um senso prático que facilita a orientação nos domínios concernentes das existências sociais, apresentam quatro dimensões principais: disposicional, distribucional, econômica e categórica que se fazem presentes de forma associada no trabalho empírico (PINTO, Op. cit.). As condições de existência objetivamente classificáveis e a posição na estrutura das condições de existência geram o habitus: estrutura estruturante, que organiza práticas e percepções das práticas, mas também estrutura estruturada, considerando que o princípio de divisão em classes lógicas, o qual organiza a percepção do mundo social é, em si, produto da internalização da divisão social em classes. Por meio de pesquisas empíricas, Bourdieu (1984) conclui que a aquisição dos habitus não é um processo de aprendizagem mecânica. Todas as sociedades prevêem formas de transmissão de práticas que, embora sob a forma de espontaneidade, apresentam exercícios estruturais, tais como os encontrados na pesquisa empírica na sociedade kabila: a observação silenciosa das reuniões de homens, a participação quotidiana na troca de presentes, comunicações léxicas e gramáticas, relações mãe-pai etc. Estudando a condição de classe e o condicionamento social, Bourdieu alerta que indivíduos agrupados em classes trazem com eles, além das propriedades pertinentes com base na qual se classificam, outras propriedades secundárias, às vezes ocultadas nos modelos aleatórios. A classe social não é definida por uma propriedade, nem por uma coleção de propriedades, nem por uma cadeia de propriedades que partem de uma propriedade central numa relação causa-efeito, condicionante-condicionado; mas pela estrutura das relações entre todas as propriedades pertinentes, estrutura esta que dá seu Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 123 valor específico a cada uma destas propriedades e aos efeitos que estas últimas exercem nas práticas. Quebrando com o pensamento linear, Bourdieu (Op. cit.) aconselha a reconstrução de redes de relações interligadas que são presentes em cada um dos fatores. Paralelamente, ele reconhece que, de um lado, os agentes não são completamente definidos pelas propriedades, eles possuem num dado momento, cujas condições de aquisição persistem nos habitus; de outro lado, a relação entre a posição social inicial e atual é uma relação estatística de uma intensidade muito variável. Segundo Pinto (2000) ao aproximar o possível e o provável, a esperança subjetiva e a probabilidade objetiva, mediante a noção de habitus, Bourdieu modifica a perspectiva fenomenológica-existencial. A ambição teórica de superação da alternativa entre o subjetivismo (a fenomenologia) e o objetivismo (o estruturalismo) encontra um dos seus meios privilegiados de realização no binômio habitus-campo (PINTO, 2000). Por campo, Bourdieu (1984) entende espaços estruturados de posições que podem ser analisadas independentemente das características dos seus ocupantes. Existem leis gerais dos campos, embora estes possam ser tão diferentes entre si como o campo da filosofia, da política, da religião etc. Toda vez que se analisa um novo campo, serão descobertas propriedades específicas, mas, ao mesmo tempo, serão reconhecidos mecanismos universais. Todo campo pode ser definido em função de jogos e interesses específicos e próprios, irreduzíveis aos jogos e interesses de outros campos. Sua estrutura é um estado de relação de forças entre agentes ou instituições engajadas na luta, ou, se preferível, na distribuição do capital específico, o qual, acumulado no curso das lutas anteriores, orienta as estratégias ulteriores (BOURDIEU, Op. cit.). Bourdieu (Op. cit.) insiste que o princípio das estratégias presentes nos campos (filosóficos, literários e outros) não é o cálculo cínico, a busca consciente da Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 124 maximização do ganho, mas uma relação inconsciente entre um habitus e um campo. O habitus, sistema de disposições adquiridas por meio da aprendizagem implícita ou explícita, funciona como um sistema de esquemas geradores de estratégias que possam ser objetivamente conformados aos interesses objetivos dos seus atores, criticando a visão utilitarista nas ciências sociais. A perspectiva teórica de Bourdieu caracteriza-se por um considerável grau de determinismo, expresso, talvez com maior força, na busca de homologias entre diferentes campos. Bourdieu não nega a ambição de construir uma teoria unificadora. Os esquemas geradores do habitus são aplicados, por meio de transferência, à grande maioria das áreas de práticas. As estruturas de oposição nestas diferentes áreas de práticas são homólogas entre si, uma vez que elas são homólogas à estrutura de oposições objetivas entre condições de classes. Com uma linguagem próxima à física, Bourdieu (1988, p. 109) destaca: os indivíduos não se movimentam no espaço social de uma maneira randômica, isto, devido em parte ao fato de que eles se sujeitam a forças que estruturam este espaço social e, em parte, porque eles resistem às forças do campo com sua inércia específica, isto é, suas propriedades, que podem existir em formas corporificadas, como disposições, ou em formas objetivadas, como bens, qualificações etc. O presente tópico fez uso das construções de dois sociólogos – Giddens e Bourdieu - para pontuar a contribuição recente da sociologia no que concerne a questão da subjetividade e da objetividade tendo como propósito apontar as perspectivas recentes e considerar as possibilidades de entendimento e interação dessas duas dimensões da realidade. Pretendeu-se a partir dessas perspectivas contemporâneas efetuar a discussão como se estabelecem semelhante discussão e uso dessas dimensões nos estudos organizacionais. Cabe considerar que aa escolha de Giddens e Bourdieu se deu a proximidade existente entre suas posições e as considerações de estudiosos no âmbito da gestão organizacional, além da preocupação dos mesmos como a Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 125 superação da crise fruto do uso das perspectivas funcionalista e marxista para entendimento da realidade. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 126 PARTE II ESTÉTICA E CONHECIMENTO HUMANO Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 127 CAPÍTULO IV ESTÉTICA Todos os símbolos são belos, ricos e significativos, porquanto refletem a beleza, riqueza e significação absolutas. A Arca O capítulo 4 foi desenvolvido com o propósito de resgatar as diferentes possibilidades de considerar a Estética frente ao conhecimento humano, seja por perspectivas objetivistas como subjetivistas, seja como conhecimento crítico, conhecimento sensível, seja enquanto filosofia, ciência, forma de saber, conhecimento intencional. A finalidade foi aproximar, a partir de um conjunto de contribuições teóricofilosóficas, a Estética, enquanto dimensão filosófica, do conhecimento humano e, assim, ampliar a percepção e reflexão acerca do cotidiano humano e organizacional, objeto de consideração por parte da tese. A estrutura do capítulo, no que concerne aos tópicos, busca entabular diferentes perspectivas de definição, análise e construção do conhecimento estético. Teve-se a preocupação de carrear as reflexões de modo a considerar a Estética não apenas enquanto uma dimensão subjetiva, mas também enquanto possibilidade de análise enquanto uma dimensão objetiva. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 128 Para a Estética e a compreensão do seu objeto de estudo, cabe esclarecer o significado de termos fundamentais como “belo”, estético e “arte”, que entram, reiteradamente, ao longo de sua história, em sua definição. Cabe reconhecer, preliminarmente, que existe um mundo específico de relações humanas com a realidade e, portanto, um tipo de objeto, processos e atos humanos que reclamam, justamente por sua especificidade, um estudo particular, acerca do papel da Estética. Embora no pensamento ocidental encontrem-se reflexões estéticas já há vinte e cinco séculos, enquanto disciplina - como saber autônomo e sistemático - a Estética tem apenas dois séculos e meio de existência, se tomar como ponto de partida a publicação da Aesthetica de Baumgarten nos anos de 1750-1758. Contudo, desde o alvorecer da filosofia na Grécia antiga até nossos dias, rara é a doutrina filosófica que não dedique certo espaço aos problemas estéticos. E em nossa época, ainda que a Estética se conceba predominantemente como uma disciplina filosófica, ganha corpo e empenho fazendo dela uma ciência, seja como teoria geral da arte ou como uma ciência particular, empírica. Nos tópicos seguintes busca-se delimitar o objeto de estudo da Estética. 4.1 ESTÉTICA COMO FILOSOFIA DO BELO A concepção mais venerável da Estética filosófica, neste ponto, é a que coloca o belo no centro de suas reflexões. Mas, como já reconhecia Platão (1966) em Hipias maior, “o belo é difícil”, e o é, sobretudo, ao se guinar, como faz ele, não “o que é belo, mas sim o que é o belo”. Assim, ao definir a Estética como filosofia ou ciência do belo, a dificuldade consiste exatamente em definir o conceito. Para Platão (1966), o belo é o belo em si, perfeito, absoluto e atemporal. Tal concepção não é mais que a aplicação de sua doutrina metafísica das idéias. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 129 A beleza é apenas uma idéia e como tal existe, com uma realidade suprasensível, independente das coisas belas, empíricas, sensíveis, que só são belas enquanto participam da idéia. A beleza, diz também Platão (1966, p. 68), em O banquete, “existe por si mesma, uniforme sempre e tal como o são as demais coisas belas, porque participam de sua beleza, e embora elas nasçam ou pereçam, ela não perde ou ganha nada, nem se altera”. Quanto ao conteúdo do belo, Platão (Op. cit.) insiste, sobretudo em uma expressão tomada emprestada dos pitagóricos, quando diz em O sofista: “Nada que seja belo o é sem proporção”. Aristóteles (1995) contrapõe a tese do belo em coisas empíricas, mas, seguindo seu mestre, reconhece entre os componentes reais da beleza a proporção das partes. A esses componentes agrega os de simetria e extensão e, em relação a eles, os de ordem e limite. De Platão e Aristóteles deriva a teoria geral, em que se centram as concepções estéticas posteriores e que, com diferentes modulações, se estenderão até o século XVIII. Segundo Bosanquet (1949) a Estética cristã e medieval (com Santo Agostinho, Hugo de São Vítor, Alberto Magno e Tomás de Aquino) insistirá em que a beleza é medida e forma, ordem e proporção. E no Renascimento tornará seu, mesmo assim, o conceito clássico de beleza ao defini-la como “consonância e integração mútua das partes”. Todavia, nos séculos XVII e parte do XVIII, continuará imperando essa teoria clássica do belo, compartilhando assim mesmo o objetivismo que a caracteriza a partir de um princípio: o belo como qualidade das coisas, da realidade (ideal ou empírica), independentemente da relação que os homens mantenham com aquelas. Ainda tendo como referência Bosanquet (Op. cit.) percebe-se que nos tempos modernos, particularmente desde o século XVIII, a ação do belo como eixo da Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 130 reflexão estética se desloca do objeto para o sujeito. Ao longo daquele século, os ingleses Hutcheson, Hume, Burke e Adam Smith acentuaram a dimensão subjetiva do belo. A beleza, afirma Hutcheson (1996), não é uma qualidade objetiva das coisas, mas sim uma percepção da mente. Hume (1965) insiste em que a beleza só existe na mente daquele que a contempla. Posteriormente encontra-se o elemento subjetivo do belo como atributo da “natureza humana” na Estética da Ilustração, ou como produto da consciência do homem, no sentido idealista transcendental de Kant. O belo em todas essas concepções não estaria no objeto, que só por isso e não por si mesmo seria considerado belo. As posições objetivista e subjetivista povoam a história do pensamento estético quase ao longo de 22 séculos. Pretendeu-se superá-las em diversos momentos dessa história, e especialmente em nossa época, como uma relação peculiar entre sujeito e objeto. Verifica-se que em todas as doutrinas assinaladas e, qualquer que seja o modo, é concebido - em um sentido ideal ou real, objetivo ou subjetivo, à margem do homem ou em sua relação peculiar com a realidade – o belo como algo que está no centro das reflexões estéticas. E, uma vez que os objetos ou a relação com eles só interessam esteticamente por sua beleza inerente, ou pelo sentido do belo que despertam nos sujeitos que os contemplam, a Estética, que estuda esses objetos ou as atitudes em relação a eles, se define como ciência do belo. E, enquanto se ocupa da arte, esta é para ela a bela arte ou a atividade humana produtora de beleza. Tem-se, pois, a Estética como ciência do belo. As dificuldades desta definição derivam exatamente do lugar central que nela ocupa o belo. Fora dela resta o que não se encontra nas coisas belas: não só sua antítese - o feio -, mas também o trágico, o cômico, o grotesco, o monstruoso, o gracioso etc; ou seja, tudo que, mesmo não sendo belo, não deixa de ser estético. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 131 É evidente que se pode entrar em uma relação estética com os objetos em que se dão esses aspectos, embora não sejam os próprios do belo; e, mesmo assim, é evidente que, com relação a eles, adota-se um comportamento específico em cada caso, que não se identifica com o que mostramos ante os objetos belos. Por outro lado, se fixa a atenção no belo tal como o encontramos no Parthenon de Atenas ou na Gioconda de Leonardo da Vinci, em um retrato de David, em um quarteto de Vivaldi ou em uma sinfonia de Mozart, ou seja, o belo em sentido clássico, não poderia fazer entrar nesse conceito o quadro de Goya; Saturno devorando seus filhos, O boi esfolado de Rembrandt. Portanto, se é válido afirmar que todo o belo é estético, nem todo estético é belo. A esfera do estético é mais ampla que a do belo. Por sua vez, na arte não pode reduzir-se versão clássica, embora esta tenha dominado a cena artística no Ocidente durante mais de vinte séculos. Mas, se assim é, o belo não pode constituir o conceito central na definição da Estética, já que esta ficaria limitada ao excluir de seu objeto de estudo o estético não-belo; ou insuficiente ao considerar o belo em uma única forma rica, determinada, de arte: o clássico. Por outro lado quando se concebe o belo do modo idealista, metafísico, isso a acatar as premissas correspondentes: o reino das idéias em Platão (1966), o absoluto em Schelling (1978) ou a idéia absoluta em HEGEL (1975). Mas então a Estética se transforma em um apêndice ou ilustração da metafísica. De modo semelhante, quando se faz do belo um produto de nossa consciência, seja no sentido transcendental de Kant (2002), seja no psicológico da teoria da Einfühlung10, a Estética passa a ser um ramo da filosofia idealista subjetiva ou capítulo da psicologia. Finalmente, às dificuldades que apresenta a introdução do belo como conceito central na definição da Estética, é preciso juntar as que suscitam a própria prática artística. Embora seja certo que durante séculos a beleza predominou na Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 132 criação artística, nem sempre foi assim na história da arte. Em suma, se a Estética não pode deixar de levar em conta a história real e se outros valores estéticos desalojam o do belo, também não pode fazer deste o seu objeto central. Em conseqüência, hoje menos do que nunca, quando a arte e os artistas a jogam fora após cultuá-la durante séculos, a Estética não pode se definir como a ciência do belo. Neste primeiro tópico buscou-se efetuar um retrospecto histórico acerca da evolução da Estética e as diferentes conceituações assumidas ao longo dos séculos, evidenciando as dificuldades para apontar o que é a Estética e o que ele busca desbastar. Os tópicos subseqüentes permitem o delineamento da Estética sob a ótica da filosofia, ciência, dentre outras referências. 4.2 ESTÉTICA COMO FILOSOFIA DA ARTE Soa estranho considerar a Estética enquanto uma forma de conhecimento, portanto, esse é um bom ponto de partida no resgate do valor e contribuição da Estética, seja contemporaneamente, seja na evolução humana. Para tanto, apontam-se algumas questões que possam nortear as reflexões preliminares acerca da contribuição da Estética sobre tal perspectiva. Cabe então, indagar: a) sendo a Estética um tipo de saber, que saber é esse? b) que relação pode ser estabelecida entre a Estética e a Filosofia, entre Estética e as Ciências? c) que métodos podem ser apontados enquanto adequados à Estética? Sobre estas indagações pretende-se inicialmente considerar o valor e contribuição da Estética, assim como sua interface com outros ramos do saber. 10 “empatia” ou “projeção sentimental”. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 133 Algumas dessas indagações estão associadas e articuladas aos tópicos antecedentes e que passam a ser desenvolvidos. Ao considerar historicamente a evolução das reflexões sobre a Estética verifica-se que as reflexões que predominam nesse campo têm um caráter filosófico; e que também, como tais, sua atenção se concentra em fenômenos artísticos como manifestações de um princípio supremo: metafísico, ontológico ou antropológico (a idéia, o ser, Deus, o homem e a consciência humana). Tal saber estético, que exerce um domínio não compartilhado desde o alvorecer da história da filosofia na Grécia até nosso tempo, pode ser exemplificado com algumas das estéticas metafísicas ou especulativas contemporâneas. Maritain (1970) ao definir o belo como “esplendor da forma” ou “de todos transcendentais reunidos”, não faz mais que transportar para o âmbito do sensível os princípios básicos de sua filosofia. E quando vê, na arte e, particularmente, na poesia, a beleza, como seu correlato necessário, atende mais ao princípio metafísico do belo que ao status real, histórico, da arte. Algo semelhante tem-se na Estética, que, atendo-se à fenomenologia husserliana, busca na consciência a essência do objeto estético como objeto intencional e imanente a ela. Quando Heidegger (1971) transita da fenomenologia à ontologia fundamental, e dela à análise existencial do ente, o “ser-aí” ou existente humano que se pergunta pelo ser, a problemática estética fica ancorada em sua analítica existencial e ontológica. Com uma nova roupagem, reaparecem aqui as velhas teses metafísicas de “a beleza como manifestação da verdade” ou do belo como “esplendor do ser”. Heidegger (Op. cit.) ao concentrar sua atenção na arte e, mais especialmente, na poesia, e ao afirmar que o caráter privilegiado da poesia insiste em que o ser tem a sua morada na linguagem, não excede o plano especulativo tradicional. Ao proclamar, como teses fundamentais, a objetividade natural do estético ou a arte como reflexo da realidade, não faz senão aplicar seu princípio ontológico, Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 134 como primado do ser, e o gnoseológico do conhecimento, como reflexo, ao campo do estético e do artístico. Ao concentrar sua atenção no realismo como forma histórica da arte - uma forma que, em definitivo, se deduz de ambos os princípios filosóficos -, semelhante estética realista, dá as costas à rica, dinâmica e complexa experiência estética e prática artística, que não se encaixa nesses moldes ontológico e gnoseológico. 4.3 ESTÉTICA ENQUANTO CIÊNCIA DA ARTE As dificuldades apontadas levam a Estética a deslocar da beleza para a arte o conceito central de sua definição, de modo que, a Estética se transforma então na filosofia da arte. As razões de tal mudança e as limitações inerentes à mesma serão objeto de consideração no presente tópico. O estético ou o belo deixa de interessar como problema especial ou exclusivo e a atenção se concentra ali onde um e outro acontecem: na arte. Dessa forma a Estética passa a ser vista como uma filosofia ou teoria da arte. Em favor dessa concepção atua o papel privilegiado que, desde o Renascimento, foi atribuído à arte no universo estético. Na verdade, só a partir de então começa a ser considerada por seu significado propriamente estético. Ou seja, como uma região própria, auto-suficiente, e não por seus serviços aos poderosos do céu ou da terra. Em outros tempos as estátuas góticas, por exemplo, eram vistas, antes de tudo, como meios para invocar uma divindade; não eram vistas como “obras de arte”. Portanto, para que a arte fosse reconhecida como uma atividade humana autônoma era preciso que se reconhecesse no homem a capacidade criadora que antes só era atribuída a Deus. E é o que acontece, no Renascimento, na sociedade burguesa que começa a ganhar forma nas repúblicas italianas do século XV, como a de Florença. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 135 O artista, com sua personalidade própria, original e criadora, começa a adquirir desde então verdadeira carta de cidadania e a distinguir-se do artesanato. Tudo isso é inseparável do humanismo burguês, renascentista, que afirma a autonomia do homem ante Deus e a natureza. O artista conquista, por sua vez, a autonomia, na medida em que esta obtém seu reconhecimento entre as artes liberais e se distingue das artes mecânicas, manuais ou servis. Os artistas afirmam, assim, sua diferença em relação aos artesãos. E exatamente no mesmo século em que se reconhece a autonomia da arte como arte bela e em que se distingue como tal do artesanato, dos ofícios, que nasce também, em meados do século XVIII, com Alexander Gottlieb Baumgarten (17141762), a Estética como disciplina filosófica autônoma. E, em concordância com tudo isso, na medida em que se eleva não só sua autonomia, mas sua importância no universo estético, a arte passa a ocupar o lugar central. Ao trocar a posição social e cultural da arte e adquirir cada vez mais – desde o Renascimento até nossa época – uma posição central, às vezes exclusiva no universo estético, aponta-se para a tendência de fazer da Estética uma filosofia ou teoria que coloca a arte no centro da sua reflexão. Não pode deixar de ser reconhecido que este enfoque teórico da Estética resulta mais fecundo do que o das tradicionais filosofias do belo, que relegavam a arte a um lugar inferior. Assim, para Platão (1966) a beleza artística estava por baixo da beleza suprema, ideal. As obras dos pintores e escultores eram para ele imitações de imitações (das coisas reais que, por sua vez, eram cópias das idéias). Para Santo Agostinho (1990; 1999) existe uma arte suprema: o divino, do qual é obra a natureza; o humano só atua com as formas cujo modelo toma de Deus. Por outro lado, continuando a tradição grega que será impugnada no Renascimento, sublinha o caráter servil da arte humana por utilizar-se - como o trabalho físico - da Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 136 matéria. A contribuição da filosofia da arte está em ter centrado sua atenção nela, respondendo ao papel privilegiado que tem no Ocidente desde o Renascimento. Portanto, embora para a Estética a arte seja um objeto de estudo fundamental, não pode ser exclusivo. Por mais importante que seja para ela, é apenas uma forma do comportamento estético do homem. A importância que a arte alcança na relação estética do homem com o mundo é um fenômeno histórico: surge e se desenvolve no Ocidente a partir dos tempos modernos. Considere-se que a relação estética, como forma específica da apropriação humana do mundo, não se dá apenas na arte e na recepção de seus produtos, mas também na contemplação da natureza, assim como no comportamento humano com objetos produzidos com uma finalidade prático-utilitária. Percebe-se que a definição da Estética como filosofia da arte é, pois, duplamente limitativa: não só restringe o campo do estético ao artístico, como também o da arte com outras atividades humanas (moral, filosofia, política, economia etc.), assim como a vinculação de todo o campo artístico (não só sua produção como também sua distribuição e consumo) com a sociedade em que ocorre e com as diversas relações sociais que a condicionam. Nessa concepção, a arte aparece dotada de uma essência estética que corresponde, por sua vez, a uma essência abstrata e imutável do homem. Por outro lado, essa essência estética costuma identificar-se com o belo, entendido, além disso, como o belo clássico. Desse modo, os produtos artísticos de outras sociedades, não ocidentais e não submetidas aos cânones classicistas, dificilmente podem chamar a atenção de tal filosofia da arte. Em suma, trata-se de uma teoria limitada diante da amplitude do universo estético, e unilateral, dada à complexidade e a historicidade. As considerações efetuadas neste tópico procuram evidenciar o Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 137 deslocamento ocorrido, em que, a Estética passa a estar mais associada à arte e não mais à beleza, ainda que a beleza esteja inserida no contexto da arte. Buscouse considerar tal perspectiva, historicamente pontuada, para, ao final, apontar a limitação inerente a tal concepção de Estética enquanto filosofia da arte. 4.4 ESTÉTICA ENQUANTO FORMA DE SABER Identifica-se ao longo do desenvolvimento da Estética uma tentativa de associação da mesma com as ciências, gerando inúmeras teorias. Sobre tais tentativas o presente tópico será desenvolvido. Por mais estranho que possa parecer a Estética busca uma articulação com as ciências e nessa trajetória ela – Estética – mantém a arte como objeto de suas reflexões, mas tenta lidar com a sua complexidade e historicidade. Assim, tem-se no século XX a elaboração de teorias, envolvendo a Estética que se agrupam sob a denominação comum de “ciência da arte”. O que diferencia essas teorias do visto no tópico anterior, onde é efetuada a reflexão da Estética enquanto filosofia da arte não é tanto o seu objeto, já que é o mesmo – a arte –, mas sim, o modo de concebê-lo. Já não se vê, a Estética, por um único lado, o estético, mas sim em todos os seus aspectos e relações. O ponto central dessa concepção é a distinção entre estético e artístico. Estético é o que pode suscitar uma percepção desinteressada; o artístico compreende os valores diversos que se revelam na obra de arte, compreendendo também o valor estético. Graças a tal distinção, que tem origem na perspectiva kantiana, onde a ciência da arte pode considerar uma obra artística determinada ou a arte de diferentes épocas ou povos, levando em conta seus valores não exatamente estéticos, mas também, além dos valores religiosos, morais, racionais ou sociais. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 138 A concepção de Estética envolvendo a arte, desse modo, se liberta assim de sua submissão à beleza e, mais exatamente da beleza clássica. Com isso, a ciência da arte se afasta, ao que parece, das estéticas tradicionais que se reduzem à estética da arte clássica. Ao mesmo tempo, as investigações impulsionadas por essa ciência podem se estender a manifestações artísticas afastadas do ideal clássico, e tido por muitos como um afronta à verdadeira arte. A distinção entre o estético e o artístico vai proporcionar o desdobramento em duas disciplinas independentes que dividem um e outro âmbito de estudo: a Estética e a ciência da arte. Com base nessa distinção, a ciência da arte considera a artística não só pelo seu lado estético, mas como um todo que inclui valores extra-estéticos. Isso constitui uma contribuição importante em relação às estéticas tradicionais e, em particular, às de cunho clássico, interessadas exclusivamente no momento estético. Ao contrário delas, a ciência da arte leva em conta as manifestações artísticas de outros povos e de outros tempos, ignoradas por tais estéticas. Mas, junto a essa contribuição inegável, a distinção entre estético e artístico peça fundamental da ciência da arte - apresenta dois tipos de questões: uma, sobre a natureza dos termos postos em relação, e outra, sobre a própria relação. O estético é concebido em definitivo como o belo, e esse conceito, por sua vez, é definido à maneira clássica, com o qual se incorre no mesmo erro frente às doutrinas tradicionais que se criticam. Por isso, ao ser inaplicável o seu conceito do estético, as manifestações artísticas não-clássicas separam a arte da beleza ou do estético em sentido estrito. Quanto à relação entre o estético e o extra-estético, embora a ciência da arte chame legitimamente a atenção sobre os valores extra-estéticos incorporados à obra artística, não acerta em estabelecer uma relação intrínseca entre os dois aspectos. O estético e o extra-estético se apresentam melhor como extremos ou em justaposição. Essa vinculação, assim como a existente entre o estético e o artístico, não Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 139 exclui sua distinção, já que o estético não se esgota na arte: também ocorre na natureza, nos objetos técnicos e produtos utilitários. Por conseguinte, a arte não se esgota no estético, já que tem de contar com o que se incorpora a ela do extraestético. Percebe-se que a busca por distinguir o estético do artístico não justifica, pois, a distinção radical de Estética e ciência da arte, já que o artístico não pode prescindir do valor estético. A função estética é sempre indispensável na arte, inclusive mesmo que esta possa assumir outros valores e cumprir outras funções. Das considerações efetuadas cabe refletir sobre a necessidade de ao caracterizar a Estética enquanto campo do saber considerar aspectos que possibilitem a distinção do estético do artístico; o resgate do seu significado original de sensível (aisthesis); a extensão do conceito de estético a todos os objetos, processos e atos que considere não só do estético, mas também o extra-estético na arte. Dando ao estético o seu significado original de qualidade sensível, embora sem reduzi-lo a ela, e utilizando o termo para designar um universo com múltiplas áreas a que pertence a arte, a Estética enquanto ciência da arte caracteriza, assim mesmo, com esse conceito, um comportamento específico com a realidade. Certamente os objetos dessa relação, assim como o comportamento em relação a eles apresenta aspectos específicos que os distinguem de outros objetos e comportamentos humanos. Considerando a Estética enquanto teoria geral de tudo aquilo que se classifica de estético, tem-se uma área especial de conhecimento - a teoria da arte - que se justifica pela preeminência já assinalada de seu objeto no universo estético. Mas a arte não é considerada aqui exclusivamente como costumam fazer as filosofias da arte, por seu lado estético e identificado tradicionalmente com o belo, tampouco pelo artístico separado do estético – como defende a ciência da arte, mas se ocupa dela em toda a sua complexidade, presa esta a um modo peculiar de inter- Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 140 relacionar o estético e o extra-estético, ou seja, a Estética possibilita, vislumbra, aponta para uma perspectiva global, total, integral, sistêmica. A Estética se ocupa também do estético não-artístico, ou seja, de uma ampla esfera de objetos elaborados pelo homem – produtos artesanais, artefatos mecânicos técnicos, artigos industriais ou usuais da vida cotidiana – que, se reagem bem a uma finalidade extra-estética, também têm o seu lado estético. Assim aponta-se neste tópico uma concepção de Estética, considerando-a como uma ciência de um modo específico de apropriação da realidade, vinculado a outros modos de apropriação humana do mundo e com as condições históricas, sociais e culturais em que ocorre, não mais, circunscrita a uma concepção artística. 4.5 ESTÉTICA ENQUANTO CIÊNCIA A Estética assume também o caráter de ciência na medida em que busca descrever e explicar seu objeto próprio: certa relação com o mundo, assim como a práxis artística em cujos produtos se objetiva essa relação. Ocupa-se, pois, de certos fatos, processos, atos ou objetos que só existem pelo e para o homem, e que justamente por isso se consideram valiosos ou portadores de um poder especial: o estético. Por essa dimensão axiológica de seu objeto, a Estética se distingue das ciências naturais, embora sua atenção possa coincidir com elas em um mesmo objeto: a natureza. Mas o belo natural que interessa à Estética não é o natural que existe em si, antes ou independentemente do homem, justamente o que interessa às ciências naturais, mas sim a natureza que se constitui esteticamente por ele. Como toda ciência, a Estética aspira a produção de um conhecimento objetivo. Portanto, levando-se em conta a dimensão humana, social e axiológica de seu objeto, trata-se de um conhecimento do que é - em um contexto social Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 141 determinado - valioso esteticamente. O objetivo aqui é o humano, social; por isso, longe de excluir o ingrediente axiológico, o inclui necessariamente. A Estética é, pois, ciência de uma realidade peculiar – as experiências estéticas e as práticas artísticas – em toda a sua diversidade e desenvolvimento histórico. E como essa realidade faz parte de seu componente axiológico, cabe-lhe explicar como e por que os valores estéticos se integram a ela. Assim, a Estética explica esses valores, não os institui ou prescreve; não os propõe nem dita normas para sua realização. Como demonstra a história do pensamento estético, os conceitos fechados acerca do estético – a arte, a estrutura da obra artística, as relações entre a arte e a moral ou entre a arte e a política - limitam ou anulam a possibilidade de captar os fenômenos estéticos e artísticos em toda a sua diversidade e complexidade. A Estética deve estar sempre aberta, não apenas para enriquecer conceitos já estabelecidos, mas também para introduzir os novos que respondem a uma nova relação estética com a realidade. De tudo que foi dito antes, se deduz que não se pode aceitar os conceitos eurocentrista ou clássicos que deixam fora da arte o que ocorreu artisticamente em outros tempos ou outras culturas. Da mesma maneira, a Estética não pode fechar os olhos às práticas estéticas de nosso tempo que dinamitaram o terreno em que se assentava a Estética tradicional. Aceitar nas investigações estéticas os conceitos abertos é uma exigência científica, mas é também uma opção ideológica. Certamente aferrar-se a um conceito fechado da arte, como o que prevaleceu nos últimos séculos no pensamento estético ocidental, não é apenas um erro científico, como também uma posição ideológica. Mas uma concepção romântica, também conspira para um caráter científico da Estética, em virtude da qual tanto o objeto quanto o comportamento estético seriam totalmente opacos ao tratamento lógico-racional característico de toda Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 142 ciência. Quando se afirma isso parte-se, em primeiro lugar, do pressuposto da inconceitualidade do estético. Claro que a Estética não pode predizer, por exemplo, os limites e a composição mutante do universo estético, as formas que adotará a prática estética ou os ideais, valores ou normas que presidirão a percepção e recepção do estético. No campo - o da prática estética e artística - a predição se torna impossível, pelo menos com o rigor, a objetividade, o fundamento com que fazem as ciências naturais. Portanto, o que se desprende desse império do imprevisível, do incerto e do inesperado é a necessidade de não converter as experiências estéticas ou artísticas conhecidas em ideais ou modelos do que ainda não pode ser conhecido. Ou seja: converter o que foi ou é no que há de ser. O que vão ser no futuro o estético e o artístico dependerão das condições sociais nas quais irão germinar os valores, ideais e concepções que impregnarão as experiências estéticas e artísticas correspondentes. E como essas condições não são rigorosamente previsíveis, tampouco o são o universo estético e a arte que nelas germinarão. Em consequência, não cabe à Estética como ciência de um objeto realmente existente, fundar por antecipação ou instaurar o que, esteticamente, ainda não existe. Mas pode-se explicar racionalmente o que existiu no passado ou existe atualmente neste campo. E essa é de fato a sua tarefa como ciência: construir o objeto teórico adequado ao seu objeto real. Como toda ciência, a Estética tem um objeto de estudo próprio. Ao delimitá-lo, justifica sua existência como disciplina especial. Mas isso não significa que por si só, com uns recursos conceituais e metodológicos possa cultivar sua área específica de investigação. Claro que embora seu objeto de estudo – seja de caráter complexo e multifacetado – possa interessar a diferentes ciências, isso não põe em questão a necessidade de abordar os específicos que, integrados num todo, cabe à Estética estudar. O estético e o artístico surgem e se desenvolvem historicamente, e tanto Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 143 em sua origem quanto em sua natureza se encontram condicionados socialmente. A Estética necessita, por isso, apoiar-se em uma teoria geral da história e da sociedade que permita situar histórica e socialmente a Estética e delinear o lugar da arte dentro do todo social, assim como seus laços com outras atividades humanas. As investigações estéticas não podem se reduzir às sociológicas quando se abordam problemas como os da criação, valor estético, gosto, percepção etc. As diversas posições da arte dentro do todo social exigem que ao tentar explicá-las, aproveitem as abordagens de diferentes sociais. Assim, por exemplo, o status econômico que adquire a arte na sociedade moderna, capitalista, ao transformar-se em mercadoria, obriga a Estética a fixar a atenção tanto na economia como na política e na ciência enquanto relações de produção, põe a descoberto o tecido mercantil em que se insere a obra artística. O lugar que ocupa a arte dentro da superestrutura ideológica e as diversas funções que executa nos aparelhos ideológicos do Estado determinam que a Estética não possa prescindir da teoria das ideologias, esta oferece certas chaves conceituais indispensáveis para entender as relações entre arte e ideologia. Embora seja indispensável que a Estética se apóie nas contribuições da psicologia ao estudar o aspecto subjetivo, individual, da relação estética, isso não significa que se reduza a uma “psicologia da arte”. Ao reduzir o estético a uma só dimensão - a psíquica -, esse psicologismo leva a cabo uma operação unilateral semelhante à da sociologia, que reduz a complexidade do estético à dimensão social. Algo análogo pode ser afirmado também quanto à vinculação da Estética à psicanálise. Assim, levando em conta os riscos - para não incorrer neles - de uma vinculação redutiva e unilateral, a Estética pode beneficiar-se das contribuições da psicanálise ao ajustar, com sua ajuda, o papel das motivações inconscientes ao processo criador, assim como à formação da personalidade do artista. A gênese da relação estética do homem com o mundo e a artística, junto com Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 144 a aparição de uma consciência proto-estética, pode ser rastreada nas sociedades mais primitivas ou pré-históricas de acordo com os estudos antropológicos autorizados. Desse modo verifica-se aí a importância da vinculação da Estética à antropologia, particularmente à antropologia social ou cultural. Na explicação da arte como meio de comunicação, de linguagem específica, a Estética recorre às ciências que se ocupam dos processos comunicativos. Entre elas tem-se a lingüística, como ciência que se ocupa do sistema básico de comunicação, a linguagem verbal. Recorre assim também à semiótica, cujo objeto de estudo são os sistemas de símbolos construídos sobre a base da linguagem natural. As conquistas dessa ciência se tornam indispensáveis para a Estética na medida em que as artes - e não só as verbais - podem ser consideradas como sistemas de símbolos. Considere-se ainda que a Estética se beneficia também da teoria da informação, ciência que se ocupa da informação contida em uma mensagem transmitida para um emissor a um receptor, por intermédio do canal correspondente, e um sistema de comunicação determinado. Este enfoque propiciou a estética informacional fundada por Moles (1958) e Bense (1971), na qual a obra de arte é concebida como uma mensagem que transmite uma informação específica ou estética. As contribuições dessas ciências são fecundas para a Estética, atentando para que esta não se deixe deslumbrar por suas conquistas impressionantes, nem se transforme numa simples aplicação ou extensão delas. Portanto, se ao apoiar-se nessas ciências, concentrar sua atenção nos problemas específicos que a arte propõe como linguagem, sistema de símbolos ou em que transmite uma informação específica, restará um amplo terreno para a Estética. Desse modo, sem deixar de reconhecer a contribuição de tais ciências para o esclarecimento de aspectos e funções importantes da arte e da Estética, assim como, para a análise da estrutura interna da obra artística, a Estética não poderá Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 145 esquecer que dado o seu sentido social, o exame de tais aspectos e funções da arte, assim como de tal estrutura interna, não se deve esgotar nos enfoques lingüístico, semiótico ou informático. Com a articulação entre a Estética e o artístico, com diferentes ciências, observa-se que, diferente da concepção fragmentada de ciência e do conhecimento, a Estética admite e assume as diferentes contribuições de diferentes ciências, as complementações de percepções, onde o homem é o centro. Essa perspectiva de considerar a presença da Estética no cotidiano humano e sua articulação - da Estética - com diferentes ciências será reforçada no tópico seguinte, considerando então uma perspectiva ampla, envolvendo o conhecimento humano. 4.6 ESTÉTICA COMO CONHECIMENTO INTENCIONAL Segundo Croce (1997), pode existir uma experiência cognitiva, a qual prescinde completamente da distinção entre verdadeiro e falso: e essa é a intuição estética. Segundo o filósofo alemão Edmund Husserl (1859-1938), tal experiência cognitiva não só é possível, como constitui a característica essencial do conhecimento filosófico, o qual é radicalmente diferente do saber das ciências naturais e da psicologia. Cabe considerar que a fenomenologia volta-separa o descrever o fenômeno e não de explicar, isto é, deixar que o sentido se aproxime e não reduzi-lo a causas ou funções, sejam elas psicológicas ou outras. Ainda acerca da descrição deve insistir que essa descrição é uma escuta, pois o fenomenólogo cala-se diante daquilo que fala por si mesmo. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 146 Com efeito, a filosofia, para Husserl (2000), constitui-se como “ciência rigorosa” através de uma “epoché fenomenológica” que prescinde da existência das coisas do mundo, e até mesmo da existência do mundo na sua complexidade. Para Husserl (Op. cit.) só é possível alcançar as essências das coisas mediante uma “intuição eidética” que coloca entre parênteses a sua existência, assim como exclui qualquer aspecto psicológico. Considera ainda que a característica do conhecimento filosófico é exatamente a sua “intencionalidade”, isto é, a referência a um objeto diverso do sujeito conhecente. Não se pode deixar de assinalar as afinidades existentes entre a teoria husserliana do conhecimento e o caráter que toda uma tradição de pensamento (desde Kant) atribuiu à experiência estética, ou seja, o ato que coloca fora do circuito a realidade do mundo na “epoché fenomenológica” assemelha-se ao “desinteresse” atribuído por Kant (1989) ao juízo estético, ou à contemplação estética de SCHOPENHAUER (1969). O próprio Husserl (2000) se deu conta destas afinidades: por mais que a questão estética se tenha mantido substancialmente estranha aos seus interesses, ele releva, numa carta de 1907, a profunda concordância entre o método fenomenológico e a intuição estética. Ambos exigem uma tomada de posição essencialmente divergente da “natural”: a obra de arte está nos antípodas de qualquer afirmação existencial, bem como de qualquer sentir ou querer qualquer coisa de real. A atividade do artista é semelhante à do fenomenólogo, não à do psicólogo ou do antropólogo afinal para a arte como para a filosofia, a realidade do mundo é indiferente. Elas não aceitam qualquer existência como “pré-dada”: para ambas, aquilo que conta é a evidência, isto é, o manifestar-se e o apresentar-se à consciência o objeto na sua essência. Mas permanece uma diferença entre o filósofo e o artista: enquanto o primeiro alcança o sentido do fenômeno através dos conceitos, o segundo tende a apropriar- Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 147 se dele intuitivamente. O problema estético encontra-se, no fato de que as “essências” se transformam nas “qualidades metafísicas” da experiência. Na vida comum, estas se apresentam numa medida mínima, onde só a arte pode dar a serena contemplação delas. Na arte, as qualidades metafísicas não se apresentam realizadas, mas concretizadas e reveladas. Após haver excluído as acepções mais comuns nas quais esta expressão pode ser entendida (verdade de fato, verdade ilustrativa, coerência objetiva), Baumgarten (1993) acaba por afirmar que a verdade da arte consiste na “concatenação essencial levada à auto-apresentação intuitiva”. Entretanto de que maneira o emergir de uma dimensão auto-representativa se concilia com o cavalo de batalha do método fenomenológico, a intencionalidade, que é o exato contrário de qualquer auto-referência? Há que distinguir entre “qualidades metafísicas” e obra de arte. Esta última não é de modo nenhum uma entidade ontologicamente autônoma, à qual possa competir a plenitude da autonomia que é a auto-referenciação. Baumgarten (Op. cit.) procura, sobretudo, sublinhar o caráter heterônomo e intencional da obra literária, a qual é uma entidade complexa, polifônica, articulada em quatro estratos heterogêneos (formações lingüísticas vocais, unidade de significado, múltiplas visões esquematizadas e objetividades representadas). Daí deriva que o estatuto ontológico da arte é, por assim dizer, intermédio entre realidade e idealidade. A estratégia intelectual perseguida por Baumgarten (Op. cit.) tem uma dupla orientação. Por um lado, ela pretende separar claramente a arte do dado naturalista e psicológico: a experiência estética implica a existência de uma distância relativamente aos dados de fato; por exemplo, as proposições enunciativas existentes na obra literária possuem um caráter quase-avaliativo. Por outro lado, todavia, Baumgarten (1993) não pensa em identificar a arte Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 148 com a essência, ele pretende manter a obra ancorada em fenômenos aparentemente exteriores e extrínsecos, como é o caso do estrato vocal-linguístico; aqueles são considerados elementos não elimináveis da obra e impedem a sua transposição para contextos puramente ideais e não intencionais11. A arte não tem nada a ver com o conhecimento; ela é simplesmente objeto de uma ciência da qual nem o artista nem o fluidor têm qualquer necessidade; e essa ciência é a Estética. Mas o dado real é algo imprescindível para a experiência estética e é ele que a fundamenta enquanto tal, distinguindo-a da filosofia. Uma teoria que negue o aspecto sensível da arte, considerando-a como uma forma de conhecimento, ignoralhe a essência. É este o fundo da obra de arte, que é tão objetivo como o primeiro plano, mas, diferentemente deste, não é real, pode-se defini-lo recorrendo à “imaginação”, mas este termo corre o risco de ser entendido de um modo demasiado subjetivo. A obra de arte é exuberante relativamente aos materiais de que é feita, como também ela é destacada e suspensa relativamente à efetividade: sendo a sua desrealização um dos seus aspectos essenciais. O ponto de chegada da estética fenomenológica parece então ser uma espécie de ontologia da obra de arte, que pensa a experiência estética sob a noção de aparição, um estatuto a meio caminho entre o real e o possível, mas nem por isso transcendente e supra-mundano. 4.7 ESTÉTICA COMO CONHECIMENTO CRÍTICO Segundo Adorno (1982) a filosofia de Hegel representou a mais importante 11 A arte é considerada por Baumgarten (1961; 1993) como toda atividade cultural, de cunho religioso ou profano que produz coisas reconhecidas como belas por um grupo ou por uma sociedade. Considera, ainda que a arte sempre recorre a uma técnica e seu fim é o de elaborar uma certa estruturação do mundo, mas criando o belo. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 149 tentativa para a compreensão do heterogêneo, aquilo que é outro relativamente ao pensamento, o não idêntico, numa palavra: o negativo. Assim, é possível radicalizar o aspecto crítico da filosofia hegeliana, sem cair na tentação de superar a contradição numa totalidade autônoma, auto-suficiente e auto-referencial. É efetivamente este o objetivo da dialética negativa, a qual considera o conceitual como o motor da história e se esforça por pensar através de conceitos que não violentem a sua heterogeneidade. Neste sentido, desaparece completamente a possibilidade de uma base filosófica da realidade, bem como a de um sistema, que - tal como o de Hegel (1996) ou o de Croce (1997) - identifique um certo número de formas do espírito que sejam ao mesmo tempo determinações da realidade. Todavia, não diferentemente de Croce (Op. cit.), Adorno (1982) defende que seja a filosofia, e não a ciência, a manter uma relação essencial com o conhecimento da verdade. É certo que esta já não pode ser pensada como qualquer coisa de fixo, de estável, de inalterável. A verdade, tal como a filosofia, é, para Adorno, qualquer coisa de extremamente frágil, que exige o exercício de uma contínua atividade crítica, atenta à transformação e à radical alteração das coisas no seu contrário, segundo aquele movimento de enantiodromia, do qual Hegel (Op. cit.) foi um atento observador. A busca da verdade é um objetivo iniludível do pensamento: a proposta de abolir a filosofia na práxis deve ser considerada com suspeição na medida em que, fundamentalmente, esconde o propósito de omitir a crítica da sociedade, da qual o pensamento filosófico é, por excelência, o portador. Também para Adorno (1982) a arte é conhecimento: todos os problemas estéticos se resolvem em questões que giram em torno do conteúdo de verdade das obras de arte. Todavia, não é por isso que a Estética se deve transformar no asilo da ontologia, como ocorre na fenomenologia e na hermenêutica. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 150 A verdade é que não só à filosofia, mas também à arte é essencial a relação com o seu contrário, com o heterogêneo, que se acolhe no próprio interior de si mesma, como uma dúvida sobre a sua própria legitimidade, como presença de exigências que não podem ser satisfeitas artisticamente. Erram grosseiramente aqueles que fazem uma idéia edulcorada e sublimada da experiência artística. A verdade da obra de arte é o seu núcleo duro, que é freqüentemente impuro, escandaloso e, enfim, incompreensível. A obra de arte apresenta aspectos contraditórios os quais é ingenuidade pretender superar com uma visão harmônica e pacificada. Uma das maiores contradições emerge da oposição entre o seu caráter de “feitiço” e a dimensão de “apparition” assumida pelo belo12 artístico. Com efeito, se por um lado a obra de arte se coloca como coisa entre as coisas, por outro ela manifesta-se como a velocidade e a imaterialidade de um relâmpago. Adorno (Op. cit.) fornece análises muito agudas e penetrantes sobre estes dois caracteres. Antes de tudo, considera não haver necessidade de se considerar o feiticismo como sinônimo de falsidade. Para ele, quem vê na “coisa” algo de radicalmente falso é prisioneiro de uma lógica da identidade que o priva do conhecimento do heterogêneo, do negativo, daquilo que é outro relativamente ao pensamento; e assim permanece excluído de qualquer consideração dialética da realidade. O fenômeno da reificação não é unicamente a sujeição do homem à lógica do capitalismo; o qual obriga também a um confronto com o real, ao qual o subjetivismo idealista se subtrai. Os poetas têm falado muitas vezes da bela estranheza do mundo exterior, e o seu amor pelas coisas leva-nos a refletir sobre a ligação essencial entre arte e feiticismo. 12 No campo da estética, diz-se belo de tudo aquilo que, como tal, suscita um prazer desinteressado produzido pela contemplação e pela administração de um ser ou de um objeto. