AngelitaSouza Imperialismo

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32º Encontro Anual da ANPOCS
GT 24: Marxismo e Ciências Sociais
―Imperialismo, dependência e capitalismo associado‖
Angelita Matos Souza
10/2008
Imperialismo, dependência e capitalismo associado
Resumo
O texto será dividido em duas partes. Na primeira, nosso objetivo é a abordagem de
temas relacionados à problemática do imperialismo e da dependência no mundo atual,
reafirmando o caráter inerentemente imperialista do capitalismo contemporâneo ao
mesmo tempo em que apontamos para algumas tendências novas. Na segunda parte,
abordaremos
a
temática
do
capitalismo
dependente-associado,
estabelecendo
comparações entre os modelos argentino, espanhol e brasileiro. Subjacente à breve
abordagem histórica encontra-se a distinção entre o que denominaremos capitalismo
dependente-associado e capitalismo dependente-subordinado.
I. Imperialismo e Dependência
Diferentemente da discussão sobre o ―Novo Imperialismo‖, na qual a dimensão
conjuntural em torno da política externa dos EUA parece ocupar o centro das atenções,
em nossa exposição, o imperialismo será visto como intrínseco ao capitalismo - o
capitalismo sob o domínio do capital financeiro. Ou seja, partimos do pressuposto que
não se pode separar imperialismo do capitalismo contemporâneo, tese que costuma
desagradar àqueles que se opõem ao imperialismo mas nem tanto ao capitalismo,
apostando-se que um capitalismo diferente do dos dias de hoje é possível. Pode ser,
porém não um capitalismo não-imperialista - o capitalismo do pós-guerra, dos ―anos
dourados‖, era diferente e nem por isso não era imperialista e/ou militarista. O que
significa que, entre Lênin e Kautsky, ficamos com o primeiro.
No debate entre os dois autores, Kautsky apostara num ―supercapitalismo‖ pacificado
pela ―administração‖ dos Estados do Centro e corporações privadas mundiais, enquanto
Lênin defendera a inevitabilidade das guerras (imperialistas) na fase superior do
capitalismo1. Para este, o capitalismo contemporâneo seria inerentemente imperialista; já

As referências bibliográficas estão nas notas de rodapé.
1. José Luís Fiori, em O poder global (São Paulo: Boitempo, 2007) afirma que a história do
século XX deu razão tanto a Kautsky como a Lênin e que, neste século, o clássico debate
entre os dois autores deve ser recuperado. Da nossa parte, há dúvidas a respeito da
necessidade de recuperação do debate, pois acreditamos que a partir do ―livrinho‖ de
Lenin, Imperialismo: fase superior do capitalismo, é possível compreender melhor o
capitalismo contemporâneo. De Kautski, ver ―O Imperialismo‖. In Aloisio Teixeira
2
Kautsky acreditava que o imperialismo era uma das manifestações possíveis do
capitalismo contemporâneo – quer dizer, seria possível o surgimento de um capitalismo
sem imperialismo/guerras. Não obstante, o processo de concentração/centralização da
riqueza e a conseqüente monopolização da economia em escala mundial, tal como
aparece em Lênin e outros teóricos do imperialismo (como Hilferding), abre espaço às
apostas nas decisões econômicas mais concertadas entre aqueles que partilham/dominam
o mundo. Sem implicar na eliminação da competição/concorrência intercapitalista
mundial, bastante estimulante à anarquia econômico-financeira. E a possibilidade de
guerras, como demonstra exaustivamente Fiori2, constitui o princípio ordenador nas
relações de poder dentro do sistema internacional de Estados nacionais. Além do papel
―ordenador‖ que adquirem no interior de alguns Estados (como EUA), na medida em que
as despesas militares têm efeitos estimulantes à economia.
Conforme Lênin, a característica central do imperialismo seria o primado da atividade
financeira sobre todas as demais atividades econômicas. O volume atual de capitais
movimentado no mercado financeiro global supera em muito o do comércio internacional
de mercadorias, envolvendo mais extensamente (direta ou indiretamente) segmentos nada
desprezíveis da ―sociedade civil‖ de todo o mundo no mercado financeiro global. Este
último aspecto é que torna ainda mais complicada qualquer redução do Estado a mero
―comitê executivo‖ dos negócios da burguesia (financeira), pois além de condensação de
forças dominantes heterogêneas, as políticas estatais (a econômico em especial) também
representam segmentos nada desprezíveis à opinião pública nos Estados nacionais, não
pertencentes à classe dominante (setores médios A e B), mas atuantes nos mercados
financeiros.
