de hesíodo a ésquilo: representações de prometeu

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DE HESÍODO A ÉSQUILO: REPRESENTAÇÕES DE PROMETEU
VIEIRA, Ana Cláudia – Universidade
Estadual do Oeste do Paraná1
ZANCHET, Maria Beatriz2
RESUMO: O estudo discute como o tragediógrafo Ésquilo (525-456 a.C) - em Prometeu
acorrentado - reelabora um episódio que se faz presente em dois textos de Hesíodo, de
meados do século VIII: Teogonia e Os trabalhos e os dias. Ponderando a inserção temporal
correspondente a cada autor, o trabalho analisa as características típicas do mito prometeico,
tendo em vista os conflitos presentes no universo dos deuses olímpicos, a relação entre os
deuses e os homens, a presença do destino e, principalmente, as modificações advindas da
releitura do mito introduzidas na tragédia de Ésquilo.
PALAVRAS-CHAVE: Prometeu; representações; destino.
INTRODUÇÃO
Discutir as representações de Prometeu implica adentrar no terreno do mito. Ao se
falar em mito ou mitologia, de maneira geral, há uma lembrança apelativa que remete à
civilização helênica e, igualmente, à Ilíada e à Odisseia, poemas atribuídos a Homero, que
justificam, indiscutivelmente, como se dá a penetração do mito nas formas literárias, ou seja,
através do seu caráter eminentemente narrativo.
De acordo com Guida Nedda B. P. Horta (1990, p. 20), na tradição do helenismo, “os
escritores (e também os artistas plásticos) recolheram as tradições mitológicas, com
frequência, dos santuários dedicados aos grandes deuses”.
Para os gregos antigos, pelo menos, o mito sempre foi, em seu significado mais
profundo uma crença transportada à ficção. Por isso mesmo ele participa,
geralmente, da natureza religiosa (que também é encontrada na mitologia de outros
povos), mas inclui também aspectos históricos (estes últimos predominantes na
mitologia latina). (HORTA, 1990, p. 20, grifo do autor).
O presente trabalho, ao discutir o mito de Prometeu, penetra amplamente no terreno da
literatura, pois foi através dos textos épicos de Hesíodo e das tragédias – Ésquilo e, depois,
Eurípedes – que ele se tornou mais conhecido. Entretanto, embora não apareça nos textos
homéricos, o mito de Prometeu, da forma como é apresentado por Hesíodo, carrega o
contexto e as intenções impostos pelo autor.
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Assim, perceber de que maneira o mito de Prometeu ganhou contornos diferentes de
Hesíodo a Ésquilo, implica perceber, também, como se dá a evolução desse mito, uma vez
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Uma vez incorporados à literatura, tais mitos também sofreram a moldagem que lhes
imprimiu o escritor, utilizando-os a serviço de suas intenções estéticas e, então,
cristalizados no texto poético, assumiram uma determinada forma, como se pode
observar nos Poemas Homéricos. Com o tempo, os mesmos mitos puderam sofrer
variações devidas à mentalidade dos escritores das várias épocas ou regiões da
Grécia ou à própria necessidade de interpretação de textos cuja origem já não era
conhecida, tendo-se perdido até, muitas vezes, a noção de seu real significado, no
contexto histórico-cultural em que surgiram. (HORTA, 1990, p. 21).
Acadêmica do Curso de Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE.
Artigo científico orientado pela professora Ms. Maria Beatriz Zanchet.
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que, entre ambos, medeiam séculos de diferença e, como bem afirma Horta (1990, p. 21), o
mito é “sombra mutável e fugidia de uma realidade muito distanciada no tempo e, por isso
mesmo, nem sempre bem compreendida”.
Conforme Brunel (2000, p. 784), para a cultura ocidental, o mito de Prometeu tornouse “o símbolo da revolta na ordem metafísica e religiosa, como se encarnasse a recusa do
absurdo da condição humana”. Entretanto, tal concepção é recente, embora a atitude
desafiadora se faça presente na essência do próprio mito prometeico.
