O lugar das ideias de José de Alencar David Simoes [email protected] José Henrique Artigas de Godoy [email protected] José de Alencar e Joaquim Nabuco envolveram-se em uma ríspida polêmica iniciada com a crítica feita pelo folhetinista pernambucano à peça O jesuíta, encenada em 1875. O artigo tentava explicar o fracasso de sua primeira montagem. Alencar logo publicou réplica através de artigos que, inicialmente, propunham uma análise d’O teatro brasileiro. Daí em diante, ambos começaram a se aventurar em um diálogo cheio de farpas pessoais, sempre às quintas e aos domingos. Na polêmica, chocaram-se duas interpretações distintas da sociedade brasileira dos anos 1870, perceptíveis nas apreciações de cada um sobre o fato de que o público fluminense esteve ausente na encenação da peça do já consagrado romancista. Para Alencar, isso estaria ligado à valorização, pela sociedade brasileira, de ideias e costumes estrangeiros e a desvalorização daquilo que seria propriamente nacional. Sendo assim, uma obra de autor brasileiro, cujo tema era essencialmente nacional, não haveria de suscitar o interesse do público. Para o autor, a sociedade fluminense ainda não estaria preparada para apreciar a arte nacional, lhe faltava a educação necessária para a valorização das obras nativas. Por seu turno, para Nabuco, a questão era outra. Tratava-se da falta de brio da peça. Para ele, a Corte teria mais luzes e mais capacidade de julgar uma peça artística na década de 1870 que na de 1850, quando as outras peças de Alencar foram aplaudidas, portanto, a indiferença do público demonstraria a falta de mérito da obra e de seu autor. Ao comentar os romances e peças de teatro de Alencar, Nabuco afirma que as ideias do romancista estariam fora do seu verdadeiro meio, a caracterização alencariana da sociedade brasileira seria um despropósito, uma aberração, uma figuração alheia à consciência. Nesse sentido, Nabuco defende a instrução e autonomia do público – ou em outras palavras, da sociedade civil – frente às instituições, no caso particular, a dramaturgia nacional. Por outro lado, em Alencar se percebe a ideia de que o público – da mesma forma, a sociedade civil – não se encontrava preparado e, por isso, deveria ser antes instruído. Em seu argumento transparece a defesa da impressa ilustrada na tarefa de educação desse público. Na tentativa de caracterizar o lugar das ideias de Alencar, deve-se primeiramente verificar se a defesa do caráter pedagógico das instituições o aproxima daqueles que defendiam, no século XIX, um Estado centralizado e forte, que se sobrepusesse aos interesses das elites e assumisse uma função catequizadora, inculcando os princípios cívicos (e civilizacionais), de forma a preparar a sociedade para uma efetiva participação na vida política e cultural do país. Dessa perspectiva, os argumentos de Alencar se aproximam da interpretação segundo a qual a sociedade brasileira necessitaria de um aparelhamento estatal capaz de conduzi-la de maneira tutelar - como expresso na categoria de autoritarismo instrumental cunhada por Wanderley Guilherme dos Santos -, assim como também se percebe a influência de um pensamento que mais tarde foi definido por Oliveira Viana como idealismo orgânico, que envolvia a defesa das liberdades civis, da unidade territorial e da centralização política e administrativa. Apesar de Alencar ter se declarado conservador da ala mais ortodoxa, é possível também verificar diferenças entre seu pensamento e as perspectivas do autoritarismo instrumental e do idealismo orgânico. Conservador, Alencar foi um defensor do fortalecimento das instituições monárquicas, particularmente, das constituídas com a Carta de 1824. Frise-se, no entanto, tratar-se de uma elaboração discursiva que levava em conta uma configuração social e institucional específica, uma tentativa teórica e prática de conciliar, no contexto da sociedade brasileira de seu tempo, a igualdade e a liberdade. Este caráter estatista presente no pensamento conservador brasileiro – do qual Alencar é expoente – deve