Professores de biologia pentecostais e neopentecostais e sua relação com a evolução biológica e o criacionismo Pedro Pinheiro Teixeira (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio - RJ) Marcelo Gustavo Andrade de Souza (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio - RJ) Resumo As relações entre ciência e religião não se restringem aos dias de hoje, remontando ao surgimento da chamada ciência moderna no século XVI. Um importante capítulo dessa história é a publicação do livro “A origem das espécies” de Charles Darwin em 1859. Passados 150 anos de seu lançamento, vivemos em um mundo não menos religioso. Embora a modernidade tenha produzido um efeito secularizante, também gerou poderosos movimentos de contrasecularização, como os pentecostais e neopentecostais no Brasil. Nesse sentido, supomos que o professor de biologia que professa uma fé cristã de orientação pentecostal lida com duas construções sociais diferentes: religião e ciência. Assim, partindo de uma concepção pluralista da verdade e de uma proposta de educação intercultural baseada no conceito de tolerância, pretendemos investigar os conflitos e os arranjos que os professores de biologia que professam uma fé cristã pentecostal ou neopentecostal encontram entre o criacionismo e o evolucionismo, num mundo que é ao mesmo tempo religioso e secularizado. Para isso faremos uso de entrevistas semi-estruturadas e análises documentais dos materiais utilizados por estes professores na preparação e na execução de suas aulas sobre evolução. Palavras-chave: Ensino de Ciências, Evolução, Criacionismo. Eixo Temático 6: Pesquisa em Pós-Graduação em Educação e Culturas Tipo de apresentação: Pôster 1. Apresentação As relações entre ciência e religião não se restringem aos dias de hoje, remontando ao surgimento da chamada ciência moderna no século XVI (Henry, 1998). Um importante capítulo dessa história é a publicação do livro “A origem das espécies” de Charles Darwin em 1859. Nesta obra, Darwin defende a idéia da evolução dos seres vivos por meio de modificações graduais e extinções ao longo de milhões de anos. Tal teoria logo causou grande impacto no meio científico e reação por parte de membros de diferentes religiões por ir de encontro às crenças criacionistas, em especial a cristã, para a qual Deus havia criado o universo e todos os seres vivos, tais como eles são hoje, bem como o ser humano à sua imagem e semelhança. Passados 150 anos de sua publicação, vivemos em um mundo não menos religioso que o de Darwin. Embora a modernidade tenha produzido um efeito secularizante, também gerou poderosos movimentos de contra-secularização. Além disso, a secularização da sociedade não está necessariamente vinculada à secularização da consciência individual (Berger 2001): Dessa forma, podemos destacar o surgimento e crescimento de diversos grupos religiosos que reagem à secularização. Entre eles podemos citar os conhecidos como pentecostais1 e neopentecostais no Brasil. Mendonça (2006) afirma que alguns desses grupos apresentam características do fundamentalismo, tais como a rejeição de toda crítica que ponha em dúvida qualquer parcela da escritura e a resistência à ciência nos pontos em que colide com a leitura literal da bíblia, especialmente a teoria da evolução. Nesse sentido, supomos que o professor de biologia que professa uma fé cristã de orientação pentecostal – evangélica ou católica – lida com duas construções sociais diferentes e quiçá igualmente importantes para sua identificação: religião e ciência. Assim, pretendemos estudar como este docente se coloca diante dessas questões. Ele as entende como conflituosas? Se sim, como ele lida com o conflito? Se não, em que medida acredita que não sejam conflituosas? 2. Pressupostos Teóricos 2.1 A Importância da Evolução para a Biologia Uma década após a publicação de “A origem das espécies”, Darwin já havia convencido a intelectualidade da existência do evolucionismo (Gould, 1999). No entanto, apenas na década 1 A orientação pentecostal não se restringe aos cristãos evangélicos. A Renovação Carismática Católica (RCC) também pode ser considerada pentecostal já que apresenta diversas de suas características (Carranza 1998). de 1940, com novas evidências geológicas e, principalmente, genéticas, a teoria da evolução por meio da seleção natural passou a predominar no âmbito dos estudos em biologia. A evolução é considerada por diversos pesquisadores como um eixo estruturador da biologia (Mayr, 1982; Dobzhansky, 1973). Antes de seu surgimento, as diversas áreas das ciências biológicas eram agrupadas de forma fragmentada sob o nome de história natural. Só a partir do pensamento evolutivo foi que se deu unicidade à disciplina biologia, como fica claro no artigo “Nothing in Biology makes sense except in the light of evolution”2 do biólogo evolucionista Theodosius Dobzhansky (1973, p.129): Vista à luz da evolução, a biologia é, talvez, intelectualmente a mais agradável e interessante das ciências. Sem essa luz se torna uma pilha de fatos sem muito valor – alguns deles interessantes ou curiosos, mas sem criar um sentido como um todo.3 Dessa maneira, a teoria da evolução alicerça diferentes estudos em biologia, desde o “parentesco” entre seres vivos (sistemática filogenética) até o desenvolvimento da resistência de bactérias e vírus a medicamentos. 