Deve-se considerar, igualmente, que Ésquilo, ao retomar o mito prometeico,
considerando-se as versões de Hesíodo, o faz com, aproximadamente, mais de três séculos de
diferença.
Com Hesíodo, da Beócia, a literatura manifesta-se pela primeira vez na Grécia, em
meados do século VIII, época de lutas entre terratenentes e a população excluída de
privilégios: trabalhadores agrícolas, pastores e artesãos. [...] Contrastando o
anonimato e neutralidade dos poemas homéricos, Hesíodo, além de inserir o seu
nome na Teogonia, assume atitude combativa contra o legado da tradição.
(SCHÜLER, 1985, p. 25).
Considere-se, igualmente, que Hesíodo – comparando-se a Homero, que escreveu para
uma elite aristocrática – como afirma Lafer (1991, p. 16), na Introdução a sua tradução de Os
trabalhos e os dias, “antes de ser o porta-voz dos oprimidos, é o porta-voz das musas,
valendo-se, aliás, de um repertório eminentemente ético-religioso tanto no vocabulário
empregado quanto nos temas narrados”.
De acordo com o tradutor de Prometeu acorrentado, J.B. Mello e Souza (2001, p. 111112) em suas notas introdutórias, “Ésquilo nasceu em Elêusis, subúrbio de Atenas, por volta
do ano 525 a.C. [...] e morreu em Gela, na Sicília, no ano de 456 a.C.” O tradutor especifica a
importância de suas obras a ponto de, na época, conferirem fama e honrarias ao autor
dramático. Salienta, ainda, que o “Prometeu acorrentado é o primeiro episódio de uma
majestosa trilogia, da qual se perderam as outras partes”.
De acordo com Hesíodo (1995, v.507-616) Prometeu é filho do titã Jápeto e da
oceânida Clímene. É irmão de Atlas, Menécio e Epitemeu. A cada um dos filhos de Jápeto,
Hesíodo atribui um adjetivo. Atlas é referido como o de “violento ânimo”; Menécio é “sobre
glorioso” e “soberbo”; Epitemeu é destacado como o “sem-acerto” e Prometeu é o “astuto de
irado pensar”.
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E prendeu com infrágeis peias Prometeu astuciador,/ cadeias dolorosas passadas ao
meio duma coluna,/ e sobre ele incitou uma águia de longas asas,/ ela comia o
fígado imortal, ele crescia à noite/ todo igual o comera de dia a ave de longas asas.
(HESÍODO, 1995, p. 135).
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AS VERSÕES DE PROMETEU EM HESÍODO
No decorrer do século VIII, com os poemas de Hesíodo, duas versões complementares
do mito de Prometeu são apresentadas por este autor. No livro Teogonia: a origem dos deuses
(1995, versos 507-616), Hesíodo afirma que Prometeu é filho do titã Jápeto e da oceânida
Clímene. É irmão de Atlas, Menécio e Epimeteu. A cada um dos filhos de Jápeto, Hesíodo
atribui um adjetivo. Atlas é referido como o de “violento ânimo”; Menécio é “sobre glorioso”
e “soberbo”; Epimeteu é destacado como o “sem-acerto” e Prometeu é o “astuto de irado
pensar”. Após apresentar a qualificar os filhos de Jápeto e Clímene, Hesíodo referencia,
resumidamente, os golpes que Zeus infringiu a esses filhos. Quanto a Prometeu, refere que
Zeus mandou acorrentá-lo a uma coluna, incitando uma águia para que viesse devorar-lhe o
fígado durante o dia, o qual se refazia à noite:
Na oferenda de um sacrifício a Zeus, Prometeu engana o todo poderoso, dividindo um
boi em duas partes. De um lado, colocou as carnes gordas e vísceras cobrindo-as com a pele;
de outro, colocou os ossos cobrindo-os com uma camada de gordura. Essa trapaça deixa Zeus
enfurecido e, como represália, nega-se a entregar aos homens – os protegidos de Prometeu – o
fogo celeste: “Assim falou irado Zeus de imperecíveis desígnios,/ depois sempre deste ardil
lembrado/ negou nos freixos a força de fogo infatigável/ aos homens mortais que a terra
habitam.” (HESÍODO, 1995, p. 137).
