WP 47 - Instituto de Sociologia

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IS Working Papers
3.ª Série, N.º 47
O sociólogo e o labirinto:
o que acontece quando os
objetos de estudo se
transformam em
perspetivas analíticas?
Pedro Martins de Menezes
Porto, janeiro de 2017
IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 47
O sociólogo e o labirinto: o que acontece quando
os
objetos de
estudo se
transformam em
perspetivas analíticas?
Pedro Martins de Menezes
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Email: [email protected]
Submetido para avaliação: dezembro de 2016 / Aprovado para publicação: janeiro de 2017
Resumo
Os últimos anos assistiram a uma revolução no campo das ciências sociais:
paulatinamente, os objetos de estudo da sociologia deixaram de ser meros temas
analisados por essa ciência e converteram-se em perspectivas analíticas autónomas
munidas de enfoque próprio. Ao se emanciparem da reificação do texto sociológico,
narrativas
objetivadas
pelas
ciências
sociais
viraram
olhares
objetivantes
independentes, e assim, os velhos assuntos da disciplina passaram a ser seus novos
rivais. Essa revolução que transmutou "pontos vistos" em "pontos de vista" foi recebida
por muitos como uma crise de esvaziamento do objeto que atestaria o fim das ciências
sociais. Traçando um panorama dessa conversão, este artigo intenta mostrar porque é
errado chamar tal mudança de crise, já que, ao invés de marcar o final da sociologia,
essa virada de página representa antes a sua renovação. Por isso, questionamos: se
estudamos a complexidade, como a complexificação de nossos objetos poderia nos
prejudicar?
Palavras-chave: teoria sociológica, estudos culturais, estudos pós-coloniais.
Abstract
The recent years have seen a revolution in the field of social sciences: gradually, the
objects of study of sociology are no longer mere subjects analyzed by this science and
became autonomous analytical perspectives provided with their own approach. When
emancipating themselves from the reification of the sociological text, narratives
targeted by the social sciences have become independent objectifying looks, and so,
the old issues of the discipline have become their new rivals. This revolution, which
has transmuted “viewed points” into “points of view”, has been received by many as
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a crisis of object emptying, which would attest the end of the social sciences. By tracing
an overview of this conversion, this essay intends to show how such a change cannot
be called a crisis because, instead of marking the end of sociology, this turn of page
rather represents its renewal. Therefore, we question: if we study the complexity, how
could the complexification of our objects harm us?
Key-words: sociological theory, cultural studies, post-colonial studies.
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1. O lado de dentro e o lado de fora
Todo professor que intenta ensinar uma disciplina aos seus alunos se vê diante de uma
bifurcação. Por um lado, ele pode se dedicar a explicar os mecanismos internos da
disciplina com seus métodos e seu regime de funcionamento. Por outro, pode o
professor se debruçar sobre os conteúdos da matéria, mostrando para os alunos os
objetos de estudo daquela ciência. Uma aula de história, por exemplo, pode tanto
versar sobre a historiografia, a teoria da história e a história interna da disciplina ao
fazer a exegese da obra de historiadores antigos como também pode traçar um
panorama da revolução francesa, da ditadura militar, da chegada do homem à lua, etc.
Por aqui, a fisiologia do corpus da matéria; por ali, os temas que aqueles mecanismos
se prestam a analisar. O lado de dentro e o lado de fora: eis a bifurcação.
Em A Literatura em Perigo, Todorov (2009) analisa essa cisão no campo francês das
letras. Para o autor, os estudos literários nos colégios e nas universidades francesas
estão enfatizando demasiadamente as categorias analíticas internas da teoria literária
em detrimento da leitura e da fruição das obras em si. Por abraçar o fisiologismo
cientificista dos conceitos literários, o ensino francês está fechando os olhos para o
objeto que essa teoria analisa, a saber, os livros e o mundo humano que eles tematizam.
Devido a essa assimetria, na visão do autor, a França vive uma inversão de prioridades
pedagógicas, uma vez que as categorias ganham uma prevalência em relação às coisas
por elas categorizadas: os princípios de organização e análise das obras passam a ser
mais importantes que as obras propriamente ditas e assim a ferramenta rouba o
protagonismo do trabalho que ela deveria estar só auxiliando. Por travarem um duelo
armados com a bainha ao invés da espada, os professores franceses acabam dando
relevância a um instrumento que tradicionalmente tinha uma função apenas
secundária. Como o meio se transforma em um fim, a citação eclipsa a fala, criando
um cenário em que se torna mais relevante empreender uma pesquisa oblíqua sobre a
coisa do que um estudo direto na coisa propriamente dita. Como o próprio Todorov
afirma, o andaime fica mais importante que o prédio; o que em termos práticos quer
dizer que a crítica e a teoria literária estão tomando um lugar antes ocupado pela
literatura. Ao analisar esse cenário, o diagnóstico do autor é categórico: faz-se
necessário inverter essa relação, colocando a crítica na posição auxiliar que lhe cabia
para que os livros e os mundos que eles ensejam voltem a ter a relevância que tinham
antes. Ao preferir os objetos e os temas em detrimento do estudo enciclopédico dos
princípios analíticos que os tematizam, diante da bifurcação, Todorov opta pelo lado
de fora ao invés do lado de dentro.
Como não poderia deixar de ser, o peso dessa dúvida também repousa no ombro do
sociólogo. Mas se Todorov sabe exatamente que lado da bifurcação tomar, o cientista
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social parece hesitar entre um caminho e outro. Essa vacilação, que pode ser tomada
como uma insegurança juvenil do pesquisador, é, na verdade, incutida pela própria
natureza da bifurcação sociológica. Se nas outras disciplinas as trajetórias do
funcionalismo interno e da tematização externa aparecem nítidas e bem apartadas, no
caso da sociologia pode-se dizer que elas se confundem ao se sobreporem
continuamente e se deixarem enredar uma na outra, abrindo caminhos vicinais. O
mais correto seria dizer que, ao contrário dos outros cientistas, nós não estamos
parados em uma bifurcação, mas sim deslizando continuamente na fita de Moebius.