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 151 Adorno (1982) chega a defender que a qualidade e até mesmo a verdade das obras de arte dependem essencialmente do grau do seu feiticismo, no sentido em que a celebração implícita no seu estatuto de coisas distintas dos objetos úteis de garante uma completa liberdade, emancipando-as de qualquer relação com o mero entretenimento; paradoxalmente, é efetivamente o feiticismo que preserva a sua seriedade. Com efeito, este feiticismo representa relativamente uma exceção ao estatuto dos bens materiais e está ligado ao caráter dos objetos mágicos, do mesmo modo que a produção artística não é comparável às condições do trabalho economicamente útil. Mas a arte contém igualmente um aspecto contrário à reificação, que a torna semelhante a um relâmpago, a um fogo de artifício, a uma manifestação celeste: é aquilo que Adorno entende pelo termo “apparition”. O artista não tem consciência efetivamente deste paradoxo, já que a arte não é transparente para si mesma. Por isso ela solicita a intervenção da filosofia. Para Adorno (1982), a experiência estética genuína deve transformar-se em filosofia, ou então não existe. Sob este aspecto, Adorno encontra-se muito mais perto de Hegel (1996) do que de Croce (1997). Ainda segundo Adorno (Op. cit.), o conteúdo acerca da verdade de uma obra necessita da filosofia, particularmente quando a crítica de arte falhou clamorosamente o seu objetivo. Todavia, não é necessário esquecer o caráter essencialmente crítico e interrogativo que Adorno atribui à filosofia, pelo que continua a não ser possível decidir entre a arte e a filosofia, qual mantém a mais estreita relação com a verdade. Se a filosofia pronunciasse o necrológio da arte, ela passaria para o lado da barbárie; mas se se contentasse com a interpretação das obras de arte disponíveis, não entraria em relação com aquela dimensão outra e heterogênea com a qual toda a verdadeira obra de arte constantemente se confronta. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 152 Não diversamente de Husserl (2000), Merleau-Ponty (2001) tem uma atitude crítica perante o saber científico, ao qual censura um operativismo sem escrúpulos, totalmente desprovido de interesse perante a verdade da experiência humana individual e coletiva. Segundo ele, a ciência é um saber carente de profundidade, que paira sobre as coisas sem conseguir alcançar a sua essência. Mas Merleau-Ponty (Op. cit.) não partilha a fé de Husserl (Op. cit.) numa filosofia entendida como conhecimento rigoroso. Para ele, o saber, ou antes, o não saber filosófico não consiste num conjunto orgânico de conhecimentos adquirido, representante de um patrimônio estável. A filosofia não pode ser nada mais do que exercício da crítica, atividade de pesquisa estranha a qualquer dogmatismo, posição de uma verdade provisória e momentânea. Mas existe um âmbito sobre o qual o olhar do filósofo se tem detido demasiado pouco: o da corporeidade, entendida como sentir, como experiência do irrefletido, do primordial, daquilo que precede o conceito. Neste aspecto, a filosofia assemelha-se à arte: o conhecimento do sensível, da não razão, e dos estados que antecedem a distinção entre sujeito e objeto constituem um território ainda muito pouco explorado. Entre arte e filosofia estabelece-se uma relação quase concorrencial que elimina a Estética. De fato, tanto a primeira como a segunda tem uma relação de tipo cognitivo que se orienta diretamente para a “própria coisa”, para a experiência. A filosofia, ainda que entre com a maior humildade na escola da arte, tem sobre esta uma vantagem, a de tornar conscientes e comunicáveis experiências que, de outro modo, permaneceriam mudas e obscuras, sepultadas na carne do mundo. Ao buscar estabelecer a articulação entre a Estética e o conhecimento verdadeiro há um nítido propósito de evidenciar as articulações existentes entre a filosofia e a Estética, quer sob o viés da hermenêutica, da ontologia, além de considerar a complementação de tais perspectivas, de modo a permitir a consideração das evidências acerca da contribuição da Estética enquanto forma de Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 153 conhecimento. 4.8 UTILIDADE DA ESTÉTICA Ao questionar quanto à utilidade da Estética, reconhece-se, preliminarmente, a existência de um conjunto de objetos aos quais atribuíram-se certas qualidades específicas e a que se denomina, justamente porque seus objetos as possuem, de universo estético. Nesse universo, incluíram-se tanto seres naturais (uma paisagem, uma flor, um animal), ou seja, seres que não devem a sua existência ao homem - quanto objetos artificiais, produzidos pelo trabalho humano, entre os quais figuram objetos usuais da vida cotidiana, produtos artesanais ou industriais e, mesmo, os produtos humanos que se chamam obras de arte, que, em nossa época, ocupam um lugar privilegiado dentro do rico e variado universo estético. Todos os membros deste universo, por mais que se diferenciem entre si devido à sua aparência sensível, estrutura interna ou função e finalidade, têm algo em comum, que é o que justifica, a partir de nossa perspectiva contemporânea, sua inclusão no universo estético. É preciso reconhecer que nem todos os objetos que hoje admitimos como legítimos povoadores desse universo foram sempre reconhecidos como tais. Isso nos obriga a ser cautelosos em relação a sua filiação estética futura, evitando afirmar que todos eles, no futuro, continuarão fazendo parte desse universo. Mas hoje se reconhece que existe algo assim como um universo estético e, com ele, um modo de apropriação, contemplação ou complemento humano específico ante seus objetos. Por outro lado, reflete-se que um ou outro não são estudados em suas especificidades por nenhuma das ciências específicas existentes, até agora, desse Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 154 modo pode ser concluído que se faz necessária uma ciência especial que se ocupe desses objetos e do comportamento humano em relação a eles, assim como das condições individuais e sociais em que ocorrem tais objetos e esse comportamento. E essa ciência é exatamente a Estética. Como toda ciência que versa sobre feitos, experiências ou relações empíricas, ela tem um objeto próprio de estudo, diferente daqueles de outras ciências específicas e, como todas elas, aspira a considerar seu objeto de um modo sistemático, fundamentado e racional. A realidade peculiar e o comportamento humano específico que constituem o objeto da Estética não podem ser separados do todo em que se integram outras realidades e outros comportamentos humanos. Daí não poder desvincular-se das ciências - como a psicologia, a economia, a sociologia, a linguística, a semiologia, a teoria da informação etc. - que estudam realidades e relações entre os homens que influem estético ou condicionam sua existência. Mas isso não anula a necessidade da Estética como ciência especial e autônoma. E é válido, inclusive quando ela se ocupa de objetos ou fenômenos estudados também por outras ciências humanas ou sociais. Naturalmente, ao fazêlo, não se limitará a repetir que, graças a elas, já se sabe acerca de seu objeto; a não ser que o faça de outro ângulo ou prestando atenção a aspectos irrelevantes ou ignorados deliberadamente por tais ciências. Assim, por exemplo, ainda que as diferentes ciências naturais dividam o conhecimento acerca da natureza, nenhuma delas aceita o que o homem vê nela, como o “belo natural” ou “natureza estetizada”. Em suma, se faz necessária uma disciplina particular e autônoma, que se encarregue de todo esse terreno não cultivado ou cultivado de outras maneiras por outras ciências. E essa disciplina é justamente a Estética. Embora já na Antiguidade grega encontremos reflexões sobre problemas Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 155 estéticos (desde os filósofos pré-socráticos do século VI antes da nossa era), a Estética, como ramo do saber ou disciplina filosófica especial, é relativamente jovem. Nasce em meados do século XVIII, quando o filósofo alemão Alexander Baumgarten constrói a primeira teoria estética sistemática a que dá, também pela primeira vez, o nome de Estética13. Em consonância com o significado original do termo, Baumgarten (1993) entende por Estética uma teoria do saber sensível ou conhecimento inferior em relação ao saber racional, superior, que é objeto da teoria das ações da vontade, objeto da ética. Nasce, pois, a Estética como uma disciplina filosófica, destinada a uma forma de conhecimento obscuro, inferior, e não um tipo específico do real; ou seja, nasce sem fundamento empírico, histórico e, portanto, com uma esmagadora carga especulativa. No entanto, já no seu próprio nascimento, se destaca algo que até hoje conserva sua validade, mais além de seus limites especulativos: sua atenção ao sensível. Posteriormente se abrem à Estética caminhos diversos que vão desde à reafirmação e alcance de seu fardo especulativo original, intenção de se constituir em uma disciplina científica autônoma. A quem ainda questiona o valor da Estética pode-se responder que esse saber não é um conjunto de regras a que devam submeter à contemplação ou à produção artística. Portanto, tudo que a Estética puder dizer a ele não substituirá de modo algum o trato direto, concreto e sensível com a obra artística, se é que deseja apropriar-se dela como um todo e não se contenta com uma radiografia da arte. Nenhum princípio estético e nenhuma crítica de um quadro, por exemplo, Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 156 podem liberar da necessidade de contemplá-lo. Assim, vive-se sob a influência de determinada ideologia estética; ou seja, de um conjunto de valores, normas e apreciações que assume, de um modo passivo e não-crítico. A teoria estética pode servir-lhe, então, para dissipar a névoa que a ideologia estende sobre as funções da arte, do papel do artista, das relações entre a arte e a sociedade, entre a obra artística e o mercado etc. 4.9 DIMENSÃO OBJETIVA E SUBJETIVA DA ESTÉTICA Se o estético é uma propriedade ou modo de ser peculiar que o sujeito percebe em certo objeto, cabe indagar de onde provém essa propriedade? Qual é sua fonte? Tais indagações podem ser respondidas sob a ótica de três vertentes fundamentais. São elas: a do objetivismo; a do subjetivismo; e uma terceira que tenta mediar, superando as limitações, uma e outra. Cabe então esclarecer os princípios básicos de uma e outra vertente na disputa sobre a fonte da qualidade “Estética” em sentido amplo. É sobre tais perspectivas que o presente tópico será desenvolvido. 4.9.1 Objetivismo Estético Todo objetivismo concebe o objeto como o que existe em si e por si, à margem de qualquer relação com o sujeito, seja qual for essa relação com o sujeito. O objeto passa a ser então o exterior, independente ou em contraposição ao sujeito. Segundo o tipo de realidade - ideal ou material, espiritual ou natural - atribuída ao pode falar-se no terreno do estético tanto de objetivismo idealista, quanto de objetivismo naturalista, materialista. 13 Do grego aisthesis, que significa literalmente “sensação”, “percepção sensível”. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 157 O objetivismo idealista pode ser exemplificado com Platão (1966) na Antiguidade grega. De acordo com seu dualismo metafísico (mundo das idéias/mundo sensível), as coisas belas empíricas são apenas manifestações ou sombras da beleza ideal que - como toda idéia - é única, absoluta, perfeita, eterna e imutável. Por muito belas que sejam as coisas sensíveis - diversas, relativas, imperfeitas, mutantes e perecíveis - nunca poderão igualar-se com a beleza ideal que compartilham os atributos mencionados de toda idéia. Sua beleza é, pois, inferior em relação à beleza suprema que em si e por si, independentemente de que os homens a percebam ou não. Portanto, se a beleza ideal não precisa das coisas belas para existir, estas sim, necessitam dela, já que são tais enquanto participam da beleza. A beleza é objetiva em um sentido absoluto, já que não depende das coisas empíricas nem dos homens. Existe em si e por si, à margem de toda relação humana com ela ou com as coisas nas quais se encarna. Essa concepção objetivista impregna a Estética cristã medieval, que vê na beleza um atributo do ser supremo, pois, definitivamente, toda beleza terrena deriva de Deus . No Renascimento predomina também a objetivista, já que a beleza se encontra na natureza das coisas enquanto ocorre nelas um acordo ou harmonia das partes. Não importa qual seja seu último fundamento, sempre se trata de uma beleza objetiva. E assim se apresenta no Renascimento ou quando Hegel (1996) a concebe, já no século XIX, como “manifestação sensível da idéia”. Em todos esses casos a beleza é uma qualidade objetiva, independente do homem, embora definitivamente dependente de um princípio supremo, ideal ou espiritual. Tal é o objetivismo estético idealista. O objetivismo naturalista ou materialista considera que o estético ocorre na Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 158 natureza ou nas coisas empíricas, independentemente de toda relação do homem com elas. Sua objetividade é, pois, natural, material ou humana. A esse objetivismo se pode aplicar a caracterização que Marx faz do materialismo metafísico em suas Teses sobre Feuerbach (LABICA, 1988, p. 33), quando diz: “A falha fundamental de todo o materialismo reside em que só capta o objeto, a realidade, o sensível, sob a forma de objeto ou de contemplação, não como atividade humana sensível, como prática; não de um modo subjetivo”. O objeto é concebido, portanto como algo em si e por si, exterior ou contraposto ao sujeito, sem relação alguma com o homem. E assim o concebe o objetivismo estético de símbolo naturalista ou materialista. Os antecedentes dessa concepção Estética já são encontrados na Antiguidade grega desde os pitagóricos, para os quais a beleza é a propriedade do universo e das coisas. Ou, de acordo com sua formulação, “a ordem e a proporção são belas e úteis”. Já Aristóteles (1995, p. 73) dirá: “uma coisa bela (...) há só uma disposição ordenada de partes, mas também um tamanho que não é casual”. Aqui se fala, pois, da beleza das coisas como uma propriedade que ocorre nelas, independentemente do homem que a descobre ou percebe, mas não a produz ou cria. Mais tarde, o estóico Marco Aurélio (1997, p. 75) ressalta essa objetividade ao afirmar: “Tudo que é belo de qualquer modo que seja, é belo em si mesmo, e nenhum elogio ou reprovação pode modificá-lo. (...) A beleza (...) não necessita de admiradores; nada exige fora de si mesma”. Os materialistas metafísicos, citados por Marx em sua primeira tese sobre Feuerbach, são unânimes em afirmar que certas qualidades objetivas são em si mesmas suficientes para despertar a experiência estética. Um representante típico dessa posição, no século XVIII, é Diderot (1981), segundo ele, o que se percebe como belo existe independentemente de ser percebido ou não. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 159 Segundo Guinsburg (2000) uma coisa é bela por certas relações reais que nossa mente descobre nela com a ajuda de nossos sentidos. E como essas relações existem objetivamente, a beleza inerente a elas, também, é objetiva. Em conseqüência, a fonte do estético tem que ser buscada em certas relações objetivas. O sujeito se limita a percebê-las e, portanto, só lhe cabe descobrir o que existe à margem de sua relação com ele. A identificação das propriedades estéticas com certas qualidades objetivas é própria de todo materialismo metafísico ou vulgar, que, por sua vez, pode ser considerado naturalismo, enquanto concebe essas qualidades como puramente naturais. Portanto, não só os materialistas metafísicos, criticados na tese de Marx citada antes, caem nesse naturalismo estético, mas também os “materialistas dialéticos” que admitem apenas a objetividade natural do estético. Entre as propriedades naturais do estético estariam a simetria, a proporção, a harmonia, o ritmo etc. O objetivismo estético, que busca a fonte do estético em certas qualidades das coisas ou da natureza, se estendeu também, ao longo da história da arte. Desde a Antiguidade grega até nossa época, passando pelo Renascimento, tentou-se descobrir a chave da esteticidade em certas estruturas formais, associadas a determinadas fórmulas matemáticas. Com relação ao objetivismo estético que baseia o estético em certas estruturas formais, associadas a determinadas relações matemáticas, assim como, ao que o procura em certas propriedades naturais - simetria, harmonia, proporção, ritmo -, cabe observar que a presença dessas proporções matemáticas ou dessas qualidades naturais não basta para que os objetos em que ocorrem adquiram um valor estético. A harmonia, por exemplo, não é garantia de esteticidade - como demonstra o fato de que há objetos que são considerados belos sem que sejam harmônicos, ou, o contrário, que sendo harmônicos não são belos. E quando a harmonia torna Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 160 necessária, exige-se que esse elemento formal seja significativo, o qual só pode ser em um objeto que existe não em si, mas como objeto humano ou humanizado. Quanto ao princípio da “seção de ouro”, seja certamente aplicável, também é certo que se trata então de um princípio que não se reduz a uma dimensão puramente objetiva, mas que cobra uma dimensão ideal, sobrenatural. O objetivismo estético, liberto dos ingredientes matemáticos, adota um matiz especial quando a esteticidade do objeto se deixa descansar na organização formal de seus elementos ou meios materiais, sensíveis. O objetivismo aqui dá as mãos a um formalismo externo, já que o estético valioso se reduz a certa organização ou relação formal. 4.9.2 Subjetivismo Estético Frente à pretensão objetivista de separar o estético do sujeito, o subjetivismo absolutiza o papel da subjetividade, deixando de lado as qualidades e os fatores objetivos que intervêm na relação estética. Historicamente, o pensamento estético ocidental gira, até o século XX em torno do objeto, embora não faltem posições subjetivistas nos séculos anteriores e, inclusive, na Antiguidade grega. Para os sofistas, por exemplo, o homem era a medida de todas as coisas e, portanto, também da beleza. Contudo, é preciso esperar cerca de vinte séculos para que a atenção dos empiristas ingleses seja considerada através da dimensão subjetiva do estético. Mais que à qualidade, ou conjunto de qualidades, do objeto que se considera belo, atende-se então à faculdade humana - o sentimento - que faz sentir as coisas como belas. Transpõe-se fonte do estético do objeto ao sujeito. Hutcheson (1996) representa claramente essa reviravolta em relação ao Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 161 objetivismo. E o representa ao reduzir o estético à percepção do sujeito: “A beleza denota realmente a percepção de uma mente”. Hume (1965, p. 39) salienta a mesma idéia ao negar que o belo seja uma qualidade objetiva e só a descobre no sujeito, em sua mente: “A beleza não é nenhuma qualidade das coisas em si mesmas. Existe na mente que as contempla, e cada mente percebe uma beleza diferente”. O subjetivismo, com esses dois aspectos constantes em suas múltiplas formas - negação das qualidades objetivas e absolutização do papel do sujeito - é encontrado em diferentes teorias estéticas do século XX. Segundo elas, o objeto estético carece de realidade própria e é apenas uma projeção dos sentimentos do sujeito que o contempla. Dentro do âmbito subjetivista se movem também, em nossa época, outras teorias que continuam a tradição empirista inglesa. A chave da explicação do valor está no interesse do sujeito e não nas qualidades do objeto. Não é sublime em si; necessita do sujeito que a considere como tal. Mas não significa que basta a intervenção necessária do sujeito para que este considere objeto sublime. Algo precisa ocorrer nele para que, ao contrário de outros objetos, provoque no sujeito o sentimento da sublimidade. Por outro lado, no caso particular do interesse estético, não se trata - como já tivemos ocasião de assinalar - de um interesse prévio, aplicável a qualquer objeto; mas sim de um interesse que surge e se mantém na relação do sujeito com ele, e justamente quando possui certas qualidades que o tornam possível. O subjetivismo estético se mantém sem rodeios ante as posições neopositivistas de Ayer (1991) ao afirmar que no juízo estético não se enuncia nada sobre o objeto nem sobre o sujeito, mas se expressa puro e simplesmente um estado de ânimo do sujeito. Quando se declara que tal flor é bela, ou que aquela catarata é sublime, não se diz nada acerca de um ou outro objeto; registra-se simplesmente que o sujeito Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 162 experimenta o estado de ânimo expressado no juízo estético correspondente. Tratase de uma questão empírica, de fato, mas, só e exclusivamente, no que tange ao sujeito, no que diz respeito a seus sentimentos ou estado de ânimo. 4.9.3 Dimensões Objetivas e Subjetivas em Interação Tanto o objetivismo quanto o subjetivismo têm sua parcela de verdade ao reagirem frente à posição contrária, mas erram ao tentar consertá-las. O objetivismo acerta ao ressaltar a objetividade do estético, mas segue um caminho errado ao concebê-la como uma objetividade em si, à margem da relação com o homem. O subjetivismo, por sua vez, acerta ao assinalar o papel do sujeito, mas perde o rumo ao absolutizar este e desconhecer as qualidades objetivas que não se reduzem às naturais ou sensíveis de um objeto em si. Ambas as posições incorrem no mesmo erro: separar o que só existe em relação mútua e, uma vez separados os seus termos - sujeito e objeto -, concebê-los de um modo abstrato e absoluto. Portanto, sujeito e objeto não só existem, em geral, em relação mútua, mas sim, em uma relação histórica, concreta, o que impede falar de um ou outro em termos gerais, abstratos, imutáveis. O caráter histórico-concreto dessa relação pode ser comprovado aduzindo-se simplesmente que nem sempre existiu e nem sempre se deu da mesma forma, pelo menos com a forma específica que alcança tal relação a partir dos tempos modernos. Não existia, certamente, com sua autonomia e peculiaridade, nas sociedades pré-histórica, medieval ou pré-hispânica, embora nela ocorram os objetos mágicos, religiosos ou míticos com os quais mantemos uma relação estética. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 163 Esses objetos já existiam para os homens de seu tempo, enquanto satisfaziam determinadas necessidades e cumpriam funções correspondentes mágica, religiosa ou mítica -, mas não existiam esteticamente, ou seja, cumprindo uma função estética específica ou dominante. Os objetos de outros tempos com que hoje mantemos relação estética tinham certamente determinadas qualidades materiais ou físicas que, para os homens das sociedades correspondentes, se convertiam em propriedades mágicas, religiosas ou míticas, mas não em propriedades estéticas. Não que os homens dessas sociedades - caçadores pré-históricos, fiéis medievais ou adoradores astecas - estivessem cegos para elas. Só se está cego, em geral, para o que, podendo ser visto, não se vê. Mas, nos exemplos citados, o sentido da visão não estava formado ou constituído para poder ver, como objetos estéticos, a pintura mural, o altar da igreja ou a deusa de pedra. Para que o homem se situe, diante de certos objetos, na relação estética adequada, exige-se todo um longo processo no tempo, no decorrer do qual vão se criando as condições necessárias para que surja e desenvolva, com sua autonomia e especificidade, a relação estética. Condição fundamental é a material, produtiva, do homem. Este, ao afirmar com seu trabalho o seu domínio sobre a natureza e a capacidade de imprimir aos materiais a forma adequada, produz, assim, objetos que satisfaçam determinadas necessidades vitais e eleva sua capacidade de criar objetos que, por sua forma, já não cumprem funções imperiosas, vitais, mas também a função espiritual que se chama de Estética. A característica fundamental do trabalho humano - imprimir a uma matéria a forma adequada a sua função - é mantida na prática estética. Aqui também se trata de dar uma matéria sensível, só que neste caso se trata da forma necessária para que o objeto cumpra a função própria, específica, que chamamos Estética. As condições que tornam possível a relação estética não se reduzem ao desenvolvimento da produção material, ao incremento do domínio do homem sobre Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 164 a natureza. Já ao nível do trabalho, esse domínio requer, mesmo uma elevação cada vez maior das capacidades humanas físicas e espirituais para exercê-lo. E daí que certa divisão social do trabalho como sua especialização e profissionalização se faz necessária para que se possa produzir (pelos especialistas ou profissionais, ou artistas) os objetos da relação estética, ou obras de arte, como específica e autônoma. Em suma, como relação do sujeito com objetos, a relação não pode ser separada das condições sociais em que tais objetos se produzem, distribuem e consomem, tampouco de certas condições espirituais, culturais ou ideológicas sem as quais não poderiam ocorrer como objetos estéticos. Exige-se a existência determinada superestrutura ideológica da sociedade; quer dizer, conjunto de idéias, crenças, normas ou valores (ou ideologia estética) que justifique e guie o comportamento estético dos homens (como um comportamento diferente de outros: moral, religioso, político etc), assim como das instituições - escolas, mercado, academias etc - correspondentes. Semelhante ideologia estética não existe mesmo quando impera a magia, o mito ou a religião – impérios diversos que só serão derrubados em tempos modernos. Essa ideologia estética, que justifica um comportamento estético específico e autônomo, só surgirá e se desenvolverá nesses tempos para se afirmar sobretudo no século XIX e XX, justificando exatamente a produção e o consumo de um objeto específico, estético (o artístico), digno de ser contemplado por sua forma. O subjetivismo, na verdade, dá ao sujeito um lugar fixo. Imutável, ao atribuirlhe uma capacidade ou sensibilidade estética que corresponde a sua natureza humana. Tal é o sujeito para Kant (1989). Não se trata, evidentemente, de um sujeito empírico, individual, mas sim de um sujeito humano, universal, que possui um Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 165 sentido especial, ou espécie de “senso comum” da beleza ou do gosto, que permite julgar e estimar o belo com uma pretensão de universalidade. Trata-se então de uma capacidade humana universal, não compartilhada por animais. Assim, o estético tem que buscá-la em certo comportamento do sujeito, no qual o sentimento de uma harmonia no jogo das faculdades mentais que só se pode sentir constitui um elemento essencial. O sujeito atribui beleza a um objeto quando este é percebido desinteressadamente, sem uma representação do fim, e como um objeto que produz prazer. Mas, embora não se trate do sujeito empírico, pessoal, o realce é posto, como em todo subjetivismo, na subjetividade, ainda que entendida em um sentido universal e, portanto, antropológico. Consequentemente, a fonte do estético está no homem, em uma capacidade ou sentido especial da beleza, comum a todo o gênero humano e alheia a todo contexto histórico-social concreto. Este “sentido estético” é, definitivamente, um atributo da “natureza humana”, concebida como uma essência permanente e imutável através dos avatares da história real. Assim, quando se afirma, frente a todo subjetivismo que o sujeito possui a capacidade de vincular-se com o objeto, constituindo com ele uma situação que denomina-se de Estética, não se está a referir-se ao sujeito universal, kantiano, que, dada sua natureza humana abstrata, virou as costas à história, à sociedade e, portanto, ao desenvolvimento concreto, real, da experiência estética. Refere-se, ao contrário, a um sujeito concreto, empírico, individual que, por sê-lo, é também social; um sujeito estético que só é tal, histórica e socialmente, e que, por sua vez, só histórica e socialmente, desenvolve prática e concretamente a capacidade humana conquistada. O estético, enquanto categoria geral, caracteriza um tipo de objeto que, por sua forma sensível, possui um significado imanente, que determina, assim mesmo, o comportamento do sujeito que capta, percebe ou contempla esses objetos de acordo Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 166 com sua natureza sensível, formal e significativa. Mas o estético só classifica um e outro (sujeito e objeto) na relação humana, histórica e social, que torna possível sua existência estética, e, na situação concreta, singular, em que essa possibilidade se realiza efetivamente. O presente capítulo foi desenvolvido buscando refletir as diferentes perspectivas, ao considerar a Estética frente ao conhecimento humano, seja com base em perspectivas objetivistas, como subjetivistas, seja como conhecimento verdadeiro, enquanto filosofia, ciência ou forma de saber. Certamente ao refletir sobre a Estética, a partir de um conjunto de contribuições teórico-filosóficas, pode-se considerá-la enquanto dimensão filosófica do conhecimento humano e, assim, ampliar a percepção e reflexão acerca do cotidiano humano e organizacional, objeto de consideração da presente tese. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 167 CAPÍTULO V TRAJETÓRIA HISTÓRICA DA ESTÉTICA O que interessa é a obra e não o obreiro. O que interessa é a realização e não o realizador. A Arca O capítulo 5 foi desenvolvido com o propósito de efetuar um resgate histórico do desenvolvimento da Estética de modo a considerar a sua definição teórica, assim como as diferentes perspectivas assumidas. Considerou-se necessário, dada à identificação de poucos trabalhos acadêmicos envolvendo a Estética no âmbito dos estudos organizacionais, a construção da trajetória histórica inerente à Estética de modo a propiciar a consideração da riqueza, fundamentação e qualidade das construções teóricas envolvendo-a. Dessa maneira, espera-se conduzir a aproximação e consideração da dimensão estética, enquanto uma dimensão inerente à ação humana e, por consequência, do âmbito das organizações produtivas. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 168 O capítulo foi estruturado a partir da definição do termo Estética, para, em seguida, considerá-la na perspectiva do belo; e depois sob a perspectiva do gosto e do sublime; para, finalmente, abordar a Estética na perspectiva do descentramento do belo. 5.1 ESTÉTICA A palavra “Estética” é derivada do grego aisthesis, significando sentir. A raiz grega aisth, no verbo aisthanomai, quer dizer sentir com o coração ou com os sentimentos (BARILLI, 1989). O termo é hoje tão largamente utilizado que pode servir para qualificar tanto as filosofias do belo, quanto a elegância de uma fórmula matemática, os objetos artísticos, um crepúsculo, ou até mesmo as cercanias do mar. Na história da Filosofia, contudo, essa palavra encontrou designações relativamente bem definidas. Como já apontado no capítulo anterior, o primeiro a utilizar a palavra Estética, em um contexto filosófico, foi Baumgarten, em 1735, no texto denominado Reflexões Filosóficas sobre Algumas Questões Pertencentes à Poesia, onde ela foi definida como a ciência da percepção em geral. Na sua obra posterior, Aesthetica, essa ciência da percepção foi tomada como sinônimo de conhecimento através dos sentidos; a “perfeição da cognição sensitiva” que encontra na beleza o seu objeto próprio (COHEN & GUYER 1982). A partir de Baumgarten, a primeira grande obra a dar forma e conteúdo à estética filosófica foi a terceira crítica de Immanuel Kant (1724-1804), a Crítica do Julgamento, de 1790, mais especificamente na sua primeira parte, “Crítica do Julgamento Estético”. Embora não se possa considerar essa terceira crítica isoladamente do contexto geral das outras obras monumentais de Kant, a crítica do julgamento tem Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 169 um certo grau de autonomia, na medida em que circunscreve um conjunto de desafios intelectuais com os quais estamos até hoje fadados a nos defrontar, quando tentamos compreender os problemas relacionados com as regiões mais sensíveis do nosso pensamento, sentimento, discurso e ação. Embora a palavra em si, no contexto filosófico em que ela viria a ser inserida, só tenha aparecido em 1735, as questões relativas à Estética, no Ocidente, tiveram sua origem no mundo grego, mais especialmente no pensamento de Platão (428348), em cuja obra encontra-se a primeira teoria da arte e do belo de que se tem notícia. De fato, foi Platão quem levantou os problemas relativos à criação, para os quais foram dadas as mais diversas interpretações através do tempo e com os quais estão até hoje, tais como a natureza da inspiração, a relação da criação com a emoção, o impacto e efeitos da arte sobre o receptor, as antinomias entre o conhecimento verdadeiro e a ilusão das paixões, as conseqüências do descomedimento e as virtudes da temperança. Se Platão levantou esses problemas, Aristóteles (por volta de 384-322 a.C.) foi o primeiro a lhe dar formalização na sua Poética, obra que, sem margem de erro, pode ser qualificada como a teoria da arte e crítica mais influente em toda a história do Ocidente. Enfim, os problemas estéticos são tão antigos quanto à filosofia, os quais receberam, nos muitos séculos que transcorreram desde Platão até os nossos dias, as mais diversas entonações e interpretações. A presente tese pretende considerar o valor das concepções estéticas para os estudos organizacionais. Assim, a compreensão do desenvolvimento histórico da Estética é essencial para que se possa considerar a possível contribuição da Estética no âmbito das organizações. Portanto, este Capítulo tem por finalidade criar uma moldura histórica relativa às mais conhecidas e influentes teorias estéticas, particularmente, que nasceram no seio da filosofia, no Ocidente, para que se possa refletir acerca da contribuição da Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 170 Estética no desenvolvimento humano e particularmente, nos estudos organizacionais. Diferentes filósofos mencionados ao longo deste Capítulo escreveram copiosamente e foram autores de obras complexas envolvendo a Estética. Não se pode ocultar, assim, o quanto há simplificação em qualquer tratamento de mais de vinte séculos de filosofia em algumas dezenas de páginas. Mas existem momentos em que esquematizações se fazem necessárias. Acreditando que esta parte é um desses momentos, pensa-se, com isso, estar até certo ponto justificada a troca da profundidade de uma visão microscópica e vertical pela simplicidade de uma visão de conjunto ou panorâmica. Numa síntese muito generalizada, pode-se dizer que as estéticas filosóficas do Ocidente passaram, pelo menos, por três fases diferenciais bem demarcadas. A primeira fase compreende desde o nascimento das teorias do belo e do fazer criador nas obras de Platão e Aristóteles, que se estenderam, não obstante as particularidades específicas de cada período histórico, pelo mundo latino, a Idade Média e a Renascença. Já a segunda fase é marcada pelo deslocamento da ênfase da beleza para o sujeito que a percebe, a partir da reação de Anthony Ashley Cooper, Lorde de Shaftesbury (1671-1713), aos avanços das ciências físicas e aos desafios apresentados pelas filosofias de René Descartes (1596-1650) e Thomas Hobbes (1588-1679). Nessa vertente, mais propriamente dentro do espírito empirista de John Locke (1632-1704), tiveram origem às teorias inglesas que, aparecendo pela primeira vez, em 1712, nos escritos de Joseph Addison (1672-1719), receberam desenvolvimentos sistemáticos nas obras de Francis Hutcheson (1694-1740) e David Hume (1711-1776). Exposto às questões emergentes da percepção, do desinteresse, da apreciação, do sublime, e do sensível, especialmente aos apelos do “paradoxo do gosto”, levantados por Hume, Kant veio fazer de sua terceira crítica, a da faculdade Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 171 do juízo ou julgamento, a obra inaugural da idade de ouro da estética, que, estendendo-se pela proeminência do estético dentro do idealismo absoluto de Friedrich W. J. von Schelling (1775-1854), encontrou seu apogeu na Estética de Georg W. F. Hegel (1779-1831). A terceira fase tem por marco inicial o século XIX, com Arthur Schopenhauer (1780-1860), Friedrich Nietzsche (1844-1900) e, no século XX, Martin Heidegger (1889-1976) e as estéticas fenomenológicas. O descentramento da secular preocupação com o belo viria produzir a explosão e atomização cada vez mais crescente da estética em versões particularizadas e diferenciais. Destacam-se as figuras exponenciais e influentes de Benedetto Croce (18661952) e John Dewey (1859-1952), cujas obras deslocaram a questão do belo para os conceitos de “arte como expressão” e “arte como experiência”. A Estética filosófica, propriamente dita, foi cedendo terreno para as incontáveis teorias da arte que foram e continuam sendo desenvolvidas por estudiosos, muitas vezes poetas, como foi o caso dos românticos ingleses e alemães e, depois, dos simbolistas franceses, muito especialmente Paul Valéry (1871-1945), situados mais fora do que dentro da filosofia. Só recentemente, a partir dos anos 80 deste século, os debates sobre a pósmodernidade viriam recolocar as questões estéticas de volta ao centro da cena das artes, cultura e filosofia. São, de fato, inumeráveis as teorias da arte que os dois últimos séculos viram nascer. Na medida em que foi se dando o movimento descendente do ocaso do belo, crescia um movimento contrário, a emergência, por todos os centros e cantos do globo, de teorias da arte, numa quantidade e profusão tais que, qualquer pretensão de descrevê-las, transformou-se numa empreitada talvez impossível. Dickie et al. (1977, p. 160) nos diz que: “em oposição à estética, que é a investigação filosófica da arte e beleza, a teoria da arte investiga as idéias dos artistas, num esforço de explicar a variedade de fenômenos tanto na vida quanto na obra dos artistas”. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 172 Sendo assim, as filosofias da Estética são mais gerais e, portanto, tratam dos problemas específicos e concretos, com os quais as artes lidam, apenas como ilustração ou exemplificação para suas abstrações conceituais. A seguir, descreve-se cada uma das três fases citadas anteriormente. 5.2 O BELO Embora polêmicas e mesmo contraditórias, as idéias sobre a natureza da arte que tiveram seu nascimento na obra de Platão marcaram a história da estética ocidental, mantendo-se vivas até hoje. Note-se, antes de tudo, que a concepção que Platão tinha das artes em nada se assemelha ao modo como passamos a conceber a arte especialmente a partir do Renascimento. As atividades práticas, artesanais e todos os resultados de trabalhos realizados com as mãos eram vistos, pelos gregos, como inferiores, colocados em oposição aos produtos do intelecto, aos frutos do pensamento, de natureza mais nobre e transcendente. De qualquer modo, Platão foi o primeiro a desenvolver uma das artes inseridas no contexto mais amplo de uma filosofia, que reinou soberana por séculos, continuando até hoje para muitos autores. Há dois conceitos básicos em sua teoria: o conceito de mimese14, de um lado, e o do entusiasmo criador, de outro. Interessante observar que, enquanto o primeiro é mais facilmente aplicável às artes visuais, o segundo se aplica mais às artes verbais e à música. As consequências que Platão extraiu de ambos, no entanto, 14 Figura que consiste no uso do discurso direto e principalmente na imitação do gesto, palavra e voz de outro. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 173 foram similares. Existe uma leitura padronizada e simplificadora da teoria platônica que a reduz a oposições binárias muito nítidas e despidas de ambiguidade. Assim sendo, de sua concepção da realidade verdadeira como um universo abstrato e ideal de formas e idéias deriva a concepção da realidade ou aparência sensível como imitação (mimese) ou cópia imperfeita do ideal. A orientação eminentemente visual de seu entendimento da arte, que restringia suas formas de realização basicamente à pintura e escultura, o levou a conceber a arte como imitação da imitação, quer dizer, aparência de segunda ordem e, consequentemente, duplamente afastada do ideal e da verdade. Ora, esse conceito de mimese, por mais que possamos dele discordar, é, sem qualquer sombra de dúvida, um conceito original, o primeiro a detectar e discutir o problema fundamental do qual nenhuma forma de arte pode escapar: o problema da sua duplicidade, que veio receber, ao longo dos séculos, as mais variadas denominações, entre elas representação, expressão, ilusão, semblante, simulação etc., todas elas, no entanto, não passando de deslocamentos ou variações em torno de um mesmo tema, o da mimese, levantado por Platão. O segundo conjunto de questões, mais relativo à arte poética e secundariamente, à música, não chegando propriamente a se constituir num conceito tão redondo quanto o de mimese, deriva das relações da arte com quem a produz e quem a recebe: a inspiração na porta de entrada e o despertar das emoções e paixões na porta de saída da poesia. Alimentado pela positividade do comedimento - virtude dominante na cultura grega -, Platão foi levado a enxergar, como fontes de perigo, de um lado, o toque de loucura, a irracionalidade do entusiasmo presente no talento especial dos poetas, e de outro, as comoções do impacto emocional da arte poética sobre o receptor. Em função disso, a arte verbal foi vista por ele como antagônica às formas de conhecimento, aos raciocínios discursivos propiciados pela filosofia. Em síntese, para Platão, a poesia não produz cognição, estando muito mais Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 174 do lado das pressões irracionais pelas quais o ser humano pode ser subjugado do que das forças do intelecto, só estas capazes de conduzi-lo para a ascese ao mundo das verdades ideais. Se ficarmos presos apenas ao diálogo Íon (Platão, 1966) e ao Livro X da República (Platão, Op. cit.), que são os textos mais citados, quando se discute a teoria da arte de Platão, não podemos escapar de uma visão estritamente dicotômica e negativista da arte e da poesia conforme a que está acima exposta. Quando outros textos platônicos são levados em consideração, especialmente Fedro, o Sofista e o Simpósio (Platão, 1966), contudo, algumas ambigüidades e muitas gradações conceituais começam a emergir juntamente com a mais inspiradora dentre todas as teorias do belo, enfim, quase tudo daquilo que fez de Platão o fundador da estética filosófica e continua a fazer dele uma fonte de consulta imprescindível para a compreensão das grandes questões levantadas pela arte. De acordo com Hofstadter e Kuhns (1976), quatro temas gerais podem ser extraídos dos escritos platônicos sobre as artes: a) a idéia geral de arte, téchne, cujo princípio está na medida; b) os objetivos e deficiências do conceito de mimese; c) o conceito de inspiração, entusiasmo, loucura ou obsessão, como condições necessárias à criação; d) o conceito de loucura erótica e sua conexão com a visão do Belo. A medida é um conceito extensivo em Platão, abraçando os princípios do bem e da beleza. Saber fazer pressupõe o conhecimento dos fins almejados e dos melhores meios para atingi-los. No cerne desse conhecimento está a noção de medida unindo tanto o poeta que sabe que tamanho exato uma fala deve ter e o pintor que sabe em que proporção uma figura deve aparecer, quanto o cidadão que sabe que distribuições Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 175 são apropriadas para as funções na sociedade. Entre as artes, a superior é aquela de um produtor divino, o Demiurgo15, que compôs o universo imitando as idéias, verdadeiras formas imutáveis. Seguindo o Demiurgo, o legislador também concebe a comunidade humana de acordo com as Idéias do Bem, Justiça e da Verdade. Na hierarquia, estão poetas e artistas que visam os ideais, mas, diferentemente do Demiurgo, podem falhar no conhecimento da realidade última, produzindo meras aparências da natureza sensível. Quando o artista, por outro lado, é guiado pela visão da educação que o filósofo possui, sua imitação será verdadeira (eikastika), em oposição à falsa imitação (fantastika), o julgamento do falso e do verdadeiro dependendo das finalidades morais da pólis. Há algo no fazer artístico que transcende as regras do saber fazer, algo que vai além da téchne. A inspiração. O poeta traz em si o sopro do divino. Nessa medida, a concepção platônica da loucura não é meramente negativa. Há nela algo de nobre e enaltecedor e é dela que advém a complexa noção do belo Platão. Quando se passa de Platão para Aristóteles, a tendência mais imediata é pensar que, enquanto a teoria da arte do primeiro está espalhada por sua obra, a de Aristóteles está concentrada e sistematizada numa obra específica, a Poética (ARISTÓTELES, 1995). Ao pretender extrair a teoria da arte aristotélica só da Poética, fica-se com uma visão parcial e tendenciosa. Sem negar o valor antológico dessa obra, o papel por ela desempenhado no todo da filosofia da arte de Aristóteles é um papel especializado, pois a Poética lida apenas com um tipo de téchne, um tipo de arte imitativa, a poesia e, dentro desta, o teatro e, dentro deste, a tragédia. Embora esta seja, de fato, a forma de arte privilegiada por Aristóteles, a Poética só é capaz de nos fornecer um retrato incompleto das concepções de arte, 15 Palavra utilizada por Platão na obra Timeu significando “o artífice do mundo”, a causa criadora do mundo que cria o mundo à semelhança da realidade ideal, utilizando uma matéria informe e resistente que Platão chama de “matriz do mundo” (ABBAGNANO, 1999). Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 176 de beleza, do bem artístico e da relação entre arte e natureza, desenvolvidas por Aristóteles, em passagens que aparecem tanto na Metafísica e na Ética quanto na Retórica e na Política (Aristóteles, Op. cit.); passagens estas, aliás, que amplificam e nos ajudam a compreender melhor a própria Poética, segundo HOFSTADTER & KUHNS (1976). Percebe-se que para Aristóteles, a arte é, antes de tudo, resultado de uma habilidade especial para o fazer; não o fazer maquinal, repetitivo, mas aquele capaz de transfigurar os materiais a ponto de alcançar um poder revelatório. A arte será tanto mais bem realizada quanto mais a perfeição de sua forma, na segurança do método, for capaz de atingir; a unidade satisfatória de um todo eficaz e autosustentado. O belo, portanto, é o fruto ou resultado do domínio que o artista tem da téchne, de quão habilmente ele é capaz de utilizar os meios da composição, tendo em vista a simetria, harmonia e completude. São essas condições da téchne que estão pressupostas na Poética, na qual, seguindo seu método de definição, que procede de acordo com a análise de um assunto, indo a sua divisão em gênero e espécie, Aristóteles buscou chegar a uma completa definição de seu objeto, a arte poética trágica. De acordo com Dickie et al. (1977), a Poética não exibe justeza de estrutura, o rigor dos argumentos e a sistemática da exposição, que são típicos de outras obras aristotélicas, porque os manuscritos que deram origem a essa obra vieram muito provavelmente de uma série de notas de palestras a partir das quais ele pretendia escrever um tratado completo. De todo modo, é o primeiro estudo minucioso dos princípios estruturais das obras de arte, o primeiro tratado sistemático a lidar com a arte poética como um fazer genuíno do qual se origina um todo orgânico, idéia matriz na concepção da obra de arte que tem perdurado por mais de vinte séculos. O conceito básico no entendimento aristotélico da arte é também o de Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 177 mimese, mas entendida dentro de pressupostos e finalidades bastante diversas das platônicas16. Segundo Schaper (1968), a mimese, para Aristóteles, deriva de uma necessária relação de adequação que deve haver entre arte e vida, arte e natureza. O que a arte imita, assim, é a atividade produtiva da natureza. Assim, a mimese não é mais imitação, mas é criação ou poiesis. A imitação poética visa a criação de algo novo, por isso só a arte pode ser mimética, o que significa deslocar o conceito de mimese do sentido de cópia para o de representação e transformação. Representação, portanto, não quer dizer reprodução, mas sim apresentar algo como se fosse real. Desse modo, o estudo das exigências estruturais e dos princípios formais das obras poéticas advém da necessidade de diferenciar a construção poética, que é mimética, de outras espécies de construção históricas e cognitivas, por exemplo. A arte não imita coisas, idéias ou conceitos. Ela mostra como a natureza trabalha e assim o faz através da construção de suas próprias criações, daí seu poder transfigurador. As obras não são réplicas ou cópias, mas ficções reveladoras, produtos da imaginação criativa orientada para a imaginação produtiva. A arte está voltada para os princípios formativos que operam na natureza e na vida, imita-os e os encarna em estruturas feitas pelo homem. Na junção da téchne, sabedoria na operação com os meios, com a poiesis, capacidade criadora, o poeta é capaz de revelar, poeticamente, verdades concernentes à natureza e à vida que não apareceriam sem a sua intervenção. A arte, sob esse ponto de vista, tem muito pouco ou nada a ver com a exigência de correspondência a qualquer modelo pré-estabelecido, mas sim com o estabelecimento de representações convincentes, internamente procedentes, quer dizer, verossimilhantes. Eis aí, na verossimilhança, mais um dos conceitos 16 A mimese é a imitação de algo prévio ou a produção de maneira semelhante Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 178 originados em Aristóteles, indispensável à teoria e crítica da arte e da literatura até os nossos dias. Analisar o modo, a maneira como os resultados acima podem ser atingidos, foi o objetivo da Poética que começa com uma classificação das artes miméticas até chegar à forma trágica, a privilegiada por Aristóteles, porque, nela, o objeto da imitação são as ações humanas arquetípicas. Quando estas são colocadas sob uma luz relevadora, a arte atinge seu mais alto objetivo, ou seja, o efeito catártico através do qual o receptor passa por uma experiência purificadora e educativa. Embora aparentemente oposta à filosofia da arte platônica, a aristotélica emprestou dela muitos de seus conceitos, entre eles especialmente o de téchne e o de mimese. Para Aristóteles (1995), toda arte é uma forma de téchne, cujo exercício depende de uma série de requisitos. Mas ao invés de colocar esses requisitos nas forças misteriosas que emanam do divino, ele os trouxe para as habilidades e poderes especiais do artista, para configurar, através da força de sua imaginação, estruturas criadoras, poiesis. Também para Aristóteles (Op. cit.), toda arte é mimética. Diferentemente de Platão, contudo, a arte não é cópia servil de uma realidade que a transcende, mas mantém com a natureza, especialmente a humana, uma relação de correspondência e complementaridade criativa e reveladora. O exemplo mais claro da distinção radical, na compreensão da mimese, que separa Aristóteles de Platão, está na consideração aristotélica da música como a mais mimética de todas as artes. A maior diferença entre Platão e Aristóteles reside nas conseqüências que cada um deles extraiu de sua filosofia para a apreciação e avaliação da arte. Se, para Platão, a arte pode ser fonte de ilusão e levar ao engano por alimentar as paixões, para Aristóteles, a arte é valiosa, porque é reparadora das deficiências da Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 179 natureza, especialmente as humanas, trazendo com isso uma contribuição moral inestimável. Rejeitando o idealismo metafísico do seu antecessor, Aristóteles (Op. cit.) depreciou o papel que a beleza e o erotismo desempenham na discussão da arte, tratando-a como uma propriedade objetiva da obra de arte e, mesmo, da natureza, em lugar da busca inspirada do Belo, que Platão (1966) considerava como um dos fins últimos da arte, e deslocou sua ênfase para os benefícios morais que a arte pode trazer. Finalmente, embora distinta das formas de cognição próprias da filosofia e do conhecimento racional, a arte não deve ser, segundo Aristóteles (1995), identificada com a desrazão. Não há, para ele, uma dicotomia entre o racional e o irracional, mas um jogo de forças complementares entre os poderes imaginativos e construtivos da arte e as faculdades intelectivas da filosofia. As obras de Platão e Aristóteles foram fontes hegemônicas de inspiração para os filósofos que os seguiram por muitos séculos, só tendo essa hegemonia entrado em crise com o advento da filosofia moderna, a partir do racionalismo cartesiano e do empirismo de Locke. Antes que isso ocorresse, no entanto, da filiação ou inclinação ontológica do filósofo, sua do filósofo, sua visão da arte penderia para o idealismo platônico ou para o realismo aristotélico. Passando uma vista rápida sobre alguns desses filósofos, que trouxeram contribuições para a filosofia da arte há que ser mencionado Plotino (por volta de 205-270 d.C.), no qual será encontrada uma metafísica do belo que trouxe influências, de um modo ou de outro, para a filosofia cristã e o para Renascimento italiano; de um lado, o neoplatonismo da escola de Cambridge, no século XVII, e o romantismo alemão do século XIX, de outro. Ao mesmo tempo em que Plotino (1957) apud Bastos (1987) levou a filosofia platônica às suas consequências lógicas, ele também a temperou com um misticismo. Aceitaram a distinção platônica básica entre as essências imutáveis Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 180 reais, objetos da inteligência, e as coisas particulares e mutáveis, objetos dos sentidos. Para Plotino, da perfeição do Uno, que transcende toda existência, emana a divina inteligência da qual podemos participar, dela advindo uma terceira divindade, a alma do mundo, que se manifesta em nossas almas e cria o mundo sensível. Essas sucessivas emanações, exceto a matéria, tendem a retornar para a sua origem. A beleza física, então, será fruto da unificação da multiplicidade informe da matéria, sob a força de algum caráter essencial. Considera Plotino que na natureza, isso será produzido pela alma do mundo, na arte pela alma do mundo manifesta na alma humana. Segundo Bastos (1987), para Plotino, mais bela do que qualquer beleza física, contudo, é a qualidade essencial apreendida e possuída pela inteligência, pois o fundamento da possibilidade de toda unidade, de toda beleza, é o Uno. Foi com Plotino, na sua concepção da natureza simbólica de todos os produtos humanos, retomada pela filosofia alemã do século XIX, que o caráter simbólico da arte recebeu sua primeira formulação. Não apenas o belo é um símbolo da harmonia cósmica, mas esta só pode ser sugerida através de metáforas de natureza poética. Para Plotino, a beleza do que é criado, o belo natural, é incompleta. Daí as artes tentarem aperfeiçoá-lo e enobrecê-lo, o que as coloca no meio do caminho entre o Belo puro e as belezas relativamente obscuras da natureza, e do que decorre que a arte é um símbolo duplo: da realidade inferior que ela engrandece e da realidade última que ela espelha (HOFSTADTER & KUHNS, 1976). Segundo Bastos (1987) em Santo Agostinho (354-430), a filosofia de Plotino recebeu sua tradução cristã. O desafio a ser enfrentado nessa tradução estava em encontrar as justificativas religiosas para a questão do belo, o grande problema advindo da gratificação sensória imediata que a arte produz. Mesmo que a harmonia divina esteja refletida na natureza e na arte, os Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 181 objetos perceptivos atraem os sentidos para as coisas terrenas, conturbando a contemplação do eterno e imutável. Vem daí que, para Agostinho, quanto menos sensória for a arte, mais ela espelhará a ordem divina. A música é, assim, superior à pintura, mas são as palavras da escritura que estão mais adaptadas aos poderes da compreensão humana. Em síntese: na medida em que a arte concorda com as verdades da fé e reflete as harmonias do poder criador divino, ela está justificada. Eco (1988) defende a tese de que o sistema filosófico de Santo Tomás de Aquino (por volta de 1225-1274) inclui uma teoria estética coerente. Segundo Eco, os medievais apossaram-se de vários temas, problemas e soluções do mundo clássico, usando-os no contexto de uma sensibilidade nova e diferente. Desse modo, eles só estavam dispostos a receber a beleza na sua aparição como realidade puramente inteligível, como harmonia moral ou esplendor metafísico, mas, ao mesmo tempo, não conseguiam descartar totalmente a beleza sensível simplesmente porque um valor mais alto, especialmente no nível teórico, era conferido à beleza do espírito. De fato, a tensão entre o teórico e o prático, que se expressou no pensamento medieval, gerou uma tentativa de conciliação desses dois lados irreprimíveis da beleza, na concepção de que eles desenvolveram da experiência estética. Santo Tomás não formulou uma teoria estética específica e homogênea num corpo explícito de escritos, nos diz Eco (Op. cit.), mas há um papel fundamental desempenhado pela beleza no seu pensamento, como restauradora de uma ordem e equilíbrio que emergem através da síntese de eventos causais e contradições empíricas. Ele entendia a beleza como uma propriedade transcendental e constante do ser. Ser é aquilo que pode ser visto como belo. Todos os seres contêm as condições constantes da beleza, uma vez que o universo, como obra de seu criador, é necessariamente belo, uma enorme sinfonia de beleza. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 182 O mundo de Aquino, segundo Eco (Op. cit.), era uma hierarquia de existentes reais que adquiriam seu valor individual através da participação estabelecida dentro de limites estáveis e definidos. Todo belo é bom e tudo que é bom o é por estar associado numa perfeição definida a um certo ato de existir. O belo e o bem estão fundados na forma, que é a razão por que algo está em ato, ou tem atualidade, sendo bom por si mesmo. Para Aquino, apud Bastos (1987) obviamente muito mais aristotélico do que platônico, não há uma separação rígida entre sentidos e mente. O brilho da forma, não importa quão puramente inteligível ele possa ser, em si mesmo, é apreendido nos sentidos e pelos sentidos, a intuição da beleza artística estando no pólo oposto complementar abstração das verdades discursivas. Enfim, o belo é essencialmente prazeroso, pois sua própria natureza incita o desejo e produz o amor, enquanto a verdade como tal apenas ilumina. Ao final de sua tese, Eco (1988) conclui que o mundo medieval entrou em crise não apenas devido às dificuldades de conciliação das forças opostas que lutavam em seu interior, mas porque a realidade foi se tornando cada vez mais prática e as pessoas não encontravam, nas abstrações medievais, instrumentos de conhecimento para sua vida cotidiana. O esplendor do belo inteligível, de uma certa forma, se viu sombreado pela irrupção do prosaico. Com o fim da era medieval, e Platão, lido à luz de Plotino, criou-se, então, uma nova tradição neoplatônica, mais propriamente conhecida como o humanismo renascentista italiano. Ao mesmo tempo, o Renascimento viria trazer o desenvolvimento da autonomia do belo, frente à esfera moral. A arte, até então genericamente concebida, iria codificar-se em subdivisões específicas, passando a mimese a ser entendida como imitação da beleza natural. O advento do capitalismo mercantilista e o antropocentrismo nascente exigiriam o reconhecimento das qualidades especificamente humanas do artista, capaz de produzir objetos belos. O valor dos objetos artísticos seria, daí para frente, Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 183 duplo, ou seja, espiritual e material, quer dizer, mercantil. Assim, durante os séculos XVI e XVII, as idéias estéticas de Aristóteles viriam ganhar importância por toda a Europa, estando implícitas no neoclassicismo uma síntese do racionalismo e a exaltação da natureza, estava preparado o terreno para a autonomização da esfera artística do século XVIII (JIMÉNEZ, 1992). Enquanto isso, ainda na Itália, Giambattista Vico (1668-1744) trabalhava na majestosa Scienza Nuova (1725), que Benedetto Croce na sua Aesthetica (1997), viria considerar como um dos pontos inaugurais da estética moderna, inauguração, aliás, tão monumental, quanto à da estética hegeliana, embora menos específica. Ao término do que é considerada, nesta tese, como a primeira fase do desenvolvimento da Estética, foram vistas as primeiras reflexões e análises envolvendo as teorias do belo e do fazer criador, presentes nas obras de Platão e Aristóteles, que se estenderam, não obstante as particularidades específicas de cada período histórico, pelo mundo latino, durante a Idade Média e a Renascença, quando então se tem a mudança de enfoque da Estética para a ótica do gosto e do sublime, que será objeto de análise do tópico seguinte. 5.3 O GOSTO E O SUBLIME Nos séculos XVII e XVIII, a Estética desenvolve tendências que sofrem fortes influências do Racionalismo cartesiano e do Empirismo e a conciliação entre a perspectiva racionalista e o subjetivismo empirista, efetuado por Kant, em sua Crítica do Julgamento (1993), publicado inicialmente em 1790. Segundo Pauli (1963), muito provavelmente, é Nicolas Boileau (1636-1711), na introdução do tratado Sobre o Sublime, de Longino, que traz inicialmente a ênfase no sublime e, particularmente, a distinção entre o sublime em si e o estilo sublime, sendo que o primeiro só pode ser atingido pelos pensamentos elevados, e Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 184 o segundo pela retórica. Boileau foi um neo-classicista, que entrelaçou Descartes e Aristóteles, propondo uma concepção do belo subordinado ao verdadeiro, cuja fonte estava na natureza, inclusive na natureza humana. Verdade e beleza encontraram aí uma fundamentação naturalista muito bem equacionada pela razão (JIMÉNEZ, 1992). Não é por coincidência que, para Boileau, nem mesmo a grandeza do sublime estaria autorizada a violar o senso de propriedade, devendo ser colocada dentro da moldura de uma linguagem simples, despida de figuras. Segundo Jiménez (1992) Platão amava a arte, mas amava, ainda mais, o Estado. A mais alta e verdadeira forma de arte era aquela capaz de fortalecer as fibras morais da alma, unindo os homens como seres políticos. Aí está um embrião do sublime, ligado à elevação moral. Essa elevação moral e sublime permite a sua associação com o poder criativo visto, também, na natureza e que se espelha no poder criativo da mente poética, ambos manifestações correspondentes da harmonia divina. Essa harmonia pode ser fluída em exercícios de gosto, apreciação, discernimento. Os julgamentos do belo também podem ser criativos. A natureza não é apenas bela, mas também sublime. Na experiência religiosa do sublime, repousa a concepção humana do infinito. A tradição filosófica considera que a Estética moderna começou com Baumgarten (1961; 1993), entretanto, discute-se, no entanto, que suas formulações inaugurais encontram-se, antes disso, na Inglaterra, nos trabalhos de Addison sobre os prazeres da imaginação, publicados no Spectator, em 1712 (ADDISON, 1965). Considera Bastos (1987) que a teoria do sublime teria, na verdade, de esperar por Edmund Burke (1729-1797) para encontrar sua primeira discussão sistemática e coerente. Antes disso, as observações esparsas sobre a teoria do gosto, que já apareciam nos textos de Addison (op. cit.), iriam encontrar seu desenvolvimento mais pleno nas obras de HUTCHESON (1973;1996) e HUME (1965). Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 185 Addison (Op. cit.) definira o gosto como a faculdade da alma que discerne o belo de prazer e as imperfeições de desprazer. Se Os Prazeres da Imaginação marcaram os primórdios do discurso moderno sobre a Estética, seu primeiro tratado está na Investigação a respeito da Beleza, Ordem, Harmonia. Design, o primeiro entre dois ensaios que Hutcheson publicou juntos, em 1725 (HUTCHESON, 1973), sob o título de Investigação sobre a Origem de nossas Idéias do Belo e da Virtude. Encarnado num modelo perceptivo, esse tratado levou às últimas consequências, imortalizando a noção de “senso de beleza”. Hutcheson acreditava que a idéia de beleza nascia de uma qualidade complexa por ele chamada de uniformidade em meio à variedade. A apreensão da beleza tem um caráter diferente, um “gosto” diferente de qualquer outro tipo de prazer dirigido para finalidades práticas. Embora suas idéias fossem muito sugestivas, Hutcheson se perdeu na lógica de sua argumentação. Mas Hume (1965), atraído pelas afinidades com essas idéias, iria levá-las à frente, tentando resolver seus paradoxos em Sobre o padrão do gosto, um dentre vários ensaios publicados, sob o título de Quatro dissertações, em 1757, e, talvez, um dos frutos estéticos mais ricos e amadurecidos no Iluminismo inglês. Segundo Dickie et al. (1977), pontos comuns a ligar Hume; Burke, Addison e Hutcheson estava na percepção17; na noção da faculdade do gosto; na noção do prazer, advindo da reação produzida pela faculdade do gosto; no tipo de objeto ao qual a faculdade do gosto reage - aqui se encontrando o pomo da discórdia entre os teóricos18 -; o julgamento do gosto, pelo qual se queria significar que um objeto percebido; e na noção de desinteresse, que, de uma forma ou de outra, estava implicada na própria natureza da faculdade do gosto. Embora o senso-comum concorde com a filosofia cética ao considerar estéril 17 Modo através do qual são conhecidos os objetos do mundo, com suas características. Enquanto para Hutcheson era a uniformidade na variedade para Burke era uma série de propriedades dos objetos. Além disso Hume, também mencionou certas qualidades dos objetos, enquanto o último dos teóricos do gosto, Archibald Alison (1757-1839), nos seus Ensaios sobre a natureza e princípios do gosto, de 1790, escreveu sobre a percepção de algo que é um signo de ou é expressivo de uma qualidade da mente, nobreza, por exemplo (ALISON, 1968). 18 Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 186 a disputa sobre questões de gosto, esse mesmo senso-comum é capaz de descartar certos julgamentos como sendo não apenas improcedentes, mas até mesmo ridículos. Desse modo, o paradoxo, para Hume, se expressava como se segue (MOTHERSILL, 1977, p. 279): dado que a preferência estética depende do sentimento, que é distinto da evidência factual e da observação, e dado que os indivíduos evidentemente diferem em relação ao que gostam ou não em termos de poesia e arte, como podem existir algumas opiniões que são imediatamente descartadas como falsas e outras sobre as quais há certa concordância? Hume (1973) achava que o caminho para a solução desse dilema, estava no gosto. Havendo certas qualidades que são universalmente agradáveis, devem existir “leis do gosto”. Os bons críticos são aqueles que sabem detectar essas qualidades nas obras de arte e o veredicto conjunto de tais críticos produz o “padrão do gosto”. Dentro desse grupo de destacados teóricos da apreciação estética, aquele que levou mais a sério a questão do sublime, inserindo-a numa “lógica” do gosto, com pretensão de validade intersubjetiva, foi Burke, ao publicar, em 1757, a sua Investigação Filosófica sobre a Origem de nossas idéias do Sublime e do Belo (BURKE, 1958). De acordo com Coleman (1974), para Burke, sensações agradáveis podem ser positivas ou envolver a remoção ou diminuição da dor. O sublime pertence a esse último tipo, além de depender de paixões ligadas à autopreservação, ou de paixões ligadas à dor e ao perigo. Essas paixões são um deleite quando temos uma idéia da dor e do perigo, sem estarmos realmente experimentando tal situação. Qualquer coisa que excite esse deleite Burke chamou de sublime, começando sua análise com a estupefação ou aquele estado em que nossos movimentos ficam suspensos em algum ponto do horror. Para ele, a mente é ultrapassada, assoberbada pela imensidade do objeto contemplado, de modo que se fica estático, é incapaz de nos mover. Considera então que o sublime tem graus que vão da estupefação e do horror à admiração, reverência e respeito. Tudo que opera de algum modo análogo ao Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 187 terror é uma fonte do sublime, ou seja, é produtor da emoção mais forte que a mente é capaz de atingir. Para Burke (1958), portanto, o sublime não procede da beleza apaziguada, mas da desunião e conflito das faculdades. Ele é capaz de remover a finitude do ser ao revelar sua ausência de fronteiras. Confrontada com o sublime da natureza ou da arte, nossa liberdade fica exposta. A beleza une e civiliza por meio da forma; o sublime não tem forma, mas desperta o sentimento moral mais profundo. Segundo Jiménez (1992) quando se passa dos ensaios ingleses sobre o gosto para as questões analíticas19 do belo e do sublime de Kant (1993), o nível de complexidade da discussão cresce numa ordem tal que as teorias do gosto ficam parecendo balbucios de crianças aprendendo a falar a língua materna. A rigor, não foi apenas dos ingleses que Kant herdou a constelação de questões nas quais iria concentrar suas analíticas. Numa das passagens da Crítica do Julgamento, ele declarava que as questões da Estética, nas críticas do gosto do seu tempo, estavam agudamente divididas entre o racionalismo20 e o empiricismo (KANT, 1993). Dentro desse contexto racionalista, em 1746, Charles Batteux (1713-1780) publicou, na França, seu famoso tratado sobre As belas artes reduzidas a um mesmo princípio21 (BATTEUX, 1969), no qual todas as artes se reduziam ao princípio da mimese, entendida como beleza natural. 19 Em geral significa uma disciplina ou uma parte de disciplia cujo método fundamental é a análise. Kant (2002) elabora uma analítica do belo; uma do sublime e uma do juízo teleológico que determinam a priori respectivamente as primeiras duas do juízo estético, a outra do juízo sobre a finalidade da natureza (ABBAGNANO, 1999). 20 Embora Descartes (2000) não tenha escrito quase nada sobre Estética, por mais de um século, seu método e metafísica influenciaram profundamente as concepções sobre a natureza da arte. Assumiase, nessas concepções, que a natureza e a razão são idênticas, de modo que as regras que governam as ciências também governam as artes. 21 Foi em Batteux (1969) que o ideal renascentista de especialização das artes, necessária para o culto individual do artista e para a mercantilização dos objetos de arte, atingiu o seu ápice, ao criar o conceito de “belas artes”. Batteux codificava as “belas artes” nas cinco artes nobres, ou seja, a pintura, a escultura, a música, a poesia e a dança, além de mencionar outras duas relacionadas com elas, a arquitetura e a eloqüência. Estava semeado o terreno para o nascimento da noção do artista como indivíduo de gênio, tematizada por Kant e dominante na estética romântica. A codificação das cinco belas-artes se generalizou com tal rapidez que, no século XIX, o adjetivo “belas” foi dispensado e o sentido da palavra arte foi ainda mais estreitado, deixando de fora o artesanato e a ciência. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 188 Foi enorme a influência do tratado de Batteux sobre o iluminismo francês e sobre a concepção das artes que iria dominar no Ocidente até meados do século XIX. Apenas com o impacto das tecnologias industriais, a partir do impressionismo, as vanguardas artísticas iriam colocar a mimese, concebida como imitação da natureza, numa crise para a qual não haveria mais qualquer possibilidade de retomo, muito especialmente porque essa crise só veio se acentuar depois que o advento das recentes tecnologias de simulação começou a colocar a própria noção de natureza e de realidade em questão. No século XX, quando as vanguardas artísticas já colocavam em questão a própria noção de arte, as ideologias institucionais da arte estreitavam ainda mais o seu sentido, limitando-o apenas às artes plásticas e, mais especificamente, àquelas que podem ser expostas em museus e galerias. Denis Diderot (1713-1784), outro esteta do iluminismo francês, contemporâneo de Batteux, foi, segundo Jiménez (1992), um caso particularmente interessante, porque, embora imerso no ideal iluminista da universalidade do belo como uma qualidade transcendental e essencial da natureza humana, relativizou o caráter absoluto e substantivo do belo, através do sensualismo22 e materialismo23 que constituíam as diretrizes básicas de seu pensamento. Em 1752, nas suas Investigações Filosóficas sobre a origem e natureza do belo, Diderot (1981, p. 78) falava do “belo fora de mim, belo real” e do “belo em relação a mim, belo percebido”. “O que constitui a dimensão universal da estética, sob o caráter variável e fluido da beleza, é a existência de um fundo cultural que conduz a percepção de relações”. Situada à beleza na percepção das relações, tem-se a história de seus progressos no correr dos tempos. “O caráter relativo do belo fica, assim, enlaçado no desenrolar evolutivo de uma qualidade universal da natureza humana: a capacidade de perceber relações”, conclui JIMÉNEZ (1992, p. 36). 22 Como já visto, mas cabe reforçar o sensualismo caracteriza-se por uma atitude emque valoriza-se a importância dos prazeres decorrentes dos sentidos. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 189 Não foi a França, mas a Alemanha, que viu nascer a primeira exposição rigorosamente cartesiana da estética. Ela veio com o tratado Aesthetica24, escrito em latim e publicado em 1750, por BAUMGARTEN (1993). Em 1735, nas suas Reflexões filosóficas acerca da poesia, Baumgarten (1961) via a Estética como a equivalente sensual da lógica, quer dizer, a Estética estava para a sensorialidade, conhecimento inferior, do mesmo modo que a lógica estava para o pensamento, conhecimento superior. Segundo Bosanquet (1952), Baumgarten, com seus mestres racionalistas, especialmente Leibniz (1646-1716), aprendeu a dividir o conhecimento em dois tipos: aquele que nos dá idéias claras para a vida prática e aquele que nos dá idéias distintas através do exame das partes elementares das coisas. Também aprendeu a distinguir entre as funções superiores e inferiores da psique. Baumgarten (1993) voltou sua atenção para uma espécie de conhecimento intermediário, um modo de percepção em que o todo não é reconhecido para propósitos práticos, nem pode ser submetido aos procedimentos analíticos da ciência ou da filosofia. Utilizando definições formais, axiomas, provas e corolários, o autor visava demonstrar que a percepção sensitiva tem uma estrutura formal própria, cujas perfeições a ciência Estética tem por função revelar. Tomando a razão teórica por modelo, Baumgarten buscava dar legitimidade para a Estética, invocando, para isso, a razão analógica, como forma de saber sobre aquilo que a esfera da arte revela e a razão por si mesma não pode dar conta. Nesse novo contexto, o belo ressurgiu convertido em finalidade, em objeto teórico de uma nova disciplina, a Estética, que é “a perfeição do conhecimento sensitivo enquanto tal”, perfeição que não é outra coisa senão a beleza (JIMENEZ, 1992, p. 30). 23 Toda doutrina que atribua causalidade apenas à matéria, ou seja, consiste em afirmar que a única causa das coisas é a matéria. 24 Já no primeiro parágrafo da Aesthetica, esta era tomada como a scientia cognitionis sensitivae “teoria das artes liberais, gnosiologia inferior, arte de pensar belamente, arte da razão análoga”. O que ele queria investigar não era nem o mero gosto, nem as meras sensações - o sentimento que se registra num sujeito em resposta a um estímulo - mas um modo de conhecimento. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 190 Foi de Baumgarten (Op. cit.) que Kant (1993) herdou a palavra “Estética”. lnseriu-a, contudo, num contexto quase totalmente diferencial, revestindo-a de sentidos originais que vieram a se constituir nas idéias-chave a partir das quais as concepções estéticas da era moderna se desenvolveram. Para Baumgarten (Op. cit.), a Estética repousava sobre princípios intuitivos últimos. Todos os ramos do conhecimento começavam com noções fundamentais que requeriam “percepções intelectuais” semelhantes às “percepções diretas” das relações matemáticas. Kant (1993) não aprovava o intuicionismo da estética racionalista, uma vez que o apelo à intuição não dava espaço para se resolver racionalmente os desacordos em matéria de gosto, além de que fundar a Estética sobre a perfeição intuída significava fornecer conceitos determinados para os objetos estéticos. Do mesmo modo que recusava os pressupostos do racionalismo, Kant também discordava dos princípios empiricistas, especialmente do seu caráter psicológico, individualista, de um lado, e do caráter derivativo das propriedades estéticas, extraídas de propriedades não-estéticas dos objetos, de outro. Para as teorias subjetivistas, o belo não se referia a uma propriedade dos objetos, mas estava associado a alguma espécie particular de sentimento do sujeito. Determinar se “x é belo” não significava testar se algum conceito de uma propriedade objetiva se aplicava a “x”, mas sim testar se algum conceito de prazer se aplicava ao sentimento de um sujeito sobre o objeto (COHEN, 1982). Kant (1988) não esposou as linhas mestras desse tipo de subjetivismo. Nem racionalista, nem empiricista, mas filiada a essas duas vertentes do Iluminismo, dando a ele sua maior expressão, a obra kantiana e, mais especialmente, neste caso, sua Estética, criou, desse modo, uma via intermediária, a idealista, trazendo uma nova interpretação para a secular relação da estética com o belo e o prazer. Kant estava tão interessado nos problemas da arte e da Estética que, já em 1764, antes mesmo da sua primeira Crítica - a da razão -, ele publicou o ensaio Observações sobre o sentimento do belo e do sublime (KANT, 1991) no qual a Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 191 palavra Estética ainda não aparecia, o prazer era visto como uma sensação ou um sentimento e as diferenças entre o belo e o sublime eram tratadas de maneira simplificada, longe das complexidades que emergiriam na sua terceira crítica, a do julgamento, de 1790 (KANT, 1993). Acerca da contribuição e influência de Kant tem-se um capítulo específico, enfatizando a Estética, desde os autores que influenciam a filosofia kantiana, seus fundamentos e desdobramentos até os nossos dias, os quais serão objetos de reflexão mais adiante. No presente tópico buscou-se apontar a passagem da primeira fase da história da Estética para a segunda, onde a influência racional e empirista vai influenciar a formulação da definição dada por Baumgartem (1993) para a palavra Estética. 5.4 O DESCENTRAMENTO DO BELO A terceira fase da história da Estética é caracterizada pela não ênfase do belo e do sublime que, mesmo sendo consideradas, abre espaço para outras possibilidades de entendimento acerca da Estética e seu papel. Um ponto de partida para essa nova fase são as conferências de Hegel sobre a arte, publicadas em 1835. Antes disso, entre a publicação das palestras de Schelling e as de Hegel, Schopenhauer, em 1819, publicou a primeira edição de sua obra O Mundo como Vontade e Representação (SCHOPENHAUER, 1969). O trabalho de Schopenhauer é marcado, ao mesmo tempo, pelo voluntarismo25 e o pessimismo26 da razão, marcas registradas de Schopenhauer, e 25 O voluntarismo é empregado para designar duas tendências doutrinárias: a que afirma o primado da vontade sobre o intelecto; e a que vê na vontade à substância do mundo. A primeira é gnosiológica e ética, presente em algumas correntes filosóficas medievais que afirmavam a superioridade da vontade sobre o intelecto porque o hábito, a atividade e o objeto da vontade são, como dito, superiores aos do intelecto. A segunda – o voluntarismo metafísico – foi iniciada por Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 192 que viriam a exercer enorme influência não apenas sobre Nietzsche, mas também sobre Sigmund Freud (1856-1939) e, num outro extremo, sobre Ludwig Wittgenstein (1889-1951). Em razão disso, não há teoria contemporânea da arte que não tenha, de uma forma ou de outra, absorvido a força que a vontade e a descrença nos poderes da razão passaram a desempenhar no pensamento ocidental a partir de SCHOPENHAUER (1969). Embora se dissesse sucessor da tradição que ia de Platão a Kant, em detrimento da filosofia pós-kantiana, especialmente a hegeliana pela qual ele nutria imensa antipatia, Schopenhauer parece ter articulado uma espécie de pensamento inteiramente diferente de tudo que pudesse ser encontrado na tradição. Para Schopenhauer (Op. cit.), a causa e essência do mundo estão numa força cega ou tendência anterior à matéria e à consciência, que ele personificou na Vontade ou Vontade de Viver. Dessa força derivam a matéria, os vegetais, animais, até o homem em sucessivos graus de auto-objetivação. Para qualquer coisa que existe deve ter preexistido uma tendência, a partir da qual toda existência consiste em discórdia e, na vida orgânica, especialmente, ela se manifesta como desejo insaciável e voraz, cuja dor é obliterada e cuja crueldade é apaziguada apenas pelo intolerável pânico do medo. O ser humano é aquele que bebe dessa taça mais amargamente, pois ele é o olho através do qual o universo observa a si mesmo e se sabe infernal. Mesmo a ciência não passa de um serviço sacrificado da Vontade. SCHOPENHAUER (Op. cit.) Só restam duas alternativas que podem se abrir para o individuo: o ascetismo27 ou a arte. O primeiro é mais elevado porque tende a durar através do Schopenhauer, para quem a vontade é a substância ou número do mundo, enquanto o mundo natural é manifestação ou revelação da vontade (ABBAGNANO, 1999) 26 Tendência a acreditar no pior ou esperar o pior, enquanto perspectiva filosófica, traduz-sepela convicção de que este é o pior dos mundos possíveis. Associado a Schopenhauer que considerava que renunciar ao mundo era o único modo de superar a dor. 27 Princípio de abnegação com a finalidade de alcançar um estado elevado de percepção espiritual, acuidade intelectual ou capacidade física. Sua origem é as palavras gregas que significam “eremita” e Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 193 tempo como uma condição subjetiva, através da qual podemos nos livrar da ética convencional. A criação estética é uma fonte mais provisória de alívio, embora seus produtos sobrevivam para os outros experimentarem. A arte nasce de um excesso de Vontade, que vai além do que é necessário para atender à demanda do desejo saciável e das necessidades práticas (SIMPSON, 1984). Só a contemplação estética pode nos livrar da escravidão, pois, nela, o quando, o porquê e o para quê das coisas deixam de existir para nos concentrarmos apenas no “o quê”. Totalmente absorvidos na percepção de um objeto, podemos escapar de nossa individualidade e vontade, continuando a existir como puro espelho do objeto: com sua beleza nos identificamos, nela nos regozijamos. O que é então conhecido não é algo individual, mas a idéia, quando o conhecedor cessa de ser um individuo para se tornar um puro sujeito conhecedor. Nesse caso, contemplamos o belo. Quando, a despeito da atração, instala-se uma relação hostil com nossa vontade, da qual devemos nos desprender a fim de nos entregarmos ao puro conhecimento, então o objeto é chamado de sublime. A sublimidade é, assim, proporcional à nossa dificuldade de considerar um objeto sem relacioná-lo com a nossa vontade. Segundo Perniola (1998) são ecos da Vontade, por exemplo, que irão aparecer no vitalismo de Henry Bergson (1859-1941). No outro lado do Atlântico, o norte-americano George Santayana (1863-1952) nitidamente também beberia nas fontes de Schopenhauer, que, lido à luz de Platão, iria lhe dar inspiração para produzir, em 1896, o seu Senso do Belo (SANTAYANA, 1955). Contudo, mais dominante do que esses dois filósofos, na insinuação de uma filosofia que se tornaria inseparável da crítica da própria filosofia, foi, sem dúvida, Nietzsche. Neste sentido, sem a referência a Schopenhauer, torna-se quase impossível compreender por onde Nietzsche iniciou sua análise da arte. “exercício”, sendo utilizado para expressar o regime austero dos soldados e dos atletas, mas estando, também associado à religião. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 194 Em 1871, mais de vinte anos antes que Santayana produzisse o reaparecimento do belo no seu canto de cisne tardio, com O nascimento da tragédia, de Nietzsche, segundo Marton (1999) e Rodrigues (1998) já havia dado inicio a sua devastadora crítica da metafísica, colocando em crise definitiva as antigas confianças na razão filosófica28. Foi da distinção kantiana entre o belo e sublime29 que Schopenhauer (1969) parece ter extraído sua distinção entre a música, como expressão direta da Vontade, e as artes, como representações expressivas das idéias. Essa, por sua vez, deve ter sido a base da divisão nietzscheana, mais geral, entre o lado dionisíaco, mais presente na música e na tragédia, e o lado apolíneo, mais presente nas artes plásticas30. Para Nietzsche (1927) apud Rodrigues (1998), a existência só pode ser entendida e justificada em termos estéticos, do que decorre que a investigação levada a cabo pela ciência ou é um equívoco ou uma rival da arte. Neste último caso, a ciência é uma espécie de ilusão, similar à ilusão da arte. Como pode haver a superação da metafísica sem perder aquilo que, a partir da terceira crítica de Kant, se tornou inseparável da própria metafísica, ou seja, a 28 Através de um olhar penetrante no lado irracional da cultura grega, que o Ocidente reprimiu, Nietzsche concluiu que as origens da arte e de toda criatividade devem ser encontradas nos aspectos duais da natureza humana, por ele chamados de apolíneo, derivado do deus Apoio, e dionisíaco, obviamente derivado de Dionísio. 29 Segundo Kant (2002) sentimentos tais como o sublime e o belo não podem ser analisados afinal resultam não tanto da natureza de coisas externas que os suscitam, mas da própria disposição de cada pessoa para ser induzida por eles ao prazer e à dor. Considera que tanto o belo como o sublime aprazem, mas enquanto o belo encanta, o sublime “comove”, sendo simples, enquanto o belo é adornado e ornamentado. O sublime transgride os fins da nossa faculdade de julgamento (CAYGILL, 2000). 30 A arte apolínea é a arte do sonhador enfeitiçado pelo charme do seu sonho e incapaz de vê-lo na sua natureza ilusória de sonho. Apolíneo se refere, assim, àquele estado de repouso absorto diante de um mundo visionário, onde as belas e ilusórias aparências descansam no esquecimento do devir. Esse mundo de completude e beleza harmônica nos reconcilia com a intolerável irracionalidade da vida e ação humanas. Dionísio, por outro lado, refere-se à energia promíscua da vida, à intoxicação da orgia que destrói os limites da forma, da unidade fixa e da perfeição estabilizada; ao devir extenuante e à crescente autoconsciência sob a forma da voluptuosidade incontrolável do criador, também consciente, da cólera violenta do destruidor. Combinando criação e destruição, Dionísio é o outro de si mesmo. Os recursos retóricos do gênio se exaurem nas contradições que intentam descrever essa condição. Têm-se, assim, dois componentes: 1) pura expressão, forma, domínio espiritual; 2) pura matéria, paixão cega tão horrível quanto divina na sua indeterminação. O belo nasce na junção de ambos, na tragédia grega ou na música, considerados como o ideal de toda arte. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 195 Estética e a arte como vitais à experiência humana? Para responder a isso, Nietzsche radicalizou muito mais do que Schelling (1978) fizera antes dele com o significado da arte e da beleza. Enquanto para Schelling (1978) a arte comparecia para manter o edifício da metafísica de pé, para Nietzsche (1927) o edifício foi dinamitado para que as forças da indeterminação, soterradas sob suas fundações, pudessem voltar a emergir. Os abalos que Nietzsche (1927) produziram na crença e nos poderes da razão iriam ser complementados e ainda mais acentuados pela radicalidade da descoberta freudiana do inconsciente. A influência dessa tríade de subvertores sobre a filosofia continental, em particular sobre o pensamento francês pósestruturalista, especialmente na figura de Jacques Derrida (1978a; 1978b), foi muito profunda. Mais impressionante seria a repercussão que, sob o nome de desconstrucionismo, as idéias de Derrida exerceriam sobre as áreas das humanidades, nos Estados Unidos, nos anos 80 deste nosso século. Não resta dúvida que Nietzsche foi um divisor de águas a partir do qual a confiança na razão parece ter se tornado irrecuperável. O próprio advento dos pensamentos de Nietzsche, Freud, Heidegger e a crítica implacável que Karl Marx (1818-1883) desferiu sobre a futilidade e a “miséria da filosofia”, parecem funcionar como indicadores seguros de que a filosofia como sistema totalizante e unificador atingira, em Hegel, um ponto de esgotamento. Enquanto isso, as revoluções pelas quais os sistemas artísticos viriam passar, a partir de meados do século XIX, confirmando, sob um certo ponto de vista, os prognósticos hegelianos, também funcionariam como comprovações vivas de que a idéia de arte, que o Ocidente fixou desde o Renascimento, havia chegado a um fim. De acordo com Bubner (1980), se há uma obra que merece destaque pela profundidade de sua reflexão e pela riqueza dos detalhes concretos de suas análises, é a Teoria estética, de Adorno (1982). Seu pessimismo em relação a qualquer progresso da racionalidade humana, aliado à desconfiança tipicamente Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 196 marxista em qualquer teoria pura, o levou a considerar a Estética como única saída possível para o ceticismo radical. Mantendo o antigo valor hegeliano da verdade, mas deslocando a prioridade desse valor da filosofia para a experiência estética, Adorno evidenciou que a filosofia deve aprender com a Estética que o pensamento conceitual não é tudo. Ao revelar uma verdade que dela é própria, a arte evidencia quão dilatado é o reino da verdade e quão pouco território desse reino é ocupado pelas reflexões conceituais. Há muito para ser compreendido que escapa às formas de controle do pensamento filosófico tradicional. Numa apresentação da estética adorniana, Bowie (1990) diz que a conhecida concentração de Adorno (1982), na autonomia estética, deriva da sua compreensão de que o ordenamento da natureza pela ciência e a penetração das formas da mercadoria, em todas as esferas de troca capitalista, dominam a relação do sujeito com o objeto31. De acordo com Bowie (Op. cit.), Adorno insistia no acerto kantiano ao manter que nenhuma teoria estética é possível sem o pressuposto de que a Estética deve envolver um momento de desejo imediato livre, mas insistia também no fato de que a autonomia estética deveria ser vista historicamente, o que produz a instabilidade do puramente estético. A despeito disso, a intraduzibilidade da música para um outro meio fez com que ela se tornasse, a partir do fim do século XVIII, um índice da autonomia estética, seu paradigma podendo ser aplicado às demais artes. A autonomia resulta da falta de uma racionalidade finalista na arte, o que lhe dá o mesmo caráter que Kant havia detectado no prazer estético BOWIE (Op. cit.). 31 De acordo com a teoria marxista na medida em que a sociedade capitalista se desenvolve, tudo se reduz ao princípio da equivalência, através do princípio da troca. A verdade sensória do objeto não está empiricamente disponível, pois seu valor deriva do mercado. No capitalismo, os objetos são definidos por seu valor de troca, que se constitui na relação com outros valores de troca, que não têm nada a ver com o ser intrínseco do objeto, quer no seu valor de uso, quer como um objeto estético. Foi desse aspecto-chave do pensamento marxista que Adorno extraiu os princípios de sua original teoria do significado político da autonomia estética e da pertinência filosófica da música. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 197 Adorno (Op. cit.) conectou sua visão da arte à “dialética do iluminismo”. Os produtos da subjetividade autônoma, ciência e tecnologia, que deveriam nos auxiliar na superação das ameaças da natureza externa, acabam por aprisionar o sujeito numa objetividade da mesma ordem daquela que supostamente deveria ter sido superada. A crise ecológica, segundo Bowie (1990) é o melhor exemplo dessa dialética. A radicalidade com que Adorno enfrentou essas questões foi prefigurada como uma avaliação pessimista que Schopenhauer (1969) fez da natureza fundamental da subjetividade e da sua concepção da arte como desvio da pulsão da autopreservação da Vontade. Adorno (1982) tendeu, porém, a um hegelianismo invertido, onde o progresso do Espírito é, na realidade, o progresso da razão instrumental, uma lógica da desintegração que também encontra eco na noção heidegerana de que a história da modernidade é uma história da “subjetificação” do Ser. Bowie (Op. cit.) termina nos dizendo que, diferentemente de Schopenhauer, Adorno não chegou a postular um completo isolamento da arte em relação à razão, isolamento que nasce da descrença de qualquer interferência positiva da arte contra a instrumentalização da razão32. Adorno fez parte de um grupo de intelectuais frankfurtianos que deixou marcas profundas nas concepções da arte, cultura e sociedade na segunda metade do século XX, nos quatro cantos do globo. Nesse grupo, além de Adorno, destacaram-se Herbert Marcuse e Walter Benjamin (1892-1940). 32 O pessimismo adorniano não estava fundado num veredicto a respeito da natureza essencial da razão, mas numa reflexão histórica quanto à falha das esperanças idealistas de uma reconciliação da subjetividade autônoma com a ordem geral da sociedade. Mas, diferentemente de Heidegger (1971) e dos pós-estruturalistas (Derrida; Baudelaire; Baudrillard), Adorno sustentou a esperança numa subjetividade que não estaria plantada apenas na autopreservação e que poderia sustentar a individualidade contra as forças objetivas que militam contra ela. A arte foi o lugar onde essas esperanças surgiram. Longe de ser um mero escape de uma subjetividade negativa, como foi concebida por Nietzsche e, especialmente, por Schopenhauer, a arte e, mais particularmente, a música apontam para uma subjetividade que não precisa necessariamente experimentar a individualidade como um tormento. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 198 A teoria estética na Alemanha, no século XX, baseou-se largamente na tensão entre as tradições hegeliana-marxista e a existencialista-hermenêutica. Esse é o caso de Hans Georg Gadamer, que, tido, muito embora, como sucessor de Heidegger, desenvolveu uma tese quase-hegeliana similar à de Adorno de que a verdade é a essência da arte, com um deslocamento também similar de que seu domínio foge da alçada da filosofia. Em Verdade e método (1977), a influência hegeliana na concepção de sua filosofia da arte, mesclada à ontologia heideggeriana, levou a considerar a arte como paradigma da compreensão hermenêutica. Para se ter uma idéia da constelação diferencial de tendências e correntes estéticas, cuja proliferação, principalmente nos países centrais, foi se dando a partir de fins do século XIX, na primeira edição de sua antologia sob o título de Um livro moderno de estética, Melvin M. Rader (1935) apud Barilli (1989) divide o campo em doze principais tendências estéticas com seus respectivos representantes. Na terceira edição revisada e expandida do mesmo livro, publicada em 1966, Rader apud Barilli (Op. cit.) amplia ainda mais a lista, de doze para quinze, renomeando as categorias das tendências e mudando muitos autores de seus lugares prévios. Num flagrante inegável do deslocamento, bem característico na época, da preocupação com as teorias estéticas para as teorias da arte, os itens passam a ser nomeados tendo em vista a definição da arte. Com os novos autores incluídos e das novas categorias em que os antigos nomes passaram a se integrar, o livro passa a estar dividido em três partes, tendo cada uma seu próprio título. Assim, a primeira parte, recebendo o título de “Arte e o Processo Criativo”, inclui: 1. Arte como Semelhança; 2. Arte como Beleza; 3. Arte como Expressão Emocional; 4. Arte como Intuição; 5. Arte como Satisfação do Desejo; 6. Arte como Experiência Viva; 7. Pode a arte ser definida? A segunda parte, com o título de “A obra de arte” inclui: 8. O “Corpo” da Obra; 9. Expressividade; 10. Forma; 11. Forma e Função. E a terceira parte, recebendo o título de “Apreciação e Critica”, inclui: 12. Empatia e Abstração; 13. Distância e Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 199 Desumanização; 14. Isolamento e Sinestesia; e 15. Crítica,. Não obstante a tentativa de abraçar todas as tendências, não comparece, em nenhum dos dois livros uma corrente teórica para a qual, numa outra antologia (Dickie et al., 1977) dão relevância às teorias da atitude estética que se tornaram bastante conhecidas no mundo de língua inglesa e tiveram seus principais representantes em Herbert Langfield, com seu livro Atitude estética (1920) e E.M. Bertlett com seu livro sob o título de Tipos de julgamento estético (1937). Na década de 70, ao tentar mapear o território da estética contemporânea àquela data, destacando a importância, na primeira metade do século, de obras como as de Santayana (1955), Croce (1997), Dewey (1925, 1980) e Osborne (1968) diz que sistematizações unificadas da estética podem ser encontradas especialmente nas obras de Susanne Langer, nos Estados Unidos (1953), e Luigi Pareyson, na Itália (1993; 1984). Osborne (Op. cit.) chama a atenção para as distinções bastante remarcáveis entre os métodos anglo-americanos da estética e os métodos continentais, nascidos, de um lado, do método fenomenológico da investigação filosófica de Edmund Husserl (1859-1938), de outro lado, nascidos, na França, da combinação da fenomenologia com o existencialismo de Jean Paul Sartre e, vale acrescentar, de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), cuja obra filosófica, sem dúvida uma das mais importantes do século, tem profundas implicações para a Estética (MERLEAUPONTY, 2001). Osborne (Op. cit.) acrescenta que a influência de Wittgenstein (1953) sobre o pensamento estético, embora indireta, é real, não podendo, por isso, ser negligenciada. Ela é exercida principalmente através da aplicação ao discurso estético de modos de pensar sobre o sentimento, emoção, intenção e mesmo certos aspectos da percepção, trabalhados na filosofia geral da mente a partir de sugestões contidas nos últimos escritos de Wittgenstein (Op. cit.), junto com novas idéias sobre critérios, norma, explicação etc. O que se pode concluir de tudo isso é que o número das teorias estéticas, Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 200 substituídas em grande medida, neste século, por teorias da arte, foi crescendo numa tal ordem que se pode afirmar, como o fez Margolis apud OSBORNE (Op. cit.), que aquilo que chama-se de Estética não é de modo algum um ramo da filosofia, mas muito mais um sistema bastante solto de questões concernentes ao nosso interesse nas artes. Ele teria razão se não tivesse sido negado pelo ressurgimento da preocupação com o estético ou antiestético que começou a invadir a paisagem cultural contemporânea, mais fortemente a partir dos anos 80, nos acirrados e controversos debates sob o nome de pós-moderno, pós-modernismo ou pósmodernidade. Tendo o belo caído decididamente no esquecimento, dada a sua evidente inadequação para pensar questões estéticas frente à demolição dos valores que as vanguardas artísticas implacavelmente realizaram contra as noções de arte herdadas do Renascimento, o sublime começou a ser revalorizado como meio para a compreensão dos enigmas da criação. Não é de se estranhar a freqüência com que esse tema começou a aparecer nos escritos de vários críticos da atualidade, assim como que estejam na crista dos debates ditos pós-modernos. Não sem razão, é Kant, e não Hegel, que está sendo posto na ordem do dia, tendo sua terceira crítica merecido a atenção recente de Lyotard (1991), um dos mais famosos arautos da pós-modernidade. Em síntese, há evidências notórias de um renascimento das preocupações com a criação de uma estética original que leve em conta as novas complexidades com que o mundo contemporâneo está nos desafiando. Por mais instigante que possa soar a sugestão da apresentação de um panorama histórico e conceitual sobre as relações da estética com a pósmodernidade, essa sugestão não será aqui seguida, porque a rede de seus intrincados fios conduziria nossas idéias para longe das preocupações mais urgentes que este livro se colocou como finalidade atender. Não é habitual considerarmos o século XX como o século da Estética. E, no Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 201 entanto, em nenhum outro período histórico se viu tal abundância de textos de grande relevo sobre Estética. No século XX todas as áreas da filosofia se organizam com as suas revistas, associações, encontros internacionais e bibliografias especializadas. Nele a Estética pretendeu ser mais que a teoria filosófica do belo e do bom gosto. Por um lado ela estabeleceu e manteve uma relação de cumplicidade com a literatura, as artes figurativas, a música, sem se deixar intimidar pelas inovações mais ousadas ou pelas experiências mais arriscadas; por outro, sentiu-se envolvida na gestão institucional, exposição, organização e comunicação dos produtos artísticos e culturais. Neste sentido, confrontou-se com os grandes problemas da vida individual e coletiva, interrogou-se sobre o sentido da existência, promoveu utopias sociais e sentiu-se envolvida nos aspectos da vida cotidiana, identificando sutis distinções cognitivas. Além disso, debruçou-se sobre questões religiosas e teológicas de alcance histórico, interrogou-se sobre as suas próprias afinidades e divergências com a moral e a economia estabelecendo relações com todas as outras disciplinas filosóficas, com as ciências humanas e até mesmo com as ciências naturais, físicas e matemáticas. É importante destacar que aqueles que, no século XX, deram as mais importantes contribuições não se consideraram a si mesmos como estudiosos da Estética, mas, antes, como psicólogos, psicanalistas, ontologistas, teóricos da linguagem ou da literatura, filósofos da religião ou da sexualidade; ou até nem mesmo filósofos, mas simplesmente, pensadores ou escritores. Verifica-se que nessa terceira fase da história da Estética há uma diversidade de perspectivas acerca da Estética, alguns mantendo a tradição envolvendo a noção de belo, beleza, sublime para considerar outros perspectivas, onde a Estética deixa de ser algo do âmbito da filosofia, letras ou arte para ser considerada inerente ao viver do homem. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 202 As três fases elencadas neste capítulo fazem parte da história, do desenvolvimento e construção da Estética, portanto, devem ser consideradas sob pena de incompreensão de algumas perspectivas e possibilidades, afinal, presente, passado e futuro estão interligados e entremeados. Para a presente tese, a necessidade de resgatar essa trajetória mostrou-se necessário diante do pouco nexo na análise organizacional entre a Estética e a ação organizacional. Ou seja, tornou-se necessário apontar as diferentes contribuições dos diferentes autores que debruçaram sobre a Estética, e a maneira como articulavam a mesma com a racionalidade e o empirismo e, portanto, a compreensão e expansão do conhecimento humano. Não ignorando o desenvolvimento histórico e suas diferentes fases há uma natural aproximação com a segunda fase, especialmente com Kant e sua noção Estética e que será objeto do próximo capítulo. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 203 CAPÍTULO VI KANTISMO E ESTÉTICA A verdade não é uma opinião nem tampouco uma teoria; não é uma especulação nem mesmo uma idiossincrasia, mas a exata correspondência com a realidade. A Arca No presente capítulo busca-se resgatar a contribuição filosófica de Immanuel Kant (1724-1804), com ênfase no que envolve a Estética. Para tanto, traça-se um perfil acerca das influências filosóficas que nortearam os trabalhos de Kant, assim como, autores que tomando a perspectiva kantiana como ponto de referência, ampliaram ou aprimoraram o universo conceitual envolvendo a Estética. Esse percurso vai desde o dogmatismo33 até o criticismo34, abarcando desde 33 Termo resultante da contraposição entre os filósofos céticos e os filósofos dogmáticos – aqueles que definem sua opinião sobre todos os assuntos -. Com Kant o termo passa a estar associado com a metafísica tradicional, entendida enquanto por ele como “o preconceito de poder progredir na metafísica sem uma crítida da razão” (KANT 1989). 34 Doutrina de Kant centrada em três pontos: a) na formulação crítica do problema filosófico; b) na determinação da tarefa da filosofia enquanto reflexão sobre a ciência e, em geral, sobre as atividades humanas; e c) na distinção fundamental, no domínio do conhecimento, entre os problemas relativos à origem e ao desenvolvimento do conhecimento no homem e o problema da validade do próprio conhecimento ABBAGNANO (1999). Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 204 uma concepção objetiva acerca da Estética, passando por uma atitude relativista, até chegar a uma concepção subjetiva. A Estética evolui, portanto, na direção do abandono da ontologia pela psicologia, sendo este um dos múltiplos aspectos da revolução copernicana que também afeta a Estética. Para resgatar a obra e influência kantiana cabe inicialmente identificar e destacar as origens, o sentido e o alcance do kantismo, tomando por construção um balanço da sua herança, dos seus principais elementos e do seu destino ulterior, e é isso que segue nos tópicos seguintes. Após considerar as três fases da história da Estética, encontra-se em Croce (1997), uma outra redefinição da Estética contada em três fases essenciais: a era pré-kantiana, a idade kantiana e pós-kantiana evidenciando a importância e influência de Kant. Antes destas fases, segundo Croce (Op. cit.) houve uma longa pré-história de mais de dois mil anos. Depois, surge a Estética atual que, efetivamente, é marcada pelo desenvolvimento das ciências humanas e das disciplinas lógico-formais pela preocupação em amplificar o trabalho crítico de Kant, através da extirpação das seqüelas do espírito metafísico. Cabe então verificar essas três fases destacadas por Croce (Op. cit.), enfatizando Kant, antes e depois, até porque no capítulo anterior discorreu-se sobre um desenvolvimento histórico mais linear e tradicional, sem maior ênfase a Kant. 6.1 PRÉ-KANTIANOS: FONTES DA ESTÉTICA DE KANT Ao considerar o movimento filosófico, anterior à Crítica do Julgamento, marco de referência, juntamente com as duas outras críticas, identifica-se duas grandes Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 205 correntes filosóficas a influenciar o trabalho de Kant: o intelectualismo35 de Leibniz (2000) e de Baumgarten e o sensualismo de Burke36. Bosanquet (1957), ao construir a evolução passo a passo dessas duas correntes filosóficas, aponta como passíveis de distinção e notória influência sobre Kant, nada menos que, oito diferentes escolas filosóficas, a saber: a escola cartesiana e a literatura clássica do século de Luís XIV; o pensamento de Locke; as tendências sentimentalistas37 dos literatos do fim de século; o Ieibnizianismo; a estética afetiva do abade Dubos; a escola psicológica (Addison, Hutcheson, Burke, Hume, Hogarth, Webb, Young); os enciclopedistas (Diderot, Batteux e mesmo Rousseau) e, finalmente, sobretudo, a escola alemã (König, Gottsched, Bodmer, Winckelmann, Lessing, Baumgarten). Dentre esses cabe considerar com especial atenção a análise de três escolas: o relativismo cartesiano, o intelectualismo leibniziano, o sensualismo anglo-saxônico. Considera-se a seguir, ainda que de maneira breve, alguns filósofos presentes nessas escolas que como já dito contribuíram na formação e/ou influenciaram a obra de Kant. Merece destaque inicial, dentro da perspectiva do relativismo cartesiano, a contribuição de Descartes (1596-1650). Do dogmatismo platônico, essencialmente baseado na objetividade do Belo-em-si, passamos, com Montaigne, Descartes ou Pascal (1623-1662) e, sobretudo, mais tarde, com Voltaire (1694-1778), a um ceticismo desiludido. Deve ser destacado que Descartes não teve propriamente uma Estética, não 35 Contraposto, por vezes, ao voluntarismo para indicar a primazia atribuída ao intelecto sobre a vontade. Outra escola de influência foi o intelectualismo leibniziano, que será tido como uma antítese ao trabalho de Descartes. Com Leibniz (1646-1716), os conceitos de vida, forma e fim são resgatados à luz da teoria do Belo e estarão presentes no trabalho de Kant de maneira subjetiva. 36 Acerca dos autores que exerceram forte influência sobre Kant convém ressaltar que no capítulo anterior, na segunda fase foram desenvolvidas as idéias desses autores, e que, portanto serem sintetizadas. 37 Consiste em entregar-se às emoções próprias ou alheias, em exaltar-se com elas desproporcionalmente à força, aos limites e à função dessas emoções. Kant (1989; 2002) viu no sentimentalismo a fraqueza de deixar-se dominar, até contra a vontade, pela participação no estado emocional de outroem, propondo o autodomínio, que possibilita a sutileza de sentimentos graças à Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 206 por indolência ou falta de tempo, mas porque para ele era impossível unir os sentidos e o entendimento a faculdade de perceber e a faculdade de julgar, uma vez que a realidade, assim entendida por ele, em face, a opacidade dessa união em direção ao homem concreto. Cabe resgatar Leibniz (2000) que é, antes de qualquer coisa, tido como o anti-Descartes, ainda assim, cabe apontar que onde Descartes é incompleto, insuficiente ou superficial, Leibniz completa-o, remata-o e prolonga-o em profundidade. O universo de Leibniz é um sistema de luzes crescentes onde as forças representativas se tornam cada vez mais claras e distintas à medida que os objetos representados se revelam mais explícitos. Complementando, o universo de Leibniz já não é uma máquina movida por leis inelutáveis desprovida de energia e de espontaneidade, passando a ser visto como uma imensa hierarquia de seres vivos e sensíveis, formando um conjunto harmônico acabado. Além disso, o mundo é apenas uma imagem da nossa percepção: há nos dois termos a realização do uno e do múltiplo, e o espetáculo surpreendente dessa estranha harmonia do universo não é senão o espelho da nossa própria harmonia interior. Deste modo, a fórmula neoplatônica da unidade na variedade encontra-se como que reinscrita num contexto novo, neocartesiano em certa medida, onde os espíritos podem produzir algo que se assemelhe às obras de Deus, embora, em ponto pequeno, pela graça da harmonia universal no ato estético. Para Leibniz (2000), também, o estado artístico manifesta-se por esses gostos, essas imagens das qualidades dos sentidos que são as pequenas percepções, ou ainda por esses espelhos vivos ou imagens do universo das criaturas, mas ainda imagens da própria divindade ou do próprio autor da natureza, capaz de conhecer o sistema do universo e de imitar algo dele por meio de amostras qual as emoções alheias não são julgadas segundo a força de quem julga, mas segundo a fraqueza de quem sente (ABBAGNANO 1999). Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 207 arquitetônicas, sendo cada espírito como que uma pequena divindade dentro do seu departamento. Entre os inúmeros discípulos póstumos de Leibniz, citaremos o padre André, que escreveu a primeira obra de estética propriamente dita, em língua francesa, inspirando-se livremente na noção agostiniana de ordem, e Baumgarten (1993), que ajudou Kant a encontrar a solução para a antinomia sentimento-juízo. Segundo Bosanquet (1957) a influência do sensualismo inglês se faz presente nos trabalhos de Hume, Locke e Hutcheson que formularam algumas hipóteses sobre a Beleza. A influência de Hume (1965), segundo Bosanquet (Op. cit.), desenvolveu uma espécie de sensualismo radical nos seus Elements of criticism (1762) e, mesmo, um antropomorfismo integral. Assim para Hume é belo aquilo que representa as relações entre o espectador e os seus semelhantes, pois não é porque um objeto é belo que deve agir necessariamente e universalmente, mas sim porque, debaixo de todas as diferenças que separam os indivíduos, subsiste sempre alguma coisa de universalmente humano, por isso é que deve haver objetos belos. Há aqui como que um platonismo ao revés, onde a tônica já não é posta no Belo-em-si, mas no gosto humano. A busca de uma harmonia constituirá o tema diretivo da Estética kantiana envolvendo: o mundo da natureza e o mundo do espírito, a imaginação e o entendimento, a afetividade e a vontade, na qual a finalidade imporá sempre a sua valiosa mediação, eficaz e segura. E é na idéia de finalidade que está a base de toda a teoria do juízo reflexivo, ponto de partida essencial para a compreensão da estética kantiana. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 208 6.2 PÓS-KANTIANOS: A CONTINUIDADE E APRIMORAMENTO A obra de um autor reflete não apenas no seu tempo em vida, mas especialmente após o seu desaparecimento. Cabe então considerar que desdobramentos o pensamento de Kant irá provocar na Filosofia e em particular na Estética, tendo como base os escritos daqueles que são seus continuadores ou críticos. Segundo Croce (1997) e Barilli (1989) Kant lançou as bases não de uma, mas de várias estéticas e isso fica claro ao se considerar as contradições, os paralogismos e as obscuridades de sua obra. Há antinomias que, mesmo após leitura e releitura da obra, permanecem como que irredutíveis. Numa perspectiva daquela que prima pela busca da verdade, uma obra é ainda mais importante pelo problema que levanta do que pelas soluções que traz, por abrir mais perspectivas do que as teses rígidas que porventura possa vir a propor. A dimensão da contribuição kantiana e a repercussão de sua obra se encontra no que concerne à Estética na A Crítica do juízo que irá influenciar não só Fichte ou Hegel, mas Schiller, Schelling, bem como a idéia de ilusão de Langer (1953); até as “teorias dos Parnasianos” da arte pela arte; a teoria da intuição de Croce (1997); sem esquecer o estetismo de Baudelaire (1998), ou seja, inúmeros escritores e artistas que encontram a sua origem histórica ou teórica nas sólidas distinções da Analítica do Belo. Parece que Kant abalou as regras da Filosofia da Arte com toda a naturalidade e com uma audácia tranquila, segundo BOSANQUET (1963). Ninguém antes dele e poder-se-ia mesmo dizer que ninguém desde 1790 ousou dar tanto rigor à distinção dos termos, com tanto cuidado na precisão do fato, na análise das suas noções artísticas. Assim, ele foi o primeiro a aplicar a Lógica à Beleza, analisando a Arte com todo o rigor científico. Numerosos foram os discípulos de Kant e quase todos consideraram A crítica Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 209 do juízo como a melhor das suas três críticas. A seguir efetua-se uma breve síntese do pensamento e obra desses seguidores, com o propósito de resgatar os desdobramentos e influências de Kant, vislumbrando sua utilidade, agora ou no futuro, para o estudo e análise contemporânea das organizações. Um dos pós-kantianos é Friedrich von Shiller (1759-1805), contemporâneo de Fitche, que seguiu, nas suas Cartas Sobre a Educação Estética da Humanidade, de 1801 Schiller (1995) concebe a arte como fonte, meio e fim para a educação estética do ser humano, tomando a beleza como símbolo de moralidade, moralidade esta disponível não apenas através da compulsão, mas antes de tudo, através do prazer. Schiller (Op. cit.) parte do princípio de que a arte é uma atividade lúdica, um jogo, e que a esfera estética é o ponto de conciliação entre o espírito e a natureza, a matéria e a forma, pois o belo é vida, é o corpo vivo.Quis, assim, levar a noção de percepção estética como uma influência mediadora ligando o sensório, tanto à verdade quanto à virtude, aos sentimentos morais e disposições – fontes da ação razoável. No momento histórico em que a arte estava sendo diferenciada de outros tipos de engenhos e habilidades humanas, ao definir a beleza em termos do tipo de julgamento que ela produz, Kant (1991) criou um critério específico para a arte, ao mesmo tempo em que ampliou o campo da Estética. Originalmente, Baumgarten (1993) via a Estética como ciência da percepção sensitiva, para abraçar não só as obras de arte, mas também as belezas da natureza e, além disso, fenômenos relativos à conduta humana. Esta última, especialmente, foi a porta que Schiller abriu mais largamente, para explorar com inteireza sua idéia de educação estética. Não obstante sua admiração, existiam pontos com os quais Schiller sentia que Kant estava em falta, era fácil dizer que o belo consistia apenas na forma, ou definir uma resposta estética pura como prazer desinteressado, se um arabesco, digamos, era o modelo de que se partia. Segundo XYZ como não poderia deixar de ser, não existe consenso quanto à Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 210 interpretação da obra de Schiller. Aliás, existem dúvidas sobre sua consideração como filósofo. Tal dúvida não é casual, afinal, sua obra em nada se assemelha a um tratado sistemático, obediente a todas as regras do bom comportamento analítico. Se o belo, na obra de arte, na poesia, atrai o ser humano, então deve haver, na essência mais íntima da vida, um fundamento para essa atração. Ele buscou, assim, ligar a integridade do significado do belo diretamente à razão prática, à essência moral do homem. “É através da Beleza que atingimos a liberdade” (SCHILLER, 1995, p. 27). Schiller concebeu a liberdade e a moral, inteiramente dentro do espírito da ética kantiana, como único meio através do qual o ser humano pode estar uno consigo mesmo e composto na sua essência mais íntima. Kant (1993) havia levado em consideração o caráter prazeroso e vivificante do belo, mas, sem se dar conta das emoções profundas que podem ser despertadas na apreensão de uma grande obra de arte e só podem ser explicadas na sua relação com a essência mais íntima do homem, sua consciência moral. Com sua definição do belo como liberdade na aparência, Schiller pensava ter encontrado um princípio objetivo para a beleza, nos diz Henrich (1992), uma vez que a objetividade, para ele, não tinha o sentido kantiano de conhecimento dos objetos. Daí sua descrição da autoconsciência da subjetividade na experiência da beleza. O prazer estético absorvido no objeto e a consciência se consumam totalmente no objeto apreendido. Schiller (1995) entendeu o amor como a unificação da razão com a sensibilidade, entretanto, no caso do belo, isso não é problemático, pois a liberdade, um conceito da razão, visa se espelhar naquilo que é sensivelmente representado. Se, no caso do estético, o ato de objetivação aparece como um ato de sensualidade, parecia fazer sentido, para Schiller, definir então o amor como uma inclinação da razão para se unir ao objeto sensível. Essa explicação ajusta-se ao belo, mas não ao amor, se este for entendido como uma relação substancial entre duas pessoas de igual valor. Ao dizer que o amor é uma inclinação da razão, Schiller aplicou à razão um conceito psicológico Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 211 que pertence à sensibilidade; tentou, portanto, interpretar a objetivação da subjetividade, que não fazia parte do sistema kantiano, utilizando conceitos extraídos da teoria kantiana da subjetividade. No ideal de moralidade de Schiller, o eu concreto não precisa persistir no conflito, pois o caráter verdadeiramente moral não cumpre seu dever apenas sob compulsão, mas porque lhe agrada a harmonia consigo mesmo que sela a perfeição da natureza humana. É na estrutura da autocompreensão moral, do eu consigo mesmo e, nessa medida, livre em si mesmo, que Schiller viu espelhada na beleza. E a liberdade moral, no sentido de harmonia interior, a harmonia perfeita de um ser moral, que se objetiva na beleza. Ao manter a moldura conceitual kantiana, Schiller não conseguiu fundamentar a originalidade de sua proposta. O ideal da vida moral, que, para ele, consistia na união da sensibilidade com o entendimento, mal pode ser diferenciado do conceito de uma pura consciência ou vontade sagrada. E a estrutura dos afetos morais tem muito pouco em comum com aquilo que comumente chamamos de sensibilidade e que Schiller chamava de pulsão natural. Ele via claramente, contudo, que, se todo afeto nobre da alma harmoniosa é realmente devido à sensibilidade, então a razão, em situações particulares que requerem a energia moral, novamente deve se separar da sensibilidade, energicamente se opondo às suas seduções. Enfim, Schiller (1995) tomou todo o reino do prazer estético como ponte para uma reflexão sobre a essência humana que é fundamentalmente moral. O desenvolvimento consistente desse ponto de partida, segundo Henrich (1982), poderia ter levado Schiller a uma concepção unificada do belo e do sublime; apenas faltaram-lhe os meios conceituais para isso. O desenvolvimento mais complexo dessa iniciativa teria, assim, que esperar por uma nova fundação no idealismo especulativo de Schelling e, especialmente, de Hegel. Outro pós-kantiano que merece destaque é Friedrich von Schelling (1775- Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 212 1854), embora admitindo o valor daqueles que, como Fichte ou Schiller, desenvolveram as idéias de uma filosofia da arte, censura-os severamente por falta de seriedade, de verdadeiro espírito científico. Schelling propõe um retorno às origens, isto é, à insubstituível Crítica do Juízo, partindo da filosofia da natureza e da crítica do juízo teleológico que Kant dera como seguimento ao estudo do juízo estético (SCHELLING, 1998). Trata-se de encontrar o traço de união entre a filosofia teórica e a filosofia prática, e, também, a identidade fundamental dos dois mundos no seio do próprio espírito. Haverá então, no fundo do eu, uma atividade com ou sem consciência, inconsciente como a natureza e consciente como o espírito? Sim, responde Schelling. Para ele é a atividade estética o órgão geral da filosofia, o fecho da abóbada de todo o edifício. Para sair da realidade cotidiana temos dois caminhos à escolha: a poesia, evasão virada para um mundo ideal, e a filosofia, aniquilação do mundo real. De tal modo que só uma obra de arte absoluta pode existir em diferentes exemplares, mas que é única, embora ainda não exista na sua forma original. Schelling (Op. cit.) mostra vigorosamente que a arte é mais do que o órgão, é o verdadeiro documento da filosofia. Tal como a filosofia nasceu da poesia, também virá um tempo em que ela regressará à sua alma mater, de onde se separou. Então, uma nova mitologia se edificará sobre a nova filosofia. Assim como a arte verdadeira não é a expressão de um momento, mas a representação da vida infinita, a intuição transcendental38 objetiva do mesmo modo o Absoluto que é tanto o objeto da arte como da filosofia: mas a arte representa o absoluto na idéia e esta no seu reflexo. Para Schelling (1998) a Filosofia não retraça as coisas reais, mas uma idéia delas e a arte igualmente. Essas mesmas idéias, cujas coisas reais, como prova a 38 Para Kant (1988) o sentido tradicional da intuição referia-se a representação tal qual seria pela sua decorrência da imediata presença do objeto, portanto a intuição geralmente é o conhecimento para o qual o objeto apresenta-se diretamente. Ao distinguir a intuição sensível é a de todo ser pensante, finito, ao qual o objeto é dado é , portanto, passividade, afeição (Kant, 1989). Já a intuição intelectual é originária e criativa, nela o objeto é posto ou criado, portanto, só se encontra no Ser criador, em Deus., assim a intituição intelectual é a intuição divina da filosofia tradicional (ABBAGNANO, 1999). Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 213 filosofia, são cópias imperfeitas, aparecem na arte, objetivadas como idéias e, por conseguinte, na sua perfeição; representam o intelectual no mundo refletido. Schelling chega assim, a um idealismo tricotômico (verdade, bondade, beleza). Do mesmo modo que Schiller (1995) e outros idealistas, Schelling (Op. cit.) colocou como problema ultrapassar as divisões que se tornaram dominantes na filosofia a partir de Kant, tanto a divisão do sujeito-objeto, quanto, mais particularmente, a compartimentação das faculdades humanas em entendimento, razão e sensibilidade. Schelling (Op. cit.) deu à intuição o papel unificador da relação sujeito-objeto, mas, para ele, tratava-se de se perguntar como fazer sentido a essa unificação a partir de nossa perspectiva de seres em luta com nossas divisões e finitude. Nosso pensamento não pode, por si, articular um modo de superar essas divisões, porque a divisão está na natureza mesma da reflexão. Sem aceitar as respostas dadas a essas questões por seus antecessores, particularmente Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), Schelling buscou um novo caminho que desembocou num idealismo transcendental com feições próprias. Com Schelling (Op. cit.), portanto, a filosofia romântica alemã se tornou mais completamente idealista. Com ele também, à estética, pela primeira e única vez, foi concedido um lugar de honra junto à filosofia como a expressão última e absoluta daquilo que é verdadeiro e tem valor. A filosofia confia na intuição intelectual, no sentido de ser o pensamento sobre o pensamento, que é um processo produtivo, mas dirigido para o interior, enquanto a arte está voltada para o exterior, refletindo o inconsciente nos seus produtos. Há um excesso na subjetividade que só a arte é capaz de apreender. Schelling insistiu na concepção da arte como uma unidade entre as atividades conscientes e inconscientes, tomando partido dela na sua tentativa de levar a filosofia a confrontar-se com aspectos da autoconsciência que Kant havia colocado num reino a que a filosofia não podia ter acesso (BOWIE, 1990). Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 214 Cabe também considerar como um pós-kantiano Hegel. G.W. F. A Estética e a filosofia de Hegel (1770-1831), em geral, foi a mais célebre e a mais profundamente admirada na Europa. Provavelmente nenhum outro filósofo foi tão longe como ele neste campo, levando a afirmar que Hegel é incontestavelmente o maior esteta de todos os tempos. Convém dizê-lo, tanto mais que esta é uma idéia tão banal como contestada. Os quatro volumes da sua Estética constituem uma mina de uma riqueza inesgotável em todos os sentidos. Para Hegel (1996) a Beleza é a aparição perceptível da idéia; o conteúdo da arte é a idéia e, a sua forma, é a configuração sensível e imaginativa. Para que os dois aspectos da arte se possam compenetrar, é necessário que o conteúdo, ao tornar-se obra de arte, se mostre capaz de uma transformação, pois Hegel procura a racionalidade interior do real. Por isso, fica claro que o pensamento do artista não será nunca um pensamento abstrato. O grau mais elevado da vida espiritual é o que Hegel chama o Espírito Absoluto: é a este nível que o espírito toma consciência da idealidade do real, da imanência da idéia ou da razão absoluta em todas as coisas; é aí que a consciência coincide ou até mesmo se unifica com o ato da autoconsciência na qual o Absoluto, voltando a si mesmo, está eternamente presente na dispersão ilimitada da vida. Ora, as três etapas que aparecem no caminho do espírito humano em busca do Absoluto são precisamente a arte-revelação do Absoluto na sua forma intuitiva, pura aparição, idealidade que transparece através do real, ao mesmo tempo, que permanece como idealidade em face da objetividade do mundo ético humano – a Religião e a Filosofia. Se a arte, segundo Hegel (1996), atinge o seu alvo supremo quando, com a religião e a vida, torna consciente e exprime o divino, os interesses mais profundos do homem, as suas mais vastas verdades espirituais, longe de ser a forma mais alta do espírito, não atinge a sua perfeição senão na ciência. Depois de mostrar como a arte aparecia ao homem, Hegel determina os momentos essenciais da arte, coincidindo, aliás, com os principais períodos Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 215 históricos da sua irradiação. Tal é o objetivo da Segunda Parte da sua Estética, onde se assiste a uma espécie de metafísica da história das Belas-Artes, e da Terceira (e última Parte), onde Hegel nos dá a conhecer o seu sistema, a sua classificação das Belas-Artes. A arte, sendo a relação entre a idéia e a forma sensível, será denominada simbolista na sua primeira fase, quando essa relação não atinge ainda o equilíbrio definitivo do ideal artístico. Será clássica quando se torna propriamente ato do ideal, quando a unidade concreta e viva dos dois extremos é alcançada sob um aspecto acabado e determinado. E é romântica quando a relação dialética dos dois momentos atinge o limite, onde o infinito da idéia não se pode atualizar senão no infinito da intuição, nessa mobilidade que é própria e que a cada instante ataca e destrói a forma concreta. A esses três momentos correspondem primeiramente os três períodos da arte oriental, grega e moderna: pois, em cada um deles existe a síntese de uma cultura típica e tópica. Em seguida, da dialética dessas três etapas, Hegel deduz as diversas Artes: a arquitetura que corresponde ao momento simbólico, a escultura ao momento clássico, a pintura, a música e a poesia ao momento romântico. Mas, mesmo a poesia se divide num aspecto plástico ou pictórico (poesia épica), sugestivo e musical (lirismo) e essas diversas formas encontram a sua síntese total no drama. Hegel (1996) tinha acentuado o caráter inteligível ou teorético da arte. Mas, ao proceder desse modo, encaminhou-se para uma grande dificuldade a que os seus predecessores se tinham furtado. O hegelianismo tropeça nela. A arte está, com efeito, situada na esfera do espírito absoluto, do mesmo modo que a religião e a filosofia. Se ao menos a arte e a religião desempenhassem outras funções que não fossem as da filosofia, elas tornar-se-iam graus inferiores, mas não elimináveis, do conhecimento do Espírito. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 216 Mas, devido à busca comum do conhecimento Absoluto, que valor podiam conservar estando em concorrência direta com a Filosofia? Não podiam ser senão fases transitórias, históricas e fragmentárias da vida da humanidade. O sistema hegeliano, sendo racionalista e anti-religioso é também antiartístico. Esta foi, segundo Croce (1997) uma consequência estranha e desagradável para um homem possuidor de um intenso sentido estético e amador fervoroso da arte, como era Hegel. Foi como que a repetição do mau passo dado por Platão e da difícil situação em que se encontrou também, após outras vicissitudes. Mas, tal como o antigo, não hesitou em obedecer à razão e em condenar a mimesis e a poesia homérica que lhe era tão cara, não tentou subtrair-se à exigência do seu sistema e declarou a mortalidade, ou antes, a morte da Arte. Tudo deriva do grande princípio hegeliano (1996): no seu destino mais alto, a arte é e permanece para nós um passado. É a partir desta idéia: inferioridade da arte relativa ao pensamento, preponderância dos caracteres materiais ou dos interesses políticos etc., que o marxismo iria poder articular-se com a Estética hegeliana. Considera que a especialidade da produção artística e das obras hegelianas já não satisfaz a nossa necessidade mais elevada, concluindo que o pensamento e a reflexão ultrapassaram as belas-artes. Também merece ser referenciado como fortemente influenciado pelas obras de Kant, Arthur Schopenhauer (1788-1860), que oscilou entre o kantismo, de onde veio, e o platonismo para o qual procura frequentemente inclinar-se. Consoante a Arthur Schopenhauer, cada arte tem por tarefa uma categoria especial de idéias que, na perspectiva do Mundo como vontade e como representação, traduzir-se-á pela objetivação da vontade, susceptível de numerosos graus que são a medida da nitidez e da perfeição crescente. Cada coisa tem a sua beleza própria, mas uma hierarquia conduz-nos da matéria à vida e dos seres vivos ao homem e a beleza humana que representa a objetivação mais perfeita ao nível do mais alto grau onde ela é reconhecível. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 217 O sistema das Belas-Artes consiste, para Schopenhaeur, em dar a cada arte uma categoria especial de idéias. A mais baixa é a arquitetura, cuja utilidade material se aproxima da arte dos jardins e mesmo da pintura paisagística, pois ambas representam as idéias da natureza mineral (pedras) ou vegetal (jardinagem). A seguir, vêm a pintura e a escultura de animais, em oposição às naturezas mortas, correspondendo às idéias da zoologia. Depois, a pintura de interiores, os quadros históricos, as estátuas ou retratos de homens reproduzindo a beleza do corpo humano. Em seguida, a poesia, muito acima de todas as artes plásticas, pois tem como objeto próprio a idéia de homem. Mas há toda uma hierarquia nas artes literárias, com o lied, o romance, o idílio, a epopéia e o drama (em ordem ascendente), com exclusão da comédia, que Schopenhauer acha trivial demais para poder ser considerada arte. Todavia, mesmo a poesia figura num nível bem inferior da arte comparativamente à tragédia: é esta que, graças à piedade, nos permite comunicar com a idéia do homem absoluto. A piedade schopenhaueriana é uma espécie de sexto sentido: o homem só conhece e compreende as coisas na estrita medida em que simpatiza com elas e tem compaixão para com a humanidade. Compadecer é o alvo mais alto de toda a Filosofia. Acima de todas estas formas de arte que exprimem as idéias de matéria, de vida ou de humanidade, existe a forma das formas, a idéia das idéias, a arte que se confunde com o próprio cosmos: a música. O mundo é música encarnada, do mesmo modo que é vontade encarnada. Schopenhauer afirma também que há na música algo de inefável e de íntimo. Deste modo, ela passa perto de nós à semelhança de um paraíso familiar, ainda que eternamente inacessível. E para nós ao mesmo tempo “perfeitamente inteligível e completamente inexplicável”. É necessário compreender que, para Schopenhauer, dizer que uma coisa é bela, é dizer que é o objeto da nossa contemplação estética. Aquele que contempla, devido a uma espécie de catarse estética, segundo Croce (1997), torna-se um Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 218 sujeito cognoscitivo puro, libertado da vontade, da dor ou do tempo. Do mesmo modo, a arte aparece como uma revelação intuitiva, misteriosa, miraculosa das idéias. É a contemplação das coisas independentes do princípio de razão. Por isso, a essência do gênio está numa aptidão eminente para a contemplação. A arte é o melhor modo de conhecimento filosófico, já que a Beleza é a representação exata da vontade, mas não se infira que a Arte e a Filosofia se possam confundir. Uma é difícil, as outras são acessíveis. Em resumo, toda a estética schopenhaueriana pode ser sintetizada em: O artista empresta-nos os seus olhos para vermos o mundo, pois a arte é o melhor meio para chegar ao conhecimento puro do universo. Se a vontade é dolorosa ou infeliz, o querer-viver, a arte será o melhor calmante, o reconforto mais seguro. Simultaneamente tonificante e consoladora, a arte atingirá o entusiasmo estético que apaga as prisões da vida. Mas a música já não é suficiente; a alegria profunda deve ceder o lugar a uma calma recolhida; o Belo supremo e absoluto torna-se análogo do nada. A Estética transforma-se em mística. O homem em quem se nega à vontade vai poder mergulhar no seu nirvana. Apesar da sua influência nos impressionistas ou no pensamento de Nietzsche (1927), e não obstante uma inteligência e uma sensibilidade penetrantes, Schopenhauer (1969) contentou-se com fazer arte sobre a Filosofia da Arte: o seu sistema é muito mais a obra de um poeta do que a de um filósofo. Com Schopenhauer findava a tradição dos pós-kantianos. Ao criticismo vai seguir-se assim a época moderna da Estética, que foi, em alguma medida tratada no último tópico do capítulo anterior. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 219 6.3 O MÉTODO KANTIANO E A NOÇÃO DE IDÉIA CRÍTICA O método kantiano39 pode ser nominado de método reflexivo, ou seja, um método desenvolvido a partir da reflexão sobre os conhecimentos racionais que se é possuidor, em busca da obtenção de uma idéia precisa da própria natureza da razão. Nesse sentido a reflexão nada mais é senão aquele movimento pelo qual o sujeito, a partir de suas próprias operações, se volta para si mesmo, desse modo a análise reflexiva está, pois, ligada à idéia crítica. Considera Kant (1974) que certos conhecimentos estão para além de toda controvérsia, a exemplo da lógica, da matemática e da física, sendo que, na matemática e na física, temos conhecimentos que são ao mesmo tempo racionais e objetivos, no sentido de procederem com base na razão e se referirem a objetos. Esses conhecimentos são fundamentais, na medida em que a pretensão da metafísica é precisamente a de determinar certos objetos de forma totalmente a priori, exatamente como fazem as ciências. Questiona Kant (Op. cit.), enquanto problema, saber por que a metafísica fracassou onde a matemática e a física tiveram tão grande êxito e se este fracasso é definitivo. Convém notar, nesse contexto, que o racionalismo dogmático, conquanto justifique o êxito da ciência, não consegue explicar o fracasso da metafísica; o empirismo cético, por sua vez, explica bem o fracasso da metafísica, mas não o sucesso da matemática e da física. A metafísica procura estender o nosso conhecimento a domínios situados para além da experiência, o que equivale a dizer que as noções metafísicas são 39 Kant (2002) distingue entre métodos “naturalistas” e “científicos”, onde o primeiro procede de acordo com o senso comum e é rejeitado por ele como “mera misologia”, enquanto o segundo compreende os métodos dogmático, cético e crítico. O método dogmático representado por Wolff (1679-1754) obdece a um procedimento sistemático adotado da matemática, mas que está baseado em axiomas não examinados. O método cético representado por Hume (1711-1776) questiona sistematicamente todas as reivindicações racionais para estabelecer conexões necessárias entre eventos, mas sem investigar possíveis fontes de necessidade. Finalmente, o método crítico consiste no auto-exame sistemático da razão a fim de determinar as fontes e o alcance de seus conceitos a priori, e de atuar como um cânone contra a sua inadequada extensão além dos limites da experiência possível (CAYGILL, 2000) Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 220 noções a priori40 e, enquanto tais, conduziram a todas as contradições dos dogmatismos. Toda construção metafísica, logicamente coerente, podia pretenderse verdadeira, visto que nenhum objeto era dado na experiência, pela qual se pudesse confirmar ou desmentir a construção. O princípio lógico de não-contradição41 não basta para estabelecer a verdade de uma proposição; um juízo pode não ser contraditório em si mesmo, sem ser, ipso facto, verdadeiro, mas como é possível, nessas condições, que todos os espíritos estejam de acordo sobre certas proposições, a priori, como ocorre na matemática e na física? A fim de responder a esta pergunta, é preciso ver em que consistem "a revolução repentina" e a "mudança de método" que, para Kant, condicionaram o êxito dessas ciências. Idêntica revolução se produziu na física, quando Galileu, em lugar de se guiar docilmente pela experiência, acumulando observações esparsas, começou a interrogar a natureza segundo as exigências da razão, logrando assim descobrir-lhe as leis. Ele se deu conta de que a razão não percebe senão aquilo que ela mesma produz segundo seu próprio projeto. A mudança de método, em ambos os casos, consiste em determinar o objeto consoante às exigências da razão, em lugar de pôr o objeto como uma realidade dada, perante a qual a razão não tem alternativa senão a de inclinar-se. É a passagem do método empírico ao método racional, ou mais exatamente, de uma investigação tateante a uma demonstração racional. E se esta revolução abriu à matemática e à física o caminho seguro da 40 Expressão latina traduzida como “anterior à experiência”. Em Kant, são a priori, quer dizer, universais e necessárias, as formas ou intuições puras da sensibilidade (espaço e tempo), as categorias do entendimento e as idéias da razão. 41 Aristóteles (394-322 a.C) formulou a lei ou princípio de contradição cujo enunciado dizia “que o mesmo atributo não pode, ao mesmo tempo, pertencer e não pertencer ao mesmo sujeito e sob o mesmo aspecto” . Wolff vai estabelecer um sistema filosófico racionalista baseado na primazia do princípio da contradição, desse princípio, o ser sucede à não-contradição: “uma coisa não pode simultaneamente ser e não-ser” , ou seja, qualquer coisa que não é contraditória pode ipso facto existir. As primeiras críticas de Kant à dependência de Wolff desse princípio constituíram um dos seus mais importantes passos com vistas à posição assumida na filosofia crítica, e que consistiu, em termos gerais, numa reconsideração do significado do limitador temporal aristotélico. (CAYGILL, 2000). Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 221 ciência, não se poderia generalizar-lhe o princípio, admitindo que o nosso conhecimento dos objetos depende do sujeito conhecente pelo menos tanto quanto depende do objeto conhecido? Esta é a famosa revolução copernicana42 que Kant desfechou em matéria de filosofia, ao considerar a substituição, em teoria do conhecimento, de uma hipótese idealista à hipótese realista. O realismo admite que uma realidade nos é dada, quer seja de ordem sensível (para os empiristas), ou de ordem inteligível (para os racionalistas), e que o nosso conhecimento deve modelar-se sobre essa realidade. Conhecer, nessa hipótese, consiste, simplesmente, em registrar o real, e o espírito, nesta operação, é meramente passivo. O idealismo supõe, ao contrário, que o espírito intervém ativamente na elaboração do conhecimento e que o real, para nós, é resultado de uma construção. O objeto, tal como o conhecemos, é, em parte, obra nossa e, por conseguinte, podemos conhecer, a priori, em relação a todo objeto, os característicos que ele recebe de nossa própria faculdade cognitiva. Cabe destacar o fato de que a idéia de crítica, elemento central no kantismo, não aparece claramente senão em 1781, na Crítica da Razão Pura, quando Kant (1989) já chegará aos 57 anos de idade, o que demonstra ser sua filosofia fruto de um longo processo de elaboração e amadurecimento. Merece ser considerado, então, como se fez sua elaboração e resgatar as dificuldades que levaram-no a rejeitar a metafísica tradicional. É necessário considerar que os grandes temas da metafísica clássica, tais como Wolff (1963) os expusera e sistematizara, teriam podido satisfazer plenamente 42 O conteúdo da "revolução copernicana", anunciado com todas as letras no prefácio à segunda edição da Crítica da razão pura, significa a radicalização do cogito instaurado por Descartes, com uma diferença fundamental; afinal Kant concede a Descartes a idéia de que a subjetividade constitui, realmente, o novo centro e a nova referência da argumentação filosófica; porém, este novo centro precisa ser destituído, definitivamente, de suas bases ontológicas. O conteúdo da "revolução copernicana", anunciado com todas as letras no prefácio à segunda edição da Crítica da razão pura, significa a radicalização do cogito instaurado por Descartes, com uma diferença fundamental; afinal Kant concede a Descartes a idéia de que a subjetividade constitui, realmente, o novo centro e a nova referência da argumentação filosófica; porém, este novo centro precisa ser destituído, definitivamente, de suas bases ontológicas. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 222 a Kant (1974), pois respondiam à sua dupla exigência de uma ciência e de uma moral fundadas na razão. Entretanto, o que conduziu Kant à idéia crítica não foi a rejeição das conclusões metafísicas, e, sim, a consciência da incerteza dessas conclusões, e da fraqueza dos argumentos em que assentavam. Salienta-se que é coisa rara, na humanidade, ainda que seja esse homem filósofo, voltar-se a colocar sobre prova as verdades que estabelecem precisamente aquilo em que ele próprio acredita. O ponto de partida para tal questionamento segundo o próprio Kant, foi a leitura de Hume (1965) que lhe fez compreender a necessidade de repensar toda a metafísica: “Confesso abertamente haver sido a advertência de David Hume que, pela primeira vez, me despertou de meu sono dogmático e incutiu as minhas pesquisas no domínio da filosofia especulativa, orientação inteiramente diferente” (KANT, 1988, p. 28). Portanto, o empirismo cético de Hume e, em particular, a sua crítica da noção de causalidade, tornava incertas as posições do racionalismo dogmático. Hume provara de maneira irrefutável que a razão é incapaz de pensar, a priori, por meio de conceitos, uma relação necessária, tal como o é a conexão entre causa e efeito: “Não há possibilidade de ver como do fato de uma coisa existir deva seguir-se necessariamente a existência de outra coisa, nem como se possa introduzir a priori o conceito de semelhante conexão” (KANT, op. cit., p. 28). Segundo o filósofo inglês Hume (Op. cit.) , somente a experiência poderia ter engendrado a noção de causa: é por estarmos habituados a ver um fenômeno Y e a seguir um fenômeno X que esperamos Y, quando X é dado, e traduzimos esta expectação subjetiva dizendo que X é a causa de Y. Hume concluía que a razão não possui a faculdade de pensar as relações causais e, de modo geral, isso aparece nas afirmações de Kant quando considera “que todas as suas pretensas noções a priori são meras experiências comuns falsamente rotuladas; o que equivale a asseverar que não há, nem pode haver, qualquer espécie de metafísica” (KANT, 1988, p. 26). Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 223 Ora, é pela análise das noções a priori do espírito, ou das idéias inatas, que o racionalismo de Descartes (1981), de Leibniz (2000) e de Wolff (1963) pretendia atingir verdades absolutas e constituir uma metafísica. A crítica de Hume (1965) persuadiu Kant com a idéia de que era necessário abandonar "o velho dogmatismo carcomido". Contudo, Kant não alimenta a menor simpatia pelos céticos "essa espécie de nômade, que tem horror a toda fixação sólida no chão". Sem dúvida, os dogmáticos constroem seus edifícios metafísicos em terreno movediço, onde tudo desmorona antes mesmo de ser levado a termo; mas o ceticismo, ao qual se renderam tantos espíritos brilhantes do século XVIII, comete o erro de professar, pela metafísica, um desprezo que não pode ser sincero. Considera Kant (Op. cit.) que a metafísica está relacionada aos problemas da existência de Deus, da imortalidade da alma, da liberdade do homem no mundo: problemas que não nos podem ser indiferentes. E ainda que não nos fosse dado resolvê-los, não poderíamos deixar de formulá-los, afinal, a razão humana tem um destino singular em certo gênero de seus conhecimentos: sente-se importunada por questões a que não pode esquivarse. A nossa razão não pode limitar-se à experiência, tanto que próprios princípios que emprega no conhecimento experimental conduzem-na inevitavelmente a sair dos limites de toda experiência e a conceber realidades transcendentes, tais como a alma, o mundo (considerado em sua totalidade) e Deus. O problema que Kant busca dar conta é, pois, o seguinte: por que a metafísica não apresenta o mesmo grau de certeza que a lógica, a matemática ou a física? E tão grande é sua confiança na razão que não duvida um instante de que a questão comporta uma resposta, e uma só: não pode ser debalde que a razão nos reconduz incessantemente aos problemas metafísicos. O cometimento de Kant se resume, assim, no propósito de reabilitar a filosofia e de assumir a defesa da razão contra o ceticismo. Mas, ao invés de propor um novo sistema metafísico, que sem dúvida teria sorte idêntica à dos outros, Kant irá atacar Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 224 o problema pela raiz, interrogando-se sobre as próprias possibilidades da razão. Reencontra-se assim o movimento socrático de retorno sobre si mesmo, e a preocupação de conhecer as próprias forças. É nisso que está a utilidade da indiferença cética que não se dá por satisfeita com a aparência do saber. A preocupação crítica43 consiste essencialmente em não se dizer mais do que se sabe. Tal fora a preocupação de Sócrates44, cuja ironia visava dissipar as aparências de um saber falso; tal fora também a preocupação de Descartes (1981), que tencionava chegar à verdade pela dúvida. É preciso, então, buscar na própria razão as regras e os limites de sua atividade, a fim de saber até que ponto pode-se confiar na razão. Inicialmente Kant empreende em direção da razão especulativa45, ampliando em seguida, a razão considerada como princípio de nossas ações, e, enfim, a razão considerada como fonte dos nossos juízos estéticos e teleológicos46, presente na Crítica do juízo. Nas três situações, a noção de crítica tem o mesmo sentido e o mesmo alcance, mas é na Crítica da razão pura que, indubitavelmente, se percebe melhor o espírito da noção e o método que nela se inspira. 6.4 IDEALISMO TRANSCENDENTAL: A RUPTURA KANTIANA A ruptura kantiana ocorre, de modo geral, quando ele desloca a ênfase da 43 A noção de crítica, portanto, não se trata, evidentemente, de fazer o processo da razão assim como o faria uma crítica cética e destrutiva. Trata-se de um exame crítico da razão, isto é: de um exame que tem por fim discernir ou distinguir o que a razão pode fazer e o que é incapaz de fazer. 44 Ver CORNFORD (1999). 45 A razão é a faculdade de unificar as regras do intelecto por meio de princípios. Por isso , ela nunca visa imediatamente à experiência ou a um objeto qualquer, mas ao intelecto, para, por meio de conceitos, imprimir aos múltiplos conhecimentos deste uma unidade a priori. (KANT, 1989) 46 Kant (1993) distingui o juízo determinante (propriamente intelectual) do juízo refletivo (teleológico ou estético). O juízo determinante é dado o geral (a regra, o princípio, a lei), cabendo subsumir-lhe o particular ( o múltiplo sensível), enquanto no juízo reflexivo é dado o particular (as coisas naturais) cabendo encontrar o geral ao qual ele está subsumido, ou seja, o fim no qual as coisas são reintegráveis mediante um conceito (juizo teleológico) ou imediatamente, sem conceito (juízo estético) (KANT, 1993; 2002a; ABBAGNANO, 1999). Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 225 preocupação com os objetos para o modo de conhecer objetos. A tese transcendental desloca o sentido para fora do objeto, pondo-o no caráter discursivo do sujeito, o qual está dependente das condições transcendentais e não substanciais do próprio sujeito. O sentido não mais está no objeto e, por conseguinte, através da linguagem ou do "juízo"47, não mais se fala de uma propriedade intrínseca dos objetos. Toda a linguagem é uma relação mediata com o mundo e o que assegura esta mediação é a estrutura transcendental da subjetividade. No sentido kantiano a linguagem recebe uma significação precisa: Kant a usa no sentido de juízo, afirmando que intuição e conceito são as duas formas de conhecimento e anuncia, como tese que o conhecimento humano, através do entendimento, é um conhecimento mediante conceitos, não intuitivo, mas discursivo48. Para esclarecer o conceito kantiano de juízo e o seu papel, enquanto elemento mediador da relação entre o conhecimento e o objeto, é preciso traçar o paralelo entre a intuição e o conceito. Kant (1989; 1993) considera-os como dois modos de conhecimento. As intuições, enquanto sensíveis, repousam sobre afecções e os conceitos49, por sua vez, sobre funções. Função50 significa aqui a unidade da ação de ordenar diversas representações sob uma representação comum. 47 Por juízo Kant (1993) entende como “faculdade de pensar o particular contido no geral”, ou, “como a representação da unidade da consciência de representações distintas”, ou ainda, “como a representação das relações entre estas representações, na medida em que constituem um único conceito”. 48 Por caráter discursivo ele entende o conhecimento dos objetos que é mediado por juízos. Quando Kant usa a expressão conhecimento discursivo ele quer dizer isso: todo o conhecimento humano é um conhecimento judicativo, isto é, um conhecimento não imediato de um objeto, mas um conhecimento que é mediado pelo juízo que é uma representação de uma representação de um objeto. 49 Uma diferença fundamental entre intuição e conceito reside no seguinte: enquanto a primeira funda-se na receptividade das impressões, o conceito funda-se na espontaneidade do pensamento. O problema que nos interessa surge quando Kant (2002b) atribui somente à intuição, e não ao conceito, a possibilidade de se referir imediatamente ao objeto. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 226 Ora, a peculiaridade do conceito consiste em ser um tipo de representação que só se refere ao objeto através de uma outra representação. Então, o conceito é uma representação de uma representação e é neste sentido que se diz que ele tem uma relação mediata com o objeto. O conceito, deste modo, é o juízo. Embora Kant tenha assumido, em certo sentido, a teoria da proposição aristotélica, sua distância com Aristóteles é enorme, já que retira da proposição e do conhecimento judicativo a sua base ontológica. Ao deslocar o sentido do objeto e ao pô-lo no juízo, o problema de Kant consistirá em ter que demonstrar onde reside o sentido do próprio juízo e o fará localizando-o na subjetividade (na unidade sintética originária da percepção). Esta inversão é significativa porque permite derivar as condições de possibilidade dos objetos da estrutura transcendental da subjetividade. Porém, o problema fundamental consiste, justamente, em demonstrar quais são estas condições e como se pode fundamentá-las. Além disso, e aqui reside a sua polêmica, trata-se de ver se o conteúdo desta prova (demonstração) está suficientemente fundamentado. Kant (1979) deixa claro que considera como conhecimento transcendental somente aquele conhecimento que se ocupa com a questão da sua possibilidade. A importância não reside nas perguntas “o que é o conhecimento” e “o que é o objeto”, mas em como é possível o conhecimento de objetos. Simultaneamente, com o emprego do termo transcendental ele quer demonstrar que há certas representações (intuições e conceitos) que possuem uma aplicação e que são possíveis a priori. Isso indica para o fato de que uma exposição apropriada do conceito de transcendental terá de explicar o que são intuição e conceitos puros e demonstrar como eles são possíveis a priori. Ora, esta exigência remete para a análise da tessitura argumentativa interna da Estética e da Analítica Transcendentais. 50 Função para Kant, segundo Galeffi (1986) assume o significado do conceito, que se baseia na espontaneidade do pensamento, assim como as intuições sensíveis se baseiam na receptividade Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 227 São os argumentos desenvolvidos nestas duas partes da Crítica que demonstram a constituição e o sentido da estrutura transcendental da subjetividade e que a afirmam como núcleo referencial das condições de possibilidade do conhecimento de objetos. Esta estrutura aparece duplamente caracterizada ao considerar que possui origem não-empírica e se relaciona de modo a priori com os objetos da experiência. Espaço e tempo, ao lado da sensibilidade, são as condições a priori e os conceitos puros (as categorias) o são do lado do entendimento. Espaço, tempo e categorias perfazem a estrutura transcendental que encontram a sua unidade suprema na própria unidade do sujeito pensante (subjetividade). Porém, e este é o ponto, a estrutura transcendental da subjetividade está conectada com um duplo conceito de um mesmo objeto. Aqui radica a relevância do idealismo transcendental. Isto é, a própria estrutura transcendental opera com a distinção entre um duplo conceito de um mesmo objeto e, portanto, está intimamente conectada com as teses do idealismo transcendental51. Com a distinção entre fenômenos e númenos52 Kant pretende estabelecer uma linha divisória entre o cognoscível e o incognoscível e limitar o espaço onde a razão pura está autorizada a conhecer e onde ela somente pode pensar. Esta distinção precisa ser feita de tal modo que autorize o uso cognoscitivo válido da razão pura sem que invalide o seu pensamento sobre as idéias transcendentais (liberdade, imortalidade e Deus). das impressões. Idealismo transcendental é a doutrina através da qual Kant (1974) distingue entre um mundo fenomênico e um mundo numênico. É a teoria dos dois mundos que têm sua sustentação, basicamente, em duas teses: na distinção entre fenômenos e númenos e no recurso à coisa em si. 51 52 Por fenômeno entende Kant (1979) o conjunto das representações sensíveis que possui, como matéria, a sensação e, como forma, o espaço e o tempo. O fenômeno representa a dimensão do objeto que aparece e que é cognoscível por nós. Númeno, por sua vez, significa o objeto considerado a partir da natureza que possui em si mesmo; não é objeto dos nossos sentidos e, por isso, não pode ser conhecido. Ele é em sua significação negativa, como nos diz Kant, uma coisa na medida em que não é objeto de nossa intuição sensível. Fenômeno e númeno significam a dupla dimensão de um mesmo objeto: fenômeno é o que no objeto aparece, númeno é aquilo que o objeto é em si mesmo e que não aparece. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 228 A linha divisória estabelecida entre os dois mundos assegura que tudo o que está no mundo numênico não pode ser conhecido. A razão pura está autorizada a conhecer somente os objetos da experiência e, portanto, os objetos que fazem parte do mundo fenomênico. A estrutura transcendental da subjetividade está dependente da distinção entre fenômeno e númeno. Se são as condições transcendentais da subjetividade que tornam possível fundamentar o conhecimento de objetos a priori, não devemos nos esquecer, como nos adverte Wolff (1963), de que este mesmo conhecimento também só pode ser estabelecido mediante a hipótese de que ele é conhecimento da realidade como aparece e não como ela é em si mesma. Isto significa, então, que do ponto de vista "epistemológico", a razão, concebida enquanto entendimento que opera com conceitos, recebe uma limitação intransponível: jamais pode avançar o sinal da experiência possível. A distinção entre fenômeno e númeno, quando operada no âmbito fenomênico, circunscreve um limite ao entendimento, desautorizando-o a transpor a esfera do condicionado a transportar os princípios do incondicionado para o mundo fenomênico, pois, como nos adverte Kant, a aplicação da idéia de totalidade absoluta só vale como condição das coisas em si mesmas. No âmbito fenomênico, o entendimento deve ser rigorosamente regido pelo princípio da significatividade, isto é, da necessária referência das categorias às condições universais sensíveis. Há problemas legítimos que são postos à razão pura em seu âmbito numênico, tais como a imortalidade da alma, a existência de Deus e o problema da liberdade, indicando que a razão não se esgota no fenômeno e exige que o mesmo seja completado pelo númeno53. Será, sobretudo no contexto da "Dialética Transcendental" que o autor da 53 Indica o objeto do conhecimento intelectual puro, que é a coisa em si. Tal termo foi introduzido por Kant ainda que já fosse usado pelos filósofos gregos em contraposição ao termo sensível (ABBAGNANO, 1999). Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 229 Crítica se esforçará para demonstrar que a razão especulativa é uma necessidade da própria razão teórica, uma vez que o trabalho da teoria só é completado quando a razão se aventura especulativamente. Com a distinção entre fenômeno e númeno Kant pôde, portanto, por um lado, estabelecer limites ao entendimento, desautorizando qualquer uso epistemológico com sentido das categorias quando estas extrapolam o horizonte da experiência possível. Por outro lado, tal distinção também estabelece um uso meramente regulativo à razão, desautorizando a mesma a legislar na esfera do condicionado a partir de princípios que só valem para o âmbito do incondicionado. Deste veredicto kantiano sobre os diferentes usos da razão pode-se extrair um pacto de convivência entre uma razão epistemológica e uma razão metafísica, ambas vivendo lado a lado, mas cada uma legislando em seu próprio território. No entanto, devemos nos perguntar se as coisas realmente ocorrem deste modo. A julgar pelo conteúdo da Crítica da Razão Pura, reconhece-se que as coisas não ocorrem de modo assim tão simples. Pois, lo propósito kantiano, nesta obra, consiste em fundar o projeto teórico sem, simultaneamente, inviabilizar o projeto prático. O primeiro conduz Kant a restringir o uso dos conceitos puros às condições universais sensíveis e o segundo a “independizar” esses mesmos conceitos em relação ao sensível. A singularidade da posição kantiana sobre estes dois projetos reside, como nos alerta Lebrun (1993), no fato de que há uma oscilação de posição que ora defende a limitação dos conceitos ao sensível, ora a sua independência. Embora tanto a limitação como a independência podem ser entendidas como temas complementares, o fato é que isso não exclui a existência de uma tensão que perpassa o núcleo argumentativo da Crítica da Razão Pura, pois se encontram, nesta obra, inúmeras passagens que avalizam qualquer uma dessas posições. Também se encontra no contexto da primeira Crítica tentativas de resolução Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 230 dos problemas que emergem, especificamente, de cada um desses projetos. Assim, podemos conceber a "Dedução" como ponto central do projeto teórico e a "Terceira Antinomia" o do projeto prático, uma vez que a compatibilidade entre a causalidade livre e natural e o conceito de liberdade transcendental tornarão possíveis os dois seguintes pilares da filosofia moral: a idéia de autonomia - Fundamentação da Metafísica dos Costumes – Kant (1991) e da objetividade da lei moral - Crítica da Razão Prática – Kant (2002). No presente capítulo buscou-se resgatar a contribuição de Kant, considerando as influências sofridas e a repercussão que seus escritos terão sobre aqueles vistos como seus discípulos ou críticos. Foi dado destaque ao método formulado por Kant e que refletirá sobre a concepção de Estética defendida por esse, o que será objeto de reflexão no próximo capítulo. Como foi discutido, o presente capítulo permite ter os fundamentos kantianos que serão objeto de articulação com a Estética. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 231 CAPÍTULO VII A ESTÉTICA EM KANT Existem três tipos de conhecimento: um primeiro que constrói pensamentos e nos escraviza; um segundo que desperta sentimento e liberta; e um terceiro que é a própria liberdade, embasada no conhecimento de si mesmo. A Arca O presente capítulo tem como propósito delinear a Estética concebida e refletida nas obras de Kant, especialmente presente na primeira e terceira crítica. A escolha de Kant e o destaque dado a sua contribuição filosófica nesta tese deve-se ao fato de que no conjunto de sua obra, a Estética se faz presente na primeira crítica, assim como na terceira enquanto elemento de articulação e integração do conhecimento e do viver humano. Em Kant tem-se a presença da ação humana em três dimensões que redundam em uma, ou seja, a dimensão teórica, a dimensão empírica e a dimensão estética. Essa busca de integração indo aém do racionalismo e do empirismo enquanto base de compreensão da ação humana e nesta tese associada a ação organizacional justifica a escolha, assim como, a necessidade de resgatar a Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 232 construção kantiana, onde evidencia os limites e a saída para o racionalismo e o empirismo, sem negá-los enquanto fonte do conhecimento e do agir humano. O capítulo está estruturado de maneira a identificar e realçar os elementos essenciais na Estética kantiana, inclusive os elementos de influência, em seguida resgata-se a noção e elementos estéticos presentes na primeira crítica. Em seguida faz-se construção similar envolvendo a terceira crítica, destacando a faculdade de julgamento estético finalizando com uma síntese acerca da contribuição kantiana no que oncerne a Estética. 7.1 ELEMENTOS DA ESTÉTICA KANTIANA Kant não aprovava o intuicionismo da estética racionalista, uma vez que o apelo à intuição não dava espaço para se resolver racionalmente os desacordos em matéria de gosto, além de que fundar a Estética sobre a perfeição intuída significava fornecer conceitos determinados para os objetos estéticos. Do mesmo modo que recusava os pressupostos do racionalismo, Kant (1989; 2002) também discordava dos princípios empiricistas, especialmente do seu caráter psicológico, individualista, de um lado, e do caráter derivativo das propriedades estéticas, extraídas de propriedades não-estéticas dos objetos, de outro. Na perspectiva subjetivista, o belo não se referia a uma propriedade dos objetos, mas estava associado a alguma espécie particular de sentimento do sujeito. Determinar se “x é belo” não significava testar se algum conceito de uma propriedade objetiva se aplicava a “x”, mas sim, testar se algum conceito de prazer se aplicava ao sentimento de um sujeito sobre o objeto (COHEN, 1982). Kant (1989; 2002) não explicitou as linhas mestras desse tipo de subjetivismo que ao tempo que nem era racionalista, nem era empiricista, mas, filiada a essas duas vertentes do Iluminismo, dando a ele sua maior expressão, a obra kantiana e, mais especialmente, neste caso, sua estética criaram, desse modo, uma via Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 233 intermediária, a idealista, trazendo uma nova interpretação para a secular relação da estética com o belo e o prazer. Kant (1991) estava tão interessado nos problemas da arte e da estética que, já em 1764, antes mesmo da sua primeira Crítica, a da razão, publicou o ensaio Observações sobre o Sentimento do Belo e do Sublime, no qual a palavra estética ainda não aparecia, o prazer era visto como uma sensação ou um sentimento e as diferenças entre o belo e o sublime eram tratadas de maneira simplificada, longe das complexidades que emergiriam na sua terceira crítica, a do julgamento, de 1790. O que torna essa terceira crítica especialmente difícil é a sua íntima conexão com os temas das duas primeiras, A crítica da razão pura, de 1781, e A crítica da razão prática, de 1788. Do mesmo modo que a primeira visou a sistemática explicação dos elementos, a priori, do entendimento, a segunda buscou explicar os pressupostos da moralidade, ou, em termos kantianos, da “liberdade”. O problema dessas duas críticas, em síntese, estava em determinar, de modo não circular e não teleológico, a verdadeira fundação das atividades do sujeito, este novo princípio da filosofia. Seria estranho que não houvesse nenhuma conexão, pois, para Kant, nossa faculdade cognitiva e nossa liberdade são autodeterminadas. Numa carta para K.L. Reinhold, em 1787, Kant anunciava ter descoberto um terceiro princípio, a priori, distinto dos anteriores. Esse princípio diz respeito à natureza do prazer e do julgamento do belo. Segundo Coleman (1974), com a explicação transcendental do julgamento e da faculdade do prazer e desprazer, Kant conseguiu construir a grande ponte de ligação entre o supra-sensível e o fenomenal. Atuando como um termo intermediário entre o entendimento e a razão e entre as faculdades da cognição e do desejo, o julgamento prescreve uma regra a priori para o sentimento de prazer e desprazer. Esse julgamento é difícil de explicar porque ele fornece uma regra que se diferencia tanto de um princípio cognitivo para o entendimento quanto de um princípio prático para a vontade. Kant (2002) apresenta uma dialética e uma antinomia na sua terceira crítica, Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 234 não surpreendendo também o extremo formalismo de sua exposição, distribuída, na sua primeira parte, em duas grandes divisões: 1. “Analítica da Faculdade de Juízo Estética” e 2. “Dialética da Faculdade de Juízo Estética”. A primeira divisão, por sua vez, se subdivide em dois livros: 1.1. “Analítica do Belo” e 1.2. “Analítica do Sublime”. O primeiro livro, então, se desenvolve em quatro momentos, cada um deles contribuindo na formação geral do julgamento do belo. Vários sentidos para a palavra “julgamento” podem ser encontrados em Kant. No caso do julgamento estético, de um modo geral, ele estava preocupado com a explicação de um poder de discernimento ou capacidade de julgar no seu funcionamento particularmente estético, que pode ser expresso numa afirmação ou proposição. Esse julgamento deve ser puro, quer dizer, não deve ter nenhum traço empírico ou material, dizendo respeito apenas à forma ou estrutura daquilo que se apresenta à mente. Recorde-se aqui que, já na primeira crítica, se as aparências devem se apresentar de acordo com leis necessárias, então a mente deve estar de posse de certos conceitos. Embora supridos por dados empíricos, esses conceitos são conhecíveis independentemente de qualquer experiência empírica, pois, ao contrário, devem ser capazes de fornecer as formas de toda experiência possível. Julgar e usar conceitos a priori são atividades paralelas, se é que não se trata da mesma atividade apenas descrita de maneira diferente. Já é bastante conhecido o fato de que, na primeira critica, Kant (1989) tentou chegar a uma lista exaustiva dos conceitos, a priori, através da análise das propriedades do julgamento que haviam sido descritas na lógica aristotélica. Se todos os dados empíricos são abstraídos de um dado julgamento, isolando-se as puras formas do entendimento, os julgamentos sempre funcionarão sob quatro rubricas, cada uma delas apresentando três momentos, assim distribuídos: 1. quantidade (universal, particular, singular); Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 235 2. qualidade (afirmativa, negativa, infinita); 3. relação (categorial, hipotética, disjuntiva); e 4. modalidade (problemática, assertiva, apodítica). Ora, assim na terceira critica, Kant (2002a) apenas modificou a terminologia dessa mesma tabela lógica, chamando as quatro rubricas de quatro momentos; os quais numa visão panorâmica, se expressam da seguinte maneira: • Primeiro momento: Gosto é a faculdade de apreciar um objeto ou um modo de representação através de um prazer ou aversão, independentemente de qualquer interesse. E o objeto de tal prazer é chamado belo. • Segundo momento: O belo é aquilo que, sem depender de um conceito, quer dizer, independentemente de um conceito, agrada universalmente. • Terceiro momento: O belo é a forma da finalidade em um objeto, mas na medida em que é nele percebido independentemente da representação de um fim. • Quarto momento: O belo é aquilo que, independentemente de um conceito, é conhecível como um prazer necessário. Embora Kant não tenha descrito esses quatro momentos na forma de paradoxos, reservando a linguagem da “tese-antítese-síntese” para a exposição daquilo que ele veio chamar de “antinomia do gosto”, Coleman (1974) faz dos quatro momentos uma apresentação na forma de tese-antítese, que ajuda sobremaneira o entendimento dos problemas que estão pressupostos na análise de cada um deles. No julgamento do gosto, segundo Kant (2002), opera um tipo muito distintivo de formalismo, que envolve duas noções bem difíceis: a da finalidade e a do jogo livre das faculdades cognitivas. Kant (Op. cit.) tinha um modo muito complexo de classificar os fins. A Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 236 finalidade da forma não está necessariamente relacionada com aquilo que algo busca ou a que algo tende, a buscar nem é ainda aquilo em função do qual algumas criaturas agem. Para Kant, pessoas e coisas têm fins e são fins em si mesmas. Neste sentido, a finalidade é classificada de acordo com quatro eixos: subjetiva-objetiva, formalreal, interna-externa e condicional-incondicional (quer dizer: relativa-absoluta). Os fins, que dependem da vontade de uma pessoa, por exemplo, são subjetivos, reais, externos e relativos. O fim, que uma pessoa é em si mesma, é objetivo, real, interno e absoluto. As coisas utilitárias têm fins subjetivos, reais, externos e relativos. Ainda de acordo com essa classificação, os fins dos objetos belos são subjetivos, formais, internos e, surpreendentemente, absolutos. E finalidade da forma quer dizer que a forma é um fim para a percepção, podendo ser considerada tanto do ponto de vista da natureza quanto do ponto de vista dos sujeitos que julgam (MCCLOSKEY,1987). Não há nada que a natureza possa fazer que não tenha um propósito. Por outro lado, um dos traços mais inerentes à mente é o de se aproximar de qualquer coisa que seja sob a rubrica do propósito, ou melhor, da finalidade. Só a forma da finalidade, segundo Kant, pode satisfazer as condições da concordância universal, implícita em nossos julgamentos do belo, que devem ser públicos ou interpessoais, reguladores e válidos em si mesmos. Para Kant (Op. cit.), o julgamento do belo é uma das espécies de julgamento reflexivo, quer dizer, aquele julgamento de um particular em busca de um conceito ou regra universal. Já o julgamento determinado é aquele em que o universal é dado e sob o qual um particular é englobado. Os julgamentos práticos são determinados, quer dizer, temos um conceito determinado concernente ao que é útil ou prudente, por exemplo, e aplicamos o conceito a uma situação particular. Mesmo uma escolha particular pressupõe uma Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 237 regra determinada, a do imperativo categórico. Os julgamentos cognitivos também pressupõem propósitos determinados, que são descobertos através da investigação empírica de certos assuntos ou pela análise racional. A beleza encoraja o avanço da ida, o sublime o suspende. Brinca-se com a beleza, mas respeita-se o sublime. Enquanto a beleza, por si mesma, parece adaptar-se à nossa sensibilidade, o sublime desconcerta e ultraja a nossa imaginação, lançando-nos num esforço de compreensão que ultrapassa a faculdade imaginativa e forçando-nos a abandonar essa sensibilidade meramente empírica em direção a um reino mais elevado. Assim, o sublime rompe com as formas e nos lança no caos e na perplexidade ao conturbar os padrões comuns de grandeza e magnitude, negando qualquer propósito à natureza. É por isso que, para o belo na natureza, buscamos um fundamento externo a nós, enquanto o sublime nos arremessa de volta a nós mesmos em busca de nossos próprios recursos morais. Os objetos julgados sublimes não exibem a finalidade da natureza, mas apenas produzem um emprego final de uma representação pela imaginação. Se for correto chamar os objetos de belo, não é correto chamá-los de sublimes, pois, nestes, a apresentação da sublimidade é descoberta na mente e é esta, mais do que os objetos, que expõe o caráter de sublime. Daí o sublime não se referir a objetos ou coisas externas a nós, mas a certas disposições da alma despertadas por um objeto que pinça a atenção do julgamento reflexivo de um certo modo. Em síntese, o sublime, em geral, é tudo aquilo para o qual não há padrão de comparação porque todos os padrões se tornam inadequados, uma vez que a fonte da sublimidade não se encontra no mundo dos sentidos ou na natureza, mas deve residir em certas idéias compartilhadas pela humanidade. O mesmo procedimento, adotado na analítica do belo, foi adotado com o sublime, também analisado em momentos: o “prazer” do sublime deve ser universalmente válido na categoria da quantidade, independente do interesse na Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 238 qualidade; subjetivamente final, na relação; e necessário, na modalidade. Qualquer julgamento do sublime deve ser universalmente válido, mas, por estar baseado no informe, enquanto o belo repousa na forma, a analítica de tal julgamento difere da analítica da beleza. Enquanto o belo parece ser a apresentação de um conceito indeterminado do entendimento, o sublime parece ser um conceito indeterminado da razão. O belo tem limites e é contemplativo. Diante do belo, a mente se sente em casa no jogo livre de suas faculdades e a imaginação reconhece formas que advêm de suas próprias leis. O sublime, por sua vez, é ilimitado. O sentimento do sublime é provocado porque o objeto que o estimula não exibe a forma e a harmonia que a imaginação livremente ditaria. Sendo o objeto do sublime informe, imenso e poderoso, é a natureza humana, ela mesma, que é ultrajada, ao experimentar o sentimento do sublime cujo traço característico está num movimento mental que se combina com a apreciação do objeto. Sendo o sublime também estético, esse movimento deve ser um movimento sentido, ou um sentimento que a imaginação reporta à faculdade da cognição ou do desejo, de onde advém a divisão do sublime em matemático, no primeiro caso, e dinâmico, no segundo caso. O belo não poderia ser um conceito empírico, nem poderia ser um conceito puro, pois julgamentos do belo não são singulares, nem conotam um “traço que várias coisas têm em comum”. Não sendo nem empírico, nem, a priori, uma noção, nem uma idéia da razão, e não sendo nem mesmo um ideal, a que gênero então, pertence o belo? Como já vimos, Kant (2002) considerou o julgamento do belo como uma “função” ou mesmo uma “disposição” que implica em se impor à forma do belo uma multiplicidade sensível, através de conceitos indeterminados, de acordo com sentimentos de prazer e desprazer. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 239 Tais conceitos indeterminados são empíricos, no caso do belo, enquanto, no caso do sublime, as idéias da razão são indeterminadamente produzidas. Do mesmo modo que o entendimento é relativamente livre ao construir conceitos empíricos, quando se trata do julgamento estético, ele alcança o limite da sua liberdade. Tendo isso em vista, o paradoxo do belo pode agora ser apresentado. Se o julgamento do belo repousa sobre conceitos, então se trata de um julgamento que poderia ser provado racionalmente quer dedutiva quer indutivamente. Kant não caiu nessa simplificação. Para ele, a estética racionalista se reduz ao puro analitismo, enquanto a estética psicológica escorrega no mero relativismo. Ele queria evitar qualquer um desses dois extremos. Assim sendo, não poderia aceitar também que os julgamentos estéticos fossem apenas fragilmente conceituais, porque então eles teriam uma validade apenas autobiográfica. No reconhecimento do prazer implicado tanto no belo quanto no sublime, está uma clara rejeição, de um lado, à idéia platônica de que uma subordinação do sentimento à razão é desejável, de outro lado, uma rejeição também à concepção de Hume da submissão necessária da razão à paixão. Isso tudo, sem perder a ligação do belo com a moralidade, pois, ao final do livro, Kant discutiu a idéia da beleza como símbolo da moralidade. No equilíbrio do sentimento e da regra, encontramos o caminho para sentir o impacto das idéias morais as quais, sem o sentimento do belo e do sublime, permaneceriam como meros postulados da razão prática. Foi este o fio que a estética de Schiller (1995) puxou de Kant, na intermediação que faria entre KANT (2002; 1974) e HEGEL (1996; 1972). Num belo artigo onde busca explicar por que a beleza é um símbolo da moralidade em Kant, Cohen (1982) toma como ponto de partida uma interpretação bastante sugestiva daquilo que o objeto belo é e faz. Considera que há um sentido em que um objeto belo não tem qualquer característica, assim como há um sentido em que o julgamento do belo não diz respeito a nenhum objeto. Aponta que há três Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 240 modos através dos quais as coisas fazem sentido para nós: 1. quando algo nos dá prazer sensório; 2. quando contemplamos algo a fim de compreendê-lo; 3. quando utilizamos algo para alguma finalidade. Um dos traços mais sugestivos da teoria moral de Kant (1988; 2002) está na sua postulação de que insistir na nossa humanidade individual requer, por uma questão de lógica, o reconhecimento da humanidade do outro. Dessa forma, nossa dignidade depende da consideração da dignidade do outro. O que implica dizer que tratar como um fim e vice-versa. O objeto belo, diz Cohen (1982), é o símbolo da idéia desta espécie de outro. Nosso engajamento no belo simboliza uma vontade do bem, no ato mesmo de ter a vontade do bem. Já nossa humanidade essencial se revela de dois modos: fazer sentido das coisas e exercer uma influência sobre elas. Como caso limite e como emblema da nossa habilidade de fazer sentido das coisas, o puro julgamento do gosto é a espécie de experiência pura em que um aspecto de nossa humanidade essencial se revela, sendo simultaneamente o mais próximo que podemos chegar do seu segundo modo de revelação. Se o objeto belo é uma apresentação indireta do conceito de vontade do bem, então ele indica esse conceito de modo metafórico ou analógico. A experiência moral é uma questão de engajamento. Kant mostrou que essa experiência é paralela em profundidade e complexidade à experiência do belo. Se o belo não for apenas um símbolo da moralidade, mas o símbolo da moralidade, então apenas a experiência do belo tem a espécie de riqueza necessária para simbolizar a experiência moral. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 241 7.2 A ESTÉTICA TRANSCENDENTAL E A PRIMEIRA CRÍTICA A primeira parte da Crítica da razão pura intitulada Estética transcendental, trata das formas, a priori, da sensibilidade e responde à pergunta acerca de como são possíveis os juízos sintéticos, a priori, na matemática. A segunda parte, ou Lógica transcendental, divide-se em duas: a primeira subdivisão, ou Analítica, trata das formas, a priori, do entendimento e responde à questão: como são possíveis os juízos sintéticos, a priori, na física. Por sua vez, a segunda subdivisão ou Dialética, trata das idéias da razão e responde, negativamente, à pergunta acerca da possibilidade de haver juízos sintéticos, a priori, na metafísica. É com base na clássica distinção dos filósofos antigos entre objetos sensíveis (aisthètá) e objetos inteligíveis (noètá) que Kant estabelece a sua distinção entre sensibilidade e entendimento54. Afirma Kant (1989) que, sejam quais forem a maneira e os meios pelos quais um conhecimento possa relacionar-se com objetos, o modo pelo qual o conhecimento se relaciona imediatamente a eles e ao qual todo pensamento visa como um meio (para atingi-los) é a intuição. Portanto, não há intuição55, a menos que um objeto nos seja dado. Mas, como não há outros objetos dados ao homem que não sejam aqueles que lhe afetam o espírito, a faculdade das intuições será a sensibilidade ou capacidade de receber representações ou a receptividade para as impressões. Quer dizer que há somente intuições sensíveis; não existem intuições intelectuais, ao menos para o homem. Com efeito, numa intuição intelectual, o 54 A Sensibilidade (em grego: aísthèsis, donde vem o termo estética) é a faculdade das intuições. E o Entendimento (em grego: lógos, donde Lógica) é a faculdade dos conceitos. 55 Por Intuição deve entender-se, sempre consoante à etimologia (latim: intueri: ver), ou seja, a visão direta e imediata de um objeto de pensamento atualmente presente ao espírito e apreendido em sua realidade individual. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 242 espírito dar-se-ia a si mesmo o objeto que vê; mas um tal modo de conhecer é privativo do Ser supremo, ou seja, a intuição humana supõe que um objeto nos seja dado e que este nos afete o espírito. A sensibilidade é, precisamente, essa faculdade que possui nosso espírito de ser afetado por objetos, ou ainda, é por meio da sensibilidade, pois, que os objetos nos são dados, e só ela nos fornece intuições. O entendimento, ao revés, não é um poder de intuição, só pode pensar os objetos fornecidos pela sensibilidade. É, sim, um poder não sensível de conhecer; em oposição à receptividade, que define a sensibilidade; ele é uma espontaneidade, isto é, uma faculdade de produzir representações. E visto que só a sensibilidade fornece intuições, as representações do entendimento serão conceitos. O ponto de partida do conhecimento é a sensação, isto é, a impressão produzida por um objeto na sensibilidade. A intuição que assim se relaciona a seu objeto por intermédio da sensação chama-se intuição empírica; e chama-se fenômeno o objeto dessa intuição empírica. Mas a noção de fenômeno requer nova distinção, ou melhor, aquilo que, no fenômeno, corresponde à sensação, eu chamo de matéria do fenômeno; mas o que faz com que o múltiplo do fenômeno possa ser ordenado em certas relações chamo de forma do fenômeno. E como aquilo em que as sensações unicamente podem ordenar-se e pôr-se em uma certa forma não pode, por sua vez, ser sensação, segue-se que, se a matéria de todo fenômeno só nos é dada a posteriori, a sua forma deve encontrar-se a priori no espírito, e pronta para aplicar-se a todos e, por conseguinte, deve poderse considerá-la à parte de toda sensação. O vocabulário que Kant (2002) usa é o mesmo da terminologia escolástica. A escolástica entendia, em sentido muito amplo, a oposição entre forma e matéria; mas distinguia, notadamente, a forma de raciocínio, isto é, a maneira de ligar suas várias proposições, de sua matéria, ou seja, do seu conteúdo, representado pelos conceitos das referidas proposições. Assim, um raciocínio podia ser formalmente Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 243 válido, embora terminasse numa conclusão materialmente falsa. Do mesmo modo, Kant (2002) entenderá por matéria o conteúdo da sensação e, por forma, aquilo que ordena tal matéria ou lhe dá forma. Daí ser a matéria necessariamente a posteriori, ao passo que a forma deve ser a priori, isto é, deve ser fornecida pelo próprio espírito. Mas não é somente na faculdade de pensar, ou no entendimento, que se devem procurar formas; deparamo-las também na sensibilidade ou faculdade de sentir. Da análise da Estética transcendental decorrem algumas conseqüências importantes, para as quais Kant chama a atenção. Note, em primeiro lugar, que a intuição só nos permite atingir fenômenos, e não coisas em si. De fato, as coisas que percebemos na intuição não são, em si mesmas, assim como nós as percebemos, pois, se prescindirmos de nossa constituição subjetiva, todas as propriedades temporais e espaciais dos objetos desaparecerão juntamente com o próprio tempo e espaço. Para retomar uma comparação fácil que, se tivéssemos os olhos recobertos de um vidro azul, veríamos todas as coisas como se fossem azuis e, no entanto, as coisas em si mesmas não seriam azuis. O fenômeno é a coisa, tal como esta aparece manter, seres humanos, cujos espíritos são constituídos assim. Pois cumpre não esquecer que, ao falar em condições subjetivas, Kant (2002) pensa na estrutura do espírito, e não na estrutura do aparelho sensorial. Entretanto, o relativismo kantiano nada tem a ver com o relativismo de um Protágoras56. Para Kant (1989) a nossa intuição do objeto depende, não da disposição particular ou da organização de tal ou tal sentido, mas da constituição geral da sensibilidade, que é a mesma em todos os homens. A verdade é que, se a nossa intuição do objeto tem "um valor geral para todo sentido humano", ela nada nos dá a conhecer da natureza dos objetos considerados em si mesmos. 56 Ver Chauí (2002). Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 244 Quer dizer: todos os progressos da experiência jamais nos permitirão sair dos limites da experiência; o nosso conhecimento dos fenômenos pode evoluir, mas em tempo algum venceremos a distância que separa o nosso saber daquilo que as coisas são em si mesmas e, independentemente, da maneira pela qual as percebemos. Nem o microscópio nem o telescópio nos aproximam da coisa em si. Tudo o que nos é dado sempre será relativo a nós mesmos. Por conseguinte, entre o sensível e o inteligível há uma diferença de natureza, e não de grau. Não passamos de um a outro pelo aprofundamento dos nossos conhecimentos, como julgavam Leibniz (2000) e Wolff (1963). O inteligível puro nos é inteiramente inacessível, pois nenhuma coisa em si nos é dada, mas tão-somente fenômenos. A verdade é que, pela sensibilidade, o nosso conhecimento da natureza das coisas em si não é apenas indistinto, mas nulo. No momento em que abstraímos, de nossa constituição subjetiva, o objeto representado e as propriedades que lhe atribuía a intuição sensível, já não se encontram, nem podem encontrar-se em parte alguma, visto ser justamente essa constituição subjetiva que determina a forma de tal objeto como fenômeno. Por outro lado, o que vale para os objetos externos, vale também para o espírito. A intuição do eu está sujeita a uma condição subjetiva, exatamente como a intuição do mundo. É no tempo que o espírito aparece a si próprio; por isso mesmo só lhe é possível apreender sua própria história, não, porém, seu ser. Verifica-se como os elementos que delinea a Estética transcendental de Kant efetua a articulação entre a intuição enquanto fonte de conhecimento, ainda que não seja ainda o conhecimento a priori. Fica evidente a articulação através da noção de fenômeno, de sensibilidade a articulação das diferentes fontes de conhecimento. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 245 7.3 A ESTÉTICA E A TERCEIRA CRÍTICA A filosofia de Kant (2002; 1988; 1989; 1993) reflete em seu próprio movimento a própria natureza de uma razão que não pode encontrar repouso num termo incondicionado. A primeira Crítica, que, entretanto, pretendia terminar o sistema, não podia satisfazer a exigência da prática pura. Mas a segunda Crítica também não bastou para apaziguar o desejo arquitetônico da razão. Em 1790, Kant produz uma terceira Critica, que trata da faculdade de julgar. A função desse texto é, sem dúvida, central para o kantismo, nele a filosofia foi dividida em uma parte teórica e uma parte prática, que se opõem por seu tipo de legislação, por seu domínio de aplicação e pelas faculdades que elas põem em jogo. Kant, tão preocupado em estabelecer decisões dicotômicas, recusa obstinadamente que a verdade da filosofia permaneça em uma oposição binária que a habitaria definitivamente. As duas partes da filosofia devem ser unidas em um todo; unir dois termos opostos implica a intervenção de um terceiro termo. A Crítica da faculdade de julgar deve, supostamente, unificar e reconciliar a razão teórica e a razão prática pura, a natureza determinada e a liberdade; se apresentando como o coroamento do empreendimento crítico. A terceira Crítica apresenta, em um quadro sistemático-tricotômico, a organização do conjunto das nossas faculdades. A faculdade de conhecer é o entendimento que submete os fenômenos a sua legislação determinante e que tem como campo de aplicação a natureza. Em primeiro lugar, a terceira Crítica declara explicitamente que a verdadeira faculdade de desejar é realmente a razão que quer a liberdade. Em segundo lugar, esse texto estabelece uma outra definição do juízo que a primeira Crítica ignorava. Instaura-se assim a distinção entre um juízo que determina, que subsume o particular sob uma lei geral do entendimento, em vista do conhecimento de um objeto, de um juízo que reflete. Este último tem como ponto de partida um dado Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 246 particular e deve descobrir a regra sob a qual ele possa subsumi-lo. Essa regra tem como função introduzir uma unidade, uma ordem na diversidade empírica que a legislação determinante do entendimento não pôde fornecer. O juízo reflexionante não determina um conhecimento; a regra que inventa só é válida para ele. Ele procede por analogia, assim como as leis do nosso entendimento prescrevem uma ordem para a natureza, que essa diversidade obedeça às leis de um entendimento análogo ao nosso. Assim, esse juízo representa os objetos da natureza sob o conceito de um entendimento que os teria produzido em suas formas particulares. Por forma, é preciso entender a especificidade do objeto. Um conceito que contém a razão da forma de um objeto, que causa essa forma, é um conceito de fim. O princípio transcendental que o juízo dá a si mesmo é o princípio de finalidade da natureza: tudo acontece como se tudo na natureza devesse concordar com a nossa faculdade de conhecer. Essa finalidade se relaciona a uma dupla atividade reflexionante: se julgamos pelo sentimento de prazer e de dor uma finalidade então qualificada de subjetiva ou formal, situamo-nos na estética; se julgamos por conceitos uma finalidade então qualificada de objetiva ou real, entramos no campo do juízo teleológico. A terceira Crítica não pretende apenas reunificar os membros esparsos do Sistema, Natureza e Liberdade, mas ainda integrar ao edifício uma teoria do belo, do sublime, uma teoria da finalidade na natureza, uma teoria do organismo. Antes de definir a faculdade de julgar a estética é necessário trabalharmos uma outra vinculação, a da finalidade da natureza (princípio subjetivo da faculdade de julgar) com o sentimento de prazer. Esta argumentação aparece no parágrafo VI da "Segunda Introdução". Kant nos diz que a concordância pensada da natureza, na multiplicidade de Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 247 suas leis particulares, com nossa necessidade de encontrar universalidade dos princípios para a natureza, tem de ser julgada contingente segundo todo o nosso discernimento; mas, para a necessidade de nosso entendimento. Todavia, tem de ser julgada indispensável, de acordo com nossas necessidades intelectuais, portanto, como finalidade (como conformidade a fins) através da qual a natureza concorda com nosso propósito, mas somente enquanto dirigido para o conhecimento. Mas, tanto quanto podemos discernir, é contingente que a ordenação da natureza segundo suas leis particulares (diante de toda sua multiplicidade e disparidade) seja realmente adequada a essa mesma natureza. Kant em sua argumentação acerca da coincidência das percepções com as leis regidas por conceitos universais da natureza (as categorias) não encontramos em nós mesmos, nem podemos encontrar, o menor efeito sobre o sentimento de prazer, porque o entendimento procede, necessariamente e sem propósito, segundo sua natureza. Mas, em contrapartida, a descoberta da possibilidade de união entre duas ou mais leis empíricas heterogêneas da natureza sob um princípio que engloba ambas é o fundamento de um prazer digno de nota, muitas vezes até de uma admiração. Aqui está mais um argumento que permite a vinculação entre a faculdade de julgar e o sentimento de prazer. É preciso que, no julgamento da natureza, algo chame o nosso entendimento à consideração da conformidade a fins dela, um estudo que submeta leis díspares da natureza a leis superiores ainda que empíricas, de maneira a - se isso é alcançado - sentir prazer nesse acordo da natureza (acordo meramente contingente) com vistas a nossa faculdade de conhecimento. Pelo contrário, nos desagradaria uma representação da natureza através da qual antecipadamente nos dissessem que, à menor investigação para além da experiência mais comum, nós haveríamos de nos deparar com uma heterogeneidade de leis da natureza que tornaria impossível, para nosso entendimento, a unificação de suas leis particulares sob leis empíricas universais, Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 248 porque isso conflitua com o princípio da especificação subjetivo-final da natureza nos seus gêneros e com nossa faculdade de julgá-la reflexiva em seu propósito. Feita esta primeira abordagem, cabe definir o que é a faculdade de julgar a estética. Kant nos diz que aquilo que na representação de um objeto é meramente subjetivo, isto é, aquilo que constitui a sua relação com o sujeito e não com o objeto, é a natureza estética dessa representação. É claro, aqui, que não se trata daquilo que, numa representação, é utilizado para a determinação do objeto tendo em vista o conhecimento. A sensação (neste caso a externa) é também utilizada para o conhecimento dos objetos fora de nós. Porém, aquele elemento subjetivo, numa representação que não pode de modo algum ser uma parte do conhecimento, é o prazer ou desprazer, ligado àquela representação, ou seja, aquilo que é subjetivo na representação e que constitui a sua relação com o sujeito é o sentimento de prazer ou desprazer. “Pela denominação de um juízo estético sobre um objeto está que uma representação dada é referida, por certo, ao objeto, mas no juízo não é entendida a determinação do objeto, mas sim a do sujeito e do seu sentimento” (KANT, 1974, p. 278). Ou seja, é um juízo que diz respeito ao jogo das representações, na medida em que estas estão ligadas ao sentimento de prazer ou desprazer, melhor dizendo, na medida em que as representações afetam o estado do sujeito, quanto ao prazer ou desprazer. Trata-se de um juízo sobre o efeito de representações em mim; essas representações me afetam causando prazer ou não. No sentido do prazer e desprazer, elas são chamadas de Subjetivas ou de estéticas. Kant aplica a expressão estética não à intuição e ainda menos às representações do entendimento, mas, unicamente, às ações do juízo.Todas as determinações do sentimento são meramente de significação subjetiva, não podendo haver uma estética do sentimento como ciência, assim como há uma estética da faculdade de conhecimento. Permanece o equívoco da expressão “modo de representação estético”, Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 249 quando entende-se este ora como aquilo que excita o sentimento de prazer e desprazer, ora como aquilo que diz respeito meramente à faculdade de conhecimento, à medida que nela é encontrada a intuição sensível, que nos faz conhecer os objetos somente como fenômenos. Entretanto, esta equivocidade pode ser desfeita, ao se aplicar a expressão de estético, não à intuição, e ainda menos às representações do entendimento, mas unicamente às ações do juízo (KANT, 1974). Por ora, cabe considerar que julgar esteticamente significa saber como determinadas representações se referem ou afetam o estado da mente, causando prazer ou desprazer. Este juízo é não-lógico, já que a representação se refere ao sentimento de prazer e desprazer naquilo em que ela me causa satisfação ou não; a representação é referida ao sujeito - no sentido de que as representações estão em relação com o sujeito enquanto têm sobre ele um efeito, enquanto o afetam, intensificando ou entravando a sua força vital - e não ao objeto, tendo em vista o conhecimento, o que circunscreveria um território e assinalaria a existência de uma faculdade superior ao lado da faculdade de desejar e da faculdade de conhecer. Há algum tempo adquiriu-se o hábito de chamar também um modo de representação de estético, quer dizer de sensível, não no sentido da relação de uma representação a um objeto, mas do sentimento de prazer e desprazer. Ainda que acostumados a também chamar este sentimento, conforme essa denominação, de um sentido (modificação de nosso estado) na falta de uma outra expressão, ele não é, todavia, um sentido objetivo cuja determinação seria utilizada para o conhecimento de um objeto (pois intucionar ou conhecer algo com prazer não é uma simples relação da representação ao objeto e sim uma receptividade do sujeito), mas que não contribui em nada para o conhecimento do objeto (KANT, 1974). A representação de uma finalidade é também subjetiva e como o elemento subjetivo de uma representação é o sentimento de prazer, a vinculação é imediata, é Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 250 a representação de uma conformidade a fins que é o elemento subjetivo de uma representação, melhor dizendo, é o princípio da finalidade sem fim que opera na determinação do sentimento do sujeito causando prazer. Como se trata de julgar sobre representações, estas nos fornecem uma determinada apreensão do objeto, ou melhor, trata-se da consideração da finalidade sem fim no jogo das representações; é esta consideração que está em questão no ajuizamento estético. Se chamamos de estética a uma faculdade de julgar é porque ela não relaciona a representação do objeto a conceitos, mas ao sentimento de prazer e desprazer e porque o juízo não se refere a conhecimentos (não é determinante, é reflexivo), pois, para a faculdade de julgar lógica, as intuições devem previamente ser elevadas a conceitos, a fim de servirem ao conhecimento do objeto, o que não é o caso para a faculdade de julgar ou estética. O juízo estético é definido, pela relação de uma representação ao sentimento vital sob o nome de sentimento de prazer. Portanto, podemos dizer que representações dadas que se referem ao sujeito (ao seu sentimento) são sempre subjetivas ou estéticas. É a consideração do princípio formal da conformidade a fins (princípio transcendental) que prepara o entendimento para aplicar à natureza o conceito de um fim (pelo menos segundo a forma), assinalando uma função propedêutica à faculdade de julgar a estética. 7.4 A CONTRIBUIÇÃO DE KANT Um primeiro aspecto a considerar acerca da estética kantiana diz respeito à definição do juízo estético que, segundo Kant, é um juízo de reflexão. Esta definição principal determina imediatamente que os juízos estéticos não podem ser reduzidos a juízos empíricos. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 251 Além disso, como estes mesmos juízos não se confundem com os juízos teóricos de conhecimento, nem com os juízos práticos da moral, eles exigem um princípio transcendental próprio diferente das categorias. Lebrun (1993) considera a proposição kantiana um verdadeiro método da filosofia transcendental. Já Lyotard (1991) considera que no conceito da reflexão encontra-se uma "arma crítica" por excelência ou mesmo a possibilidade da filosofia crítica. A afirmação da reflexão como princípio transcendental acaba por abranger a filosofia kantiana como um todo, indo muito além dos limites específicos da terceira Crítica. Verifica-se deste primeiro aspecto a relevância de exprimir a prioridade (de princípio e fundamento) da terceira Crítica sobre as demais, ao qual se acrescentará o objetivo de imprimir na expressão "Estética", o seu sentido mais radical, o de uma "Estética Transcendental", lembrando que a filosofia de Kant se distingue justamente por seu caráter inapelavelmente transcendental. O segundo aspecto a se destacar é o sentido do sublime em Kant, para tanto é necessário analisar a chamada "estética kantiana" (e o termo é impreciso já que se reconhece pelo menos duas estéticas kantianas: a do belo e a do sublime) contida na terceira Crítica, à luz de uma outra estética, a "Transcendental", que está na primeira Crítica. Considerando a ambivalência do termo "estética" que designa, em Kant, ora as condições do tempo e do espaço - que participam de um modo essencial, porém subordinado do conhecimento - ora o que a tradição, a partir de Baumgarten (1750), chamou de "Tratado do Belo", a estratégia consistiu em, principalmente, deslocar a questão estética, e por um, da posição secundária dentro da classificação das disciplinas filosóficas, por outro lado, livrá-la da posição de subordinação à categoria e ao entendimento, onde a interpretação predominante da "posteridade" kantiana costuma situá-la. Na Crítica da razão pura, Kant permanece fiel a sua busca de uma outra lógica - o que é a lógica transcendental senão a conseqüência de uma contestação Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 252 contra a lógica geral? -, que recebe aqui o nome definitivo de "transcendental" e que, preocupada com a origem e a aplicação do conceito, deve poder ultrapassar este último. Para Kant (1991), conhecimento não se confunde com conceito que deve estar sempre ligado a uma intuição. Uma das grandes contribuições da "Estética Transcendental" foi precisamente a de interromper a "escala" cartesiana dos graus "obscuro-claro", em que a representação avançava do sensível ao inteligível. A "interrupção" kantiana resulta do princípio da heterogeneidade irredutível entre as faculdades, e logo surge a necessidade de encontrar uma outra representação que dê conta da diferença extrínseca ao conceito. A exemplo do espaço e do tempo, o "conceito" de matéria assim como o de sublime (surpreendam-se ou não) também são representações desse tipo, quero dizer, "intuições" ou simplesmente representações da sensibilidade. No "Apêndice" da primeira Crítica sobre a "Anfibologia dos Conceitos da Reflexão", quanto aos conceitos de "concordância e oposição", Kant explica: Se a realidade é representada somente pelo entendimento puro (realitas noumenori), não se pode pensar nenhuma oposição entre as realidades, isto é, uma relação em que cada uma das realidades conjuntas em um sujeito suprima o efeito da outra, e tenha-se 3 - 3 = 0. Ao contrário, o real no fenômeno (realitas phaenomenon) pode certamente conter oposições e, reunida no mesmo sujeito, pode uma realidade anular total ou parcialmente o efeito da outra, como duas forças motoras sobre a mesma linha reta, enquanto puxam ou impelem um ponto em direção contrária, ou também como um prazer contrabalança a dor. (KANT, 1989, p. 164). Na primeira edição da Crítica pura, no capítulo "Os Princípios Sintéticos do Entendimento Puro", Kant descreve a distinção entre os princípios matemáticos e dinâmicos como resultantes de uma diferença quanto à certeza fornecida por eles. No primeiro caso, recobrindo as categorias da quantidade e da qualidade, os princípios matemáticos produziriam uma certeza intuitiva e imediata; no segundo, recobrindo as categorias da relação e da modalidade, os princípios dinâmicos produziriam uma certeza discursiva. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 253 Exatamente como Aristóteles definia o prazer da tragédia, como prazer com a representação, a mimesis (representação) transforma "a simples visão (horan) das coisas mesmas - dolorosas, já que o espetáculo é repugnante - (...) em olhar (theôrein) que é acompanhado da intelecção (manthanein), e, portanto, de prazer." (ARISTÓTELES, 1980, p. 190) Não é à toa que Lyotard (1991) adota o mecanismo dos deslocamentos sucessivos para analisar, entre outras questões que compõem a "Analítica do Sublime", a da magnitude. Segundo aquele autor, só equivocadamente é que a magnitude qualifica o objeto dito "absolutamente grande". Na verdade, ele continua, considerando os deslizamentos do sublime dentro da classificação categorial, a quantidade lógica do juízo sublime (ele é um juízo singular e universal) passa à modalidade (ele é um juízo necessário) através da relação (de finalidade entre as faculdades). Assim, saltando de uma classe a outra, a magnitude, no sublime, acaba por estar relacionada não ao objeto, mas à faculdade mesma que julga, e no nosso caso, ao sentimento de prazer e de dor. A conclusão parece simples: é o próprio sentimento do sublime que é "grande absolutamente" ou, pelo menos, o sentimento do sublime é a exigência de "aumento" da nossa "alma" a fim de que ela se torne apta a abarcar o infinito. Se um dos elementos que servira à definição do sublime matemático fora justamente à noção de grandeza absoluta (quase um princípio meta-matemático), a noção que está vinculada com o sublime, considerado dinamicamente, é a de "força", mas também, como no primeiro caso, trata-se de um princípio não físico, mas metafísico. Justamente o que o homem descobre diante do espetáculo incontrolável e imenso da natureza não é sua força física, que está obviamente subjugada. Kant escreveu que “a natureza, considerada no juízo estético como poder que não possui nenhuma força sobre nós, é dinamicamente sublime”. (KANT, 1993, p. 106). O que o homem descobre é sua vocação para as idéias da razão, ou seja, o que Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 254 propriamente o define – para Kant, sua natureza moral. Mas é preciso nos prevenir contra dois perigos. O primeiro, desconsiderando a complementaridade entre os dois princípios, ignorando o princípio matemático que é "imediato e intuitivo" e que diz respeito à finitude, é fazer uma leitura puramente idealista, para não dizer moralista, do sublime de Kant. O segundo, não mais ignorando aquela complementaridade, é pensar a síntese dinâmica como uma proto-síntese hegeliana, ou seja, como um conflito entre faculdades que será resolvido harmonicamente. Quanto à possibilidade de o sublime estar na origem de uma "lógica do limite" que nos propiciaria, afinal, o único modo de nos situarmos com relação à transcendência. Livres precisamente da exigência do conhecer, já que os juízos estéticos, diferentemente dos juízos teóricos, não pretendem determinar nada, a reflexão contida neles poderá constituir uma pista para formular esta difícil relação entre o homem e Deus. O mandamento “de ir até os conceitos que estão fora do campo de uso imanente” nos indica que, embora Kant queira restringir todo conhecimento ao fenômeno, ele também quer barrar o “monopólio” da ciência; ou seja, é preciso reservar um domínio da objetividade ao “uso prático-dogmático” da razão, e esta última perspectiva só poderá ser considerada a partir de uma reelaboração da questão do inteligível. Assim, segundo Lebrun, a suprema réplica de Kant a Hume, só será dada “no final da Crítica da Faculdade do Juízo”; daí a freqüência com que ele retoma os argumentos antiteológicos de Hume (LEBRUN, 1993). Parece evidenciada a contribuição kantiana e sua opção para a presente tese. Nos capítulos anteriores buscou-se identificar as diferentes contribuições e, mesmo, perspectivas de consideração da Estética. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 255 Neste capítulo foram valorizadas a contribuição de Kant e a formulação da noção de estética transcendental presente na primeira e terceira crítica. Como dito, ao resgatar as noções, assim como os elementos que compõem a estrutura de construção kantiana tencionou-se evidenciar a fragilidade das análises que dicotomicamente consideram o racionalismo e o empirismo, individual ou conjuntamente como suficientes para entendimento e compreensão do agir humano e por conseqüência da ação organizacional. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 256 CAPÍTULO VIII ESTÉTICA ENQUANTO DIMENSÃO DA AÇÃO HUMANA Não se encontra o que é correto com meios incorretos, porquanto os meios determinam os fins. A Arca O presente capítulo expressa em três tópicos a articulação existente entre a Estética e o cotidiano humano, destacando as características peculiares ao ato humano e a atitude estética contida nesse ato. Por fim, reforça-se a noção da presença da Estética na ação humana57, apontando, ao final, sua articulação com o agir organizacional. 