Entretanto, Prometeu burla mais uma vez e rouba o fogo escondendo-o em “oca
férula”, fato que enraiveceu o coração de Zeus e, para castigo de Prometeu e dos mortais
confere-lhes um novo mal. Com a ajuda de Hefesto (Vulcano), “o ínclito pés-tortos” e de
outros deuses, cria uma mulher virgem e linda que, vai ser detalhada com mais características
em Os trabalhos e os dias (1991).
Ao término da apresentação da história de Prometeu, tal como é referida na Teogonia,
Hesíodo deixa claro que não se pode afrontar ou desrespeitar os deuses: “Não se pode furtar
nem superar o espírito de Zeus/ pois nem o filho de Jápeto o benéfico Prometeu/ escapou-lhe
à pesada cólera, mas sob coerção/ apesar de multissábio a grande cadeia o retém”.
(HESÍODO, 1995, p. 139).
O Mito de Prometeu e Pandora
No texto Os trabalhos e os dias (1991), Hesíodo dedica os versos 42 a 105 ao Mito de
Prometeu e Pandora. As concepções de Hesíodo, bem menos aristocratizantes do que as
convicções de Homero, abrigam profunda reflexão sobre a substância humana:
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Ao referir-se ao Mito de Prometeu e Pandora, Hesíodo inicia fazendo, novamente,
referência à cólera de Zeus, pelo fato de Prometeu ter roubado o fogo celeste para dá-lo aos
mortais: “Filho de Jápeto, sobre todos hábil em tuas tramas/ apraz-te furtar o fogo fraudandome as entranhas;/ grande praga para ti e para os homens vindouros.” (HESÍODO, 1991, p.
27).
É interessante observar como a mulher entra na história, isto é, como Pandora aparece,
ou seja, como um mal que, no entanto, é capaz de seduzir os homens: “Para esses em lugar do
fogo eu darei um mal e/ todos se alegrarão no ânimo, mimando muito este mal”. (HESÍODO,
1991, p. 27).
No que diz respeito à origem de Pandora, enfatiza-se que Zeus criou “o belo mal” (v.
585), idealizando-a como forma de retaliação aos homens e a Prometeu. Pandora foi
elaborada em moldes perfeitos recebendo de cada deus um dom: Era agraciada com a arte de
seduzir e trazia consigo uma caixa onde estavam guardados todos os males existentes.
Epimeteu, irmão de Prometeu, casa-se com Pandora, apesar dos avisos do irmão para ter
cuidado com as intenções de Zeus. Ele acaba por abrir a caixa, espalhando no mundo todos os
males que ela continha. Saliente-se que a vinda de Pandora à terra deve-se ao crime que
Prometeu realizou ao roubar o fogo divino e dá-lo aos mortais. Desta forma, Zeus envia a
primeira mulher aos homens e assim se dá a separação entre deuses e homens.
No texto mítico, Pandora não é uma simples mulher. Ela é, como o próprio nome
indica, a que é dotada de muitos dons:
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Hesíodo escreve o primeiro poema cósmico do Ocidente, impregnando-o de uma
substância humana que não o deixa envelhecer. Reflete sobre o universo sem
esquecer os conflitos locais. [...] Vemos aí a revolução democrática nos seus
primeiros estágios. Tendência social bem nítida revela-se no segundo poema de
Hesíodo, Os trabalhos e os dias. (SCHÜLER, 1985, p. 29).
Minerva ensinou-lhe as artes que convém a seu sexo, entre outras, a de fiar. Vênus
espalhou em torno dela o encanto como desejo inquieto e os cuidados fatigantes. As
Graças e a deusa da Persuasão ornaram a sua garganta com colares de ouro.