Sozinho e perdido, o sociólogo parece estar preso em um labirinto de Borges onde o
minotáuro pode aparecer a qualquer momento.
Na maioria das disciplinas, ou a consolidação de um corpo conceitual sólido acabou
por direcioná-la para algum objeto, ou um determinado tema ou aspecto da natureza
criou a necessidade de um método que os estudasse (ainda que isso não seja
verdadeiro, parece ser assim que seus cientistas veem o quadro). No caso dessas
matérias, a crença na anterioridade de uma instância sobre a outra fez com que as
trilhas da bifurcação ficassem bem diferenciadas. Mas no caso da sociologia não se vê
essa precedência de uma coisa em relação à outra: nem a morfologia do nosso objeto
aguardou em estado de latência o surgimento das ferramentas analíticas que viriam a
estudá-la, e nem esse aparato metodológico se instrumentalizou antecipadamente
para construir um objeto tardio. Nem um nominalismo vazio, nem um fetichismo do
real; no nosso campo, a perspectiva sociológica e a silhueta do social que ela estuda se
construíram (e se constroem) reciprocamente, formando um circuito adiabático
autopoiético. Corpo que gira em torno do seu próprio eixo cavando com essa rotação
o oco onde ele mesmo se situa (Foucault, 2007) ou escrita que abre uma fenda
diferencial no meio de seu tecido fazendo com que o texto se derrame dentro dele
mesmo e só se deixe ler nessa queda (Derrida, 2008), a sociologia é uma narrativa onde
o ponto de vista e a coisa que ele vê se implicam mutuamente, cada um se construindo
na medida em que constrói seu duplo. Na mitologia das ciências sociais, chave e
fechadura se amolam de forma recíproca, sem que uma tenha aparecido antes da
outra: a fechadura não quer deixar a chave girar, mas essa insiste em se torcer dentro
do buraco de qualquer jeito, e assim, brigando uma com a outra, elas acabam se
polindo simbioticamente, adequando-se justamente porque rivalizam. Vivendo em
um universo simpático onde um generalizado parentesco xamânico aproxima todas
as instâncias, no exercício sociológico reina uma simultaneidade entre palavra e coisa:
o nome instaura o objeto que ele referencia e este faz com que reverbere o som daquela
voz.
Com isso não se quer dizer que a sociologia seja um corpo fora do mundo ou uma
narrativa que paira sobre as outras. Certamente, a sociologia está no mundo e com ele
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se media, mas também é correto dizer que, estando no mundo, ela constrói um outro
mundo seu dentro de suas fronteiras. Não seria correto afirmar que o mundo
sociológico repousa em um mutismo autocontido, pois as ciências sociais se deixam
influenciar pelo seu exterior, mas esse diálogo se dá em termos muito específicos:
pode-se dizer que o lado de fora informa a sociologia, mas, por causa da autopoiese do
seu tecido, não a enforma. As figuras "do lado de lá" podem ser vistas "do lado de cá",
mas elas não foram meramente espelhadas ou importadas, mas sim recriadas "aqui
dentro". Se é certo que o objeto externo influenciou o interno, não seria errado dizer
que essa construção de dentro também mudou o jeito com que se encarava o artefato
lá fora. Colocando o debate nesses termos, torna-se quase impossível dizer qual dos
dois é a matriz e qual é o duplo. As formas não são reproduzidas e copiadas, mas
produzidas e ressignificadas: as coisas se dão como se uma tradução muito especial
fosse feita, pois o idioma originário e o de destino não existiam antes que o exercício
do tradutor se iniciasse1. Sendo assim, o próprio ato de medição entre o interior e o
exterior rascunha a silhueta desses dois reinos. Em sociologia pode-se até discernir
uma divisória entre o lado de cá e o lado de lá, mas toda essa fronteira entre dentro e
fora parece se inscrever dentro.
Entre método e objeto sociológico impera um jogo metonímico de proximidade e
distância. Cada termo desta relação contém dentro de si mesmo a relação toda, ou seja,
o traço que diferencia um polo do binômio do outro se inscreve em cada um dos dois.
O espaço vazio que os distancia se marca em seus corpos, fazendo com que a alienação
exterior que os afasta também os aproxime ao se internalizar em suas morfologias. A
reciprocidade infinita desse espelhamento se realiza de tal jeito que "o que cada
elemento é" e "a relação que estabelecem entre si" passam a ser duas expressões que
designam a mesma coisa2. Por causa dessa continuidade simpática entre método e
objeto, o sociólogo nunca encontrou grandes dificuldades de elevar aquele à categoria
deste: objetivando-nos e exteriorizando nosso interior ao nos debruçarmos sobre nós
mesmos, os cientistas sociais sempre fizeram do tema de suas análises o
funcionamento interno da sua disciplina ao proporcionarem um deslizamento do lado
de dentro para o lado de fora que cada vez mais confundia os caminhos da bifurcação,
transformando-a num labirinto ainda maior.
1
"Nessa concepção, os polos binários do 'sentido' e do 'não sentido' são constantemente arruinados pelo processo mais
aberto e fluido do 'fazer sentido na tradução'" (Hall, 2003: 37).
2
Como diz a canção de Caetano Veloso: "e éramos olharmo-nos, intacta retina". Ou seja: o que cada um de nós é apenas
o ato de olharmos um para outro. Eu olhando para você e você olhando para mim é o que sou eu e o que é você. A
distância que nos separa é também a morfologia que nos constitui, sendo assim também o elo que nos aproxima. Mas
se o que somos é nos olharmos, então não somos coisas, mas relações, por isso a retina está intacta: não são coisas que
se olham, mas olhares que se olham, espelhos que se refletem mutuamente gerando corredores infinitos que levam
tanto ao "eu" quanto ao "outro".