Neste sentido, o grande desafio enfrentado pelos Estados nestes últimos anos tem sido o
de tentar compatibilizar a articulação/dependência face ao sistema financeiro
internacional com o seu papel de Estado Nacional - enquanto condensação de forças
sociais com interesses ora ao encontro dos interesses ―cosmopolitas‖, ora de encontro. E
se os conflitos de interesses dominantes têm mais chances de contemporização nos
mercados financeiros, o mesmo não se dá com os interesses/reivindicações de grande
(org.). Utópicos, heréticos e malditos – os precursores do pensamento social de nossa
época. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2004.
2. Ibid.
3
parte dos trabalhadores assalariados, cuja dimensão político eleitoral pode não importar
tanto aos representantes do capital financeiro (parecem seguros em qualquer governo),
mas importa aos governos e forças políticas locais.
O Estado segue sendo fundamental à acumulação privada - que, no mínimo, passa
decisivamente pelo endividamento público-, e a articulação de interesses capitalistas
globais – fundamentalmente financeiros – encontra-se colada ao financiamento dos
déficits americanos. Por sua vez, se algumas tendências atuais - déficits americanos,
expansão dos gastos militares, guerras -, por obra da luta política, podem ser
desaceleradas, o mesmo não podemos dizer a respeito da tendência inerente ao
capitalismo/imperialismo de busca à valorização máxima do capital por meio da
internacionalização do capital financeiro.
Isto é tão verdadeiro que países de capitalismo retardatário, que recentemente
conquistaram uma melhor inserção no sistema econômico mundial, como a Espanha, o
fizeram pela via imperialista (neste caso, sustentados por um modelo que denominaremos
―capitalismo dependente-associado‖). Entretanto, da perspectiva latino-americana, o
imperialismo é hoje bem menos favorável ao desenvolvimento nacional. Primeiro,
porque assistimos ao distanciamento entre dependência e desenvolvimento, o
estreitamento dos laços da dependência pode até promover "surtos" de crescimento, mas
dificilmente políticas desenvolvimentistas como as que caracterizaram a segunda metade
do século XX. Segundo, as ditas economias de enclave, dependendo do produto
exportador em pauta, podem alcançar mais crescimento (com a ―globalização‖) que
economias (semi) industrializadas. Terceiro, as economias dependentes no continente são
menos associadas do que nunca, já que praticamente não houve associações significativas
entre capital privado nacional e internacional nas últimas décadas.
Por sua vez, a noção de dependência aqui utilizada remete diretamente à dimensão
política interna da dominação eminentemente financeira das potências imperialistas sobre
países da periferia3. A distinção entre ―dependente-associado‖ e ―dependentesubordinado‖, a ser abordada mais adiante, diz respeito à capacidade de inserção
internacional destes países. São as formas de associação/articulação com o capital
3. Ver Angelita Matos Souza. Estado e dependência no Brasil (1889-1930). São Paulo:
Annablume, 2001.
4
financeiro internacional que permitem tal distinção, formas essas delimitadas
internamente, mas dentro do rol de possibilidades abertas pelas condições internacionais.
1) Imperialismo
Atualmente, fala-se muito em império e/ou novo imperialismo, a fim de se salientar a
dimensão militarista – mais que a financeira - da dominação norte-americana sobre o
mundo, mas nada se compara ao domínio financeiro dos EUA. Diferentemente, portanto,
da discussão sobre o ―Novo Imperialismo‖, na qual a dimensão conjuntural em torno da
política externa atual dos EUA parece ocupar o centro das atenções, reafirmamos aqui
que o imperialismo é o capitalismo sob o domínio do capital financeiro.