Mercúrio deu-lhe a palavra com a arte de persuadir os corações com discursos
insinuantes. (COMMELIN, 1994, p. 95).
Desta forma, essa bela mulher foi levada ao irmão de Prometeu, Epimeteu, assim
designado porque só é capaz de compreender os fatos depois que estes acontecem: “não
pensou no que Prometeu lhe dissera jamais dom/ do olímpico Zeus aceitar, mas que logo o
devolvesse/ para mal nenhum nascer aos homens mortais”. (HESÍODO, 1991, p. 29).
O Mito de Pandora é repleto de significados. Ela representa a mulher primeva, dada
aos homens e a Prometeu como um ato de doação. Entretanto, essa doação de Zeus implica
uma punição, não um ato de bondade. Conforme os versos de Hesíodo, em Os trabalhos e os
dias (1991), antes da primeira mulher os homens viviam “a recato dos males, dos difíceis
trabalhos,/ das terríveis doenças [...] mas a mulher, a grande tampa de jarro alçando,/
dispersou-os e para os homens tramou tristes pesares.” Não é sem razão a afirmativa de Lafer
(1991, p. 62): “Pandora é ligada à ideia do alimento que vem da terra e à instituição do
casamento; ela é agora uma gyné gameté, uma mulher-esposa com quem deve se ligar o
homem.”
Portanto, é através de Pandora que a caixa dos males é aberta e estes se espalham
sobre a terra. Fechada a caixa, nela só restou a esperança. Confirma-se, então, que “da
inteligência de Zeus não há como escapar” (HESÍODO, 1991, p. 29).
O relato de Hesíodo tem, assim, uma função etiológica; serve para explicar a miséria
da condição humana e ensinar o respeito aos deuses: “É inteiramente impossível
fugir aos desígnios de Zeus.” Essa narração, com substratos arcaicos ainda muito
visíveis, possui uma conclusão sobretudo negativa. Benfeitor desajeitado, Prometeu
causou a desgraça dos homens, cuja sorte é concebida em termos de queda e
decadência, sem fazer qualquer apologia da revolta: a lição de Hesíodo é a
submissão à vontade divina. (BRUNEL, 2000, p. 785).
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A Força Inexorável do Destino
Para compreender o mito prometeico, é necessário abarcar, a princípio, a poética da
tragédia grega. A tragédia se distingue pelo seu caráter de seriedade e decoro que
constantemente envolve um conflito entre um personagem e algum poder de instância maior,
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ÉSQUILO: PROMETEU ACORRENTADO
Na obra de Ésquilo (2001), há um distanciamento e uma renovação do mito de
Prometeu em relação às obras anteriores. Brunel (2000, p. 756), enfatiza que “ao conceder a
inteligência e o livre-arbítrio aos homens, o Prometeu de Ésquilo não lhes ensina a revolta
contra os deuses, mas faz com que ela se torne possível”.
De início, o leitor é apresentado a um Prometeu já aprisionado por grilhões forjados
por Hefestos, que recebeu de Zeus a tarefa de acorrentá-lo no monte Cáucaso, onde Prometeu
deveria permanecer eternamente sendo dilacerado por uma águia que lhe devorava o fígado.
Sendo imortal e com poderes de regeneração, esse é um sofrimento diário e infindável. No
decorrer do mito, em seu desterro, Prometeu recebe a visita de algumas divindades (as Ninfas,
filhas do Oceano) que lhe oferecem certo alento, mas sempre o lembrando do seu dever de
resignar-se perante Zeus. O próprio Oceano aparece em seu auxílio, desde que Prometeu
modere suas críticas contra Zeus. Contudo, Prometeu se mantém implacável e passa a
enumerar os benefícios que fez aos mortais: em primeiro lugar, o fogo; depois, os
instrumentos modelados na forja; seguem-se a astronomia, a cura dos males, o valor das artes
e indústrias, a interpretação dos astros, enfim o conhecimento.
como os deuses, o destino e a sociedade. No caso de Prometeu acorrentado, o conflito está,
primeiramente, entre o titã e o deus e, posteriormente, entre ambos e o destino, que é
implacável. Na tragédia de Ésquilo (2001, p. 124), no diálogo entre o Coro e Prometeu, este
afirma que a “Inteligência nada pode contra a fatalidade”. Ao ser interrogado sobre quem
dirige a fatalidade, responde que são as “três Parcas e as Fúrias, que nada perdoam”.