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Como o ponto de vista e a coisa observada se construíam reciprocamente, era
relativamente fácil fazer a fisiologia da visão ocupar a posição da morfologia do
visível: os métodos viravam nosso objeto. Mas algo inesperado acabou acontecendo:
ao deixar essa porta aberta, o sociólogo deixou de notar que esse era um caminho de
mão dupla; então se os métodos podiam virar objeto, os objetos também podiam virar
métodos. O exterior acabou entrando e uma crise nas ciências sociais foi desencadeada.
Paulatinamente, os objetos de estudo da sociologia deixaram de ser meros temas
analisados por essa ciência para se converterem em perspectivas analíticas autónomas
munidas de enfoque próprio. Ao se emanciparem da reificação do texto sociológico,
narrativas
objetivadas
pelas
ciências
sociais
viraram
olhares
objetivantes
independentes. A crise parecia ser de muitas naturezas: (1) os velhos objetos entrariam
no corpo interno da sociologia alterando a epistemologia desse saber; (2) depois dessa
conversão, a sociologia iria se transformar em uma ciência sem objeto condenada ao
desaparecimento; (3) os velhos objetos recém-autonomizados se transformariam em
novas ciências que concorreriam com a sociologia na análise do social e provavelmente
ela desapareceria por não vencer a disputa. Se antes "negros", "gays", "mulheres" e
"culturas exóticas" eram objetos da sociologia, agora "relações interétnicas", "teoria
queer", "gênero" e "pós-colonialismo" se tornavam perspectivas a ser consideradas3.
Do mesmo jeito que os métodos viravam temas, os temas viraram métodos:
processada a revolução, “pontos vistos” passaram a ser “pontos de vista” e
aparentemente nada seria como antes. Não conseguíamos sair do labirinto e o
minotáuro nunca pareceu estar tão perto.
2. Que crise é essa?
Passado o susto inicial provocado por essa crise polissêmica, é chegada a hora de nos
perguntarmos: essa revolução seria de fato uma crise? Talvez o que nós estejamos
vivenciando atualmente não possa ser chamado de crise e as razões para isso são as
seguintes: (1) depois de operada a revolução acima descrita, a sociologia certamente
nunca mais será a mesma, mas isso não quer dizer que ela vá acabar. (2) A conversão
de objetos em perspectivas trará mudanças que, além de não representarem o fim da
sociologia, podem até fazer com que a disciplina evolua epistemologicamente. Dito de
3
Não podemos acreditar que essa mudança se operou apenas porque negros, mulheres, gays e latinos começaram
entrar nos cursos de ciências sociais (por isso as aspas). Para que uma revolução dessa se operasse, só pode ter havido
um forte movimento analítico junto com esse deslocamento demográfico. O estudo da conversão de agendas temáticas
em perspectivas científicas deve considerar o perfil dos alunos e professores, mas essa não é a única variável da
questão.
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maneira direta: nós não apenas sobreviveremos como ainda sairemos fortalecidos.
Dessa forma, além de não ser ruim, a "crise" é boa.
Algumas coisas devem ser consideradas. A impossibilidade de afirmarmos quando se
deu a aurora do conhecimento e que momento marcará seu crepúsculo faz com que a
ciência, ao invés de cronológica, tenha um caráter mítico. Se assim o é, podemos
afirmar que o conhecimento não descreve uma trajetória retilínea, mas circular. O
próprio fato de experimentarmos essa jornada não como um ciclo mas de maneira
teleologicamente progressiva como se ela fosse uma flecha que rasga o ar em linha reta
é algo que considero fazer parte do acento emancipatório dessa narrativa. É lógico que
os conteúdos não se repetem, mas a silhueta dos deslocamentos estruturais sim:
retrocedendo um pouco na história (ou o melhor seria dizer "girando o circuito ao
contrário", já que temos aqui um ciclo e não uma reta) podemos lembrar que há bem
pouco tempo aquilo que os sociólogos chamam de social era um outro objeto analisado
pela filosofia e pela literatura (cf. Lepenies, 1996). Nessa época, antes de se saber um
cientista social, essa figura do passado era um "homem moderno da virada do século"
objetivado pela crônica e pela filosofia de sua época como alguém dividido entre uma
vida mental solitária sem sentido e um mundo em transformação que o convocava
para a participação excitando-o e o frustrando ao mesmo tempo. Quem é o sociólogo
senão esse homem urbano, ativo e angustiado sobre quem os livros falavam? Como se
pode ver, o personagem da literatura e da filosofia da virada do século virou o sujeito
da sua própria narrativa. A sociedade, objeto que era exclusivamente analisado por
literatos e filósofos, teria um novo narrador que, saído diretamente de suas entranhas,
estava agora também disposto a estudá-la. Certamente que esse deslocamento
provocou mudanças e desconfortos na literatura e na filosofia e vários resgates
históricos de fato mostram o sentimento de rivalidade que aqueles neófitos
despertaram. Depois de operada a revolução, é certo que a filosofia e a literatura se
sentiram ameaçadas e realmente o evento fez com que elas mudassem bastante,
absorvendo elementos da nova narrativa e também lhe emprestando alguns dos seus;
mas seria de um absurdo risível afirmar que a sociologia matou (!) a literatura e a
filosofia. Mesmo com todo o abalo, a rivalidade e as alterações profundas que o
aparecimento da ciência social causou nos textos que a antecederam, não se pode nem
mesmo falar que depois do susto elas saíram enfraquecidas. É possível afirmar que a
filosofia e a literatura têm hoje menos prestígio e qualidade por causa do aparecimento
da sociologia? Acredito que não. Mais fácil seria defender a tese contrária: a de que a
insurgência sociológica enriqueceu os romances e os textos filosóficos, fazendo com
que esses marcassem posição, se diferenciassem e agregassem novos elementos. Como
se disse, a vida desses escritores ficou mais complicada, a rivalidade aumentou, mas
não se viu uma queda nem muito menos um desaparecimento. No fim das contas,
mais nuançado por ter ganho um novo ponto de vista que salientasse sua
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complexidade, quem saiu enriquecido dessa disputa foi o próprio social, objeto de
todas essas narrativas.