2.2 A Secularização O termo secularização, segundo análise de Mariz (2006) seria a progressiva saída da religião das diferentes esferas sociais, restringindo-se a sua esfera própria. Logo, o poder político passa a não ser mais legitimado pela Igreja, mas sim pelo cidadão comum. Da mesma maneira a ciência não mais busca entender a criação divina ou respaldá-la, mas sim estudar o mundo natural, não sendo determinada por uma crença religiosa específica. Ao longo da história, contudo, a modernidade e a secularização são exceções. Berger (2001) afirma que a crença de que a modernização leva necessariamente ao declínio da religião, encontrada desde o Iluminismo está equivocada. Pelo contrário, ele afirma que o mundo de hoje é tão religioso quanto antes e até mais em certos lugares. Assim, propõe o que chama de “processo de dessecularização”, isto é, uma retomada da religião a esferas que havia deixado de ocupar. Mariz (2001), porém, problematiza este conceito: uma vez que se o declínio da religião não foi observado, não seria adequado, a princípio, escolher o termo dessecularização, reservando-o para situações nas quais uma secularização, efetivada de fato, tivesse sido revertida. Portanto, faz mais sentido pensar no processo de secularização como algo repleto de 2 3 Nada em biologia faz sentido exceto à luz da evolução (Tradução livre). No original: “Seen in the light of evolution, biology is, perhaps, intellectually the most satisfying and inspiring science. Without that light it becomes a pile of sundry facts – some of them interesting or curious but making no meaningful picture as a whole.” (Tradução livre). idas e vindas e que a religião nunca foi extirpada da sociedade e nem há razões para afirmar-se que um dia será. 2.3 Educação Multi/Intercultural e Verdade O multiculturalismo possui múltiplas concepções e interpretações. Da mesma forma, diversas propostas e perspectivas de educação multi/intercultural são defendidas por diferentes autores. Candau (2008) entende o multiculturalismo como uma tomada de consciência da presença de diferentes grupos sociais em uma mesma sociedade, fruto de fatos concretos que explicitam interesses diversos, discriminações e preconceitos e que questionam o “normal”, o qual se revela permeado por relações de poder e historicamente construído. Já Andrade (2009) busca elementos da filosofia para fundamentar uma proposta de interculturalidade. Para isso, recorre à obra da filósofa espanhola Adela Cortina, que propõe uma “ética civil” como forma de articular o que é justo e o que é bom, utilizando os conceitos de “ética de mínimos” e “ética de máximos”. Os máximos de felicidade são os diferentes projetos para que se alcance aquilo que é bom. Logo, apenas se pode convidar alguém a aceitálo, pois trata de uma realização subjetiva, pessoal e intransferível. Os mínimos de justiça, todavia, são exigências no sentido de que os cidadãos vivam sobre determinadas orientações. O moralmente justo é algo que se faz necessário sempre, sendo universalizável para todo ser humano que deseja ser moral. Nesta perspectiva, a educação intercultural pode se configurar como um espaço para a construção de uma agenda mínima entre as diferentes culturas de uma sociedade plural. Os mínimos de justiça e os máximos de felicidade, sem dúvida, perpassariam o pensamento educacional, como Cortina (1996, p.57-58) defende: Os educadores também têm de saber quais são os seus “mínimos decentes” de moralidade na hora de transmitir os valores, sobretudo no que diz respeito à educação pública numa sociedade pluralista. Pois é certo que, por serem educadores, não têm legitimidade para transmitir, sem mais, apenas os valores que lhes pareçam oportunos. (...) Não seria urgente descobrir quais são os valores que podemos partilhar e que vale a pena ensinar? É interessante destacar a visão de Bobbio acerca da tolerância e da idéia de verdade. Para Bobbio (2002, p.19) uma proposta de tolerância tem como desafio responder à seguinte questão: “Como podem ser teórica e praticamente compatíveis duas verdades contrapostas?” De acordo com esse pensamento, é possível entender a verdade como múltipla e não única, em que não se acredita em uma verdade absoluta e se busca a tolerância. Segundo Bobbio (2002) uma concepção pluralista de verdade não leva necessariamente à indiferença e nem à intolerância. O ceticismo extremado, no qual não é possível nenhuma verdade, pode sim implicar nestas duas posturas. Bobbio (2002, p.155) defende que “a tolerância é um método que implica (...) o uso da persuasão perante aqueles que pensam diferentemente de nós, e não o método da imposição.” O desafio que os pressupostos teóricos oferecem para esta pesquisa está em compreender como uma concepção pluralista da verdade (Bobbio, 2002) e uma proposta de educação intercultural (Candau, 2008) baseada no conceito de tolerância (Andrade, 2009) podem me ajudar a investigar os conflitos e os arranjos que os professores de biologia que professam uma fé cristã pentecostal encontram entre o criacionismo e o evolucionismo, num mundo que é ao mesmo tempo religioso e secularizado (Mariz, 2001; Berger, 2001). 