Questionado sobre o poder de Zeus a respeito do destino, Prometeu afirma que este é
inexorável e que, nem mesmo Zeus pode eximir-se ao seu comando.
O CORO [das Ninfas do Oceano]: Depois de haver prestado tamanhos benefícios
aos mortais, não te abandones à desgraça. Estamos persuadidas de que poderias,
liberto dessas cadeias, ser tão poderoso quanto Júpiter...
PROMETEU: Não!... Não foi assim que dispôs o destino inexorável. Só depois de
haver sofrido penas e torturas infinitas é que sairei desta férrea prisão. A inteligência
nada pode contra a fatalidade.
O CORO: E a fatalidade, quem a dirige?
PROMETEU: As três Parcas, e as Fúrias, que nada perdoam.
O CORO: Será Júpiter, acaso, menos poderoso que essas divindades?
PROMETEU: Sim... ele próprio não poderá eximir-se a seu destino.
O CORO: Seu destino? Qual será seu destino, senão o de reinar para sempre?
PROMETEU: Nada mais pergunteis; convém cessar vossa insistência. (ÉSQUILO,
2001, p. 124).
De acordo com a mitologia, as Parcas – divindades do Olimpo – e as Fúrias –
divindades infernais – ligam-se em essência com o destino. O destino é um fator determinante
na mitologia grega e também no mito de Prometeu. Segundo com Commelin (1994), o destino
relaciona-se com as Parcas, três irmãs filhas da noite e donas das sortes dos homens. Eram
elas: Cloto, cujo nome significa “fiar”, sendo essa a detentora do fio dos destinos humanos; a
segunda Parca é Laquesis, que em grego significa “sorte” ou “ação de tirar a Sorte” sendo ela
responsável por colocar o fio no fuso; a terceira irmã, a mais idosa entre elas, se chama
Atropos que em grego significa “inflexível” e é responsável por cortar impiedosamente o fio
da vida de cada mortal. Conforme Hesíodo (1995), as Fúrias são filhas da Terra, geradas com
o sangue de Saturno, ferido por Júpiter (Zeus). Em outra passagem de seu texto, Hesíodo diz
que as Fúrias são frutos da discórdia.
Deve-se entender que as divindades infernais, no mundo dos gregos, não carregam a
conotação da palavra “inferno” no sentido que lhe atribui o cristianismo. Como elucida
Commelin (1994, p. 173), as Fúrias, designadas, também por Erínias tinham por missão
manter a ordem moral: “inspiravam o medo dos remorsos, dos castigos inevitáveis, e assim
faziam compreender aos homens as doçuras de uma consciência honesta e as vantagens da
virtude”.
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Lavedan e Mazon, citados por Chevalier e Gueerbrant (2001, p. 376), no Dicionário
de símbolos, afirmam que, originalmente, as Fúrias não se caracterizavam como “divindades
vingadoras do crime”, mas, tal como as Moiras – representantes do Destino – eram “guardiãs
das leis da natureza e da ordem das coisas e por isso puniam todos aqueles que ultrapassassem
seus direitos à custa dos de outrem, quer entre os deuses, quer entre os homens”.
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As mais conhecidas das Fúrias, as mais geralmente citadas pelos poetas são:
Tisífone, Megera e Alecto. Tisífone [...] desde que a sentença dos criminosos é
pronunciada, ela se arma do seu látego vingador [...]. Megera, sua irmã, tem por
missão semear as discórdias e as disputas entre os homens. Alecto, a terceira Fúria,
não deixa os criminosos em repouso, e atormenta-os sem descanso. Odiosa ao
próprio Plutão, ela só respira vingança, e toma todas as formas para trair ou
satisfazer a sua raiva. (COMMELIN, 1994, p. 172).