Quanto mais giramos ao contrário nosso disco mitológico, mais nos deparamos com
essas situações em que textos antes objetivados passam a escrever suas próprias
narrativas e a rivalizar com os discursos que antes os reificavam. Assim como objetos
sociológicos se converteram em perspectivas científicas ou, ante disso, o "homem
moderno" da literatura e da filosofia se transformou no sociólogo que somos, o
entretenimento que sempre fora tema de outras ciências começou a desenvolver sua
própria hermenêutica interna acerca de si e de outras coisas; as cidades, a arquitetura
e urbanismo, assunto monopolizado por poetas e filósofos, elaborou um discurso
nativo sólido que, de artistas trancados em ateliês, os profissionais dessa área se
transformaram tanto em intelectuais do contemporâneo quanto em gestores técnicos
aptos a ocupar cargos públicos. Como se pode ver, desde que o homem desafiou os
deuses e deixou de ser um simples mortal para se transformar no dono de sua própria
história que vemos os textos se libertarem das canetas que os escreviam para que
pudessem assim, transmutados de textos em canetas, escrever suas próprias narrativas
sobre si mesmos e sobre outras assuntos. No mito do conhecimento, falar sobre algo é
uma etapa logo superada, pois em pouco tempo o algo começa falar sobre si e sobre
outro algo que um dia se libertará também. Essas insurgências geram mal estar,
rivalidades e mudanças profundas nos velhos criadores, mas de forma alguma
significam perda de qualidade ou muito menos a morte dessas matrizes. Ao invés
disso, a competitividade inaugurada pela rebelião do objeto aprimora os veteranos ao
gerar polissemia, diferenciação e complexidade.
Como se pode ver, o mito da ciência é diferente do mito do ramo de ouro. Assim como
em Apocalipse Now, na história narrada por Sir James Frazer (2010) o guardião do ramo
é morto por aquele que o sucede, já sabendo o assassino que um dia será ele o imolado
por alguém que ocupará seu lugar. A um só tempo mortífero e batismal, o gesto do
recém-chegado aniquila e liberta o veterano. No momento da troca de guardas não
deve haver pena, desculpas ou dor, pois todos os assassinatos são também um único
suicídio: matando o velho, o jovem se compromete a morrer no futuro. Todos os
guardiões são o mesmo guardião que nasce e morre continuamente. No caso da ciência
os guardiões vão se somando ao invés de se substituírem. A cada chegada os velhos
devem se adaptar ao estilo dos novos e vice-versa. Como os novatos nunca param de
chegar, as sentinelas devem ficar em um estado de vigilância eterna, sempre se
modificando para garantir seu traço diferencial em um espaço que continuamente vai
diluindo os monopólios. Apesar de haver coexistência ao invés de sucessão, o cenário
da ciência não é muito mais pacífico que o do ramo de ouro ou do Vietnam de Coppola:
nenhum novo guardião nos matará, mas todos nos obrigam a nos repensarmos. Os
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textos não evaporam, mas vivem em um estado de ameaça crescente. Ao contrário dos
outros mitos, na ciência não há morte, mas também não existe redenção. O labirinto
vai ficando cada vez maior e minotauro cada vez mais próximo.
Além de tudo o que se falou até aqui, também não se pode perder de vista que, muitas
vezes, uma insurgência interna não quer derrubar os muros que a contêm, mas
simplesmente saltá-los. Sendo assim, não é porque essas novas perspectivas um dia
foram objetos gestados no seio da sociologia que agora, autonomizadas enquanto
pontos de vista, elas irão se prestar a corroer sua matriz. Quem sabe até o
fortalecimento dessas novas ciências se transforme em um elogio à origem sociológica.
Ainda que se emancipem cada vez mais, a mancha de sangue da sociologia estará
inscrita nos corpos dessas matérias, e desse jeito, quanto mais se espalharem, mais
longe farão nossa disciplina chegar. Dito de uma maneira mais concreta: figuras como
Judith Butler ou Homi Bhabha estão longe de ser sociólogos típicos usando uma
gramática antropocentrada que se debruça sobre uma clara morfologia social, mas eles
certamente contribuíram muito para a sociologia. Primeiro conteudisticamente, uma
vez que suas obras são constantemente lidas e apropriadas por cientistas sociais. Além
disso, ainda que sua prédica acerca do gênero e do culturalismo fuja da matriz
sociológica que a possibilitou, o rastro da fuga desses insurgentes funciona também
como uma esteira onde desliza o texto das ciências sociais. Correndo para longe de
nós, Butler e Bhabha deixam pegadas que conduzem seus leitores para dentro da
sociologia. Ao esbarrar com esses autores, o leitor começa a andar no sentindo
contrário ao deles, refazendo aquele percurso até chegar ao labirinto sociológico de
onde os autores correm. A rota de fuga por onde os insurgentes vão é a mesma trilha
errática por onde os novos cientistas vem. Quanto mais longe eles chegam, mais
pessoas entram em contato com esse mapa. Como esse fio de Ariadne só se desenrola
para que outro o enrole novamente, a roda do mito nunca para de girar. O eco distorce
o grito originário, mas também faz com que ele seja ouvido mais longe. É sobre essa
questão que nos fala Borges (2007) em seus estudos sobre Kafka: lá o autor afirma que,
ao usá-las e as sistematizar em seus textos, todo escritor instaura suas influências, pois,
se não estivessem elas ali secundadas naquela obra, essas influências não teriam sua
anterioridade salientada4. Assim como Kafka presentifica seus mestres ao atualizá-los
4
Semelhante a essa perspetiva é a abordagem de Gregory Bateson do ritual Naven dos Iatmul (2008). Para o autor, o
Naven não é uma maquete nem uma microestrutura da sociedade, mas um metacomentário que a instaura. No Naven
a sociedade se comenta e se duplica e ao mesmo tempo se constrói. O ritual é um espetáculo de origem e espelhamento,
de produção e reprodução. Outro exemplo de uma narrativa que fortalece os muros que a contêm é a aquela instaurada
pela relação entre dádiva e vida em Mauss (2005): por um lado, a dádiva acontece dentro da sociedade, por outro, é
ela mesma a mola mestra que gera essa sociedade que a abarca, conformando-se assim como força criadora e artefato
criado. Essa mesma tendência estava marcada na noção de “suplemento originário” da Gramatologia de Derrida:
projeto intelectual do pensador argelino que objetivava tecer uma crítica a “metafísica da presença” criando uma
filosofia não centrada na ideia de homem. Um suplemento originário é algo impensado, pois um suplemento é aquilo
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na sua prosa, esses antigos “objetos” sociológicos agora donos de seus pontos de vista
salientam a autoridade epistemológica das ciências sociais ao elaborarem um discurso
que a referencia sem precisar sê-la. Por final, o ineditismo de Bhabha e Butler assusta
o sociólogo veterano, obrigando-o a repensar seu trabalho à luz dessas contribuições;
afinal, toda novidade é um novo texto com o qual temos que mediar o nosso.