Associado a uma exceção política atribuída ao neoconservadorismo à frente do governo
estadunidense (liberais como Gore Vidal e outros têm argumentado neste sentido, assim
como Michael Mann), são os neoconservadores que escapam da definição mais
conjuntural, vendo os EUA como um ―Império‖, agindo como qualquer outro – à
maneira ―imperialista‖. À diferença de Robert Kagan, que estabelece uma distinção
qualitativa entre império/imperialismo (impérios têm políticas imperialistas) e poder
hegemônico. Segundo o autor, um poder imperial conquista territórios e constrói
colônias, o que não diz respeito aos EUA, justamente devido à sua posição hegemônica
mundial, fundamental à manutenção da ordem e defesa dos valores liberais em escala
internacional. Interpretação com a qual concordam praticamente todos, neoconservadores
e/ou liberais norte-americanos: a existência e fortalecimento do poder hegemônico dos
Estados Unidos seriam cruciais à ordem mundial.
Eis umas das razões para a retomada da idéia de imperialismo no sentido adotado aqui
(imperialismo = capitalismo contemporâneo): mesmo que os neoconservadores sejam
definitivamente deslocados do poder, os EUA continuarão agindo como potência
imperialista. O que não se opõe à idéia de hegemonia.
Resumidamente, o imperialismo constituiria a etapa do capitalismo (o capitalismo
monopolista), na qual a concorrência entre muitos capitais dá lugar à concentração e
centralização de indústrias inteiras e de todo o sistema bancário em mãos de um punhado
de empresas gigantescas. O traço marcante deste processo seria a fusão do capital
industrial com o capital bancário - sob domínio deste último -, originando o moderno
capital financeiro. A monopolização da economia, ao mesmo tempo em que dá origem ao
5
capital financeiro, é impulsionada pelo desenvolvimento deste. A formação de poderosos
blocos de capital bancário-industrial, que buscam controlar os mercados, intensifica este
processo, por meio da incorporação constante das empresas mais débeis ou em
dificuldades, sendo inseparável da internacionalização do capital financeiro. A
exportação de capitais e a repartição do mundo entre os grupos capitalistas internacionais
são condição e resultado do predomínio do capital financeiro, da sua transformação em
―força motriz‖ da acumulação capitalista em escala mundial4.
Mas algumas tendências recentes chamam atenção: 1º) o financiamento dos déficits
americanos por países ―dependentes/emergentes‖, por meio das altas taxas de juros
praticadas nos mercados periféricos e o total das reservas em moeda forte (aplicados em
parte em títulos americanos) superando suas dívidas externas; 2º) a dominação
eminentemente financeiro-diplomática das potências imperialistas sobre os países
periféricos, lado a lado à expansão militarista norte-americana sobre algumas regiões do
mundo; 3º) além de interestatais, as articulações agora envolvem mais diretamente e
extensamente os ricos e novos ricos da ―sociedade civil‖ em todo o mundo, via mercado
financeiro global.
E embora tendências atuais – déficit público americano, guerras/militarismo -, por obra
da política, possam ser invertidas/desaceleradas (dependendo da evolução da crise
financeira nos EUA.), o mesmo não poderíamos afirmar da tendência imanente do
capitalismo/imperialismo à busca da valorização máxima do capital por meio da
internacionalização do capital financeiro. Em todo caso, não temos a menor idéia se e
como as tendências apontadas – responsáveis pela volta do imperialismo ao debate nas
Ciências Sociais – possam ser invertidas/desaceleradas, mas temos certeza que qualquer
inversão de tendências, nos limites do capitalismo, não levará ao fim do imperialismo.
A característica central do imperialismo é o primado da atividade financeira sobre todas
as demais atividades econômicas, o que é absolutamente válido para o mundo atual. Ao
mesmo tempo, é claro que o objetivo das grandes corporações multinacionais de
controlar largas fatias dos mercados e dos recursos naturais mundiais segue
acintosamente e, quanto ao capital americano, seu apetite por mercados estrangeiros
4. Ver Frederico M. Mazzuchelli. A Contradição em Processo. São Paulo: Brasiliense, 1985.
6
parece não ter limites, hoje, como antes na história do imperialismo. Conforme escreveu
John B. Foster:
O Golfo Pérsico e a Bacia do Mar Cáspio representam não só o grosso
das reservas mundiais de petróleo como também uma proporção que
rapidamente está a tornar-se cada vez maior no total das reservas (...).
Isto deu grande estímulo aos Estados Unidos para ganharem maior
controle destes recursos — a expensas dos seus rivais atuais e
potenciais. Mas as ambições imperiais americanas não acabam aqui
(...). A promoção dos interesses das corporações americanas no exterior
é uma das responsabilidades primárias do Estado americano.