57 Para Aristóteles (1995), o termo genérico para ação era ergon (atividade), do qual derivou energeia. Quando esta evidenciava coisas realizadas, o seu modo era poético (poiesis); quando revelava “ações feitas”, o seu modo era prático (praxis). Aristóteles efetua uma rigorosa distinção entre poiesis e praxis – a primeira dirige-se ao mundo de acordo com as regras da arte (techne), enquanto a segunda dirige-se à vida da polis. A primeira é técnica, produzindo de acordo com regras; a segunda é deliberativa e discursiva. Com Santo Tomás de Aquino a ação será explicada em três etapas: a) da fonte de um ato na motivação ou intenção de um agente para; b) sua produção ou manifestação, e terminada em; c) seus efeitos ou conseqüências. Como reflexo da influência aristotélica e cristã, Kant (1993; 1998; 2002) vai afirmar que a ação significa a relação do sujeito da causalidade com o seu efeito, descrevendo ainda a ação como “auto-revelação de substância” através da “atividade e força”. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 257 8.1 O ESTÉTICO E O EXTRA-ESTÉTICO NA AÇÃO HUMANA O que a presente tese busca evidenciar é a importância da Estética na vida do indivíduo e de toda a sociedade, fazendo-se presente não apenas nas obras artísticas, mas no cotidiano de escolhas do ser humano. É essa natural presença da Estética no cotiano humano que o presente tópico busca caracterizar de modo a permitir considerar a presença da Estética, conjuntamente com a razão e a experiência, enquanto fontes do conhecimento humano. Cabe, de imediato, relembrar que as conseqüências da Estética alcançam também pessoas que nenhuma relação direta têm com a arte. A Estética ocupa um campo de ação muito mais amplo que a arte propriamente dita. Qualquer objeto e qualquer ação - seja um processo natural ou uma atividade humana - podem chegar a ser portadores da função estética58. Quer se considerar a posição de que não há nenhum limite fixo entre o estético e o extra-estético, não existem objetos nem processos que, por essência e estrutura, e sem que se leve em linha de conta o tempo, o lugar e o critério com que são avaliados, sejam portadores da estética, nem outros que, pela sua estrutura real, hajam de considerar-se subtraídos ao seu alcance. Como exemplos de coisas e ações que, aparentemente, são totalmente incapazes de função59 estética Mukarovsky (1981) cita como exemplo, algumas funções fisiológicas elementares, como a respiração ou algumas operações 58 59 Esta afirmação não pretende ser pan-esteticista, já que não se afirma a necessidade, mas tãosomente a possibilidade geral da função estética. Não se postula aqui a posição dirigente da função estética entre as demais funções dos fenômenos dados para toda a esfera da função estética, nem tão pouco se pretende confundir a função estética com outras funções, nem mesmo conceber as outras funções como meras variantes da função estética (MUKAROVSKY, 1981). Kant (2000) define função como a unidade da ação que consiste em ordenar diversas representações sob uma representação comum. Função para Kant, segundo Galeffi (1986), assume o significado do conceito que se baseia na espontaneidade do pensamento, assim como as intuições sensíveis se baseiam na receptividade das impressões. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 258 intelectuais muito abstratas, assim como há exemplos de fenômenos que parecem, graças à sua estrutura, predestinados para a ação estética, como os produtos da criação artística. Tanto a arte, como a Estética ofereceram já suficientes provas de que até coisas que, segundo a concepção tradicional, não seriam abrangidas pela atribuição de valores estéticos podem ser convertidas em fatos de estética. Desenhar uma máquina, a solução de um problema matemático ou a organização de determinado grupo social, como coisas belas, é algo mais que uma forma de expressão. Também se podem apresentar exemplos em contrário, segundo os quais as obras de arte, portadoras privilegiadas da função estética, podem ser privadas dela e destruídas como inúteis ou utilizadas sem se ter em conta a sua finalidade estética. Evidentemente que, tanto na arte, como fora dela, existem objetos que, pela sua estrutura, estão predestinados para a ação estética; é essa, até, a característica consubstancial da arte. Mas a aptidão inata para a estética não é uma propriedade real do objeto mesmo que este tenha sido construído intencionalmente com vistas a esta função, antes se manifesta apenas em determinadas circunstâncias, num determinado contexto social: o fenômeno que foi portador privilegiado da função estética em determinada época ou em determinado país pode perder esta função noutra época ou noutro país. Os limites da esfera estética não são, pois, determinados unicamente pela própria realidade - e são muito variáveis. Isto é evidente especialmente quando considerado do ponto de vista da avaliação subjetiva dos fenômenos. Enquanto para algumas pessoas tudo adquire função estética, para outras a função estética existe apenas em mínima medida, ora o limite que separa o estético do extra-estético depende do grau de perceptibilidade estética, variando em cada pessoa com a idade, com o estado de saúde e mesmo com o estado momentâneo de espírito. Mas quando se substitui o ponto de vista individual pelo ponto de vista do contexto social verifica-se que, apesar de todos os matizes individuais e fugazes, Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 259 existe uma localização consideravelmente generalizada da função estética60 no mundo dos objetos e dos processos. O limite entre a esfera da função estética e os fenômenos extra-estéticos não ficará, desta forma, totalmente determinado, visto que a presença da função estética varia amplamente e poucas vezes é possível afirmar-se com segurança a ausência total de resíduos estéticos, por mínimos que sejam. Será, todavia, possível averiguar objetivamente - pelos sintomas - a participação da função estética, por exemplo, na cultura do habitat, do vestuário etc. Mas logo que se translada o critério, quer no tempo, quer no espaço, quer mesmo apenas de uma formação social para outra (por exemplo, de um estrato para outro, de uma geração para outra etc,), chega-se à conclusão que, ao mesmo tempo, muda também a localização da função estética e a delimitação da sua esfera. Assim, por exemplo, a função estética do ato de comer é evidentemente mais forte na França que no nosso país; a função estética do vestuário é mais forte nas mulheres que nos homens, e, no entanto essa diferença não se faz por vezes sentir no meio rural, em relação aos trajes regionais. A estética do vestuário diferencia-se também conforme as situações típicas dos diversos contextos sociais: assim, a estética das roupas de trabalho é muito fraca em comparação com a das roupas festivas. Ao delimitar a esfera do estético e a esfera do extra-estético é, pois necessário tomar em consideração que se não tratam de esferas separadas com precisão e livres de interligações. Elas estão em permanente relação dinâmica, que se pode caracterizar como uma antinomia dialética. Não se pode investigar o estado ou a evolução da estética sem inquirir em que medida ela se estende a toda a área da realidade, se os seus limites são relativamente nítidos ou se se manifesta de igual modo em todos os estratos do 60 Para Mukarovsky (1981) a função estética é, muito mais que algo que flutua à superfície das coisas e do mundo. Ela intervém de modo importante na vida da sociedade e do indivíduo, tomando parte na Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 260 contexto social ou se prevalece apenas em algumas camadas e em alguns meios tudo isto, naturalmente, considerado em relação a uma época e a um conjunto social bem determinado. Dito de outro modo: para conhecer o estado e a evolução da estética, não basta verificar onde e como ela se manifesta, é também preciso verificar em que medida e em que circunstâncias ela está ausente ou apenas atenuada. Há, no entanto, um certo limite entre dois setores principais da multíplice esfera estética, definida em conformidade com a importância da estética em relação às demais funções: é o limite que existe entre a arte e os fenômenos estéticos extraartísticos. A transição entre a arte e aquilo que está fora do seu âmbito é sempre gradual e, às vezes, mesmo, quase insusceptível de verificação. Como exemplo a arquitetura consiste numa série ininterrupta, que começa por produtos destituídos de estética e vem terminar em obras de arte, sem às vezes se poder localizar o momento em que a arte começa a manifestar-se. É evidente que a transição entre a arte e a esfera do extra-artístico, e até entre a arte e a esfera do extra-estético, é tão pouco nítida e de tão complicada verificação que acaba por ser ilusório querer estabelecer uma delimitação exata. Tem-se, portanto, de renunciar a todas as tentativas de estabelecimento de uma fronteira entre arte e não arte, entre o estético e o extra-estético. Apesar de tudo, tem-se a sensação muito clara de ser fundamental a diferença entre a arte e a esfera daquilo que consiste em simples fenômenos “estéticos”. Em que consiste tal diferença? No fato de que, na arte, a estética é a função dominante, enquanto que, fora dela, estando embora, presente, tem um papel secundário. Contra esta afirmação poder-se-ia objetar que também na arte a estética fica, às vezes - por obra do autor gestão da relação entre o indivíduo e a sociedade, por um lado, e a realidade em cujo centro ser situam, por outro. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 261 ou por obra do público - intencionalmente subordinada a outra função, como, por exemplo, se verifica na reivindicação do "tendencioso" em arte. Mas essa objeção não vem provar nada: quando incluímos espontaneamente uma obra na esfera da arte, a importância dada a outra função que não a estética não é avaliada como coisa normal, mas como polêmica contra o consubstancial objetivo da arte. O predomínio de alguma função extra-estética é mesmo um fenômeno freqüente na história da arte; mas o predomínio da função estética é sempre percebido como caso básico, “não marcado”, enquanto que o de alguma outra função é considerado “marcado”, isto é: como uma alteração do estado normal. É necessário recordar aqui que o requisito de supremacia da estética só alcança a sua plena importância quando se faz a diferenciação mútua das funções; mas há também meios que desconhecem uma diferenciação conseqüente da esfera funcional, como a sociedade medieval ou a sociedade antiga; é verdade que, mesmo nesses casos, a subordinação e a superioridade das funções pode ir sofrendo modificações, mas não até a ponto de alguma delas predominar total e nitidamente sobre as outras. A esfera do estético não está, pois, separada em dois setores hermeticamente isolados um do outro: antes, no seu conjunto, é dominada por duas forças contraditórias que ao mesmo tempo a organizam e desorganizam, quer dizer, mantêm ininterrupto o processo da sua evolução. Assim, observando a arte por esta óptica, a sua principal tarefa aparece-nos como renovação permanente da ampla esfera dos fenômenos estéticos. Do até então dito cabe considerar que, acerca da extensão e da ação da estética, o estético não é uma característica real das coisas e não se relaciona univocamente com nenhuma característica das coisas; a estética também não se encontra completamente sob o domínio do indivíduo, embora, de um ponto de vista puramente subjetivo, qualquer coisa possa adquirir uma função estética independentemente do modo da sua criação; a estética é um assunto da Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 262 coletividade e a função estética é uma componente da relação da coletividade humana com o mundo. Por isso uma extensão da estética no mundo das coisas se relaciona com um determinado conjunto social. A maneira como esse conjunto social concebe a função estética predetermina finalmente, também, a criação objetiva das coisas a fim de obter um efeito estético e uma atitude estética subjetiva perante elas. Ao considerar a relação entre a esfera estética e a organização da vida do conjunto social, tomando por base a sociologia do estético, podemos apontar, que segundo a perspectiva da função estética, esta pode converter-se num fator de diferenciação social nos casos em que uma coisa determinada (ou determinado ato) tem uma função estética num meio social e não a tem noutro ou que tem em certo meio social função estética menos acentuada que noutro. A Estética, ao suprir a ausência de outras funções, converte-se às vezes num fator de economia cultural, no sentido de conservar as criações e as instituições humanas que perderam as suas funções originais, práticas, mantendo-as capazes de, em tempos futuros, virem a ter novamente uma qualquer função prática. A Estética é, pois, muito mais que algo que flutua na superfície das coisas e do mundo - como por vezes se pensa. Ela intervém de modo importante na vida da sociedade e do indivíduo, tomando parte na gestão da relação - não apenas passiva, mas também ativa - entre o indivíduo e a sociedade, por um lado, com a realidade em cujo centro se situam, por outro. A Estética é um dos fatores mais importantes da atividade humana, qualquer que seja a ação humana se faz acompanhada dela e qualquer coisa pode vir a ser sua portadora. Tampouco se trata de mero epifenômeno, praticamente insignificante, de outras funções, mas sim de um co-determinador do comportamento do homem perante a realidade. Fazendo parte do cotidiano humano, é natural considerar que a Estética, também, faça parte do cotidiano organizacional e, portanto, deva ser considerada base para a análise organizacional. Frente a tal premissa a existência de uma Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 263 dimensão estética não tem sido objeto de consideração, a presente tese busca demonstrar tal necessidade e possibilidade. Como ponto de partida, nessa direção, parte-se da noção de ação humana e a presença da Estética nessa ação, seja de maneira consciente ou não, e que associadas a Estética há outras dimensões inerentes ao agir humano. 8.2 A AÇÃO HUMANA E A ATITUDE ESTÉTICA O homem, frente ao mundo que o rodeia, assume diversas atitudes61. Tais atitudes não são as mesmas quando ele atua de modo prático sobre o mundo ou quando procura conhecê-lo de um modo teórico ou científico ou, mesmo quando, por exemplo, procura entendê-lo segundo uma perspectiva religiosa. Cada uma destas atitudes, uma vez adaptadas pelo homem, apoderam-se dele e de todas as capacidades que o orientam em determinada ação. Ou seja, cada uma destas atitudes62 o encaminha para seu determinado objetivo - que, no entanto, só de um modo muito geral é definido pela própria atitude e só se vai determinando concretamente mediante uma concreta tarefa, a resolver no momento e dentro dos limites de uma determinada atitude. Surge assim uma diversidade considerável, que é evidente principalmente no âmbito da atitude prática. Do ponto de vista prático, isto é, da conduta prática, o esforço do artesão ao realizar a sua obra, o do comerciante ao vender a sua mercadoria ou o do diplomata ao discutir os termos de um tratado político são orientados da mesma maneira - existindo, como mostram os exemplos mencionados, uma escala muito variada de recursos, instrumentos etc.. 61 62 Kant (1991) expressa de modo claro, que a ação humana pode ser evidenciada em três grandes atitudes: o prático, o teórico e o estético, ou ainda, o ato humano e o seu resultado tem, necessária e substancialmente três funções: a função prática, a função teórica e a função estética. Na Filosofia o termo atitude é amplamente utilizado para indicar, em geral, a orientação seletiva e ativa do homem em face de uma situação ou de um problema qualquer. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 264 Para alcançar um objetivo é necessária uma atividade determinada e são necessários determinados instrumentos. Acerca da atividade e dos instrumentos mais convenientes para se alcançar um certo objetivo, dizemos que são capazes de funcionar em relação a este objetivo, isto é, que são portadores de uma ou outra função. O instrumento de uma atividade é, por vezes, um objeto duradouro, que existe mesmo quando não está desempenhando tal atividade. Mas, mesmo nessas condições, o instrumento, adaptado a uma certa atividade, à consecução de um certo objetivo, tem na sua estrutura os indícios dessa capacidade. A função aparece, assim, não apenas como o modo casual do uso de uma coisa, mas também como uma característica duradoura do seu portador. Considere-se agora a Estética. Também ela tem a sua origem e o seu fundamento numa das atitudes elementares que o homem adota perante a realidade: a atitude estética. Quais são as características desta atitude? Como se distingue ela das outras atitudes? O sentido da nossa atividade consiste em mudar, de algum modo, a realidade, intervindo nela - e só em relação ao resultado pretendido é que organizamos a nossa atividade e escolhemos os nossos instrumentos. Ao fazer essa escolha, avaliamos apenas aquelas características dos instrumentos que nos convêm para obter o desejado resultado: as outras características são indiferentes e nem sequer existem para nós. Do mundo exterior, vemos e ouvimos apenas aquilo que os nossos sentidos escolhem para orientar o nosso comportamento. Os nossos sentidos e a nossa consciência oferecem uma imagem da realidade na sua simplificação prática. Isto aplica-se à atitude prática63. 63 Sobre as funções delineadas a seguir ver Mukarovsky (1981). Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 265 Quanto à atitude teórica ou cognoscitiva64, ela resulta da aproximação da realidade no propósito de a conhecer e surge apenas no aspecto particular que se pretende apreender. Também desta vez o curso adotado para o objeto do conhecimento não é um fim em si mesmo. Ao identificar algumas das suas características com as das outras coisas, incluímo-la no âmbito de determinado conceito - a coisa passa a fazer parte de um contexto geral. Considera-se a seguir a atitude religiosa - ou melhor, uma denominação que exprima toda a extensão do seu âmbito: mágico-religiosa. É um outro terreno, diferente do das atitudes anteriormente analisadas, onde cada fato real que se encontre ao alcance da atitude mágico-religiosa se converte, com o simples fato de entrar neste terreno, num signo de tipo especial. A atitude teórica também se distingue pelo fato de transformar a realidade num signo, ou, dizendo melhor, num conceito; mas, neste caso, tal conversão não é natural, não é previamente dada, exige um esforço de conhecimento. Já na atitude mágico-religiosa os fatos reais não se convertem em signos: são signos, de uma maneira substancial e, por isso mesmo, são capazes de atuar como aquilo que representam (um amuleto etc.). São signos, símbolos. Quanto à atitude estética os fatos que entram na sua esfera adquirem também o caráter de signos. Considere-se um caso concreto, por exemplo, um exercício ginástico. Quando o exercício é entendido na sua função prática (fortalecimento do corpo, agilidade etc.), a atividade exercida é avaliada unicamente em função dos resultados a serem obtidos: é avaliada apenas como meio de os atingir. Mas, considerando que ao exercício é aplicado o critério estético, de resto, pode mesmo ser predominante na apreciação do exercício. Assim, a atividade exercida adquirirá imediatamente um valor intrínseco e a nossa atenção será dirigida para todas as fases e todos os pormenores do exercício e da sua execução. Como explicar esta mudança? 64 A finalidade da atividade cognoscitiva é a verificação das leis gerais da natureza. A atitude cognoscitiva, tal como a atitude prática, tende, portanto a ir mais além da realidade que possuímos, em dado momento, nas nossas mãos e à frente dos nossos olhos. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 266 Também aqui a realidade, que se encontra ao alcance da atitude estética, se converte em signo65 - mas em signo de um tipo especial, diferente do signo mágicoreligioso. No caso deste, a atenção não era concentrada no signo, em si próprio, mas naquilo que estava para além dele, naquilo que ele representava, isto é, na força mágica ou na divindade. No caso do signo estético, a atenção é dirigida, pelo contrário, sobre a própria realidade que é convertida em signo: aparece aos nossos olhos toda a riqueza das suas características e, por conseguinte, também toda a riqueza e toda a complexidade do ato através do qual o observador percebe a realidade concreta em questão. A coisa que se converte em signo estético descobre aos olhos do homem, a relação que existe entre ele e a realidade. Qualquer realidade pode ser percebida e experimentada segundo o modo como o homem percebe e experimenta um dado fato real, perante o qual adotou uma atitude estética. Por isso mesmo é que o fenômeno em relação ao qual adotamos uma atitude estética passa a ser um signo, uni signo sui generis: já que a característica do signo é, precisamente, aludir a algo que está fora dele. O signo estético alude a todas as realidades que o homem já viveu e pode vir a viver, a todo o universo das coisas e dos processos. O modo como foi feito o objeto envolvido na atitude estética, ou seja, o objeto convertido em portador da função estética, indica uma determinada orientação na maneira de ver a realidade em geral. Por mais restrito que seja o setor da realidade que representa e até quando não representa absolutamente nada - como é o caso da criação musical - é inerente 65 O signo é aqui entendido como qualquer objeto ou acontecimento, usado como menção de outro objeto ou acontecimento. Para Kant as palavras e os signos visíveis (algébricos, numéricos, etc.) como simples expressões dos conceitos, ou seja, como caracteres sensíveis que designam conceitos e servem apenas como meios subjetivos de reprodução, e, por outro lado, os símbolos como representações analógicas, infra-intelectuais dos objetos intuídos. Portanto, quem só sabe expreessar-se de modo simbólico tem poucos conceitos intelectuaise, e aquilo que freqüentemente se admira na vívida expressividade presente nos discursos dos selvagens não passa de pobreza de idéias KANT (1989). Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 267 à obra artística, como signo estético, a possibilidade de aludir à realidade no seu todo, exprimir e alcançar a relação do homem com todo o universo. Mas não é só a arte que é portadora da função estética: qualquer fenômeno, qualquer produto da atividade humana, se pode converter, para um indivíduo ou para toda a sociedade, em signo estético. Enumera-se as diversas atitudes e vimos que são quatro: a prática, a teórica, a mágico-religiosa e a estética. São estas as atitudes fundamentais que, diferenciando-se, misturando-se e combinando-se umas com as outras, dão origem a outras atitudes. A atitude prática e a atitude teórica referem-se à própria realidade, quer transformando-a diretamente (atitude prática) quer preparando mais eficaz possibilidade de nela intervir mediante o seu conhecimento (atitude teórica). A atitude mágico-religiosa e a atitude estética transubstanciam a realidade em signo sem a alterar. Estas duas atitudes e as respectivas funções encontram-se, portanto, mais perto uma da outra que quaisquer uma das demais, e, por isso, podem ser descritas sob a designação comum de funções de signo (semiológicas). Percebe-se que entre as atitudes não há dicotomia, mas papéis e contribuições que se traduzem no agir humano, ainda que caiba considerar que há atividades de atitude preponderantemente prática, outras de atitude preponderantemente teórica e outras, finalmente, em que predomina a atitude estética. Mas a atitude estética e a função estética estão, em certo sentido, isoladas e opostas às outras. Nenhuma das outras atitudes ou das outras funções se concentra sobre o signo: todas elas dirigem a atenção para tudo o que o signo designa, o que ele menciona. Para a função prática, enquanto é utilizado, o signo é um mero instrumento de outras atitudes mais complexas; para a função teórica (cognoscitiva), o signo (o conceito e a palavra que o exprime) é ainda um meio de domínio da realidade. No Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 268 caso da função mágico-religiosa, o próprio peso não reside no símbolo, mas no poder invisível por ele encarnado. Só na função estética o peso principal está no próprio signo, naquela coisa perceptível pelos sentidos cujo papel é significar, aludir a qualquer coisa. Só assim é possível que o signo estético esteja, de certo modo, flutuando, desprendendo-se em medida considerável do contacto direto com as coisas, os acontecimentos etc., que representam e que signifiquem a relação global, não ligada a nenhuma realidade concreta, do homem perante o universo. A função estética vem a ser, desta maneira, um certo contrapeso, uma certa antítese das outras funções. Para todas essas funções, as coisas de que elas se apoderam, em vista dos seus objetivos, e que convertem em suas portadoras são instrumentos válidos apenas enquanto convêm ao objetivo para cuja consecução servem. Só no caso da função estética o portador da função representa um valor em si próprio, graças ao modo como foi e é criado. A função prática é incondicionalmente necessária à manutenção da vida humana. A própria vida prática, a própria luta existencial do homem com a realidade que o rodeia, viria a sofrer danos por causa desse empobrecimento. Se o homem tem sempre de recomeçar a luta com a realidade, necessita de a abordar cada, vez mais, segundo novo prisma, descobrindo nela os aspectos e as possibilidades até então inaproveitadas. Uma absoluta circunscrição à atitude prática66 levaria, provavelmente, à total automatização, em que a atenção seria exclusivamente prestada a aspectos já conquistados e já explorados. Só a função estética é capaz de manter o homem na situação de estranho perante o universo, de estranho que uma e outra vez descobre as regiões desconhecidas com um Interesse nunca esgotado e vigilante, que toma sempre mais uma vez consciência de si próprio projetando-se na realidade que o cerca; por sua 66 Cabe esclarecer que enquanto a função teórica pode ser objeto de unificação, a função prática exige a pluralidade enquanto possibilidade. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 269 vez, tomando consciência da realidade circundante e medindo-a por si próprio. O mesmo sucede com as outras atitudes e funções quanto as suas relações com a atitude estética e com a função estética. Não há ato humano nem objeto sobre os quais a função estética não possa projetar-se mesmo quando esses atos e objetos se destinam a outras funções. Poderia parecer que a esfera exclusiva e muito estritamente delimitada do conhecimento põe de parte todo e qualquer elemento alheio. Mas o parentesco entre a fantasia científica e a fantasia artística já foi salientado e cientificamente verificado, mais de uma vez, pela psicologia da criação. Há uma infinidade de fatos que fazem refulgir a presença de elementos estéticos no processo da criação científica. Mas também o resultado do trabalho científico, a solução científica, mostra, por vezes, vestígios da função estética: uma solução simples e bem proporcionada para um problema matemático que pode produzir, juntamente com o valor cognoscitivo, uma impressão satisfatória também no aspecto estético. Em algumas ciências, a função estética chega a fazer parte do próprio procedimento científico: como se sabe, tem sido muitas vezes defendida a tese segundo a qual a história se encontra no limite que separa a arte da ciência. A relação entre a função estética e a função mágico-religiosa, devido à proximidade entre estas duas funções – ambas convertidas à realidade imediatamente no momento em que se apoderam dela num signo –, é especialmente estreita. Assim, sucede que mesmo que se crie, às vezes, entre as duas funções, uma situação de concorrência, a função estética tenta substituir a função religiosa e, daí, surgem as agudas reações contra a arte na igreja. Mas, mesmo quando a arte continua a defender o seu objetivo primordial, o efeito estético, nem por isso ela se exclui do contexto da vida. Há períodos em que este põe em evidência o isolamento da arte em relação à vida cotidiana. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 270 Entre a arte e a vida prática existe uma tensão permanente e até uma polêmica que nunca terá fim. É precisamente essa tensão que faz da arte um fermento sempre vivo da vida humana. Vimos, portanto, que o estético, a atitude estética e a função estética penetram incessantemente na vida; não há, no contexto desta, lugar que não possa estar impregnado pela função estética, O estético não é, então, uma espécie de espuma, uma mera decoração da vida, mas um componente importante de todos os seus processos. Aqui se buscou delimitar uma base sobre a qual a estética, a ciência da atitude e da função estética possa ser aplicada à vida. Por isso, precisamente porque o estético se manifesta de tão amplo modo e tão diversificadamente é que necessita do apoio de uma teoria. Já se afirmou que a estética de hoje não é uma ciência normativa, que pretenda decidir o que é belo e o que é feio, o que é de bom gosto e o que é de mau gosto, o que é esteticamente conveniente e o que não é. Acrescente-se a isso que a estética atual, julgando sem preconceitos os assuntos do seu foro, chegou mesmo à conclusão de ser, nas áreas do chamado mau gosto, ou do gosto não instruído – por vezes apenas aparentemente inculto –, que muitas vezes têm raízes às manifestações estéticas magistrais. Condicionada pela história, a estética dá-se conta de que os limites entre o bom e o mau gosto são por vezes ditados unicamente pelas convenções da época: a arte popular, levada a um auge pelo romantismo, e que veio a ser, a partir de então, um elemento fecundante da criação artística, era, antes do romantismo, considerada como qualquer coisa de selvagem, absolutamente indigno de séria atenção. Todavia, convém destacar também um aspecto positivo: o conhecimento não antecipa a evolução e não pretende julgar; contenta-se com o seu próprio papel, que consiste precisamente em ser conhecimento, em ser uma luta pelo domínio teórico da realidade. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 271 Mas ao mesmo tempo, ainda que involuntariamente, ele intervém continuamente na prática. Mencionemos, por exemplo, os esforços por uma cultura estética que, cada vez mais, insistentemente, se manifestam numa época que tende a uma base social o mais ampla possível para todas as aspirações culturais: a cultura da língua, da habitação, da percepção artística etc.. Como qualquer educação, também esta necessita das suas bases teóricas sólidas. É inútil explicar a uma pessoa que deve interessar-se pela expressão elegante sem lhe possibilitar familiarização com a construção fina e complexa da língua e sem a instruí-la sobre a maneira como a função estética se imprime nos diversos componentes e sobre a forma como esta função estética aumenta não apenas a perfeição estética, mas ainda a utilidade prática da manifestação lingüística. Quando a estética se baseava no conceito de beleza, esta era entendida como algo que existia acima das coisas, independentemente delas e por elas realizado de modo muito imperfeito. A beleza assim concebida, na sua perfeição, reside no transcendental67; segundo Platão (1983), reside no mundo das idéias. Segundo Bosanquet (1957) esta concepção metafísica da beleza recebeu o primeiro golpe quando, na primeira metade do século passado, a estética psicológica - que, em parte, foi mesmo experimental - procurou encontrar a essência e as normas da beleza na natureza humana, baseando-se na premissa segundo a qual todas as pessoas tinham de gostar das mesmas coisas precisamente porque eram pessoas; porque a sua vista, o seu ouvido etc., tinham a mesma constituição. As palavras “atitude” e “sentimento” sublinham que o estético está, diferentemente da concepção metafísica da beleza, totalmente enraizado no homem. Não flutua acima das coisas, mas está contido na atitude que o homem adota perante as coisas que observa ou cria. 67 Kant (1989) chama de filosofia transcendental os esforços em estudar a inerente estrutura da mente e as inatas leis do pensamento, posto que transcende a experiência sensorial, haja vista, que não se ocupa tanto do conhecimento dos objetos, mas sim dos conceitos a priori de objetos, dos nossos modos de correlacionar nossa experiência com conhecimento. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 272 Cada ato humano tem três aspectos: o prático, o teórico e o estético, isto é, cada ato humano e o seu resultado têm, necessária e substancialmente, três funções: a função prática, a teórica e a estética. A função prática é fundamental, nela se baseia o comportamento humano, que faz possível a vida humana; e a sua importância consiste na relação entre o sujeito atuante e as coisas. A vontade do sujeito, projetada no mundo das coisas, é o objetivo do comportamento; e a coisa é um mero recurso, um instrumento para se alcançar o objetivo. Por isso, do ponto de vista da atitude prática, só percebemos aquelas características das coisas que podem ser aplicadas com proveito ao esforço de alcançar os objetivos em vista. Frente à atitude prática pode-se considerar que do mundo exterior, vemos e ouvimos apenas aquilo que os nossos sentidos escolhem para orientar o nosso comportamento; de nós mesmos também só conhecemos aquilo que faz parte do nosso comportamento. Os nossos sentidos e a nossa consciência dão-nos uma imagem da realidade na sua simplificação prática. Mas, também, o segundo dos três elementos, o teórico, simplifica a realidade. Embora tenda, ao contrário da atitude prática, à mais radical exclusão do sujeito (e daqui a objetividade do ato científico ou cognoscitivo), o que ele põe em evidência não são as diversas coisas em si próprias, mas sim as relações mútuas que existem entre elas. O objetivo último do conhecimento científico é uma lei (por exemplo, uma lei da natureza) que exprima a validade mais geral e incondicional possível de determinada relação sem ter em conta as características concretas das coisas que entram nessa relação, considerando apenas aquela característica que tem importância para a relação dada. Mas a realidade de uma coisa é dada somente pelo conjunto infinitamente variado das suas características, no entanto, esse conjunto está fora do campo de visão do investigador. O cume da precisão é alcançado, pelo conhecimento Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 273 científico, nas matemáticas, que prescindem totalmente da qualidade das coisas e toma em consideração apenas a sua quantidade. A atitude teórica simplifica, pois, a visão da realidade em certo sentido ainda mais radicalmente que a atitude prática. A terceira atitude fundamental é a atitude estética e só ela considera a própria 68 coisa como particularidade, como conjunto de características de variedade inesgotável. A coisa não é concebida nem como recurso para alcançar um objetivo nem como mera base de certas relações, mas como um fim em si própria. Por isso se fala de “autofinalidade” no campo estético. Pelas mesmas razões, o estético costuma ser proclamado como algo de supérfluo, como um luxo que nada tem a ver com os interesses elementares da vida do homem. Já anteriormente dissemos que a atitude estética - tal como as outras duas - está presente de modo manifesto ou, pelo menos, potencial, em todos os atos humanos, em todos os atos de percepção ou de criação. Do ato de criação até se pode dizer que, quanto menos esperado é o seu resultado, tanto mais indispensável é a participação na criação - como, por exemplo, a criação técnica. Da atitude prática já dissemos que simplifica as coisas, tomando em linha de conta apenas aquelas características aproveitáveis para o fim em vista. Mas, quando é preciso alcançar um objetivo, novo, sem precedentes - e nisso consiste a essência da criação prática -, há que se aproveitar novos aspectos da realidade até aí omitidos. Esses aspectos só podem ser descobertos pela atitude estética. Também poderíamos provar a presença necessária da atitude estética na criação teórica, científica. Mesmo as atividades práticas ou teóricas que não podem ser designadas como de criação, mas, antes, como repetitivas do hábito, mostram, por vezes, traços evidentes da presença do estético. Graças a sua onipresença, o estético é, portanto, um fator poderoso de alcance vital. 68 Filosoficamente designa qualquer objeto ou termo, real ou irreal, mental ou físico, decorrente de um ato de pensamento ou de conhecimento, de imaginação ou de vontade, de construção ou de destruição. Segundo Kant (1991), a coisa em si, designa aquilo que existe independentemente do espírito e do conhecimento que ele tem dela, sendo em si mesma incognoscível. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 274 Tendo-se dado conta da amplitude da esfera estética, a estética atual considera que o seu papel consiste em verificar todos os aspectos e disfarces do estético e em investigar a dinâmica das suas relações com a atitude prática e a atitude teórica. Isto representa uma grande ampliação da esfera dos seus interesses e significa a integração direta da estética no ciclo vital: perante os seus olhos perpassam a moda, a educação física, as formas das relações sociais, a produção industrial artesanal, a ciência, a filosofia e a religião. Em todos esses setores, e em muitos outros, o estético manifesta-se como uma das forças motrizes fundamentais, embora por vezes cultas. Se este esforço pela ampliação do interesse cognitivo se pode chamar luta, então é uma luta entusiástica e motivo de satisfação ver a ciência como uma grande casa cheia de movimento e não como um difícil pronto, abandonado e em processo de envelhecimento. A esfera de atividades e de criações cuja função é preponderantemente estética chama-se arte - e, naturalmente, a arte pertence também à esfera de interesses da estética. Não pode ser desenvolvida aqui toda a complexa problemática da arte tal como a vê a estética atual; mas temos, ao menos, de assinalar que a estética dos nossos dias aborda, antes de tudo, a obra artística como coisa destinada a provocar uma atitude estética, não tendo em conta aquilo que rodeia essa obra. Assim, o conhecimento da obra não se baseia num estado de espírito, difícil de captar, do qual nasceu a obra ou ao qual ela se refere, mas sim na construção objetiva dela, construção destinada a provocar a atitude estética em todas as pessoas que sejam capazes de compreender a obra de arte precisamente como criação artística. A criação intencional de uma obra é vista pela estética atual como terna combinação de forças mediante as quais a obra atua sobre o homem; como uma estrutura em que cada característica real da obra, como coisa, adquire um caráter de energia, entrando em tensão recíproca com as outras características; há tensão Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 275 recíproca entre as cores de um quadro, entre uma mancha de cor e a linha que a delimita, entre a cor e a superfície em que ela está aplicada. Nenhuma característica fica excluída deste jogo, embora algumas delas se manifestem de uma forma mais passiva e outras de uma forma mais ativa. Mas esta passividade ou atividade dos diversos componentes alterna com o decorrer da evolução, de modo que ora é a cor a dominar a linha (delimitando, ela própria, o contorno) ou é a linha a dominar a cor, ora, enfim, a cor se transforma em linha criando um contorno colorido etc. 8.3 A FUNÇÃO ESTÉTICA ENQUANTO DIMENSÃO DA AÇÃO HUMANA A posição da função estética entre as demais funções e a sua situação na estrutura geral constitui, de fato, problema do estético fora da arte. E, quando consideramos o estético segundo a perspectiva da arte, a posição da função estética não implica problema nenhum: neste caso, a função estética tende sempre a predominar. Mas, quando saímos da esfera da arte, começam as dificuldades: por um lado, temos de fazer frente à tentação de considerar a função estética como qualquer coisa de secundário, que pode existir, mas, não é indispensável; por outro, a função estética, fora da arte, impõe tanto a nossa atenção, surgindo nas mais diversas manifestações da vida e mostrando-se como componente indispensável, por exemplo, do habitat, do vestir, das relações sociais etc., que é necessário refletir sobre o seu papel na organização geraI do mundo. Consultando a história da estética, verifica-se que, muito antes de meditar sobre o estético na arte, a filosofia começou a meditar sobre a beleza, quer dizer, sobre o estético como princípio metafísico, como fator da ordem universal. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 276 Para Platão (1983), o estético fora da arte e o estético na arte são duas coisas a tal ponto separadas que o estético fora da arte é considerado como um dos três princípios supremos da ordem do mundo, enquanto a arte é quase expulsa do Estado ideal ou, pelo menos, submetida a um controle quase policial segundo o ponto de vista da utilidade que apresenta para a ordem estatal. Na época moderna, em que o estético na arte é já uma componente básica como tal reconhecida, o problema do estético fora da arte continua a ter a sua importância metafísica. Com a decadência do pensamento metafísico, a questão da beleza natural degenera, convertendo-se em problema secundário que por vezes se pretende resolver subordinando a beleza natural à beleza artística. Mas a questão do estético fora da arte não desaparece, antes, adquire, no momento presente, nova atualidade. Para isto contribui, principalmente, a recente evolução da arte, com as respectivas consequências. No entanto, a vida exterior à arte vai estetizando-se intensamente. Como exemplos, temos a publicidade comercial de todos os tipos; o habitat e a estetização da cultura física. No seu aspecto metafísico, esta questão não é hoje em dia candente, não se trata da existência ou inexistência de uma beleza independente do homem e, portanto, a-histórica no conjunto do universo, mas sim, da maneira por que o estético se manifesta na atividade humana e nas criações do homem. Observemos bem a mudança produzida: não se trata hoje de investigar se o estético está agarrado às coisas, mas de averiguar até que ponto tem raízes na própria natureza humana; também não se trata do estético como característica estática das coisas, mas do estético como componente energético do comportamento do homem. Tão pouco se trata da relação entre o estético e os demais princípios metafísicos, como a verdade e o bem, porém da sua relação com outros fins e as outras motivações da conduta e da criação do homem. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 277 Tudo isto significa também uma mudança considerável tanto aos métodos como ao material da reflexão. O conceito de beleza é substituído, como axioma metodológico básico, pelo conceito de função; em vez dos fenômenos naturais, aparecem, como material, os atos de que se compõe a conduta humana e os seus resultados – as criações do homem. Entre a natureza e a criação do homem, mas, muito particularmente entre a natureza e a arte, existe uma linha divisória muito firme, quase intransponível (a não ser em casos excepcionais): por isso, enquanto o problema do estético fora da arte era concebido sub espécie pela beleza natural, podia parecer que tínhamos dois mundos isolados. E, para que entre esses dois mundos pudesse haver ligações era preciso subordinar um deles ao outro: ou a arte à natureza, como fez, por exemplo, Platão, ou, ao contrário, a natureza à arte - do que há já indícios no neoplatonismo. Mas, ao considerar o estético fora da arte, através da ótica das funções, a solução transforma-se totalmente. Ao passo que, no caso precedente, as duas esferas estavam separadas por um abismo que tínhamos de transpor. Agora a relação mútua entre o estético fora da arte e o estético na arte é uma relação tão estreita que ambas as esferas se confundem e a dificuldade está mais em distingui-las que em encontrar pontos comuns a uma e outra. Já não consideramos a relação entre natureza e arte, mas as relações mútuas entre os vários gêneros ou aspectos da mesma atividade. Não se encontra uma esfera em que a função estética esteja fundamentalmente ausente; ela está sempre presente em potência e pode aparecer em qualquer momento. Isto quer dizer que a função estética não pode ser delimitada nem, tão pouco, se pode afirmar que algumas esferas da atividade humana carecem, por principio, dela ou que outras, por princípio, a possuem. Existem, também, formações culturais nas quais as funções - e entre estas, bem entendida, também, a função estética - quase não se distinguem umas das outras, manifestando-se em cada ato como conjunto compacto, apenas variável nos aspectos que toma. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 278 Não há setores da atividade humana que estejam irrevogáveis e fundamentalmente reservados a esta ou àquela função: em qualquer momento pode surgir qualquer função, e não só aquela que o sujeito atuante atribui ao seu ato ou criação; em geral, num ato ou criação, estão presentes, não apenas em potência, mas de fato, várias funções; e entre elas podem estar também aquelas em que o sujeito atuante ou o autor não tinha pensado ou que nem sequer desejava. Nenhuma esfera da atividade humana se limita a uma única função: há sempre várias delas, com tensões, disputas e pontos de equilíbrio recíprocos; e, tratando-se de uma criação duradoura, as suas funções podem variar no decurso do tempo. A função é o modo de auto-realização do sujeito perante o mundo exterior. Diz-se “auto-realização do sujeito”, e, não, “ação sobre a realidade”, porque nem todas as funções hão de tender à transformação imediata da realidade. A verificação da auto-realização do homem perante a realidade pode efetuarse segundo um de dois caminhos, sem alternativa - isto é, a verificação da distinção fundamental ser aquela que divide as funções em imediatas e de signo (semiológicas). Aplicando esta duplicidade ao grupo de funções imediatas, aparece outra divisão em subgrupos de auto-realização prática e teórica. Tratando-se de funções práticas, é o objeto que vem a primeiro plano, pois que a auto-realização do sujeito se efetua transformando o objeto, a realidade. Tratando-se da função teórica, porém, é o sujeito que vem em primeiro plano, pois, então, o objetivo geral e final é a projeção da realidade na consciência do sujeito, numa imagem unificada em conformidade com a unicidade deste (entenda-se o sujeito supra-individual, universal) e, de acordo com a constituição básica da atenção humana, capaz de concentrar-se num único ponto: a realidade em si, o objeto da função, fica intacta no caso da função teórica. Quanto às funções de signo (semiológicas) estas funções se subdividem quando lhes é aplicada a duplicidade de orientação objeto-sujeito. A função que traz Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 279 o objeto a primeiro plano é a função simbólica. A atenção é concentrada na eficácia da relação entre a coisa simbolizada - o signo simbólico. Os signos são um instrumento que serve para exprimir o sentimento - o que significa que as funções emocionais pertencem à esfera das funções práticas. O signo estético não serve, não é um instrumento, mas - tal como o signo simbólico pertence ao objeto e é de fato o único objeto claramente visível que representa o objetivo final, quer quando foi configurado antes de ser englobado na função estética quer quando foi criado diretamente por ela69. A realidade, refletida no seu conjunto, é unificada no signo estético segundo a imagem da unicidade do sujeito. Unificando, assim, a realidade, a função estética70 recorda a função teórica, distinguindo-se dela, todavia, pelo fato de esta se esforçar por conseguir uma imagem global e unificadora da realidade, enquanto que aquela procura uma atitude unificadora perante a realidade. O signo estético manifesta a sua independência de tal forma que alude sempre à realidade em conjunto e nunca a um setor particular. A sua validez não pode, portanto, ser limitada por outro signo; só podemos aceitá-lo ou rejeitá-lo em bloco. Pelo contrário, o signo utilizado pela função teórica (o conceito) representa sempre apenas um determinado setor ou um aspecto parcial da realidade; e, ao lado dele, existem sempre outros signos (conceitos) que limitam sua validade. A tipologia das funções pode, então, ser vista sob a ótica de dois grupos funções imediatas e funções de signo, cada um dos quais se subdivide: o das funções imediatas divide-se em funções práticas e funções teóricas. E o das funções de signo dividem-se em função simbólica e função estética. 69 70 Enquanto o signo for percebido como signo estético, não poderá servir para exprimir a emoção. A “subjetividade” do signo estético em oposição à “objetividade” do signo simbólico consiste noutra coisa: o signo estético não atua sobre nenhuma realidade particular, como sucede com o signo simbólico, mas reflete a realidade no seu conjunto (daí provém a chamada “tipicidade” da obra artística, conceito que só quer dizer que a obra de arte, o signo estético mais puro, mostra, servindo-se de uma particularidade, todas as outras particularidades e o seu conjunto — a realidade). Para a função estética, a realidade não é um objeto imediato, mas mediato; na verdade, objeto imediato (quer dizer, absolutamente instrumental) é, para a função estética, o signo estético, que Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 280 Nesta formulação, chama-nos a atenção o fato de, no caso das funções práticas, se utilizar o plural, enquanto que, nos outros três casos – função teórica, função simbólica e função estética – se utilizar o singular. Kant (1991) expressa que a ação humana pode ser evidenciada em três grandes atitudes: a prática, a teórica e a estética; ou ainda, que o ato humano e o seu resultado têm, necessária e substancialmente, três funções: a prática, a teórica e a estética. Por sua vez, a noção de função em Kant, segundo Galeffi (1986), assume o significado dos conceitos que se baseiam na espontaneidade do pensamento, assim como as intuições sensíveis se baseiam na receptividade das impressões. Nas outras funções não há matizes tão diferenciados; seria difícil distinguir várias funções teóricas ou várias funções estéticas. O motivo pelo qual a função prática se encontra tão abundantemente diversificada é evidente: entre todas as funções, é esta que mais próxima se encontra da realidade. Ao contrário das funções de signo, ela orienta-se diretamente para a realidade, ao contrário da função teórica esforça-se por incidir na realidade e por transformá-la. Por isso mesmo se reflete na função prática a abundante diversificação da realidade e os seus matizes correspondem às diferentes classes e gêneros de realidade com que ela entra em contato. Esta diversificação é dada também pelo fato de a função prática assegurar as condições elementares da existência do homem: por isso a função prática é até certo ponto uma função por excelência, função não marcada; as outras funções agrupam-se em redor dela, sempre, sem se subordinar, mas entrando em estreita relação com ela; alguns dos matizes da função prática aparecem quando ela se mistura com outra. Outra observação a fazer quanto à tipologia das funções é a seguinte: a tipologia apresentada foi construída de um ponto de vista puramente projeta a posição do sujeito, realizada pela construção do signo, na realidade, como sua lei geral, Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 281 fenomenológico e nada tem a ver com as questões de gênese; mas não contradiz, até concorda, com o fato de o estado originário se caracterizar pela homogeneidade das funções e com o da diferenciação das funções ser característica apenas de períodos evolutivos muito avançados. Quanto à gênese das funções, ao apontar uma tipologia, apenas assinala o fato de nenhuma das funções poder ser reduzida à outra: por exemplo, não podemos supor que a função teórica surgiu da função prática, como por vezes se pensa que os mesmos laços a ligam também à função simbólica (caráter simbólico de toda a sabedoria primitiva, a cosmogenia mitológica como ciência primitiva), mas também não pode ser deduzida dela. Ainda podemos fazer outra observação: ao tratar das funções “de signo”, mencionamos a função simbólica e a função estética, excluindo da esfera destas funções os signos utilizados como instrumentos pela função prática e pela função teórica. A razão deste aparente desdobramento do mundo dos signos é o fato de haver nos signos simbólicos e estéticos o caráter de objeto, enquanto que os signos da função prática ou da função teórica têm o caráter de instrumentos. Apesar de tudo isto, o desdobramento do mundo dos signos é apenas aparente: as características que unem todos os signos, independentemente das diferenças entre as funções, são demasiado fundamentais para ser possível um desdobramento real. Tampouco deve ser esquecido que, nos períodos de homogeneidade ou de pequena diferença entre as funções, também os signos eram visivelmente multifuncionais, de modo que, por exemplo, o signo prático era, ao mesmo tempo, um símbolo. São dadas, em parte, já pelo plano horizontal da nossa tipologia: as características que unem os membros do par de funções imediatas (a função prática e a função teórica) e as que unem os membros do par de funções de signo (a função simbólica e a função estética). sem perder por isso a sua independência. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 282 Também dissemos que, através das diferenças que existem entre ambos os grupos, algumas funções podem misturar-se graças a certos traços comuns: assim, a função prática se relaciona com a função simbólica e a função teórica se relaciona com a função estética. Falta ainda saber se podem, também, justificar as outras duas associações, a da função prática com a função estética e a da função teórica com a função simbólica. Entre os membros destes dois pares há também mitos vínculos reais. A função prática associa-se, até se mistura, muitas vezes, com a função estética, assim como a função teórica com a simbólica. Do ponto de vista fenomenológico, porém, membros destes dois pares nada têm de comum: a função prática conduz a ação direta sobre a realidade, ao passo que os atos e as coisas dominadas pela função estética têm em si próprios; a função teórica priva de toda a iniciativa os signos que utiliza, convertendo-os em termos fixos ou mesmo em sinais, enquanto que o signo simbólico é a própria iniciativa, sendo assim, não apenas objeto, mas objeto atuante. O fato de que as respectivas funções, a função prática e a função estética, por um lado, e a função simbólica e a função teórica, por outro, se encontram mutuamente unidas precisamente por causa dos seus caracteres opostos, prova-se, por exemplo, a relação entre a função estética e a função prática. Sempre que a função prática retrocede, um só passo que seja, imediatamente por trás dela aparece, como sua negação, a função estética; muitas vezes, estas duas funções entram em conflito uma com a outra, lutando pelo domínio de uma coisa ou de um ato. Entre todas as funções fundamentais há, portanto, relações recíprocas e o plano horizontal da sua tipologia são constituídos pela rede destas relações. Ressalta-se que a noção de função aqui utilizada assume uma perspectiva fenomenológica, enquanto modo de auto-realização do sujeito perante o mundo exterior. É também considerada a noção adotada por Kant que vê a função enquanto conceito que se baseia na espontaneidade do pensamento (GALEFFI, Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 283 1986). Também se pode evidenciar a presença necessária da atitude estética na criação teórica ou científica, sendo que, mesmo as atividades práticas, que não podem ser designadas como de criação, mas antes, como repetitivas do hábito, mostram, por vezes, traços evidentes da presença do estético. Dada a sua onipresença, o estético é, portanto, um fator poderoso de alcance vital. A Estética atual tem como papel preponderante verificar todos os aspectos e disfarces do estético e investigar a dinâmica das suas relações com a atitude prática e a atitude teórica. Neste sentido, representa-se uma grande ampliação da esfera dos seus interesses, que significa a integração direta da estética no ciclo vital, pois perante seus olhos perpassam a moda, a educação física, as formas das relações sociais, a produção industrial e artesanal, a ciência, a filosofia e a religião. Em todos esses setores, e em muitos outros, o estético manifesta-se como uma das forças motrizes fundamentais, embora, por vezes, ocultas. O presente capítulo procurou efetuar a articulação entre o viver e agir humano considerando as diferentes atitudes e funções humanas, nela destacando a função e atitude estéticas, sempre enfatizando sua articulação e harmonia com as demais funções – mágico-religiosa; teórica; prática – de maneira a evidenciar uma lacuna presente nos estudos organizacionais, dita e ora reafirmada neste capítulo por prescindir das funções estética e mágico-religiosa. A compreensão da ação humana nas organizações fica evidenciada, à medida que, compreender melhor o homem e seu viver, ou seja, o sentido de sua existência, possibilita naturalmente, melhor compreensão do agir no cotidiano das organizações, afinal o agir organizacional é conseqüência do agir humano. Os estudos organizacionais têm enfatizado a ação organizacional desvinculado-a do agir e da escolha humana, portanto, apontando para um ideal que causa frustração e incongruência por desvincular a organização do humano, reificando a organização como uma instância social dotada de vontade própria, uma Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 284 entidade, uma personalidade, quando não passa de uma personificação, fruto das escolhas de poucos. O que tem sido feito nesse propósito de aproximação entre o humano e a organização, onde a segunda é conseqüência da primeira, e sua articulação com a Estética será objeto da terceira parte. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 285 PARTE III ESTÉTICA E ORGANIZAÇÕES Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 286 CAPÍTULO IX ESTÉTICA NOS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS Nossos atos embasam-se nos nossos pensamentos, esses que se refletem nos nossos sentimentos e estes nossas experiências. A Arca Após pontuar os marcos filosóficos e históricos da Estética, o que, de modo algum, esgota os autores referenciados, nem mesmo o desenvolvimento histórico da Estética, mas que se mostrou essencial a defesa da presente tese, na medida em que a riqueza e significação da Estética no cotidiano humano é primordial, não sendo à toa a atenção dispensada por diferentes autores ao longo dos séculos. Maior atenção foi dada à contribuição de Kant (1993; 1989; 1988; 1974; 2002) para o desenvolvimento da Estética, por se identificar, nas obras kantianas, além de um novo marco para a Estética – reconhecida na Filosofia –, a busca em articular o conhecimento estético, o conhecimento teórico e o conhecimento empírico, perspectivas exploradas na segunda e na primeira parte desta tese, respectivamente. Nesta terceira parte busca-se efetuar a aproximação entre a filosofia e a Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 287 Estética, bem como a aproximação entre a filosofia e a análise organizacional, e, para tanto, é apontada a presença e contribuição da Estética, assim como, as bases para articulação com as organizações. Se na primeira parte buscou-se apontar os fundamentos norteadores dos estudos organizacionais, apontando a desconsideração da dimensão estética em tais estudos, na segunda parte resgatou-se a construção e desenvolvimento da Estética enquanto campo de conhecimento filosófico, presente e inerente ao viver humano, se fazendo presente em diferentes autores que apontam a presença e importância da Estética no cotidiano humano. Já nesta terceira parte busca-se considerar as duas partes anteriores onde são evidenciadas, tanto a limitação e impasse dos estudos organizacionais, como a importãncia e contribuição da Estética, formulando nesta parte a necessidade e possibilidade de considerar a Estética para melhor compreensão da ação organizacional. Para apontar e estabelecer as possibilidades de articulação entre a Estética e os estudos organizacionais são construídos dois capítulos que versam sobre a Estética e os estudos organizacionais e, sobre a articulação entre a Estética e a gestão organizacional. Quanto ao presente capítulo busca-se resgatar, destacar e refletir acerca da presença da Estética nos estudos organizacionais, suas motivações, os direcionamentos das pesquisas e as principais contribuições até então realizadas. O propósito do capítulo é identificar e analisar como e em que medida a Estética tem sido considerada enquanto elemento e possibilidade para análise e interpretação do cotidiano das organizações. A ênfase no aspecto racional tem proporcionado o desenvolvimento de profissionais para a área de administração, com uma alta capacidade analítica que, entretanto, não têm se mostrado suficientemente capacitados, para fazerem face ao novo patamar organizacional que se vivencia no final deste século. No contexto organizacional contemporâneo os estudos convergem Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 288 majoritariamente para elementos mensuráveis, objetivos, que por si só, não se mostram suficientes, pois, ao se concentrar nas técnicas e aspectos lógicos, não se consegue dar conta das necessidades e transformações inerentes ao processo de interação humana e organizacional. Mintzberg (1987) comenta acerca do trabalho gerencial, apontando a visão que tem os dirigentes sobre as suas funções, as quais consideram eminentemente de caráter decisório e, portanto, deveriam ser mais racionais e solucionadores de problemas, sendo que, no contexto organizacional, sentem-se frustrados, pois, dada a fragmentação do processo decisório, tal papel pode até ser considerado ideal; entretanto, está e estará muito distante do real. Motta (1991), ao discorrer sobre a formação gerencial, destaca que, além da dimensão formal e previsível do processo decisório organizacional, é fundamental aos dirigentes a familiarização com as dimensões do informal, do improvável e do imprevisto que se passa no meio organizacional. Refere-se então ao uso do senso comum, da simplicidade e do juízo das pessoas, através do uso ativo dos instintos e percepções individuais; fazendo referência as escolhas intuitivas, aquelas que não se baseiam ou mesmo contradizem a lógica dos fatos explicitamente conhecidos e sistematizados. A intuição71 é vista como um impulso para a ação em que não se faz uso do raciocínio lógico. Simplicidade, intuição, sensibilidade, percepção, entre outros termos, passaram a ser considerados fatores fundamentais para o sucesso organizacional, definidos especialmente pelos consultores organizacionais, a exemplo de PETERS & WATERMAN (1983); PETERS & AUSTIN (1985). Tais consultores consideram ser necessário partir da premissa de que existem fatos, ocorrências, que não se enquadram nas regras, diretrizes e esquemas 71 Intuição enquanto forma de contato direto ou imediato da mente com o real, capaz de captar sua essência de modo evidente, mas não necessitando de demonstração. Em Kant, a intuição pura é uma forma a priori da sensibilidade, constituindo com o entendimento, as condições de Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 289 predeterminados; assim, as normas são limitadas para a gestão das organizações. Defendem, então, a necessidade de se desenvolver maior amplitude na análise dos problemas organizacionais, indo além da área de conhecimento prevalecente, do conhecimento racional, dedutivo. Entretanto, ainda que se fale muito em ilógico, intuição, percepções individuais, instintos, etc., a teoria organizacional não oferece conexões, que permitam a interação entre essas diferentes dimensões da ação organizacional. Certamente esse ponto obscuro na ação organizacional não é novo, tendo Ramos (1989) destacado tal limitação, criticando o reducionismo instrumental, onde permeia uma unidimensionalidade, predominante na ação organizacional. Discorrendo sobre a teoria da interação simbólica72, Ramos (1983) destaca que há inúmeras maneiras de se chegar ao conhecimento, e, dentre elas, a ciência é uma das muitas formas corretas de conhecimento. Arte, mito, religião e história são outras formas de conhecimento, legando diferentes tipos de experiência, cada um deles válido nos limites da realidade a que corresponde. Observa ainda que, a interação simbólica presume que a realidade social se faz inteligível ao indivíduo através de experiências livres de repressões operacionais formais. Os símbolos, assim, são veículos para a troca dessas experiências. 9.1 A NOÇÃO DE ESTÉTICA NOS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS A literatura envolvendo a estética organizacional tem sido dominada por membros do SCOS no passado e no presente e, em particular, por uma série de 72 possibilidade do conhecimento. Apresenta duas dimensões da intuição: a) de espaço e tempo, possibilitando a unificação do sensível; e b) da recepção de percepções (Ver KANT, 1989). A interação simbólica é um tipo de comunicação não-projetada que se opõe às comunicações projetadas, de modo que, nos sistemas racionais e funcionais, tais como o da organização convencional, as comunicações entre os indivíduos não se fundamentam no livre fluxo da Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 290 pesquisadores a exemplo de Benghozi, 1987; Dean et al., 1997; Dégot, 1987; Gagliardi, 1990, 1996; Jones et al., 1988; Linstead & Grafton-Small, 1985; Ottensmeyer, 1996; Ramirez, 1987; Rusted, 1987; Strati, 1990, 1992, 1995, 1999; Turner, 1990. A noção mais presente nos estudos organizacionais sobre o uso da Estética associa-a a uma metáfora epistemológica, ou seja, a uma forma de apreensão da realidade diferente daquelas baseadas em métodos analíticos, e que constituem a base do que se denomina de conhecimento científico – racionalidade e empirismo. Dentre os autores que assumem tal associação há PELTZER (1995) e STRATI (1992; 1999). Para Wood Jr. & Csillag (2001) o pressuposto desses autores é que o avanço do “projeto modernista”, a crescente especialização e fragmentação na esfera social e a institucionalização das ciências e das artes levaram à destruição de uma unidade original das ciências, da Ética e da Estética. As contribuições de Antonio Strati73 demonstram pioneirismo, coerência e sutileza ao utilizar o elemento estético enquanto referência para a análise organizacional. No artigo intitulado “aesthetic understanding of organizational life” publicado em 1992, Strati discorre sobre as possibilidades da dimensão estética contribuir na análise organizacional, numa abordagem que auxiliará no lidar com a complexidade, ambiguidade e sutileza presente na rotina de uma organização. Faz questão de evidenciar o fato de que a compreensão estética da vida organizacional é uma metáfora epistemológica, ou seja, uma forma de aprendizado diverso daqueles baseados em métodos analíticos. Fica evidenciada a influência e predomínio da função de signo, que pode ser desdobrado na função simbólica e na função estética, consideradas no capítulo anterior. 73 experiência direta da realidade, mas classificam-se sob um conjunto de regras técnicas e de procedimento. Strati é sociólogo, pesquisador e professor em sociologia das organizações, no Departamento de Sociologia e Ricerca Social na Universidade de Trento e Siena, Itália, sendo um dos membrosfundadores da Standing Conference on Organizational Symbolism (SCOS). Dentre outras áreas de interesse destaca-se o simbolismo; o cognitivismo e a estética no âmbito da teoria organizacional. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 291 A ênfase de Strati, em face de suas experiências e pesquisas decorrentes do simbolismo organizacional, acaba por enfatizar esse aspecto, em detrimento da função estética, a qual é possuidora de uma dimensão própria, mas que encontra-se interrelacionada com a função simbólica. Strati (1996; 1999) destaca a importância da Estética enquanto uma das formas de conhecimento e a necessidade de reconhecê-la enquanto dimensão, aspecto e objeto da vida organizacional e que, mesmo pouco considerada, enquanto elemento de pesquisa, tem muito a contribuir no âmbito dos estudos organizacionais. Strati (1992; 1999) demonstra como o elemento estético pode ser objeto de estudos, a partir do cotidiano de uma organização, ensejando três elementos para pesquisa: a) pelo viés do produto, mas especificamente do design; b) pelo viés do ambiente organizacional, especificamente pela distribuição do espaço e sua ocupação; e c) pelo viés da cultura organizacional, argumentando as relações complexas existentes entre cultura, ideologia e design estético. Em trabalho anterior, Strati (1990) apresenta os resultados de uma pesquisa em três departamentos universitários italianos, onde buscou verificar a presença da dimensão estética na dinâmica do processo de trabalho, com ênfase na análise das atividades, do ambiente, da composição e da estruturação do trabalho. Para tanto adaptou um conjunto de princípios estéticos que permitissem a descrição, acompanhamento e análise dos valores organizacionais presentes, apreendidos pelos principais membros das organizações em estudo, e dos reflexos sobre os processos de trabalho e aprendizagem decorrentes destas. As conclusões da pesquisa apontaram, pela presença e influência da dimensão estética na dinâmica organizacional, valores e repercussões distintas de organização para organização, não podendo ser precisamente definidas, em face da delicadeza e profundidade dos sentimentos decorrentes da vida organizacional, reconhecendo tratar-se de mais um fragmento para o entendimento da dinâmica das organizações. Strati (Op. cit.) ainda aponta possibilidades de estudos da dimensão estética Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 292 organizacional, enquanto dimensão simbólica, contribuindo para a análise organizacional, ainda que padrões e parâmetros não possam dar conta da dinâmica e particularidade de cada organização. Strati (1999) entende a Estética da vida organizacional enquanto uma metáfora epistemológica a qual problematiza a análise racional e analítica das organizações. Observa-se, nos trabalhos dos pesquisadores anteriormente citados, que, nos últimos vinte anos, o estudo do sentimento e da sensibilidade74 nas organizações se fez com base no conhecimento tácito, artefatos e bases das culturas que têm o reconhecimento da influência da dimensão ou dos aspectos estéticos da organização. Porém, seria grotescamente simplista assumir tal interesse somente decorrente da noção de beleza ou elegância na forma, arquitetura ou estruturas de organizações. Realmente, tal suposição dirigiria o campo para o desenvolvimento de uma estética organizacional com pouca consideração para o epistemológico que, para Strati (1992, 1995, 1999), é o aspecto central. Uma aproximação Estética dos estudos organizacionais da maneira evidenciada por Strati problematiza o racional, fazendo disto uma preocupação importante para os pesquisadores organizacionais. Ao mesmo tempo, uma preocupação para os aspectos estéticos da organização parece ser um contraponto inevitável ao privilegiar aspectos de ordem subjetiva, presentes na vida organizacional. Aproximações da estética nos espaços entre a organização e seus atores possibilitam a integração da teoria com a prática; do projeto com o experimentado; entre o cognitivo e o sensório; e entre o estímulo e a resposta. Por conseguinte, aproximações estéticas têm muito para contribuir ao estudo de organizações, 74 Sensibilidade, em sentido genérico, significa capacidade de sentir, de ser afetado por algo, de receber através dos sentidos, impressões causadas por objetos externos. Kant usa tal termo, para designar a receptividade da consciência, a capacidade de formarmos representações dos Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 293 trabalhando fora de categorias convencionais e desafiando a lógica do processo organizado. Outro autor, pioneiro nos estudos envolvendo a Estética e a análise organizacional, é Pasquale Gagliardi75 que, no artigo intitulado “Exploring the aesthetic side of organizacional life” (1996), explora três dimensões que considera serem inerentes à experiência estética, para efeito da análise da vida organizacional. Seu entendimento da palavra Estética é enquanto “the general sense, to refer to all types of sense experience and not simply to experience of what is socially described as “beautiful” or defined as “art” ” (GAGLIARDI, 1996, p. 437) Tal definição esteia-se na definição explicitada por Baumgarten já referenciada anteriormente, ainda que o autor adiante, amplie tal entendimento, ao afirmar que utiliza o termo experiência estética para “include every type of sense experience and not only experiences that are socially defined as “beautiful” or as “art””. Gagliardi (Op. cit.) aponta como três as dimensões da experiência estética, a saber: a) enquanto uma forma de conhecimento, conhecimento sensível, diferente do conhecimento intelectual, freqüentemente inconsciente, tácito e que não pode ser expresso através de palavras; b) enquanto uma forma de ação, expressiva, desinteressada, motivada pelo impulso e pela sensibilidade, pela faculdade do sentir e não por um objeto; e c) enquanto forma de comunicação, diferente da conversa, do discurso ou diálogo que pode acontecer à medida que as ações expressivas – ou os artefatos que elas produzem – tornam-se o 75 objetos graças a maneira pela qual estas nos afetam. A sensibilidade para Kant (1989; 1991) fornece a matéria dos fenômenos. Professor de Teoria da Organização na Universidade Católica de Milão e Diretor do Istituto Studi Direzionali (ISTUD), onde tem pesquisado o relacionamento entre cultura e ordem organizacional. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 294 objeto do conhecimento sensorial, sendo portanto, uma forma de transmitir e de compartilhar formas particulares de sentir o conhecimento inefável. O autor supracitado, ao delinear como cada uma dessas dimensões se faz presente na vida cotidiana da organização, alerta para a profunda influência que a dimensão estética tem sobre a organização, inclusive sobre a performance desta e que a escassez de estudos que privilegiam o elemento estético decorre da prevalência de premissas lógicas e ideológicas em detrimento de premissas intuitivas e estéticas. Considera a experiência estética como “básica” para indicar que aquela experiência estética é a base de outras experiências e formas de cognição que constituem o objeto usual dos estudos organizacionais e que isso implica que as experiências estéticas têm profunda influência na vida organizacional, uma vez que a dimensão estética exige formas de entendimento intuitiva, particular, acabando por ser deixada de lado, por métodos analíticos, ditos e tidos como precisos e passíveis de mensuração. Wood Jr. & Csillag (2001) efetua uma articulação entre Estética e pensamento visual, adotando a noção clássica de Estética, relacionando-a com a essência e a percepção da beleza, percepção do belo, ainda que, não exclusiva da Estética. Aponta a extensão da noção de Estética para múltiplos campos de conhecimento, como as artes, a psicologia, a arquitetura e o design, como visto na terceira fase da história da Estética delineada no Capítulo V. Leal (2000b), ao apontar uma noção de Estética articulada aos estudos organizacionais, resgata, historicamente, diferentes noções com destaque para o Século XX, período histórico mais ativo e diversificado, que apresenta duas grandes tendências referenciais: a) os que se orientam para a indagação do papel do sujeito e das questões fundamentais que os auxiliam, tais como a percepção, e experiência estética, a inspiração criadora, como indagações filosóficas que tendem a resguardar a parte da subjetividade; e Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 295 b) os que se orientam para uma estética dotada de uma intenção de cientificismo, de uma linguagem discursiva, versando a objetividade da forma/obra, entendendo assim, a estética, como ciência positiva. Leal (2000a) faz uso da noção de Estética, enquanto função, indicando-a como a terceira função – as demais funções são a teórica e a prática -, afirmando que só ela considera a própria coisa76, a coisa como particularidade, como conjunto de características de variedade inesgotável resgatando a noção kantiana (Kant, 1989;2002). Afirma o autor que a coisa não é concebida nem como recurso para alcançar um objetivo, nem como mera base de certas relações, mas como um fim em si própria, ou seja, “autofinalidade”. Argumenta que a função estética, assim como as outras duas, está presente de modo manifesto, ou pelo menos, potencial, em todos os atos humanos, em todos os atos de percepção ou de criação. Do ato de criação, por exemplo, se pode dizer que, quanto menos esperado é o seu resultado, tanto mais indispensável é a participação da criação, a exemplo da criação técnica. Quando é preciso alcançar um objetivo novo, sem precedentes - e nisso consiste a essência da criação prática há que aproveitar novos aspectos da realidade até aí omitidos. Esses aspectos só podem ser descobertos pela atitude estética e é isso que propõe para os estudos organizacionais. Leal (2001; 2002), ao considerar a noção de estética, propõe uma reconsideração da noção perdida ao longo do século passado, que passou a dar ênfase à aparência, à forma, em detrimento da valorização do conteúdo das coisas, dos atos e ações, portanto, da busca da essência que proporciona sentido e significado, e não da mera valorização do aparente, do superficial. 76 Filosoficamente designa qualquer objeto ou termo, real ou irreal, mental ou físico, decorrente de um ato de pensamento ou de conhecimento, de imaginação ou de vontade, de construção ou de destruição. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 296 9.2 AS PERSPECTIVAS DOS ESTUDOS ENVOLVENDO A ESTÉTICA Strati (1999) elabora um trabalho sistemático na localização e sistematização dos movimentos envolvendo o uso da Estética para análise organizacional durante as últimas duas décadas. Notavelmente, Strati identifica a influência da Standing Conference on Organizational Simbolism (SCOS) e a contribuição desta para o desenvolvimento do campo dos estudos estéticos nos anos oitenta. Trabalhos recentes na área de estudos organizacionais (Dean et al., 1997; Gagliardi, 1990, 1996; Jones et alii, 1988; Linstead, 1994; Ramirez, 1991; Sandelands e Buckner, 1989; Strati, 1992) chamaram a atenção quanto à possibilidade de desenvolver uma estética organizacional enquanto campo de investigação dentro dos estudos de organização. Segundo Linstead & Höpfl (2000) esse campo de investigação teria como questões a explorar, envolvendo a distinção entre as estéticas das organizações e a estética da organização, a importância da 'evocation' para o entendimento organizacional; a significação de conceitos tirados de pensadores pós-modernos que lidam como Derrida ou Lyotard. Consideram como outras possibilidades a Estética enquanto forma de emancipação ou resistência; os problemas metodológicos particulares associadas à investigação empírica do estético; a re-conceitualização do visual e do auricular e a relevância deles para compreensão organizacional; as recentes idéias acerca da aprendizagem em organizações e desenvolvimentos pedagógicos; a incorporação de teoria acerca do aspecto visual ou performático em estudos de organização; e o trabalho empírico em estéticas organizacionais. Strati (1999), na introdução, fala da Estética da vida organizacional como doçura e obsessão, sentimento de prazer e desejo destrutivo, fonte de conflito, origem de problemas de solução difícil, num plano de realidade socialmente construído. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 297 O que se faz destacar nesta definição é o grau de consonância entre o que ele está dizendo sobre a estética da vida organizacional e a pessoa. É esta integridade e coincidência de ego-identidade e forma expressiva que descrevem a possibilidade de uma posição entre texto e experiência. É precisamente por isto que uma abordagem envolvendo a estética organizacional tem um papel importante para articular a reconciliação entre teoria e prática. Strati (1999) explora as aproximações levadas por pesquisas organizacionais ao se debruçar sobre a Estética e desses estudos provem uma valiosa avaliação do desenvolvimento do campo. Várias pesquisas, segundo Strati (Op. cit.), focalizam aspectos específicos da estética organizacional, por exemplo, a imagem interna e externa da organização. Outros estudos consideraram o uso estético da organização de decoração ou embelezamento, ou sua distribuição de orçamento para eventos culturais externos e entretenimento. Alguns estudos organizacionais examinaram a beleza da organização como um todo, com ênfase particular em ritos e narrativas sobre eventos no trabalho, sobre grupo trabalhando e liderança, e sobre rituais da vida coletiva não só identificados como bonitos, mas também a partir da significação especial para os atores organizacionais. Strati apud Linstead (2000) realça a dominação de aspectos de natureza material ou física e a necessidade de prestar atenção a aspectos normalmente negligenciados nos estudos organizacionais envolvendo o tema da estética em organizações, apontando, como exemplo, a ideologia da beleza incorporada ou, ainda, a ideologia da organização de sua própria beleza; a continuidade do tema, articulando-o com a criatividade e antevisto na literatura organizacional presente na perspectiva do gerente como artista; a organização como um processo criativo; a organização como jogo; e a difusão da perspectiva da pós-modernidade acerca da dimensão estética. Para Monthoux apud Linstead (2000) a Estética alarga a reflexão acerca da Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 298 criatividade ao topo da interpretação e isto será considerado quando se articula a vida organizacional e a contribuição da teoria da arte. Questiona então, até que ponto arte e organizações se confundem. e pergunta ainda onde a arte se torna uma mera decoração legitimando o que pode ser entendido melhor como forças econômicas. E, aponta, em seguida, então um modelo para explicar os processos de “totalização” e “banalização” em um contexto empresarial, baseando-se na teoria da arte e da Estética. Gagliardi (1996) considera que o pathos de uma organização não é uma questão de emprego único e incondicional de uma forma particular de conhecimento e comunicação, considerando que o progresso do conhecimento acontece num sistemático vai e vem entre a intuição e a racionalização, entre o conhecimento tácito e o consciente. Segundo Gagliardi (1990) não há dúvida de que a única forma de entender o pathos de uma organização, sem o filtro das racionalizações dos atores e sem o perigo etnocêntrico de atribuir à organização estudada o padrão de sensibilidade que assimilamos em nossa própria cultura, é partilhando as experiências estéticas dos participantes, submergindo em seu contexto perceptivo e permitindo o envolvimento destes pela experiência sensorial. Strati (1999) reconhece que a Estética, enquanto elemento da vida organizacional, traduz-se numa forma de conhecimento humano; e é especificamente o conhecimento resultante da percepção dos atores organizacionais que se faz através das faculdades de percepção como ouvir, ver, tocar, cheirar e também pela capacidade para julgamento estético. Entender Estética no contexto organizacional cotidiano exige levar em conta elementos não-humanos, como sugere Gagliardi (1990), afinal os caminhos despertados por elementos não-humanos estão presentes também nos sócios de uma organização. O estudo da estética organizacional envolve não a análise de algo fixo e objetivo, mas dos diferentes modos e possibilidades pelos quais atores Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 299 organizacionais e o pesquisador possam vir a entender e interpretar a vida organizacional. E estas são formas de conhecimento que podem ser identificadas principalmente nas práticas cotidianas dentro de uma organização. Comumente as pessoas acham que as teorias organizacionais e a administração não têm nenhuma correlação com a Estética, em face do viés racionalizante e instrumental presente nas formulações teóricas que buscam dar conta da vida organizacional, ou, ainda, que, no máximo, a Estética nada mais é que um jogo de personalidade e subjetividade de critérios e que, por isso, tem uma utilidade limitada. Essa imagem prevalece carregada pela literatura organizacional, até metade dos anos 70 do século passado, quando as organizações eram tidas como compostas de idéias que se encontram e fundem no nível racional. Idéias, até então, destituídas de erotismo, sensações bonitas ou feias, perfumes e odores ofensivos, atração e repulsão. A teoria organizacional e os estudos organizacionais descreveram organizações em forma idealizada, desprovidos das características materiais e, portanto, de características físicas e corporeidade. Porém, isto não corresponde à prática cotidiana nas organizações, nem ao uso feito pelos seus participantes ao entenderem o estético da vida organizacional, afinal, não reflete a necessidade sentida pelas organizações para este tipo de entendimento e não leva em conta o fato de que as organizações fazem uso da estética para aumentar os produtos e serviços e criar uma identidade que é imediatamente comunicável aos clientes, empregados e à sociedade. É então curioso por que a teoria das organizações e os estudos organizacionais têm desenvolvido e alcançado legitimidade social com base em uma visão idealizada, de organizações baseada na suposição, não cientificamente validada, de que Estética pertence e serve à sociedade, mas não se constitui parte da vida organizacional. Essa idealização organizacional sofre várias mudanças a partir de 1970, Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 300 quando a atenção dos estudos organizacionais começa a considerar a dimensão estética presente no dia-a-dia em organizações. Essas mudanças foram provocadas em parte por uma crítica contra o paradigma funcionalista e contra a excessivamente racionalização e reificação da vida organizacional que ignorava a volição de indivíduos (ZEY-FERREL, 1981). As mudanças também foram provocadas por um interesse renovado no estudo da arte e da Estética, o que gerou uma perspectiva teórica que, segundo Judith Blau (1988), levou a controvérsias, na medida em que estava centrado em uma visão de arte enquanto promotora de uma oportunidade sem igual para sociólogos investigarem as conexões entre os significados e a ordem social e o modo pelos quais os significados penetram em todos os níveis que a ordem social ordena. Novamente, em parte, estas mudanças foram estimuladas pelo debate entre o moderno e a pós-modernidade presente nos estudos de Cooper e Burrell (1988); Hassard e Parker (1993) que apontam uma ênfase da pós-modernidade na Estética, ainda que o debate se faça, em muitos aspectos, envolvendo a arte e a estetização da vida cotidiana (FEATHERSTONE, 1988; JAMESON, 1991; TUCKER, 1996). Mesmo quando a modernidade não tinha sido substituída pela pósmodernidade, já se fazia presente uma modenidade reflexiva conforme aponta Beck et al. (1994); Giddens (1989; 1990), que viram nisso um caminho para a dimensão estética. Mas a imagem idealizada da organização tem sido modificada, acima de tudo, pelos estudos de organização que examinam estéticas organizacionais e que constituem um dos campos de estudos agora com sua própria, embora modesta, tradição de pesquisa e análise, além de suas próprias controvérsias teóricas e metodológicas internas. Becker (1982) realça um jogo de características organizacionais que influencia a valorização e ênfase nas colocações que enfatizam a materialidade enquanto eixo dos estudos organizacionais. Aponta como primeiro elemento de Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 301 influência as exigências técnicas de trabalho e o alto grau de controle social. Outro elemento é a reação afetiva para o trabalho e a organização onde se considera que a impessoalidade proporciona melhores resultados operacionais. Outro elemento envolve o aspecto interpessoal, onde práticas, enfatizando a competição, cooperação e percepção de pessoa, redundam em diferentes graus de integração. Na realidade, a valorização do aspecto físico prioriza aspectos da organização como tamanho, qualidade, arranjo, privacidade e local; os quais são aspectos de importância na vida organizacional, mas não exclusivos. Mas chega-se ao ponto de autores, a exemplo de Pfeffer (1994), entenderem as organizações como estruturas físicas. Entretanto, estudos organizacionais, tendo como foco os aspectos estéticos das organizações e a possibilidade do seu gerenciamento na vida organizacional, ganham corpo. Eles buscam adquirir maior conhecimento sobre Estética e sobre como ela, entabulada com a estrutura e o comportamento dos atores organizacionais, pode, no ambiente de trabalho, proporcionar melhoria da performance organizacional. Contrastando com este funcionalismo tem-se a aproximação de pesquisadores da estética organizacional para estudar os símbolos e culturas (GHERARDI, 1995; SMIRCICH, 1983; TURNER, 1990) e, desse modo, buscam construir ou reconstruir a percepção da organização, a partir dos atores organizacionais. Menos amarrados à perspectiva de organização enquanto estrutura física, os estudos envolvendo a estética da vida organizacional tiveram edição especial na revista Dragon, tendo por temática “a arte e a organização”, editada por Pierre-Jean Benghozi em 1987. Estes estudos examinam a criatividade das pessoas que trabalham em organizações e em administração de organizações se ocupando de atividades relacionadas com a arte ou com práticas organizacionais cotidianas associadas à arte. Há três artigos os quais se deve dar especial atenção e cujos autores (Dégot, Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 302 1987; Ramirez, 1987; Rusted, 1987) ilustram as diferentes aproximações dos estudos envolvendo a estética organizacional sem recorrer às estruturas físicas de organização e acabaram por enfatizar a sistematização do conhecimento por meio de analogias com arte; o exame da beleza da organização e dos julgamentos do sentimento estético com respeito à organização como um todo; e o estudo de como são mediadas as estéticas em práticas estéticas. Estes três estudos diretamente enfatizam o ponto de vista do investigador e reconhecem a importância do envolvimento estético no processo de juntar conhecimento sobre culturas organizacionais e símbolos. Dégot (Op. cit.) propõe uma analogia entre o gerente e o artista e também o estudo situado em práticas administrativas. Ele sugestiona vários métodos de administração previamente desconhecidos que emergem se o investigador examinar práticas administrativas, por analogia, com estilos artísticos e gêneros. Ramirez (Op. cit.) ilustra a beleza de uma organização social segundo aqueles que dela participam e, para tanto, emprega o conceito de forma (Bateson, 1972; Langer, 1953), demonstrando a influência do conhecimento estético de realidade organizacional. Para Strati (1999) a análise estética da vida organizacional é uma área nova de investigação em teoria da organização e na administração, cuja contribuição crucial é enriquecer o conhecimento sobre a vida organizacional cotidiana. Além disso, tal análise eleva assuntos teóricos e metodológicos relativos ao corpo inteiro do conhecimento produzido por estudos organizacionais; considerando, ainda, que é possível a Estética ampliar a compreensão da vida organizacional, ao lado da perspectiva lógico-racional. No Brasil, tal possibilidade tem sido exploradas nos trabalhos de Leal (2000a, 2000b, 2001; 2002a; 2002b); Wood Jr & Csillag (2001), demonstrando as possibilidades concretas de uso da dimensão estética para análise organizacional. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 303 9.3 ESTÉTICA ENQUANTO ELEMENTO DE ANÁLISE DOS VALORES E CULTURA ORGANIZACIONAL Umas das possíveis articuações entre a Estética e a análise organizacional pode ser efetuado sob a ótica da cultura organizacional. A preocupação com a cultura organizacional é um traço marcante dos estudos organizacionais nos anos 80, à medida que se reconhece como fundamental o conhecimento da cultura, para possibilitar melhores condições de adaptação e mudança organizacional, fruto da limitação dos instrumentos e métodos tradicionais no estudo das organizações. Desse modo, a cultura organizacional ganha corpo, sendo os trabalhos de Fleury & Fischer (1989), Freitas (1991) e Motta & Caldas (1997) importantes no resgate da trajetória de tais estudos. Segundo Davis (1984) com a noção de cultura não se quer mais referenciar o padrão de ação com base numa solução ideal ou normas e procedimentos rígidos, mas buscar maior coerência entre as escolhas organizacionais e a identidade cultural da organização. A relevância da cultura organizacional torna-se tão abrangente que Hofstede, Neuijen, Ohayv e Sanders (1990) consideram que a cultura organizacional adquiriu tamanha projeção chegando ao patamar de temáticas como controle; estratégica; estrutura, não podendo ser ignorada seja pelos estudiosos, seja pelas organizações. Com o desenvolvimento dos estudos sob cultura, tem-se diferentes abordagens, diferentes tipologias, onde o próprio conceito de cultura, também varia em função dos elementos considerados chave no processo de delineamento cultural. Smircich (1983) buscou sistematizar o significado do conceito de cultura na análise organizacional e chegou à conclusão que os diferentes conceitos baseiamse em diferentes pressupostos, os quais levam a divergências nas abordagens da relação organização-cultura, subdividindo-os em dois grupos; aqueles que trabalham Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 304 a cultura enquanto variável crítica e aqueles que trabalham a cultura como uma metáfora básica77. Freitas (1991), tendo como referência Smircich (1983), aponta uma divisão dos estudos sobre cultura organizacional, retratando-os em cinco áreas, denominando-as de: a) administração comparativa; b) cultura corporativa; c) cognição organizacional; d) simbolismo organizacional; e) processos inconscientes e organização. Dentre estes, o simbolismo organizacional apresenta-se como a vertente que mais aproxima-se, enquanto possibilidade de associação, da Estética e que, a seguir, será melhor caracterizado. Por sua vez, Siqueira (1996) prefere apontar uma categorização envolvendo quatro abordagens, enquanto possibilidade de mapear os estudos e pesquisas envolvendo a cultura das organizações, intitulando-as de abordagens comportamental (Handy, 1978); psicológica (Lomônaco, 1984; Thévenet, 1986; Chanlat, 1992; Hofstede, 1980) antropológica; e interdisciplinares (Schein, 1986; Belle, 1991). Nota-se que não aponta ou ignora a dimensão estética expressa no capítulo anterior e articulada com a função do signo. Ainda assim, a abordagem antropológica da cultura oferece possibilidades de considerar o elemento estético no contexto organizacional. Tal abordagem pode ser considerada em dois enfoques: a) um denominado de neo-evolucionista que afirma ser a cultura integrada por três elementos: material tecnológico; sociológico; e ideológico, adotando como referência para os estudos os processos de aculturação, formação de mitos, ritos e tabus, usando o conceito de cultura organizacional para dar conta das práticas formais e informais que constituem a dinâmica de cada organização, centrando-se, fortemente, nos seus valores e crenças; 77 O grupo que considera a cultura uma variável crítica, enfatiza a possibilidade de gerenciar tal fenômeno, buscando alcançar altos padrões de eficiência. O entendimento metafórico de cultura reforça o sentido de construção social da identidade organizacional, ao invés de Ter uma cultura, a organização é uma cultura. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 305 b) outro intitulado de simbólico que enfatiza os significados presentes nas relações entre os elementos da cultura de uma organização e que dá sentido ao cotidiano destas e têm em Geertz (1987); Sahlins (1979); e Beyer & Trice (1986) as referências chaves. Beyer & Trice (1986) vão considerar a cultura enquanto conjunto de concepções, normas e valores submersos à vida de uma organização e que devem ser comunicados a seus membros através de formas simbólicas tangíveis. Segundo Geertz (Op. cit.) a organização é tida como modelo de discurso simbólico, mantida através de formas simbólicas, tais como a linguagem que facilita compartilhar os significados e as realidades; ou seja, o elemento simbólico e o compartilhamento do seu significado entre os envolvidos são determinantes para se analisar e compreender a cultura e as escolhas. Afirma ainda que a cultura redunda numa "teia de significados", que o homem tece a seu redor e o amarra. Cabe considerar que a abordagem interdisciplinar, assim como a abordagem antropológica, tem como pontos comuns, a ênfase nos valores, no oculto, nas crenças, nos compartilhamentos, elementos que permitem considerar a dimensão estética como algo presente nas escolhas organizacionais decorrentes dos valores assumidos pelos seus integrantes. Strati (1992; 1999) demonstra como o elemento estético pode ser objeto de estudos, a partir do cotidiano de uma organização, ensejando três elementos para pesquisa: a) pelo viés do produto, mas especificamente do design; b) pelo viés do ambiente organizacional, especificamente pela distribuição do espaço e sua ocupação; e c) pelo viés da cultura organizacional, argumentando as relações complexas existentes entre cultura, ideologia e design estético. Associando-se ainda ao estudo cultural das organizações, Gagliardi (1990) tece comentários enfatizando os artefatos culturais não os considerando manifestações secundárias e superficiais de um fenômeno cultural, mas influenciador da vida organizacional; à medida que, através deles, é possível favorecer, obstruir ou mesmo prescrever a ação organizacional, além de apontar o Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 306 fato de que os artefatos influenciam a percepção da realidade. Aponta, então que os artefatos tornam possível o resgate do sentido além da ação humana, logo, também, organizacional. Para Deal & Kennedy (1982); Chanlat (1992); Smircich (1983); Trice & Beyer (1993), dentre outros, a organização é mantida através de formas simbólicas, tais como a linguagem, que facilita o intercâmbio das percepções, significados e realidades, ou seja, a organização é a representação do mundo, que simboliza as relações, e que constrói um universo de significações do ser humano. Os valores atuam como elementos integradores e chaves na análise e interpretação da cultura organizacional, chegando alguns autores a considerá-los como a essência que norteia a vida organizacional. Para Deal & Kennedy (Op. cit.) valores são as crenças e conceitos básicos numa organização que formam o coração da cultura, definem o sucesso em termos concretos para os empregados e estabelecem os padrões que devem ser alcançados na organização. Os autores consideram que os valores representam a essência da filosofia da organização para alcance do sucesso, afinal, eles fornecem um sentido, uma direção comum para todos os empregos e um guia para o comportamento diário. Kluckhohn (1951) define valor enquanto uma concepção explícita ou implícita, distintiva de um indivíduo ou característica de um grupo, do desejável, que vai influenciar a seleção dentre os modos, meios e finalidades de ação disponíveis. Schein (1986), ao apontar um conceito formal de cultura organizacional, relaciona dez categorias que se apresentam como fenômenos. Dentre essas se encontra o que chama de "raízes metafóricas" ou "simbologias integradas" que refletem as sensações, as emoções e as respostas estéticas. Tanto Schein (1984), quanto Kluckhohn (1951) fortalecem a noção de que a questão dos valores é essencial nos estudos culturais. O primeiro denominando-os Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 307 de "pressupostos básicos" e o segundo de "orientação de valor" e Posner et alii (1985) de "valores compartilhados"78. Tamayo & Gondim (1996), a partir de Schein (1986), apresentam uma escala de valores individuais e organizacionais, adotando a noção de que os valores consistem naquilo que se deseja, e é percebido como correto e apropriado ao desejá-lo para si mesmo e para os outros, para tanto, são considerados normas abstratas, que transcendem impulsos de momentos e situações efêmeras. Há ainda o entendimento de Kroeber (1976) que afirma serem os valores não meras coisas que se desejam ou se querem e, sim, "regras" desenvolvidas pelos indivíduos para orientá-los em suas vidas, isto é, são critérios nos quais as pessoas se baseiam para decidir o que devem desejar. Observa-se que o valor deixa de ser algo abstrato, de sim ou de não, para ser considerado como um continuum, no qual determinados valores possuem maior importância do que outros. Ou melhor, os valores expressam um arranjo de hierarquia, que se efetiva a partir das escolhas efetuadas, conforme apontam BEYER (1984) e ENZ (1988). Todas essas contribuições evidenciam que os valores constituem importantes instrumentos para entendimento da cultura organizacional, cultura essa reconhecida enquanto processo de socializações por meio do sistema de valores, sendo tais valores vivenciados como uma experiência subjetiva compartilhada, gerando, nas organizações, a possibilidade de simbolização e mediação das necessidades individuais e organizacionais. Os valores, portanto, têm um papel tanto de atender aos objetivos organizacionais, quanto de atender às necessidades dos indivíduos. Ou seja, os 78 Posner et. al. (1985), a partir de uma pesquisa sobre valores pessoais e valores organizacionais, relaciona sete valores compartilhados detectados: a) sentimento de sucesso pessoal; b) comportamento organizacional; c) autoconfiança no entendimento dos valores; d) comportamento ético; e) menor pressão do stress pessoal e profissional; f) objetivos organizacionais; g) maior importância aos stakeholders. Por sua vez Kluckhohn aponta cinco tipos de orientação de valor: a) natureza humana; b) homem-natureza; c) tempo; d) atividade; e) relacional, e Fleury, M.T.L.; Shinyashiki, G.T.; Stevanato, L.A. (1997) detalha avaliando enquanto possibilidade metodológica de utilização. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 308 valores organizacionais tanto podem redundar em mensagens e comportamentos considerados adequados, levando a transmissão natural de conteúdos aos demais membros da organização, tornando a adesão e reprodução de comportamentos possíveis, como também podem permitir a autonomia dos indivíduos na aceitação ou não de conteúdos, reconstruindo-os. Segundo Tamayo (1996), os valores têm por objetivo resolver três questões: a conciliação de interesses individuais e do grupo; a necessidade da organização da elaboração de uma estrutura que contemple a definição de papéis, normas e regras para relações e organização do trabalho; e a conciliação entre interesses da organização e do meio social e natural, que se caracteriza pela necessidade de produtividade e sobrevivência da organização que retira do meio a matéria-prima e realiza as trocas de produção e comerciais. A contribuição da Estética possibilita apreender a ação humana, numa terceira dimensão, até então pouco enfatizada ou trabalhada em nível organizacional, que é considerar as diferentes percepções e antevisões de um dado objeto ou contexto (LEAL, 2001;2002). Este certamente é um novo âmbito da Estética no campo organizacional que, até então, tem se concentrado nas características do serviço ou produto; no ambiente de trabalho, particularmente nos equipamentos e acessórios; e, mais recentemente nos estudos relativos à cultura organizacional. Tem-se, assim, deixado de lado a perspectiva auxiliar da dimensão estética presente de modo intrínseco nas atividades cotidianas do ser humano, e, certamente, relevante para o processo de aprendizagem e conhecimento num quadro organizacional de mudanças e transformações intermitentes. A estética nas organizações apresenta-se, ainda, de modo prescrito, à medida que busca dar conta de questões aliadas ao produto e ao ambiente organizacional, o que fica muito aquém das possibilidades do campo estético, evidenciado como uma das três dimensões da ação humana, intrinsecamente associada às demais. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 309 O potencial que se abre com a Estética, para os estudos organizacionais, ainda está por ser explorado, mas sua potencialidade pressupõe rever os próprios métodos de pesquisa e o referencial conceitual, aproximando-se de uma fundamentação filosófica enquanto ponto de partida. A proximidade com o simbolismo organizacional, enquanto ponto de partida é salutar, mas há que se reconhecer os seus aspectos particulares, assim como se faz com a semiótica, a arte, a psicologia, a aprendizagem (LEAL, 2003). Tem sido pouco satisfatório como a noção de valores tem sido apropriada e utilizada em trabalhos recentes envolvendo estudos de cultura organizacional. Sem um referencial analítico que utilizem métodos e instrumentos adequados à percepção dos valores, considerando-os enquanto dimensão subjetiva, simplificando a importância e dimensão das escolhas humanas na organização, o desafio permanece, no que tange a apontar métodos mais adequados que permitam analisar a dimensão subjetiva - a Estética - e o simbólico de modo geral, com aparatos mais adequados. 