3. Questões de Pesquisa A partir das reflexões apresentadas, acredito ser possível investigar o problema de pesquisa a partir de uma perspectiva intercultural. Buscando dialogar com a religiosidade dos professores de biologia, não acredito que a religião seja algo restrito a pessoas “atrasadas”, “supersticiosas” ou “reacionárias”. Paralelamente, pretendo dialogar com o pensamento de Adela Cortina no sentido de encarar a religião como um “máximo de felicidade” possível. No entanto, também entendo que ao assumir a tarefa de ensinar biologia é preciso que esse professor domine e efetivamente trabalhe os conceitos ligados à teoria da evolução. Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM) enfatizam a importância de uma abordagem evolutiva-ecológica de diversos conceitos biológicos: A variabilidade, como conseqüência de mutações e de combinações diversas de material genético, precisa ser entendida como substrato sobre o qual age a seleção natural; (...) A interpretação do processo de formação de novas espécies demanda a aplicação desses conceitos. (BRASIL, 1998, p.18) 4 Tendo em vista as considerações de Bobbio (2002), pode-se entender a religião do/a professor/a como uma verdade possível, porém não a única, de modo que ele não poderia impôla a seu aluno. Da mesma forma, a evolução biológica não deve ser vista uma verdade absoluta. Assim, seria preciso que uma concepção de tolerância norteasse a relação entre esses dois discursos buscando um diálogo entre eles. 4 Grifos nossos. 4. Objetivos 1) Identificar a relação, os conflitos e aproximações entre a evolução biológica e o criacionismo. 2) Analisar como o/a professor/a de biologia que professa uma fé cristã pentecostal ou neopentecostal se relaciona com o criacionismo e com a evolução biológica em sua prática pedagógica. 3) Avaliar como uma concepção de tolerância epistemológica (entre verdades divergentes) pode colaborar com uma proposta de educação intercultural, em especial diante dos possíveis conflitos entre criacionismo e evolucionismo para professores de biologia. 5. Referenciais Metodológicos Esta é uma pesquisa que se propõe como qualitativa. A pesquisa qualitativa obtém seus dados mediante contato direto e interativo do pesquisador com o sujeito/objeto de estudo. É freqüente que o pesquisador procure entender o fenômeno segundo a perspectiva dos participantes da situação estudada, e, a partir daí, situe sua interpretação (Xavier de Brito e Leonardos, 2001). Os sujeitos da pesquisa serão professores de biologia do ensino médio que professem a fé cristã de orientação pentecostal ou neopentecostal, sejam evangélicos ou católicos. Optou-se por professores deste nível de ensino porque é neste momento da educação básica que a temática da evolução é mais explorada e aprofundada. Dentre as estratégias possíveis, foram selecionadas para este trabalho, além da revisão de bibliografia sobre os temas centrais, duas metodologias principais: (1) entrevistas semiestruturadas e (2) análise documental. Optei por realizar entrevistas semi-estruturadas tendo em vista os objetivos da pesquisa, porém sendo flexível a possíveis novos elementos que surjam ao longo do processo. Neste sentido, foram definidos temas, e no interior destes, questões mais específicas para auxiliar na definição mais precisa da problemática, hierarquizando o que é central e o que é periférico na investigação, como sugerido por Zago (2003). Além das questões propriamente ditas, os sujeitos da pesquisa serão convidados a comentar uma reportagem de jornal que versa sobre a relação entre criacionismo e evolução biológica em aulas de ciências. Este último exercício é uma tentativa de obter respostas diferentes ou aprofundar as falas anteriores trazendo um exemplo concreto. Após a realização das entrevistas estas serão transcritas e, posteriormente, analisadas com auxílio do software Atlas.ti 6.0. De acordo com Lüdke e André (1986, p.38), embora pouco explorada, a análise documental pode se constituir como ferramenta útil na abordagem de dados qualitativos. Dessa forma, serão considerados para análise, principalmente, os materiais didáticos utilizados pelos professores em suas aulas sobre evolução biológica. Para tanto, serão solicitados aos entrevistados cópias de seus planos de aula, exercícios, livros didáticos, planejamento de visitas pedagógicas a outros ambientes ou experimentos realizados em sala etc. Vale a pena frisar que o uso de diferentes metodologias é oportuno no sentido de que uma pode fornecer elementos que a outra não conseguiria. Assim, buscarei uma triangulação dos dados de modo a aumentar a sua confiabilidade. 7. Referências Bibliográficas ANDRADE, Marcelo. Ética, interculturalidad y educación: en busca de los fundamentos éticofilosóficos para una educación intercultural, in ARENAS-DOLZ, F e SALAZAR, D.G. El ciudadano democrático, reflexiones éticas para una educación intercultural, 1ª Ed Madrid: 2009. BERGER, Peter. A Dessecularização do Mundo: uma Visão Global. Religião e Sociedade. Rio de Janeiro v.21, n.1, 2001 BOBBIO, Norberto. Elogio da serenidade. São Paulo: Unesp, 2002. BRASIL. 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