Eu não queria que o otimismo com que vejo a conversão de objetos de estudo em
perspectivas científicas me aproximasse de uma etnometodologia, porque foi
justamente o contrário o que quis se pregar aqui. Enquanto essa escola (?) defende o
realismo de uma concretude empírica que deve ser atingida através da limpeza de
uma sujeira simbólica, esse ensaio intentou salientar a relevância que existe quando
elementos tratados como coisas se transformam em vozes capazes de ensejar seus
próprios discursos. O ponto do texto foi justamente sublinhar as vantagens
epistemológicas que existem quando a natureza se desnaturaliza e os objetos
estanques viram fluxos velozes. Enquanto os etnometodólogos pregam o
enxugamento, aqui se defendeu a polissemia. Não se trata aqui de varrer uma
folhagem simbólica para acessar o âmago de uma coisa, mas depositar novas camadas
geológicas de narrativas sobre as outras já colocadas. Enquanto uns preferem prender
o fluxo em uma moldura, nós preferimos manter girando a roda do mito.
O movimento que fez os temas da sociologia se converterem em pontos de vistas
independentes que com ela concorrem na análise do social acabou com uma relativa
tranquilidade que a sociologia tinha. Se antes tínhamos o monopólio discursivo acerca
de um determinado objeto, agora ouvimos vozes paralelas tomando conta dessa
morfologia. Sem dúvida alguma esse estado de coisas tornou o ofício sociológico mais
penoso e complicado, mas de jeito nenhum isso representou uma queda do nível da
sociologia ou muito menos o seu fim. Ao invés disso, tendo que se mediar com outros
textos, é mais provável que essa concorrência enseje uma sociologia ainda mais
complexa e responsável. Antes de reclamarmos que está muito complexo se fazer
ciência, devemos nos lembrar que a melhor ciência não é a que se faz em seu centro de
conforto, mas sim aquela que trabalha no limite. Como a história da disciplina nos
ensinou, a sociologia não nasce da estabilidade, mas da angústia, sendo assim, melhor
ainda se a angústia for interna.
que, por definição, se agrega a uma origem que o antecedeu, mas é justamente nessa inversão que reside o revisionismo
de Derrida: “O mortal redobramento-desdobramento representativo constituía o presente vivo, sem acrescentar-se
simplesmente a ele; ou antes, o constituía, paradoxalmente, acrescentando-se a ele. Trata-se, pois, de um suplemento
originário, se se pode arriscar esta expressão absurda, inteiramente inaceitável numa lógica clássica. Ou antes,
suplemento de origem: que supre a origem desfalecente e que, contudo, não é derivado; este suplemento é, como se
diz de uma peça, a origem”. (Derrida, 2008: 383).
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Talvez eu esteja errado e, de fato, essa transubstanciação de temas em perspectivas
marque o fim das ciências sociais. Se este for o caso e o mito da ciência for como o de
Frazer e o de Coppola, eu, estudante apaixonado pela profissão, irei lamentar
profundamente, mas não posso dizer que essa terá sido uma revolução injusta, já que
essas narrativas insurgentes só estarão proclamando a independência que nós um dia
conquistamos pelas mesmas vias. É claro que nós devemos lutar pela permanência e
pelo prestígio de nossa ciência, mas desde que isso não signifique calar as vozes que
concorrem com a nossa. Desde Bourdieu nós sabemos que o campo científico é um
espaço de lutas5 (Bourdieu, 1990 e 2007), mas isso não quer dizer que elas tenham que
ser desleais. O papel é feito do mesmo material que o lápis e por isso ele sonha em
deixar de ser aquela superfície branca sobre a qual se escrevem textos para se tornar
uma ferramenta que rascunha suas próprias teorias. Todo ponto visto tem o direito de
se tornar ponto de vista, toda narrativa objetivada tem o direito de objetivar. Um dia
os sociólogos se beneficiaram dessa regra, agora parece ser a vez de outras províncias
de significado abrirem a boca. Tentar gritar mais alto que elas é uma coisa, amordaçalas é outra. Quando o minotauro aparecer, não devemos atacá-lo, mas apenas fechar
os olhos e rezar para que ele seja rápido.
Conclusão
Em sua análise sobre o problema da autoria, Roland Barthes nos explica o que há de
realmente trágico na tragédia grega. Para o autor, em uma tragédia tudo possui um
duplo sentido, mas os personagens enredados na trama só captam um lado dessa
duplicidade. Dessa forma, toda vez que circula a informação, circula também o
equívoco, já que aquilo que se omite vai deslizando invisível sobre o que é dito de um
modo tal que as metades desse arranjo só se juntam para os personagens tarde demais,
quando a desgraça irremediável promovida por aquele mal-entendido já foi
consumada. Mas, para Barthes, se os personagens só veem metade do cenário, o leitor,
contrariamente, tem a dimensão completa da tragédia desde o início do relato. Por isso
5
“O universo social é o lugar de uma luta para saber o que é o mundo social. A universidade também é o lugar de uma
luta para saber quem, no interior desse universo socialmente mandatário para dizer a verdade sobre o mundo social
(e sobre o mundo físico), está realmente (ou particularmente) fundamentado para dizer a verdade. Essa luta opõe os
sociólogos e os juristas, mas também opõe os juristas entre si e os sociólogos entre si. Intervir enquanto sociólogo
significava evidentemente ser tentado a usar a ciência social para se colocar como árbitro ou juiz nessa luta, para
distribuir erros e acertos. Em outros termos, o erro estruturalista, que consiste em dizer: ‘eu sei mais do que o indígena
o que ele mesmo é’, esse erro era a tentação por excelência para alguém que, sendo sociólogo e, portanto, inscrito em
um campo de luta pela verdade, adotava como projeto dizer a verdade desse mundo e dos pontos de vista opostos
sobre esse mundo.” (Bourdieu, 1990: 116).