Considere-se os casos da Monsanto e dos alimentos geneticamente
modificados, da Microsoft e da propriedade intelectual, da Bechtel e da
guerra ao Iraque. Seria impossível exagerar quão perigoso este
expansionismo dual das corporações americanas e do Estado americano
é para o mundo como um todo5.
A noção de hegemonia, por sua vez, articula-se à idéia de consentimento que,
evidentemente, não prescinde da força. Internacionalmente, transformar os interesses
dominantes de um Estado nos interesses dos principais Estados nacionais e, em menor
dimensão, de Estados subordinados, é uma tarefa que envolve conflitos e contradições,
resolvidos em ultima instância pela força e/ou pela omissão/inação daqueles que
poderiam opor-se à força e não o fazem porque ―consentem‖ e consentem porque os
interesses se articulam. Aliás, o exercício mais agressivo da hegemonia americana é até
conveniente para as demais economias dominantes que se beneficiam da sua liderança
sem
ser
diretamente
atingidos
por
movimentos/sentimentos
antiimperialistas,
concentrados sobre os EUA6. Posições supostamente anti-americanistas e/ou antibelicistas da parte de chefes de governos de outros Estados dominantes podem até render
votos no interior de Estados nacionais, mas têm pouca efetividade.
Hoje, mais do que nunca, os Estados das economias centrais (não só) precisam zelar
tanto pelos interesses de seus capitais domésticos, como dos interesses do capital
5. Entrevista com John Bellamy Foster, http://mrzine.monthlyreview.org/foster171106.html
6. Robert kagan não não deixa de ter razão quando afirma que a Europa pode dar-se ao luxo
de ser ―kantiana‖ porque tem os EUA para fazer o trabalho ―duro‖. Veja a respeito seu artigo
―The benevolent empire‖, Foreign Policy, junho/agosto, 1998. E também a apresentação (e
crítica) do debate sobre o ―novo imperialismo‖ em Michael Mann. O império da incoerência.
Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2006.
7
imperialista dominante – norte-americano –, na medida em que se encontram todos
articulados, em menor ou maior grau, à economia estadunidense. O que vem sendo
apontado como enfraquecimento do poder político dos Estados nacionais face aos
interesses dos EUA. Pode ser, mas menos que ao exercício de um poder unilateral pela
potência hegemônica, assistimos às novas configurações internas aos Estados nacionais,
modeladas pelo atual processo de internacionalização do capital financeiro.
Dito de outra forma, se mesmos Estados do Centro capitalista parecem cada vez mais o
―comitê executivo‖ da burguesia (financeira) internacional, que um ―árbitro neutro‖
colocado acima das classes sociais, mais que ao declínio de poder destes Estados diante
do poder estadunidense, isso se deve às articulações do capital financeiro
internacionalizado dentro de cada Estado nacional7. E isto é imperialismo – diferente de
Império e/ou colonialismo. No entanto, as articulações do capital financeiro
internacionalizado dentro de cada Estado nacional não devem ser entendidas no sentido
da fusão entre Estado & grande capital monopolista. Mesmo em se tratando de países da
periferia, onde a forte presença política do capital financeiro internacional, servindo ao
fortalecimento do poder do Estado diante de setores dominantes locais, em favor
daqueles interesses mais articulados ao capital financeiro internacional, é explícita.
Mas, de fato, como escrevemos noutra oportunidade8, estão todos mais parecidos com o
Estado brasileiro. Ainda que diferenças cruciais sobrevivam. Neste sentido, por mais que
assuma a responsabilidade de defesa, externa e internamente, dos interesses do capital
financeiro internacional, o Estado capitalista das nações dominantes continua
desempenhando o papel, por excelência, de defesa de um posicionamento competitivo
―dos seus capitais‖ no espaço econômico nacional e internacional. Inclusive quando atrai
investimentos externos assegurando vantagens à sua penetração. Quer dizer, a defesa de
interesses ―estrangeiros‖ deve se articular ao objetivo maior de fortalecimento do capital
local (ou setores deste), de reprodução da sua posição dominante no cenário
internacional.
No caso de Estados dos países periféricos (pelo menos os da América Latina), a
globalização tem tido mais o efeito de reforçar a subordinação do Estado aos interesses
7. Ver a respeito Bob Jessop. ―A globalização e o Estado nacional‖. Crítica Marxista, n.7,
1998.