9.4 POSSIBILIDADES DE ANÁLISE ORGANIZACIONAL A PARTIR DA ESTÉTICA A análise organizacional, tradicionalmente, sempre se voltou para os estudos analíticos, privilegiando aspectos mensurativos e que não foram suficientes para fazer face às necessidades de compreensão e análise das organizações. Lévy (1993, p. 59) captou o relativismo dinâmico, típico das organizações contemporâneas, ressaltando a falsa distinção entre meios-fins: A distinção abstrata e bem dividida entre fins e meios não resiste a uma análise precisa do processo sociotécnico no qual, na realidade, as mediações (os meios, as interfaces) de todos os tipos se entre-interpretam em relação às finalidades locais, contraditórias e perpetuamente contestadas, tão bem que, neste jogo de desvios, um ‘meio’ qualquer nunca possui um ‘fim’ estável por muito tempo. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 310 Deixando de lado o individualismo metodológico de Simon (1961), perspectivas teóricas baseadas no reconhecimento da subjetividade – como fenomenologia e existencialismo – sempre tiveram pouco espaço nos estudos organizacionais. Nos anos setenta, os paradigmas existentes como teoria de sistemas e de contingência enfatizavam a importância de fatores – à primeira vista, objetivos – como ambiente e tecnologia, e buscavam conexões estruturais além das escolhas e estratégias humanas. Expressões, de uso corrente até nos dias de hoje, como a empresa atua de tal forma, pensa desta maneira ou reage assim, simbolizam o grau de reificação do objeto “organização”. Nas últimas décadas, têm-se buscado, junto a outros ramos do conhecimento contribuições teórico-metodológicas que auxiliem na ampliação dos referenciais de análise organizacional, de modo a considerar os aspectos abstratos, subjetivos destas pouco valorizadas até então, e que, nas últimas três décadas, passaram a ser relevantes. (STRATI,1990; 1992; GAGLIARDI,1996; HASSARD,1990; REED & HUGHES,1992; LEAL; 2000a; 2000b; 2001; 2002a; 2002b; 2002c; 2002d; 2003). A contribuição da Estética possibilita apreender à ação humana, em uma terceira dimensão até então pouco enfatizada ou trabalhada no contexto organizacional, as diferentes percepções e antevisões de um dado objeto ou fenômeno, enquanto próprio e inerente aos indivíduos. Através da Estética, vislumbra-se a possibilidade de analisar as organizações e por certo, interpretar, compreender, outras esferas do viver organizacional. Fazer a conexão desses dois aspectos tornou-se crucial e decisivo para a própria sobrevivência de muitas organizações, quer elas tenham isso claro ou não. Este certamente é um novo âmbito da Estética no campo organizacional que, até então, tem se concentrado nas características do serviço ou produto, no ambiente de trabalho, particularmente, nos equipamentos e acessórios, e mais recentemente, nos estudos relativos à cultura organizacional (STRATI,1992, 1999). Tais usos da dimensão estética acabam por apropriar-se da Estética utilizando-a de Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 311 modo instrumental e subordinando-a, em diferentes momentos, à função teórica ou à função prática. Estas possibilidades de uso da Estética nos estudos organizacionais e mesmo, na gestão das organizações, têm deixado de lado a perspectiva da dimensão estética, presente de modo intrínseco nas atividades cotidianas do ser humano, e certamente, relevante para o processo de aprendizagem, mudança e transformação organizacional em ambientes dinâmicos, turbulentos e incertos como os dos dias atuais. No âmbito da gestão organizacional, ou seja, da possível aplicabilidade de referenciais estéticos para o cotidiano das organizações, cabe considerar que semelhante questão esteve presente, em alguma medida, nos anos 50, quanto ao fato de ser o atuar dos administradores, em grande medida, decorrente de uma arte, uma habilidade e não mera técnica. Nos dias atuais, onde o conhecimento encontra-se disseminado na organização como um continuum, ou melhor, nos indivíduos que dela fazem parte, considerá-los em todas as suas dimensões parece ser condição essencial para a própria sobrevivência organizacional. O potencial que se abre com a Estética para os estudos organizacionais, ainda está por ser explorado, mas sua potencialidade pressupõe rever os próprios métodos de pesquisa e o referencial conceitual, aproximando-se de uma fundamentação filosófica enquanto ponto de partida. Os pesquisadores organizacionais não podem desconhecer por um lado, o traço marcante de racionalidade e empirismo presente nos estudos organizacionais, contribuição da modernidade, como foi delineado anteriormente. Tampouco podem ignorar as críticas dos pesquisadores pós-modernos. E aí, estabelece-se um impasse, um divisor de águas. A consideração de uma terceira dimensão para a análise e pesquisas organizacionais – além e associada às duas matrizes outras, a racionalidade e o empirismo – na verdade, envolve a dimensão ética e estética (LEAL,2003). Aqui foi Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 312 enfatizada a dimensão estética, segmentada, para a presente tese, mas que, merece ser dito, o autor considera a ética e a estética como faces de uma mesma moeda, logo, o desconhecer ou a ausência de uma delas, torna a moeda “falsa”. Que elementos permitem apontar tal matriz como razoável e possível, além do impasse reinante? Partindo do pressuposto de que os que permanecem fiéis ao modo de fazer ciência iluminista têm parcialmente argumentos e interesses convincentes, tanto assim que permanecem atuando dentro de tal orientação, e que os pós-modernistas possuem, também, argumentos coerentes, ao apontarem limites ao modo de fazer ciência modernista. Parte-se da idéia de que o homem, frente ao mundo que o rodeia, assume diversas atitudes. Tais atitudes não são as mesmas quando ele atua de modo prático sobre o mundo ou quando procura conhecê-lo de um modo teórico ou científico ou mesmo quando, por exemplo, procura entendê-lo segundo uma perspectiva religiosa. Cada uma destas atitudes, uma vez adaptada pelo homem, apodera-se dele e de todas as capacidades que orientam-no em determinada ação. A noção de função aqui utilizada assume uma perspectiva fenomenológica, enquanto modo de auto-realização do sujeito perante o mundo exterior. É, também, considerada a noção adotada por Kant de função, enquanto conceitos que se baseiam na espontaneidade do pensamento (GALEFFI, 1986). Mukarovsky (1997), resgata a partir de Kant, a perspectiva de que a noção de beleza é substituída, enquanto axioma metodológico básico, pelo conceito de função. Em vez dos fenômenos naturais aparecerem como material de análise da estética, os atos da conduta humana e os seus resultados assumem tal papel. Kant (1991) expressa que a ação humana pode ser evidenciada em três grandes atitudes: a prática, a teórica e a estética, ou ainda que o ato humano e o seu resultado têm, necessária e substancialmente, três funções: a função prática, a função teórica e a função estética. A noção de função em Kant assume o significado dos conceitos que se baseiam na espontaneidade do pensamento, assim como as intuições sensíveis se baseiam na receptividade das impressões. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 313 Dentro do ponto de vista fenomenológico, pode ser entendida a opção efetuada por Mukarovsky (Op. cit.) que o conceito de função desdobra em dois grupos – funções imediatas e funções de signo. O primeiro subdivide-se em função teórica e função prática, enquanto que o segundo, em função simbólica e função estética. Pode-se evidenciar a presença necessária da atitude estética na criação teórica ou científica, sendo que, mesmo as atividades práticas que não podem ser designadas como de criação, mas antes como repetitivas do hábito, mostram, por vezes, traços evidentes da presença do estético. Dada a sua onipresença, o estético é, portanto, um fator presente e influenciador do cotidiano organizacional, dimensão subjetiva do agir organizacional, como bem considera Wood Jr & Csillag (2001), mas ainda pouco estudado. Ao resgatar alguns autores e seus escritos, acerca das diferentes percepções referentes à administração, enquanto arte, ciência, ciência e arte e, finalmente, enquanto belas-artes, tencionou-se evidenciar como o tratado do elemento subjetivo da vida organizacional sempre se fez presente através do uso da sensibilidade e respeito à identidade e autodeterminação dos envolvidos. Buscou-se ainda salientar que a administração pode ser vista como algo científico, racional, enfatizando-se as análises e as relações de causa e efeito, uma de suas dimensões. Com os elementos resgatados filosoficamente pode-se vislumbrar uma possibilidade complementar no compreender o cotidiano organizacional, ao articular aos elementos racionalizantes e empíricos, um terceiro elemento de natureza éticaestética – aqui só foi explorada a estética. Por outro lado, como já evidenciado, o trato com seres humanos envolve aspectos nem sempre passíveis de previsibilidade, pois nessa relação se faz presente o ilógico, o intuitivo, o espontâneo, o irracional onde a dimensão estética da ação humana pode ser contributiva para o entendimento dos aspectos tidos como subjetivos. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 314 O capítulo buscou apontar trabalhos acadêmicos que consideram a estética enquanto possibilidade de análise e compreensão do cotidiano organizacional demonstrando não mais a estética enquanto uma possibilidade, mas o seu uso concreto no estudo das organizações. Naturalmente tal dimensão estética não esgota, nem tampouco busca apontar padrões organizacionais, mas ampliar a compreensão e entendimento das escolhas e ações nas organizações. Cabe considerar, ao final deste capítulo, que os autores referenciados possuem perspectivas e interesses distintos, mas essa é uma questão menor, ainda que compreensível, pois diferente da visão clássica predominante nos estudos organizacionais – racionalismo e empirismo – a perspectiva estética considera diferentes possibilidades de entendimento e percepção do fenômeno humano e organizacional. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 315 CAPÍTULO X ESTÉTICA E GESTÃO É o que sentimos, pensamos e fazemos que importa, porquanto somos também disso o produto. E não o que os outros sentem, pensam e fazem, embora a isto devamos respeitar, ou seja, dar plena atenção. A Arca No presente capítulo busca-se apontar como a estética se faz presente na ação organizacional, em particular, no escopo gerencial, e como seu reconhecimento favorece a compreensão e interação da vida organizacional. Além disso, estabelece-se a articulação da estética com a criatividade, com a inovação e transformações organizacionais, para, ao final, reforçar as possibilidades e perspectivas de análise que considerem a estética, já evidenciadas nos capítulos anteriores. Bem como, busca-se demonstrar como, através de práticas gerenciais e escritos acadêmicos, o elemento estético das organizações tem sido tratado no âmbito da gestão, do gerencialismo e da administração em geral. No Capítulo anterior buscou-se considerar como a estética das organizações tem sido objeto de pesquisa, de modo a contribuir para o entendimento e apreensão Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 316 do mundo organizacional, ampliando a percepção até então fortemente afetada pela dimensão lógico-mensurativa. 10.1. ESTÉTICA E CRIATIVIDADE NAS ORGANIZAÇÕES O presente tópico busca resgatar a presença da estética no cotidiano das organizações, nas práticas gerenciais e nos escritos acadêmicos clássicos, tendo por referências as organizações produtivas. Pretende-se, assim, apontar a presença da estética e sua consideração, de maneira que possa, ser considerada como um elemento integrante do cotidiano observado por alguns acadêmicos ou profissionais de gestão. Pode ser observado, dada a dinâmica assumida pelas organizações contemporâneas, que o convívio com indivíduos não pode ser feito apenas em função de planos e decisões previamente traçados, seja em função de escolhas, seja ao nível de implementação. Advém, então, a importância da sensibilidade, do “feeling” dos oportunizadores organizacionais, os quais devem estar atentos às oportunidades frequentes de aprendizados e ganhos não previstos, não planejados. A esta sensibilidade no trato das questões organizacionais, em especial daquilo que não pode ser dito ou visto como rotineiro, no passado deu-se a denominação de “a arte da administração”. A indagação: afinal a administração é uma ciência, uma arte, ou arte e ciência? Ainda se faz presente, não mais enquanto discussão acadêmica e/ou profissional, mas enquanto dimensão real da administração. Através de um ensaio de Woodrow Wilson, intitulado “The Study of Administration” datado de 1887 e editado no Brasil, pela Fundação Getúlio Vargas com o título “O Estudo da Administração”, na série Cadernos de Administração Pública, esta questão já é posta em debate, em particular, quanto à importância de identificar as diferentes Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 317 facetas da administração e da complementaridade existente com outras áreas do conhecimento prático. A administração, administração empírica, enquanto intuitiva, arte, habitualmente, remontando os é denominada primórdios das de formas organizacionais humanas, baseando-se em técnicas e processos empíricos, onde se aliava a capacidade individual de criatividade e inventividade daqueles envolvidos com as atividades propriamente ditas. Os que mais salientaram tal característica foram pessoas de outras áreas do conhecimento, em especial, das ciências exatas, que, dada à visão que possuíam acerca da ciência, tendiam a restringir o uso de tal termo – ciência – particularmente em relação às ciências sociais. Outra percepção da administração enquanto arte, encontra-se nos escritos de um dos pioneiros do pensamento administrativo, Henry MetCalfe, onde ele evidencia o aspecto prático/experiência e artesanal da administração vindo a tornar-se ciência, de modo semelhante ao trabalho do artesão, cujas experiências e obras tornam-se parâmetros, padrões de referências, mas não modelos fechados a serem copiados. Desse processo empírico-intuitivo, empresários, escritores e estudiosos, passaram a buscar compreender os diferentes aspectos do processo organizacional e, assim, de modo técnico e científico, passaram a divulgar suas idéias e teorias aplicadas aos problemas principais da administração das organizações. Esse âmbito é denominado de administração científica que, dentre outros elementos, teve por contribuição para o seu desenvolvimento a influência do positivismo lógico, que, por um lado, desconsidera a metafísica e a contribuição da ética, potencializando a experiência e a análise rigorosa como métodos mais adequados. Ao longo de décadas, a perspectiva de que através de princípios científicos seria possível ter clareza e controle da organização, vai sendo desmistificada, não querendo com isso dizer que as contribuições ditas “científicas” não sejam uma efetiva contribuição às organizações. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 318 Quer-se salientar que a apologia em torno da precisão dos princípios científicos e o tom sagrado destes redundou no abandono do lado intuitivo, irracional, sensível da ação administrativa. Há uma perspectiva pouco citada, que é a de Ordway Tead (1970), presente no seu livro “A Arte da Administração”, que evidencia a administração como uma das belas-artes, termo comumente associado às artes plásticas, especialmente, à pintura, à escultura e à arquitetura, à música e à literatura. Nessa belas-artes, a habilidade, o discernimento e a fortaleza moral são considerados aspectos essenciais para o seu estudo, aprendizagem e utilização. Segundo Shafritz & Ott (1991), a obra de Tead teria como propósito favorecer o bom entendimento do que seja administração, mostrando ao mesmo tempo a maneira de torná-la mais eficiente, assim como auxiliar a criar uma antevisão organizacional, que privilegiasse as relações humanas, valorizando e realizando plenamente a vida democrática numa sociedade tecnológica. Dégot (1987), de maneira próxima a Tead (1970), considera a administração como uma das belas-artes porque mobiliza um considerável conjunto de dons especiais em prol de um trabalho de colaboração, indispensável à vida civilizada de hoje. Essa obra de criação, de ajustamento, de harmonização é que mantém em bom funcionamento, e, em constante progresso, as organizações públicas e particulares, graças às quais milhões de indivíduos realizam e conquistam muitos de seus objetivos. Um dos objetivos mais importantes das belas-artes, para Tead (1970) é realçar e ampliar a percepção de novos aspectos da realidade, aprazíveis aos sentimentos humanos; logo, o esforço administrativo redunda na criação de relações humanas conjugadas, que exemplificam uma das belas-artes. Fazendo uma analogia entre o administrador e o artista, Tead observa que é necessário, em ambos, tanto o domínio dos princípios gerais, como os meios de aplicá-los, havendo, assim, uma combinação desses dois aspectos, para se obter o alicerce indispensável ao domínio da arte da administração. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 319 Goodsell (1992), partindo das idéias de Tead, com as quais concorda parcialmente, e resgatando a teoria da arte e a filosofia estética, posiciona-se acerca da administração afirmando que esta não chega a ser uma arte sublime como a pintura, a escultura, a literatura, a música ou mesmo a dança, mas considera que, assim como a administração, essas artes geram produtos que possuem valores intrínsecos e necessitam de uma motivação externa para gerarem algo possuidor de beleza. A administração de modo similar, ainda que não se volte para a beleza, é também possuidora da preocupação de alcançar princípios, valores que estão além dos resultados mensurativos. Eble (1978), ao escrever acerca da liderança organizacional, tendo por base, estudos em instituições educacionais de nível superior, conclui que a administração é uma arte, diante da complexidade e sutileza da sua atividade com pessoas, envolvendo conhecimento, talento e sensibilidade, tão necessárias para a gestão organizacional de modo satisfatório. Berkley (1975) argumenta que a administração é algo de difícil predizibilidade, não podendo ser rigorosa, precisa e consequentemente, não pode ser vista como uma ciência, tampouco como uma arte, pois ela pode e deve ser vista como paramentada por objetivos padrões; concluindo que a administração ocupa uma faixa intermediária da arte. Administração, organização e participação são consideradas por Jones; Moore e Snyder (1988) como um fenômeno estético; afinal. os participantes da vida organizacional buscam, através de suas ações, não apenas alcançar resultados, mas também empreendem em aperfeiçoar a forma como agem, de modo mais harmônico e equilibrado. Entretanto, o modo como os indivíduos avaliam e são avaliados, no que concerne ao desempenho organizacional, tem sido, até então, baseado em metas pessoais e materiais, onde as pessoas são tidas como se fossem só matériasprimas ou talvez pedaços de um quebra-cabeça a ser amoldado ou provido de Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 320 maneira mecânica e impessoal. Ainda, deliberadamente se considerou ou ignorou a percepção sensorial e extra-sensorial inerente à vida organizacional e, portanto, deve ser considerada a estética, afinal a habilidade é uma arte e uma característica importante na administração da vida organizacional cotidiana. Aldrich (1992) aponta, enquanto um problema para as organizações, o fato de que os gestores têm sido estimulados a serem indivíduos pragmáticos e concretos, orientados a resultados visíveis, e, frequentemente, educaram numa racionalidade rigorosa. O treinamento deles está arraigado nos paradigmas dominantes da teoria da organização, isto é, universalidade e generalização. Então, não surpreende o fato de que são treinados neste modelo, e de acordo com estas convicções, a estética é tida como um fato fraco onde fraco é sinônimo de decadente, superficial, simplório. Consequentemente, o gestor que conhecemos tende a desconsiderar ou negligenciar a contribuição da estética para a vida organizacional, mesmo que para questões materiais como a produtividade da organização, a se concentrar em aspectos racionais, ao invés de em algo que pertence à pessoa e não a organização. O gestor, dentro deste espírito, sublima a maioria dos sentimentos íntimos e paixões e se ocupa de atividades mecânicas, as quais qualquer um pode desenvolver. O resultado do treinamento administrativo e de um modelo de empresário no qual sentimentos pessoais são proibidos, à medida que seguem um treinamento racional, ascético do qual depende principalmente da força e dos princípios do Iluminismo. Uma solução para tudo isso poderia ser achada, explorando-se argumentos que descrevem o gerente como um artista, como os propostos por Vincent Dégot que escreve: o gerente é um artista criativo, embora não necessariamente uma figura solitária, desde que ele pode pertencer a uma escola de pensamento. Ele é Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 321 o que projeta a ação levado, até mesmo se está em nome de outros e sujeitou a certos constrangimentos. Para o resultado o gerente deve poder deixar a impressão pessoal dele nisto ser considerado como um trabalho de arte administrativa. Isto não significa que aquelas técnicas formais não podem ser desdobradas analisar o problema e implementar a solução. A coisa essencial é o desígnio criativo básico que pode ser atribuído a um individual. (DÉGOT, 1987, 23-4) Isto requer, primeiro, a rejeição da a associação entre excelente trabalho administrativo e desempenho econômico, e, segundo, a adoção de critérios que avaliam trabalhos administrativos. A ênfase de Dégot (1987) é na direção da valorização da habilidade dos gestores e no uso desse talento no cotidiano da vida organizacional cotidiana, e para tanto, devem ser valorizadas as atividades realizadas através, inclusive, de treinamento, de modo a realçar a criatividade dos gestores e, mais em geral, a criatividade de todos aqueles que fazem parte da construção e reconstrução da vida cotidiana de uma organização. Dégot (Op. cit.) considera, porém, que esta é uma analogia que deveria ser usada com cuidado, devido àquela atividade administrativa, atividade estética distinta, que não aparece como uma atividade permanente das pessoas. Porém, quando for usado, Dégot discute, mostra que ao treinamento administrativo faltam esses elementos que, subseqüentemente, provam tão distintivo de trabalho administrativo na prática cotidiana de organizações precisamente. Joas (1992) considera que a tentativa de modelar o comportamento humano, baseado em ação racional ou em normatização que oriente a ação, acaba por gerar uma categoria residual para a qual eles alocam aquilo que é distintivo e de onde deveria demandar a maior parte da ação humana, isto é, a atividade criativa. É possível efetuar a analogia entre a administração, como arte, e o retrato do gerente, como um artista, com referência ou para todos os sócios de uma organização ou para só seus gerentes sêniors. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 322 10.2. INOVAÇÃO E ESTÉTICA NAS ORGANIZAÇÕES No presente tópico busca-se efetuar a articulação entre estética e criatividade, para tanto se volta a alguns filósofos para, em seguida, considerar aspectos do cotidiano organizacional e de algumas situações onde a criatividade é inerente à realização das atividades. Kant (1991) vai influenciar fortemente a amplitude do aspecto estético, contribuindo com a noção de estética transcendental, enquanto ciência de todos os princípios da sensibilidade, a priori. Segundo ele a estética deve ser uma ciência, entretanto, não pode ser a ciência do belo, mas apenas uma crítica do gosto. Ela, estética, é uma teoria dos princípios da sensibilidade, teoria esta que se insere no conjunto da teoria do conhecimento da filosofia transcendental. Outro sentido evidenciado por Kant (2002), na sua obra Crítica do juízo, é que a estética intervém no projeto de uma crítica do juízo - exame de valor - para definir o juízo do gosto pelo qual o sujeito pode distinguir o belo na natureza e no espírito, evidenciando que “o juízo do gosto não é um juízo do conhecimento; por conseguinte, não é lógico, mas estético”, seu princípio determinante só pode ser subjetivo. Schopenhauer (1991), fortemente influenciado por Kant (1988; 1991; 1993), parte das idéias deste retoma questões anteriormente levantadas por Platão (1966), e aborda a elevação da mente à contemplação da verdade sem influência da vontade, como elemento estético. Argui que, enquanto o objetivo da ciência é o universal que contém muitos particulares, a estética teria como objetivo o particular que contém o universal. Este mesmo autor considera que a arte é maior que a ciência porque esta avança através do acúmulo diligente e do raciocínio cauteloso, enquanto aquela atinge o seu objetivo, de imediato, pela intuição e pela apresentação. Considera que a ciência pode se dar bem com o talento, mas a arte requer gênio. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 323 Outra referência chave na abordagem estética é Benedetto Croce (18661952), um dos mais importantes filósofos deste século, que se destaca pelo desenvolvimento de uma “filosofia do espírito” inspirada em Hegel. Sua visão é a de que o espírito teria uma dimensão teórica e uma dimensão prática. A dimensão teórica, por sua vez, se desdobraria em estética e lógica; e a dimensão prática, em economia e estética. Croce desenvolve a noção de dualidade que cerca o conhecimento, afirmando: O conhecimento tem duas formas: ou é conhecimento intuitivo ou conhecimento lógico; conhecimento obtido por meio da imaginação ou conhecimento obtido por meio do intelecto; conhecimento do individual ou conhecimento do universal; de coisas individuais ou das relações entre elas; é a produção de imagens ou de conceitos (CROCE, 1902 apud PAREYSON, 2001). A Estética, em suma, não classifica objetos, ela os sente e os apresenta, nada mais. Portanto, pressupõe que a imaginação precede o pensamento e é necessária a ele, e que a atividade artística ou formadora de imagens da mente é anterior à atividade lógica, formadora de conceitos. O homem é um artista tão logo imagina, e muito antes de raciocinar. Schiller (1995), discutindo a estética, pontua que todas as coisas, que de algum modo possam ocorrer no fenômeno, são pensáveis sob quatro relações diferentes. Uma coisa pode referir-se imediatamente a nosso estado sensível (nossa existência e bem-estar): esta é a sua índole física. Ela pode, também, referir-se a nosso entendimento, possibilitando-nos conhecimento: esta é sua índole lógica. Ou ainda, referir-se a nossa vontade e ser considerada como objeto de escolha para um ser racional: esta é sua índole moral. Ou, finalmente, ela pode referir-se ao todo de nossas diversas faculdades sem ser objeto determinado para nenhuma delas isoladamente: esta é sua índole estética. Consubstanciando estas quatro perspectivas afirma: Um homem pode ser-nos agradável por sua solicitude; pode, pelo diálogo, dar-nos o que pensar; pode incutir respeito pelo ser caráter; enfim, independentemente disso tudo e sem que tomemos em consideração Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 324 alguma lei ou fim, ele pode aprazer-nos na mera contemplação e apenas por seu modo de aparecer. Nessa última qualidade, julgamo-lo esteticamente (SCHILLER, Op. cit., p. 107). Schiller (Op. cit.) observa, ainda, que assim como existe uma educação para a saúde, para o pensamento, para a moralidade, há também uma educação para o gosto e a beleza, e esta tem por fim desenvolver, em máxima harmonia, o todo de nossas faculdades sensíveis e espirituais. Assim posto, faz questão de distinguir o falso raciocínio de que o conceito estético comporta-se de modo arbitrário, afirmando que a mente no estado estético, embora livre, e livre no mais alto grau de qualquer coerção, de modo algum age livre de leis, acrescentando ainda que a liberdade estética se distingue da necessidade lógica no pensamento e da necessidade moral no querer apenas pelo fato de que as leis, segundo as quais a mente procede, ali não são representadas, e, como não encontram resistência, não aparecem como constrangimento. Segundo De Masi (1989) ao se estudar a criatividade das pessoas pode-se observar formas organizacionais muito diferentes das apontadas pelo taylorismo e pelo modelo fordista. Ao examinar as formas organizacionais com que os artistas europeus e cientistas experimentaram entre a metade do Século XIX até a metade do Século XX, vamos encontrar métodos originais na organização do trabalho criativo executados coletivamente, tendo essas experiências dado origem a exemplos concretos que, além de sintetizar a experiência histórica acumulada anteciparam as organizações pós-industrial funcionais e criativas. A análise de treze grupos de pesquisa, por exemplo, o Panispema em Roma encabeçado pelo físico Enrico Fermi, a Escola Biológica de Cambridge, o Pasteur Institute, revela, segundo De Masi (1989), a proeminência do fundador-líder que tem o grupo tratado com respeito e veneração, agindo como se a organização criada por ele morreria com ele. Também é evidente o gosto desses grupos para o bonito e a preocupação com ambientes e instalações físicas bonitas em qual trabalhar, junto com os imperativos éticos, de antiburocrático e parcimônia. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 325 Criatividade, então, é uma parte importante na constituição de organizações e das formas específicas que eles assumem. É um termo que só ficou recentemente atual e que se apareceu primeiro só em dicionários ao término do último século. Através de contraste, o adjetivo “criatividade” tem uma história secular longa e normalmente é aplicado às habilidades de modo geral e, em particular, às habilidades envolvidas com criação. Aqueles que analisarem as afirmações de autores sobre os processos criativos, observa Ghiselin (1952), nota que eles geralmente contêm a compreensão do fenômeno. Esse conjunto de declarações não constituem um simples compêndido de fragmentos. Desta forma, eles nos dão um sentimento para o processo inteiro e um senso vivo das divergências de aproximação individual. Mais recentemente, nota Melucci (1994), criatividade veio significar produtividade, mas também imaginação denotando trabalhos comumente presentes em um departamento de publicidade ou de designers. Então, trabalho criativo é pré-formatado por esses se ocupados em inventar e construir a exibição visual das organizações. A ênfase no aspecto racional e técnico, tem proporcionado o desenvolvimento de profissionais para a área de administração, com uma alta capacidade analítica que, entretanto, não têm se mostrado suficientemente capacitados, para fazer em face ao novo patamar organizacional que se vivencia no final do Século XX. No contexto organizacional contemporâneo a dimensão científica da administração, por si só, não se mostra suficiente, pois ao concentrar-se nas técnicas e aspectos administrativos, não dá conta das necessidades e transformações inerentes ao contexto organizacional. Em função das velozes e sucessivas mudanças no ambiente organizacional, as empresas vêm buscando cada vez mais rapidamente adaptar-se aos novos contextos, especialmente aqueles em que a organização não pode antecipadamente prever. Mas, ainda que, mais intensas sejam as mudanças, elas não são novas, assim como não é novo o uso da criatividade para superação dos problemas, em Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 326 especial, por parte dos administradores. O administrador criativo de hoje enfrenta novos desafios. Além da complexidade dos problemas, tem pela frente a escala global dos elementos que compõem os desafios empresariais, fazendo uso de diferentes recursos, informações para escolhas e encaminhamentos. Contrariando a lógica até então prevalecente, que a imprecisão e a informalidade, ao romperem com a camisa-de-força imposta pelas regras abrem espaço à flexibilidade, à criatividade e à inovação, nem mesmo a divisão social do trabalho escapa de uma análise crítica; observando o autor que o distanciamento dos dirigentes em relação às atividades operacionais, aumenta o risco de esterilidade das suas decisões. Estudos conduzidos por equipes interdisciplinares (médicos neurologistas, bioquímicos, neurocirurgiões, psicólogos etc.) levaram à descoberta da especialização funcional dos hemisférios cerebrais, ou seja, enquanto ao lado esquerdo caberiam a execução e a coordenação das atividades lógicas, seqüenciais e da estruturação de modelos, ao lado direito caberiam as tarefas relacionais, operando sobre a noção de conjunto. Mintzberg (1976), a partir dessas evidências, elabora um ensaio de repercussão no seio administrativo - Planning on the Left Side and Managing on the Right -, no qual sugere a existência de uma relação entre a habilidade profissional e o hemisfério predominante em cada um de nós. Entretanto, o que merece ser destacado é a conseqüência decorrente da “especialização” dos hemisférios, qual seja, “nós não sabemos o que não sabemos” pois, as habilidades desenvolvidas por um hemisfério não conseguem realizar o diagnóstico completo sobre o “outro”, havendo uma efetiva incomensurabilidade entre os dois lados. As atitudes pessoais, aí incluídas as profissionais, resultariam do predomínio alternado entre os dois hemisférios; embora, um dos lados caracterize as habilidades e a personalidade de uma pessoa. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 327 Em 1987, ao escrever Crafting Strategy, desta vez ao amparo de uma pesquisa que se estendeu por treze anos no estudo das estratégias adotadas por onze organizações, Mintzberg resgata a sua proposta anterior (não contestada) numa tentativa de explicar os casos de insucessos observados na área do planejamento estratégico. Aponta então, que na maioria dos casos, os fracassos puderam ter a sua causa associada à tentativa de separar o que, por natureza, é inseparável: as atividades dirigidas pelo lado esquerdo daquelas predominantemente conduzidas pelo lado direito do cérebro. Em outras palavras, conceber a estratégia (entre outras decisões gerenciais) como um encadeamento, apenas, de atividades e decisões racionais, por exemplo, é um equívoco. Hoje é reconhecida a importância do chamado “raciocínio paralelo”, do pensamento onírico, do insight, enfim, das atividades típicas “do outro lado do cérebro”. Ainda que se fale muito em criatividade e se aponte características personalísticas potencializadoras da criatividade, técnicas, procedimentos facilitadores, não se aponta o elemento essencial para a criatividade humana. Esse elemento, pouco considerado, é aqui delineado como a dimensão estética do ser humano, ainda que não seja um elemento novo, dado o caráter de limitação, onde o reducionismo instrumental, afetado por uma unidimensionalidade, predominante na ação organizacional, tem enfatizado o uso da criatividade, pouco se voltando para compreender de fato o seu ponto crúcis. A intensa velocidade com que ocorrem as mudanças exige das organizações, suficiente flexibilidade para adequarem-se às exigências e solicitações, mediadas pelos diferentes elementos do contexto social. Neste sentido, quando o contexto de mudança se dá frente aos indivíduos e aos grupos de indivíduos, utiliza-se do termo criatividade. Por sua vez, quando se fala em mudança organizacional, o mais comum é utilizar o termo inovação, ou seja, criatividade e inovação são duas das dimensões da mudança, já que a mudança Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 328 advém da concretização e aplicação das novas percepções e idéias, uma vez que são resultantes das relações de indivíduos e grupos. Torance (1965) define criatividade como o processo de se tornar sensitivo a problemas, deficiências e lacunas, formar idéias ou hipóteses com relação a estes problemas ou deficiências e testar hipóteses; modificando, e retestando sempre que necessário estas hipóteses. Pode ser verificado que a noção predominante é de assumir a criatividade enquanto processo racional que está próximo da idéia de inovação. Stein (1974) contempla a possibilidade de considerar a criatividade enquanto processo criativo apontando três fases: a primeira é denominada de fase reflexiva ou de preparação; a segunda resulta de uma síntese da primeira; enquanto a terceira seria decorrente da sensibilidade estética profunda, resultando na iluminação. Ainda assim predomina a noção de criatividade enquanto processo linear e orquestrado, intencional, o que é pouco limitado, afinal, em tais processos de criação ou descoberta os referenciais anteriores nem sempre tornam possível o alcance do propósito inicial. Não se tratando de aprimoramento ou inovação, mas, de criação. Não se quer com isso, ignorar ou reduzir o processo de inovação ou aprimoramento, enquanto algo necessário às organizações, mas, pontuar diferenças entre ambos os termos, quando utilizados no âmbito das organizações, especialmente no contexto de mudanças. Há um especial interesse pelas organizações no que tange à obtenção de contextos que favoreçam a criatividade, em face de necessidade de adequação e adaptações às mudanças intensas e rápidas que o ambiente organizacional e a própria sociedade está a passar. Para Morgan (1988) tem-se pela frente um futuro no qual veremos mudanças o tempo todo, assim, o modo como as organizações enfrentarão as mudanças, transmitindo isso às pessoas, não é apenas uma questão de comunicação, mas um juízo de valor, uma forma de pensar diferente. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 329 Desenvolver tais climas nas organizações é um enorme desafio para as organizações e seus participantes, por duas razões básicas. A primeira em razão de que os indivíduos não estão habituados a atuarem em ambientes que valorizem a autonomia e liberalidade dentro de premissas, inicialmente delineadas na elaboração e execução de suas atividades, e que, tradicionalmente, foram resistentes a mudanças e a proposições que estimulassem o desenvolvimento da habilidade criativa. A segunda razão advém do viés tradicional da nossa formação educacional, que, habitualmente, pouco estimula o desenvolvimento do potencial criador latente nos educandos, preocupando-se com a reprodução do conhecimento, centrado no passado, sem de algum modo remetê-lo para o futuro, buscando, assim, potencializar o aluno, o futuro cidadão, o futuro profissional para a resolução de problemas, os quais ainda não estão postos ou dados. Evidenciando tal disposição, De Bono (1988) observa que as organizações e o campo da administração têm se voltado para potencializar o desenvolvimento da capacidade de pensar e, mais que isso, a maneira como articular os elementos envolvidos, proporcionando um grau de articulação que gere percepções ampliadas e novas questões organizacionais. O que gera tal estímulo pelo aspecto da criatividade nas organizações está fortemente influenciado pelo fato de que, para sobreviver e mesmo crescer as organizações necessitam da diversificação de suas atividades, da antecipação de necessidades, e da melhoria da qualidade de seus produtos e serviços. Para tanto, a criatividade é algo essencialmente necessário e a realização de inovações uma preocupação constante. Há elementos que são chaves nesse novo patamar de organizações, um é a criatividade outro é a individuação. Segundo Davis (1989), esses dois elementos se contrapõem à administração convencional centrada na padronização e no coletivismo. A individuação é delineada por Maslow (1954) como o processo de realização Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 330 de potenciais, capacidades e talentos, como realização plena da missão ou vocação, como um conhecimento completo e a aceitação da própria natureza intrínseca da pessoa e como uma tendência incessante para a unidade, a integração ou sinergia, dentro da própria pessoa. A criatividade não é o mesmo que inovação, pois “inovar” significa, fundamentalmente, introduzir novidades perpassando a geração, aceitação e implementação de novas idéias, produtos e processos. Segundo West e Farr (1990), a inovação traduz-se por uma introdução intencional, dentro de um grupo ou organização de idéias, processos, produtos ou procedimentos novos para a unidade, relevante de adoção e que visa gerar benefícios para o indivíduo, grupo, organização ou sociedade maior. Quando Koestler (1964) discorre sobre a criatividade ele evidencia, como aspecto chave para antever o novo ou conexões desconhecidas, que o homem conheça profundamente a área de atuação ou interesse. Torance (1965), como já referenciado, vai enfatizar a criatividade enquanto processo de se tornar sensitivo a problemas, deficiências e lacunas, e assim formar idéias ou hipóteses. Stein (1974) valoriza os processos cognitivos, o modo como o homem lida com os estímulos do mundo externo, ou seja, como o indivíduo vê, percebe, registra as informações e acrescenta as novas informações aos dados previamente registrados. Criatividade pode também ser vista de modo bastante simples, como uma técnica para superar problemas. E enquanto técnica, pode ser aplicada a todas as atividades humanas, seja na medicina, na sociologia, nas finanças, na educação. Duailibi & Simonsen Jr. (1990) comentam que em todas as profissões existem dois tipos de homens, aqueles que seguem caminhos já trilhados, sendo essa a função do conhecimento que eles adquiriram sistematicamente, e aqueles outros que agem criativamente, isto é, descobrem caminhos novos e que, considerando o conhecimento como um meio e não como um fim em si mesmo, acrescentam a esse conhecimento o resultado de sua criatividade, ampliando-o. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 331 Sendo a criatividade objeto de diferentes definições e concepções, seja enquanto conjunto de atributos de personalidade, como uma habilidade particular para resolver problemas, percebe-se que ela tem como parâmetro o resultado decorrente do processo gerador de um produto novo, aceito como necessário para um significativo número de pessoas, por um dado período de tempo. Com o presente capítulo buscou-se apontar elementos que evidenciam a presença da Estética na condução das organizações associando a critiavidade e inovação organizacional, como algumas evidências de tal presença. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 332 CONCLUSÕES O problema da humanidade não está no caos externo, mas no caos interno, não no caos social, mas no caos individual. Porque um dos maiores desafios do gênero humano está nele ter a capacidade de usar sua qualidade de pensar para agir, sem problemas produzir, ou melhor, sem caos criar. A Arca Os estudos organizacionais, nas últimas décadas, têm enfatizado os aspectos de natureza racional e empírica, entretanto, tais dimensões não têm sido suficientes para fazer face às constantes, dinâmicas e complexas mudanças que têm ocorrido no campo organizacional (MARTIN, 1990; REED, 1993). Faz-se necessário adentrar ao aspecto da arte administrativa, ao ilógico, ao irracional, ao emocional, ao intuitivo, sem deixar de lado o conhecimento racional, técnico, desenvolvido (TURNER, 1990). Fazer a conexão desses dois aspectos tornou-se crucial e decisivo para a sobrevivência de muitas organizações, quer tenham isso claro ou não. Esse nexo, na prática, já se dá, individual e coletivamente, inclusive por estímulo das organizações, através de processos de estímulo da criatividade e inovação. Percebe-se a sua relevância, enquanto elemento auxiliador das mudanças organizacionais, em tempos de tão intensas mudanças. Compreender as inter-relações do processo organizacional continua sendo Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 333 relevante às organizações e a conexão com a dimensão estética mostra-se determinante para o avanço na compreensão da dinâmica organizacional, que assim pode ser considerado, não apenas enquanto processo decorrente da racionalização do resultado das experiências ou tentativas de acerto, mas também, enquanto possibilidade de concepção de algo novo. As investigações estéticas, no campo organizacional, têm se concentrado nas características do serviço ou produto; no ambiente de trabalho, particularmente nos equipamentos e acessórios, e, mais recentemente, nos estudos relativos à cultura organizacional. Tem-se, assim, deixado de lado a perspectiva auxiliar da dimensão estética presente de modo intrínseco nas atividades cotidianas do ser humano e relevante para o processo de aprendizagem e conhecimento predominante num quadro organizacional de mudanças e transformações intermitentes. A estética nos estudos e pesquisas possibilita considerar a dimensão presente nas organizações, proporcionando contribuições não só às questões comuns aliadas ao produto e ao ambiente organizacional, mas às escolhas e percepções dos membros da organização. As possibilidades que se abrem com a apropriação da ética e estética – lembrando que aqui se destacou a estética - nos estudos organizacionais, permitiram interagir, considerando não só o empirismo e a racionalidade, predominantes nos estudos, sem desconsiderar outras contribuições pós-modernistas. Tais estudos certamente poderão contribuir para compreensão do lado, até então, denominado de intuitivo, sensível e irracional da organização, já considerado, em razão da constatação de sua existência e das repercussões sobre a organização, mas que tem sido pouco compreendido. Vislumbra-se um novo patamar de estudos organizacionais, que possa dar conta da dimensão estética, enquanto dimensão da ação humana, no qual a criatividade humana, a apreensão do novo, é comum ao cotidiano do indivíduo, relevante para as organizações e pouco correlacionado ao contexto interno humano. A estética que se propõe ser incorporada aos estudos organizacionais Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 334 apresenta-se, ainda, de modo prescritivo, à medida que, busca dar conta de questões aliadas ao produto e ao ambiente organizacional, o que fica muito aquém das possibilidades do campo estético, evidenciado como uma das três dimensões da ação humana, intrinsecamente associada às demais (MUKAROVSKY, 1997; LEAL, 2000a;2000b; 2002b; 2003). O potencial que se abre com a Estética para os estudos organizacionais, ainda está por ser explorado, mas sua potencialidade pressupõe rever os próprios métodos de pesquisa e o referencial conceitual, aproximando-se de uma fundamentação filosófica enquanto ponto de partida. No primeiro instante foi efetuado um retrospecto recente da análise organizacional, com destaque às possibilidades apontadas pelos estudos que se referenciam enquanto pós-modernismo, de modo a evidenciar a guarita por estudos que explorem aspectos subjetivos das organizações, e onde os estudos envolvendo estética podem ser inseridos. A estética enquanto campo do conhecimento filosófico é explorada através de um retrospecto histórico, centrado nos diferentes entendimentos acerca da estética, efetuando uma escolha que acompanha e influencia o artigo – Kant (1991; 2002;1989) – cujos caminhos, categorias, enfoques, influências antecedentes e subseqüentes foram objeto dos Capítulos VI e VII. Como elemento fortalecedor das possibilidades de contribuição da estética para os estudos organizacionais, tem-se a terceira parte que se vale da parte um e dois para evidenciar tal necessidade, contribuição e presença. Abre-se um novo potencial ao considerar a dimensão estética ainda que hoje esteja muito associado ao simbolismo organizacional, restringindo as possibilidades do conhecimento estético, e da sua aplicação para compreensão da criatividade enquanto geradora de transformações organizacionais e sociais. As possibilidades para estudo organizacional, conforme discorre Aldrich (1992) apresentam contemporaneamente três grandes perspectivas: a institucional, a ecológica e a interpretativa. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 335 Dentre essas perspectivas, a estética mostra-se capaz de contribuir nos estudos interpretativos, onde através do âmbito estético, aspectos organizacionais não internalizados na análise organizacional, e ganharão identidade à medida que se distingue da teoria da arte, do design, aproximando-se do ambiente organizacional, não apenas enquanto um tipo de performance artística, de adequação de gosto. A Estética, enquanto ciência filosófica, encontra-se à disposição para auxiliar a compreensão dos aspectos relativos, tanto à mudança organizacional, resultante de processos criativos e inovadores possibilitando às organizações compreenderem de modo preciso, às questões tão cruciais e determinantes ao desenvolvimento organizacional, associado ao lado abstrato, sensível, do sentimento humano, e que, certamente, tratará de novas percepções do ser humano e suas ações no contexto organizacional. Buscou destacar a relevância e contribuição da estética para vislumbrar a base, a essência da criação humana através dos seus atos e ações. Destacar essa terceira dimensão humana - a dimensão estética - enquanto elemento para explicar os processos da interação humana, e em particular, os decorrentes a mudança organizacional e a criatividade foram os aspectos centrais, e que faz parte da pesquisa em andamento. O problema de pesquisa que norteia a elaboração do presente projeto parte do pressuposto básico acerca da existência de uma atitude, de uma dimensão de natureza estética, buscando considerar a presença e possível influência dessa dimensão no cotidiano das organizações. Para tanto, busca-se considerar não apenas a Estética, enquanto campo do conhecimento filosófico, mas enquanto elemento presente e inerente às ações humanas. Mostra-se necessário, ainda, considerar como os estudos organizacionais têm considerado tal possibilidade e sob que bases têm desenvolvido as pesquisas sobre tal tema e que apresenta limitações no seu uso quando envolve a análise organizacional. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 336 Considera-se ter alcançado a construção de uma tese que respondesse ao problema de pesquisa, assim como as questões operacionais que desdobram o problema e que cabem ser novamente apontados: existem contribuições da estética para a análise e compreensão das organizações? Sim. Através das três partes em que está estruturada a tese, têm-se elementos que apontam para uma lacuna nos estudos organizacionais – parte um –; uma enorme contribuição da estética, pouco considerada na análise e entendimento do cotidiano humano – parte dois –, e portanto, não mero devaneio; e as necessidades organizacionais, no que concerne à análise organizacional e gestão do cotidiano – parte três – que possibilitam identificar através de trabalhos acadêmicos a contribuição da estética. Podem-se apontar elementos que permitiram identificar a centralidade da estética enquanto elemento influenciador nas escolhas e ações organizacionais, associadas ao simbolismo organizacional, aos estudos envolvendo a cultura organizacional. Com o fundamento da filosofia pode-se discorrer sobre a formação do conhecimento humano, considerando não mais, apenas, a racionalidade e a experiência, mas, considerando, de maneira concomitante, a estética. Não sendo, as escolhas e ações humanas fruto do senso comum ou da razão, mas de um equilíbrio no agir envolvendo três diferentes dimensões ou matrizes. A dimensão estética pode - e essa é a intenção com a presente tese -, permitir a ampliação da compreensão das organizações, ampliando as perspectivas de análise, considerando-as enquanto possibilidades e alternativas que não se esgotam, nem substituem outras perspectivas. Raimundo Santos Leal O Estético nas organizações: uma contribuição da Filosofia para a análise organizacional 337 REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola . Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ABRAHAMSON, E. Management fashion. Academy of Management Review, v. 21, n.1, p. 254-285. 1996. ABRAMS, Meyer H. The Mirror and the Lamp. Chicago & London: The University of Chicago Press, 1953. ADDISON, Joseph. On the pleasures of the imagination. Oxford: Claredon Press, 1965. ADORNO, T.W. Teoria estética. Madrid: Taurus, 1982. AKTOUF, Omar. A Administração entre a Tradição e a Renovação. São Paulo: Atlas, 1996. ____________. Administração e teorias das organizações contemporâneas: rumo a um humanismo-Radical Crítico? Revista Organizações& Sociedade. V. 8, n. 21, mai/ago 2001. ALDRICH, Howard. E. Incommensurable paradigms? Vital signs from three perspectives. In: REED, Michael & HUGHES, Michael. Rethinking organizations new directions in organization theory and analysis. 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