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uma angústia oriunda da certeza de que tudo vai dar errado acompanha a leitura da
obra. Essa é a diferença do terror para a tragédia: no terror nós sabemos tanto quanto
o personagem, por isso assustamo-nos (com ele) quando o mal se abate. Na tragédia
nós sabemos mais que o personagem, por isso ficamos agoniados em ver as pessoas
insistindo ingenuamente no erro sem podermos fazer nada para evita-lo, (trata-se
daquele espetáculo ridículo de ficar em pé na frente da televisão gritando para a
mocinha que vira a chave da porta que trancava o monstro: "Não entra aí não, sua
burra!"): um dá medo, o outro, desespero.
Barthes evoca esse arranjo trágico formado pela cegueira do personagem e a
onisciência de quem lê para defender sua tese de que a unidade do relato só se faz no
leitor: é no leitor que reside o monismo de uma narrativa, pois é somente nele que as
pontas soltas do texto se encontram para fazer um sentido unívoco. Do autor os fios
se irradiam, ao longo da obra eles se espalham, se cortando confusamente na
ignorância dos personagens para que, apenas na leitura, tudo se amarre
harmonicamente em um monolito discernível.
O argumento de Barthes é muito interessante, mas se tentarmos estendê-lo em um
modelo de longa duração o problema se mostrará mais complicado. Ora, nenhum
leitor é apenas um leitor. Depois de conformar harmonicamente dentro de si todos
aqueles “nós” numa morfologia unitária, o leitor irá produzir o seu argumento sobre
aquele conhecimento simetricamente organizado, abandonando assim a posição
contemplativa que ocupava para começar a produzir sua própria narrativa; dessa
maneira, o leitor se transforma em autor e o monismo é desfeito já que as pontas
voltam a se soltar mais uma vez. Esse processo não tem fim nunca: o leitor de hoje é o
autor de amanhã que será lido por alguém que em breve escreverá seu próprio texto e
assim eternamente. Como se pode ver, os fios só se deixam amarrar por um tempo
infinitesimal que se dissipa assim que o leitor fecha o livro do outro e começa a
escrever o seu. Assim são as coisas no mito da ciência: cansado de ler um texto escrito
sobre ele, o leitor se transforma em autor e fala em nome de si mesmo e de novos
outros que em breve irão rebelar-se também. Assim que se amarram, os fios já
começam a desatar de novo. Um dia o sociólogo foi esse insurgente, hoje parece que
ele é o ortodoxo. Tudo agora é mais difícil, delicado e perigoso, mas aqui se faz
necessário interrogar: desde o começo não foi isso o que movimentou nossa profissão?
Se a polissemia sempre nos alimentou, como é que essa conversão pluralista de temas
de estudo em perspectivas analíticas pode nos matar? A existência d'O Outro sempre
justificou a nossa: era porque havia objetos a serem estudados que deveria haver um
sociólogo que os estudasse. Pois se os objetos agora estão maiores e mais complexos,
que esse fortalecimento dos temas sirva de respaldo para um simétrico
engrandecimento da ciência que os estuda. "Tudo agora é mais complexo": que bom
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para o sociólogo, que toma a complexidade por sua razão de ser e seu objeto de
trabalho.
Como se sabe, uma crise se caracteriza por um momento passageiro de instabilidade.
Ora, mas se a instabilidade e a ambivalência são o quadro perene da sociologia, como
podemos dizer que atravessamos uma crise? Se as crises são por definição efêmeras, o
caráter dramático do sociólogo, por ser eterno, não pode ser chamado de crise. Se esse
perigo é permanente e não passageiro, ele não é uma crise, mas uma natureza. Apenas
na angústia, na complexidade e no pluralismo é que a sociologia escreve seu texto. Se
nós repousamos na própria continuidade do perigo fazendo do risco o nosso abrigo,
então quanto maior ele for melhor para nós. Com muitas vozes a realização do
trabalho torna-se dificil, mas com nenhuma ele é impossível. Várias rotas tornam a
viagem difícil, mas sem rota não há viagem. Por causa dessa concorrência, está muito
difícil produzir sociologia, mas a simplicidade sempre foi para nós um deserto.
Dito de maneira conclusiva: os antigos objetos de estudo da sociologia se converteram
em novas e autônomas perspectivas analíticas. Diante desse cenário, duas visões
opostas surgem: (1) para uns essa revolução representa uma crise que esvazia o objeto
da sociologia e cria uma concorrência com a qual ela não consegue lidar. (2) Para
outros essa transubstanciação pode ser muito benéfica; se os temas antes
“controlados” agora se libertaram como pontos de vista independentes, deve a
sociologia deixar de estudar aquelas velhas matérias congeladas e tomar por objeto
justamente esse processo de autonomização através do qual antigos objetos se
convertem em novas ciências. Primeiro estudávamos “pontos vistos”, depois esses
“pontos vistos” começaram a se transformar em “pontos de vista”, pois então agora
cabe a nós estudarmos essa transformação. O objeto se complexificou e esse
movimento obrigou a ciência que o estudava a se complexificar também. O que para
uns é crise, para outros é progresso. É a essa segunda perspectiva que esse texto se
filia.