8. Ver nossa tese de doutorado: Angelita Matos Souza. deus e o diabo na terra do sol (leitura
política de um capitalismo tardio. Campinas: IE/Unicamp, 2003, cap. 1.
8
do capital financeiro internacional. Efetivamente, a denominada globalização, longe da
homogeneização dos Estados Nacionais, tem reforçado a acalentada, e constantemente
lograda, ―divisão de tarefas‖ no processo de acumulação capitalista mundial. Os Estados
dominantes têm defendido com mais afinco o seu capital frente a outros competidores no
mercado mundial, ao mesmo tempo em que os governantes à frente dos Estados
periféricos e dependentes se esmeram em garantir a expansão dos interesses do capital
estrangeiro no espaço econômico periférico.
Além disso, a exportação-importação de capitais entre os países centrais (sobretudo para
a potência hegemônica), em hipótese alguma se traduz em ingerência externa sobre a
política do país importador, nos termos em que ocorre quando o país importador de
capitais pertence à lista dos países periféricos. E, desnecessário dizer, menos ainda
quando o ―exportador de capitais‖ é um país emergente financiando os déficits
americanos, mesmo em se tratando da China. E como já dito, a articulação de interesses
capitalistas globais – fundamentalmente financeiros -, no interior de cada formação
social, passa pelo financiamento dos déficits americanos, tendo em vista a manutenção
do dinamismo da economia americana puxando a economia mundial como um todo.
No setor financeiro, como no militar, os EUA parecem isolados num patamar único (a
despeito da crise no setor imobiliário que se alastra pelo setor financeiro). Conforme
descreveu Michael Mann:
(...) o dólar continua a ser a moeda das reservas do mundo, enquanto o
valor do mercado de ações de Wall Street é de quase dois terços de
todos os mercados do de ações do mundo. Peter Gowan chama com
justiça o sistema monetário internacional de ―Regime do Dólar/Wall
Street‖. Como os valores, em última instância, acabam sendo expressos
em dólares, as reservas e a poupança de muitas outras nações são feitas
em dólar, pois esta é a moeda mais segura. Essa segurança faz com que
só ofereça juros baixos. Por meio de Wall Street o mundo investe na
economia norte-americana, permitindo aos consumidores do país
acumular grandes dívidas e ao governo americano financiar seus
enormes déficits comerciais e orçamentários. Isso significa que os
países mais pobres subsidiam a economia dos EUA, muito mais do que
jamais chegam a receber como auxilio americano ao desenvolvimento.
Os Estados Unidos são a maior nação devedora, sinal não de fraqueza,
mas de força, o que lhe dá um grau inigualável de liberdade financeira.
O setor financeiro, que parece tão multinacional enquanto gira pelo
mundo, usa na verdade um passaporte americano9.
9. Michael Mann. Op. Cit., p.73.
9
Eis o ponto central da articulação entre o Estado norte-americano e o capital financeiro
internacional: precisamente, sua posição de maior devedor do mundo. Seus principais
credores são China, Japão e outros países do leste asiático, mas praticamente todos os
países capitalistas têm acumulado reservas em dólar, em parte aplicadas em ações,
obrigações e títulos americanos; sem falar nos juros altos praticados nos mercados
periféricos, cuja contribuição ao funcionamento do sistema é fundamental. O dispêndio
deficitário pelo governo americano e as despesas militares em alta (cujo efeito sobre a
economia é especial, pois estimula tanto os investimentos em bens de capital, como na
investigação e desenvolvimento de produtos e criação de novas indústrias) foram
estimulantes à economia americana – e bom para a economia mundial10.
O problema foi uma expansão da dívida bem maior do que a expansão da atividade
econômica. Isto, com as despesas militares em alta. Durante os últimos anos, com as
guerras em andamento, houve um crescimento significativo nas despesas militares, sem o
qual, seguramente, não assistiríamos ao boom da construção civil naquele país. Na
ausência do enorme orçamento militar (uma espécie de ―keynesianismo bélico‖), Fred
Magdoff calcula que seria preciso um aumento significativo nos investimentos diretos do
setor privado para impedir uma recessão profunda, sendo que mesmo com o aumento nas
despesas militares e aquecimento do mercado imobiliário, a falta de crescimento da
economia real, comparada aos seus níveis de endividamento é surpreendente:
Na década de 1970 a dívida ativa era cerca de 1,5 vezes a dimensão da
atividade econômica anual do país (PIB). Em 1985, era o dobro do PIB.