ser matizado. Para o que aqui interessa, cabe destacar que, como apontam Christian Lynch e Ilmar Mattos, foram os conservadores saquaremas que consolidaram, a partir dos anos 1840, o programa de direção política predominante no Império. Tal programa previa um viés estatista, no qual uma razão de Estado regeria os interesses do país, mesmo em detrimento dos interesses da aristocracia rural. Para Lynch, o discurso conservador se expressaria em três linguagens político-conceituais: um conservadorismo prescritivo, à Burke; um liberalismo doutrinário, herdeiro de Guizot e da Monarquia de Julho; e, por fim, um discurso monarquiano específico, cuja defesa do primado da Coroa remetia ao modelo político do Primeiro Reinado e a uma interpretação o mais próxima possível da letra da Carta de 1824. Tanto Mattos como Lynch fazem um recorte temporal específico quando tratam do modelo institucional Saquarema. O tempo Saquarema estaria localizado entre as décadas de 1830 e 1850. Surgiria como crítica ao modelo político rearranjado pelo Ato Adicional de 1834 e teria se diluído a partir do ministério da conciliação de Paraná, quando os chefes saquaremas deliberadamente se ausentaram da cena política, retornando apenas em 1868. É possível, entretanto, especular sobre a possível existência de dois tempos Saquaremas no Império: o da consolidação, do regresso de 1837 até 1852, e o do declínio, a partir de 1868, quando Itaboraí volta ao governo. Sobre esse período de declínio do modelo de direção política saquarema, Lynch indica que depois de 1871, com o Ventre Livre, e 1881, com a Lei Saraiva, tornou-se visível que as bases de sustentação do modelo estavam em processo de decomposição. A primeira, por minar o fundamento social da dominação: a propriedade escrava. A segunda, por favorecer a constituição de uma nova oligarquia política, que se consolidaria nos primeiros anos da República. José de Alencar e as suas ideias se inseriram neste outro tempo Saquarema, acompanhando a decadência dos saquaremas e a onda liberal dos anos 1870, que abriu caminho para a derrocada definitiva do Império. Alencar criticou o ventre livre, defendeu uma interpretação mais próxima da Carta de 1824, a partir da qual construiu sua teoria da representação proporcional, que previa a descentralização administrativa, como se verifica em seus discursos parlamentares. Esses argumentos refletem a perspectiva particular do conservadorismo de Alencar. Analisando diretamente suas concepções políticas a respeito do princípio da autoridade, da centralização e da descentralização e verificando as aproximações e distanciamentos com o modelo político Saquarema, configura-se um quadro conceitual que segue a seguinte linha de raciocínio: a) uma argumentação de cunho institucional; b) fundamentada numa interpretação de caráter literal da carta de 1824; c) que expressaria a defesa do princípio da autoridade, não mais entendido como a centralização nos termos do modelo do regresso; d) e que teria como resultado a garantia da liberdade constitucional, quer dizer, o pleno funcionamento do regime monárquico brasileiro. É possível perceber no discurso de Alencar claras influências da plataforma Saquarema, entretanto, o autor apresenta um conservadorismo particular, próprio do contexto do terceiro quartel do século XIX. Se para Joaquim Nabuco o pensamento do romancista cearense estaria fora do lugar, é possível também verificar, por outro lado, uma estreita relação entre suas ideias e as de seus predecessores saquaremas. Alencar não se absteve nos debates de sua época, seja como literato, deputado ou Ministro de Itaboraí. Alencar se inseriu em uma segunda geração conservadora, dialogou com o seu tempo, um outro tempo Saquarema. Com a onda liberal da década de 1870, a formação do Partido Republicano, e a campanha abolicionista, Nabuco ascende, enquanto os velhos defensores da ordem escravocrata e imperial vão perdendo poder. O ostracismo de Alencar no teatro refletia sua época, acompanhava a decadência dos saquaremas e o início do ocaso do Império.