Toda ciência está preocupada em se renovar, mas o tempo está mostrando que é
equivocado pensar que a renovação científica só pode ser conduzida pelo corpus
interno da disciplina. Como o caso aqui trazido demonstra, não é absurdo crer que
uma direção tomada pelo objeto possa empurrar os mecanismos interiores da ciência
no mesmo rumo. Não se trata aqui de “adotar o ponto de vista do outro” ou “buscar
uma teoria nativa”, pois nunca se consegue ver o mundo de outra perspectiva que não
seja a nossa, mas sim de deixar o “objeto” livre para se desenvolver e trilhar seu
próprio caminho para que em seguida possamos acompanhá-lo na sua caminhada.
Não é o caso de transformamos nosso olhar no olhar do outro (acreditar-se capaz desse
salto é a maior das presunções científicas), mas de mediarmos nosso olhar com o olhar
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do outro. Cada um continua a ocupar a mesma posição de antes, mas agora os que se
julgavam apenas condutores passam também a se deixar conduzir.
Ao longo da sua história, as ciências sociais desenvolveram um conceito muito próprio
de diversidade. A disciplina sempre lidou bem com o fato de que existem muitas
singularidades, mas nunca abriu mão da ideia de que só há uma única pluralidade que
arregimenta todas aqueles elementos. Ou seja: as singularidades estavam no plural,
mas a pluralidade estava no singular. Ainda que outros agentes tivessem sua
existência reconhecida, parece que só a sociologia poderia ensejar o modelo que
organizaria a todos. Os tipos, as especificidades e as idiossincrasias eram
contempladas, mas desde que se conformassem dentro do conjunto forjado pela
ciência que as enxergou. Com isso, foi-se desenvolvendo uma visão muito limitada de
relativismo em que as outros eram vistos, mas não podiam ver; ou seja: os outros eram
reconhecidos, mas reconhecidos como "outros objetos" e nunca como "outros sujeitos".
Como muitas singularidades existiam mas só uma delas se fazia apta a montar o
arranjo que sistematizava todas, o que se tinha era uma globalidade localmente
forjada; quer dizer, uma diversidade e uma multiplicidade derivadas de um único
discurso. Sendo assim, não havia uma história escrita "por todos nós", mas sim uma
narrativa "sobre todos nós" escrita por uma única caneta.
Essa virada epistemológica tematizada nesse artigo mostra como essas canônicas
noções de "relativismo" e "diversidade" não são suficiente para explicar a
complexidade do problema da cultura no mundo de hoje. O debate sobre "os outros"
chegou a um nível muito mais elaborado em que não basta que as culturas "sejam
vistas", é preciso também que elas "vejam". Essa nova agenda começou a aparecer
quando as "outras culturas" deixaram de se alegrar em ser mais um elemento
contemplado por um único discurso e começaram a questionar o monopólio dessa
narrativa unívoca que parecia ser a única habilitada a reunir todas as multiplicidades
em uma mesma unicidade por ela construída. A partir daí, foi sendo elaborado um
nova ideia de polissemia em que as singularidades não se conformavam mais em se
espremer em uma pluralidade única ensejada por uma delas e começaram a tentar
criar suas respectivas generalizações. Ao invés de adentrarem em um esquema
engendrado por outros, essas culturas passaram a forjar seus próprios esquemas. Para
que se contentar em ser mais um elemento contemplado por um conjunto que a todos
nivela se você pode sugerir seu próprio conjunto? Para que se alegrar em ser mais um
ponto visto por um único ponto de vista se cada um pode ser dono de seu respectivo
pontos de vista? “Você” concebe uma diversidade que me olha como um “outro”, mas
poderia você ser o “outro” da diversidade que tem a mim como um “eu”? Como foi
dito anteriormente, passou-se a exigir um novo nível de simetria cultural em que não
bastava que todos fossem vistos, mas sim que todos pudessem ver. Para que o debate
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adentrasse essa nova era, viu-se que era necessário abandonar aquele estágio em que
uma única localidade propunha a globalidade que reunia todas para que se atingisse
o nível em que cada localidade pudesse construir a sua respectiva globalidade. Nem
deixar que contem a nossa história nem agradecer quando “deixam” que contemos o
nosso relato de uma história protagonizada por eles, mas sim darmos a nossa versão
dos fatos construindo as generalizações que são próprias a nossa singularidade. Há
muito tempo se diz que existem muitas singularidades, mas a questão é: quantas
pluralidades podem existir? Aparentemente o relativismo de hoje não nos dará essa
resposta. Só quando pararmos de festejar o crescimento dos vários galhos diferentes e
começarmos a olhar criticamente para o caule único que os sustenta deixaremos de ter
um polo irradiador de polissemia e aí então cada ponto poderá ser o centro da sua
respectiva onda polissêmica. Para que a multiplicidade possa ser contada pelo prisma
dos múltiplos e os diversos se vejam habilitados a diversificar é preciso seguir a
sugestão de Home Bhabha e "tocar o futuro pelo lado de cá" (2013).
Se por um lado eu sou um latino-americano que sonha com a chegada dessa "nova
diversidade", por outro eu sou um sociólogo que deseja que a sua disciplina ainda
exista por muitos anos. Sendo assim, esse não é de forma alguma um artigo contra a
sociologia ou nem mesmo uma crítica a ela. Muito pelo contrário: o que se quis aqui
(de maneira muito humilde e ineficiente) foi chamar a atenção para o fato de que os
ventos estão mudando e é preciso que nós estejamos atentos a essas mudanças. Já que
o que eu quero é que a sociologia esteja em sintonia com as novas agendas, pode-se
dizer que meu objetivo aqui foi o de defender essa ciência, mostrando como esses
novos tempos podem ser até frutíferos para ela, caso ela se adapte a eles. Se isso
acontecer, talvez a sociologia possa existir por muito mais tempo, coexistindo com
essas outras narrativas. E isso é tudo o que eu quero.