Em 2005, a dívida total dos EUA era quase 3,5 vezes o PIB do país
(...), e não longe dos US$ 44 milhões de milhões de PIB do mundo
todo11.
Não obstante, nos últimos anos, os EUA alcançaram um poderio militar incontestável,
além de deterem a condição de emissor exclusivo da principal moeda de referência
mundial (mais de 70% das transações financeiras e mais de 60% das reservas cambiais
dos países são nessa moeda). O que permitiu ao país acumular déficits nas contas
10. A inação/omissão diante do militarismo norte-americano sobre algumas regiões do mundo é
praticamente conseqüência disto.
11. Fred Magdoff. In ―A explosão da dívida e a especulação‖. Monthly Review, v. 58, n 6,
nov/2006.
10
externas, financiados pelos outros. Os Estados Unidos e a China, principalmente, estão
entrelaçados pelo sistema financeiro internacional: o primeiro é o maior devedor do
mundo e o segundo é o seu credor mais importante (70% das suas reservas estão em
ativos em dólares). Se o modelo agora dá sinais de esgotamento e crise, isso não significa
que esteja superado, ao contrário, nas conjunturas críticas há fuga para os títulos
americanos e a resposta do governo norte-americano à crise tem sido operações
milionárias de ajuda às empresas em dificuldades, a serem financiadas com mais
endividamento público. E são os momentos críticos os mais favoráveis às recomposições
do ―consenso‖, ainda que de forma precária e instável. Assim, o fim da hegemonia
americana talvez esteja bem mais distante do que imaginam alguns.
E o imperialismo já passou por várias experiências no seu 1º século e ½ de vida
aproximadamente. Das duas guerras mundiais (imperialistas) ao mundo mais ―regulado‖
após Bretton Woods (com o capital financeiro realizando mais investimentos diretos na
periferia do sistema) até alcançar a etapa da ―financeirização‖ global nos anos 80/90. Em
nenhum momento viveu em paz, mas é certo que na última década o militarismo avançou
como nunca desde o pós-guerra; assim como a importação de capitais (o endividamento
externo) deixou de ser um traço da periferia ―em desenvolvimento‖ para caracterizar
justamente a maior economia do mundo.
A elevação dos juros pelo governo americano em 1979 (que, entre 1978-1981, foram de
8,7% para 17%) deteve a desvalorização do dólar e redirecionou o fluxo do capital
financeiro para os EUA, permitindo o financiamento de despesas militares que
colocariam fim à "guerra fria", levando ao colapso do mundo socialista e à ascensão dos
EUA a um poderio militar e financeiro sem paralelo. O influxo de capitais para os EUA e
a valorização do dólar, ao mesmo tempo em que serviu à reafirmação do seu papel de
moeda padrão internacional permitiu, após breve recessão, um novo ciclo de crescimento
econômico. A combinação de despesas militares em alta com o dólar valorizado, abertura
da economia americana à China, importação barata estimulando o consumo, compra de
insumos importados, redução de impostos, tudo isso foi muito estimulante para a maior
economia do mundo, a despeito de um crescimento contínuo do déficit americano (ou
graças a este).
Finalmente, se como escreveu Lênin, na virada do século XIX para o século XX, o
capitalismo transformou-se efetivamente em imperialismo; poderíamos acrescentar que
11
também a expansão das teias da dependência dos países não industrializados para com as
economias avançadas avançou significativamente a partir daí. Contudo, a dependência
não deve ser vista como um conceito (uma ―teoria‖), mas como uma noção que busca
apreender a forma política assumida internamente pela expansão imperialista dos países
dominantes. Neste sentido, os termos periferia e dependência não são sinônimos. O 1º
indica uma situação marcada por ausências/insuficiências nos domínios da autonomia
monetária/moeda forte, sobre o processo de inovação científico-tecnológico e poder
militar (em comparação com os centros dominantes), enquanto a noção de dependência
deve servir à compreensão de uma relação, cujas formas são definidas no interior dos
países periféricos, pela luta política envolvendo Estado e disputas de interesses entre
classes/frações dominantes (bem como, a ―luta de classes‖), dentro do rol de
possibilidades abertas pelo movimento expansionista dos capitalismos centrais12.