Não é sem razão, portanto, que em Prometeu acorrentado, o herói submete-se à
imposição do destino, embora ouse levantar brados de revolta e desespero. Seu crime, após
apoderar-se do fogo celeste, condoído da sorte dos mortais, irritou a Zeus, que ordena seja ele
acorrentado, a menos que consinta em desvendar os segredos que – como imortal que era,
visto que, etimologicamente, Prometeu quer dizer “o que prevê” – só ele sabe. Porém,
Prometeu, sempre demonstrando altivez, nega-se terminantemente. Ao ser questionado pelo
Coro, a respeito do terrível segredo que ele esconde, Prometeu rebate: “ainda não é tempo de
revelar esse mistério. Que ele permaneça mais oculto que nunca; de minha discrição
dependem a minha liberdade e o fim de meu sofrimento”. (ÉSQUILO, 2001, p. 124).
No belíssimo confronto entre Prometeu e Io – mulher transformada em ovelha por
artimanhas de Zeus, condenada a correr sem cessar, devido aos ciúmes de Juno, e perseguida
por um moscardo – o nobre titã acorrentado demonstra ser conhecedor da história de Io e,
igualmente, do futuro que a espera.
O CORO: Ouves tu, Prometeu, a voz desta jovem?
PROMETEU: Sim... ouço a voz da infeliz a quem persegue um inseto cruel: é a filha
de Ínaco, por quem Júpiter está apaixonado, e a quem Juno, ciumenta, obriga a fugir,
sem repouso, numa corrida louca, por este mundo afora.
IO: [...] Quem és tu? Se tu mesmo não passas de um desgraçado, como conheces tão
bem os meus males? (ÉSQUILO, 2001, p. 125).
Na sequência da tragédia, após Io descrever sua triste história para o Coro das Ninfas
do Oceano e para Prometeu, este profetiza o destino de Io, dizendo-lhe que Zeus/Júpiter
perderá o trono:
IO: Que dizes? Perderá Júpiter, um dia, o seu império? Ah! Como eu folgaria se
pudesse testemunhar este fato! Nem poderia desejar outra coisa eu, a quem ele trata
com tanta crueldade!
PROMETEU: Ele perdê-lo-á, fica certa.
IO: E quem lhe arrancará o tirânico cetro?
PROMETEU: Ele próprio. Em consequência de sua louca temeridade.
IO: Como? [...]
PROMETEU: Para seu mal, ele tomará uma esposa que o fará arrepender-se. [...]
Ela dará à luz um filho mais forte que seu pai [...].
IO: E quem te virá libertar contra a vontade de Júpiter?
PROMETEU: Um de teus descendentes [...] o terceiro que nascer depois de dez
gerações. (ÉSQUILO, 2001, p. 129-130).
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PROMETEU: Insistes em vão, Mercúrio! Para tuas palavras sou surdo como uma
onda. Não penses que, temendo os desígnios de Júpiter, medroso como uma donzela,
eu erga as mãos e implore a piedade àquele que é objeto de todo o meu rancor, para
que me liberte destas cadeias. Disso bem longe estou.
MERCÚRIO: Vejo que meu apelo é inútil, e que meus conselhos não conseguiram
convencer-te. [...] Nada mais impotente do que o orgulho dos insensatos. Visto que
não logrei persuadir-te, pensa ao menos, na tempestade de novas desgraças que hão
de cair sobre ti. Júpiter, por meio de raios, espedaçará esse rochedo escarpado; teu
corpo permanecerá esmagado sobre os fragmentos da montanha [...]. Então, um
abutre insaciável – o cão alado de Júpiter – virá arrancar de teu corpo enormes
pedaços e – comensal não desejado – voltará todos os dias para se nutrir de teu
fígado negro e sangrento. (ÉSQUILO, 2001, p. 135).