Tomar por objeto o recente processo de desobjetivação pelo qual os objetos passam
não precisa ser entendido como uma manobra do sociólogo para manter seus temas
“sob controle”, uma tréplica do cientista para continuar com a última palavra, mas sim
como uma abertura para um novo tipo de desenvolvimento científico em que
propostas analíticas e teorias nativas se arrastam reciprocamente, construindo-se de
forma mútua numa escalada sem fim. Aqui a teoria não segue o objeto para encerrar
a questão, pois um vai continuar conduzindo e sendo conduzido pelo outro por
caminhos ainda não traçados. Ainda que a assimetria da dominação insista em
aparecer e essa equivalência pareça uma quimera, é sempre importante pensar teoria
e objeto mais como um arranjo simbiótico do que como uma oposição apartada. Como
se esboçou na metáfora da chave e da fechadura, análise e tema se assentam em uma
ambivalência: se por um lado tensamente rivalizam, por outro mutuamente se
adequam. Se o que temos é um arranjo e não uma bipolaridade, é preciso que a rota
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traçada pelo modelo teoria/objeto seja negociada entre as duas ao invés de
determinada por uma e obedecida pela outra. Tensionando-se em harmonia, teoria e
objeto se empurram mutuamente em uma espiral infinita, cada um levando seu duplo
mais longe na medida em que tenta deslocar a si mesmo. Uma cortina sempre insistiu
em separar a sociologia de seus temas: do lado de cá da cortina, o “cientista” aprendia
que o sujeito objetivante deveria se objetivar6 (Bourdieu, 1990); do lado de lá, olhando
a cortina pelo avesso, o “nativo” descobriu que o objeto objetivado precisava se
subjetivar. Finalmente, uma fresta na cortina começa a se abrir.
Ao dizer que uma ciência e seu tema se definem mais por seu mutualismo do que por
suas diferenças, não se quis aqui de forma alguma limpar o sangue que mancha essa
história e pintar um quadro falsamente harmonioso dessa relação (até porque, na
condição de estudante latino-americano de sociologia, eu não sei em que lado dessa
balança eu estou), mas sim mostrar em que tipo de crença essa assimetria se assenta e
apontar para outros regimes que, se não são hoje possíveis, podem ser no mínimo por
hora especulados. No mito desse “contato”, a ciência sempre progrediu enquanto o
objeto só se erodia; nesse texto não se quis suavizar ou negligenciar essa relação, mas
repensá-la a partir desse desequilíbrio.
Se o que temos é um arranjo que mutuamente se constrói e não uma oposição que
reciprocamente se anula, a complexificação do objeto não deve ser lamentada como a
crise da ciência, mas celebrada como o avanço de ambos. Há muito tempo nossa
"bifurcação" já tinha mais de dois caminhos e nós conseguimos chegar até aqui; agora
que novas rotas vêm rasgar essa encruzilhada nós não devemos nos sentir perdidos,
mas sim renovados. A pluralidade dos percursos não nos confunde, mas nos orienta.
Não há por que fugir do labirinto para ir para casa porque o labirinto é a nossa casa.
Depois de vasculhar todas as galerias e perceber que o labirinto está vazio, o sociólogo
se da conta de que, na verdade, o minotauro era ele.
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“A partir do momento em que observamos o mundo social, introduzimos em nossa percepção um viés que se deve
ao fato de que, para falar do mundo social, para estuda-lo a fim de falar sobre ele, etc., é preciso se retirar dele. O que
se pode chamar de viés teoricista ou intelectualista consiste em esquecer de inscrever, na teoria que se faz do mundo
social, o fato de ela ser produto de um olhar teórico. Para fazer uma ciência adequada do mundo social é preciso, ao
mesmo tempo, produzir uma teoria (construir modelos, etc.) e introduzir na teoria final uma teoria da distância entre
a teoria e a prática. (...)Uma das coisas mais frequentemente esquecidas é que qualquer pessoa que fale sobre o mundo
social deve contar com o fato de que no mundo social fala-se do mundo social, e para ter a última palavra sobre esse
mundo; que o mundo social é o lugar de uma luta pela verdade sobre o mundo social.” (Bourdieu, 1990: 115, 116).
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Referências Bibliográficas
Barthes, Roland (2004). O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes.
Bateson, Gregory. (2008). Naven. São Paulo: Edusp.
Bhabha, Homi K. (2013) O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG.
Borges, José Luís (2009). Outras inquisições. São Paulo: Companhia das Letras.
Bourdieu, Pierre (1990). Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense.
Bourdieu, Pierre (2007). A distinção. São Paulo: Zouk, Edusp.
Derrida, Jacques (2008). Gramatologia. São Paulo: Perspectiva.
Frazer, James George (2010). The golden bough. Penguin.
Foucault, Michel (2007). As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes.
Hall, Stuart (2007). Da diáspora. Belo Horizonte: UFMG.
Lepenies, Wolf (1996). As três culturas. São Paulo: Edusp.
Mauss, Marcel (2005). Sociologia e antropologia. São Paulo: CoscacNaify.
Todorov, Tzvetan (2009). A literatura em perigo. São Paulo: Difel.
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IS Working Paper, 3.ª Série, N.º 47
IS Working Papers
3.ª Série/3rd Series
Editora/Editor: Paula Guerra
Comissão Científica/ Scientific Committee: João Queirós, Maria Manuela Mendes,
Sofia Cruz
Uma publicação seriada online do
Instituto de Sociologia da Universidade do Porto
Unidade de I&D 727 da Fundação para a Ciência e a Tecnologia
IS Working Papers are an online sequential publication of the
Institute of Sociology of the University of Porto
R&D Unit 727 of the Foundation for Science and Technology
Disponível em/Available on: http://isociologia.pt/publicacoes_workingpapers.aspx
ISSN: 1647-9424
IS Working Paper N.º 47
Título/Title
“O sociólogo e o labirinto: o que acontece quando os objetos de estudo se
transformam em perspetivas analíticas?”
Autor/Author
Pedro Martins de Menezes
O autor, titular dos direitos desta obra, publica-a nos termos da licença Creative Commons
“Atribuição – Uso Não Comercial – Partilha” nos Mesmos Termos 2.5 Portugal
(cf. http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/2.5/pt/).
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