2) Dependência
Tilman Evers (1985), em El Estado en la periferia del capitalismo, afirma que, na
periferia, a função do Estado de representar o capital nacional frente a outros
competidores no mercado mundial se inverte: ―(...) garantia de existência e expansão do
capital nacional no mercado mundial passa a ser: garantia da existência e da expansão
dos interesses do capital estrangeiro no espaço econômico periférico‖13
Não obstante, acreditamos que é a luta política, no interior dos países periféricos, que
permite e/ou induz o desempenho pelo Estado de sua ―função invertida", o que implica
no reconhecimento de que sua forma não é inflexível (ainda que o conteúdo pareça
inexorável); bem como, que por ―inversão‖ não devemos entender a mera conversão do
Estado num ―instrumento‖ em mãos do capital estrangeiro. Este tipo de análise reduziria
a própria importância de se estudar as realidades concretas, a partir dos interesses que se
constituem no interior das formações sociais periféricas, bem como propostas alternativas
de modelos econômicos. Mais produtivo é compreender a história do desenvolvimento
capitalista na periferia como dinamicamente ―interconectada‖ ao processo de acumulação
capitalista mundial; sem perder de vista que as formas de ―interconexão‖ estão
condicionadas tanto pelas possibilidades abertas pela dinâmica de funcionamento do
12. E há dependências e dependências, assim como países da periferia capitalista cujas
relações com o capital financeiro internacional são ínfimas (países mais pobres e atrasados,
mas mesmo assim vinculados ao mercado mundial).
13. Tilman Evers, El Estado en la periferia del capitalismo. México: Siglo XXI, 1985.
12
sistema capitalista mundial, como pelas relações entre Estado e classes sociais
estabelecidas internamente.
Claro que essa é igualmente a história dos países centrais. Também nestes casos, o
processo de desenvolvimento capitalista esteve dinamicamente ―interconectado‖ ao
processo de acumulação capitalista mundial e estiveram as formas de ―interconexão‖
condicionadas pelas relações entre o Estado e as classes sociais no interior destes países que determinaram tanto os limites como os avanços (mais avanços que limites) do
desenvolvimento capitalista. Não obstante, há uma fundamental diferença ―temporal‖
entre o centro e a periferia, traduzida em superioridade tecnológica, financeira e políticomilitar dos países centrais.
Faz diferença, portanto, ter chegado ―atrasado‖ à revolução industrial, mas ainda no
século XIX, quando o capitalismo não tinha entrado no ―seu estágio superior‖ e ―copiar‖
as inovações tecnológicas existentes exigia menores custos e maiores facilidades de
aprendizado. Já as industrializações retardatárias do século XX, ocorreriam quando a
revolução científico-tecnológica mundial já havia alcançado um grau bastante elevado de
complexidade e, por conseguinte, de custos; com seus resultados monopolizados pelos
grandes grupos empresariais dos países centrais. O que implicou além da forte presença
do Estado na alocação dos recursos e condução do processo de industrialização, na forte
presença do capital estrangeiro, via investimentos diretos ou indiretos.
E na medida em que o processo de desenvolvimento capitalista na periferia se faz com a
forte participação do capital estrangeiro, o Estado inevitavelmente usa dos recursos que
lhe são próprios – poder de taxação, de regulamentação comercial e financeira/monetária,
isenções fiscais, etc. - para atrair e garantir os investimentos externos em território
nacional, transformando-se o capital estrangeiro numa força política internamente. Em
momentos de expansão econômica é possível conciliar interesses estrangeiros e locais,
mas em momentos de crise, em que é preciso cortar gastos, a tendência à inversão do seu
papel de Estado nacional pode assumir um conteúdo inexorável e conflitante.
Vale mencionar o caráter ―nacionalista‖ que o conflito de interesses pode assumir em
momentos de crise - e que não é, em geral, antiimperialista -, mas utilizado de forma a
cobrar dos governos o exercício da função, supostamente de todo e qualquer Estado
Nacional, de representar o capital nacional frente aos competidores estrangeiros. Muitas
13
vezes, indo ao encontro das reivindicações de partidos e movimentos de esquerda e/ou
nacionalistas, acirrando ainda mais as contradições que perpassam o Estado. Quer dizer,
nos conflitos políticos, as forças sociais cobram que o Estado seja aquilo que afirma ser:
um Estado nacional soberano. O que diz respeito aos conflitos que perpassam os Estados
capitalistas em geral, mas na periferia tendem a ser agravados pelo problema da
dependência financeira na esfera do estatal.