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No último ato da tragédia, Mercúrio/Hermes vem, a mando de seu pai intimar
Prometeu a contar-lhe tal segredo, mas o mesmo se nega terminantemente a revelá-lo. Esse
ato é significativo e revela algumas características de Prometeu: coragem, orgulho, altivez,
audácia e ironia.
O autor conclui a tragédia com um brado comovente de Prometeu. Apesar do grande
sofrimento, o titã se nega a responder aos pedidos de Zeus. Paradoxalmente, o silêncio é sua
vitória e sua desgraça.
Sabendo que Prometeu recebe uma punição de Zeus por infringir as leis divinas,
informações essas presentes nas obras de Hesíodo, a obra de Ésquilo, Prometeu acorrentado,
revela não apenas o momento em que o titã está em seu exílio, mas, principalmente, mostra
um Prometeu rebelde, que não se arrepende de seus delitos, e é pouco flexível quanto a uma
possível remissão concedida por meio de uma resignação ao pai dos deuses, Zeus. Essa
postura exasperada de Prometeu existe na obra de Ésquilo, mas não nas obras de Hesíodo,
onde o titã é apresentado como vítima da ferocidade de Zeus e submisso ao seu poder.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O propósito do presente trabalho foi entender as origens do mito de Prometeu nas
perspectivas dos autores Hesíodo e Ésquilo, de forma a buscar uma compreensão maior deste
mito, como ele se constitui, como cada autor o expõe e, principalmente, como ele é
importante no campo dos estudos literários.
A grande diferença entre as representações feitas pelos dois autores remete à relação
entre os homens mortais e os desígnios dos deuses, da forma em que os homens viviam, e
principalmente da maneira com que os deuses os tratavam. O mito de Prometeu trás em si a
ideia da condição humana, que por vezes é tão pequena e sem conhecimento, até mesmo,
alienada, e então eis que surge Prometeu que trás o fogo divino, e a partir deste o homem se
torna maior, começa um processo aprendizado e independência que fazem de Prometeu, uma
espécie de herói evolucionário, um iniciador da civilização humana.
O mito de Prometeu acarreta em si a ideia da condição humana, que por vezes é tão
pequena e sem conhecimento e, até mesmo, alienada, e então eis que surge Prometeu que trás
o fogo divino, e a partir deste o homem se torna maior, começa um processo aprendizado e
independência que fazem de Prometeu, uma espécie de herói revolucionário, um iniciador da
civilização humana.
Em Prometeu acorrentado, o autor apresenta um Prometeu diferente do benfeitor das
obras de Hesíodo. Esse Prometeu é intransigente e nada indefeso, pois, com o poder de prever
o futuro ele tem um trunfo contra Zeus: ele sabe como se dará a queda do Rei dos deuses e faz
com que a divindade saiba disso, como forma de ameaça ao poder do deus que se sente
abundantemente ameaçado, ao ponto de enviar seu filho Mercúrio até Prometeu, para verificar
tais informações.
O Prometeu de Ésquilo não é mais aquele benfeitor primordial da Teogonia e, numa
grande tirada o dramaturgo enumera-lhe as dádivas: foi ele quem libertou os homens
da obsessão da morte e os fez saber o que é a esperança, além de dar-lhes o fogo
“que os levará a aprender um sem-número de artes. (BRUNEL, 2000, p. 786).
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Em relação ao fogo divino, é relevante enfatizar que na representação oferecida por
Ésquilo, o fogo simboliza aquilo que tornaria possível qualquer trabalho, o que faria o
homem, até então próximo da irracionalidade, um ser mais próximo dos deuses, e é esse fato
que traz a ira de Zeus contra o titã.
Ao final da tragédia de Ésquilo ecoa uma possibilidade de esperança. Como afirma
Schüler (1985, p.101), “o triunfo da justiça surge, entretanto, menos como certeza, do que
como esperança”.
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REFERÊNCIAS:
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