E não é nada fácil cobrar compromissos, com qualquer projeto de (re) construção
nacional, quando se é altamente permissivo quanto aos interesses do capital estrangeiro.
Daí que um mecanismo por excelência de "harmonização" e "contemporização" dos
conflitos consista na liberação e mesmo incentivo às órbitas especulativas da atividade
econômica nacional (que, embora não possa ser visto como particular às sociedades
periféricas parece adquirir nestas uma maior importância). Na medida em que a
modernização se faz pela via conservadora, com a incorporação dos interesses diversos
de setores econômicos dominantes, as formas de ―conciliação‖ (―equalização‖) entre
políticas ―entreguistas‖ ou ―nacionalistas‖ e/ou entre políticas em prol do grande capital e
os interesses não monopolistas, entre as forças ―modernas‖ e as do ―atraso‖, passam
preferencialmente pelas órbitas especulativas. Contemplando também as forças não
proprietárias, constitutivas dos setores médios A e B, e importantes na formação da
opinião pública.
Escrevendo sobre a América Latina, Carlos Lessa e Sulamis Dain chamaram atenção, por
exemplo, à permissividade com os movimentos especulativos no campo imobiliário
como manifestações tão arraigadas e universais ao ponto de tornarem-se um elemento
―constitutivo e estrutural‖ na história do desenvolvimento capitalista no continente. Os
autores destacaram a íntima relação entre o Estado e a especulação imobiliária:
(...) entendemos o circuito imobiliário como frente de operações de
transmutação e valorização de lucros dos capitais nacionais. Este
circuito está sob o comando do capital imobiliário, que promove as
transformações valorativas dos ativos imobiliários. Aqui existe uma
profunda e íntima relação com o Estado. A presença do privilégio é
inerente à própria possibilidade de valorização. Isso é visível na
concessão de licenças para construção, na definição das frentes de
desenvolvimento urbano, na troca de regulamentos de edificação, etc.
(...) O capital imobiliário comanda a atividade de construção
residencial, que é isoladamente a principal geradora de emprego e
ingressos urbanos. Diretamente, pela demanda de materiais, e
14
indiretamente, via empregos e ingresso urbanos, o capital imobiliário
determina as condições de realização da produção de amplas parcelas
do capital industrial14.
Por sua vez, a transformação de capitalismos da região em capitalismos financeiros (sob
a hegemonia dos interesses financeiros e com um mercado financeiro local relativamente
atrativo e dinâmico) virá acompanhada do predomínio da atividade especulativa em sua
forma mais abstrata: a especulação sobre ―papéis‖, especialmente títulos públicos. Essa é,
sem dúvida, a contrapartida mais perversa do papel do Estado periférico enquanto gestor
da articulação entre o sistema capitalista internacional e o sistema interno de dominação
(por meio da conformação de uma ―política de contemporização‖ face aos interesses
econômicos diversos).
O que, insistimos, não pode ser visto como mera subordinação aos interesses do capital
estrangeiro. Mas como vias de desenvolvimento construídas no interior destes países pela
luta política interna, tanto no sentido da acomodação como da resistência e/ou barganha
face aos interesses externos. A abordagem sobre os caminhos do desenvolvimento
capitalista na periferia deve integrar determinações externas e internas, as quais foram
moldando as ―opções‖ políticas locais, dentro do rol de possibilidades abertas pelo
sistema capitalista internacional. Todavia, não se pode ignorar que a autonomia das
formações sociais periféricas é restrita diante do movimento do capital financeiro
internacional, a reboque do qual se move a economia política mundial15.
No caso de países da América Latina, é certo que o modelo de industrialização e as
relações de dependência características desde os anos 50, a partir dos anos 80, deram
claros sinais de esgotamento. Além da ―crise da dívida‖, as transformações na área da
informática e telecomunicações, indústria espacial e produção bélica de ponta concentrarse-iam nas economias centrais, enquanto diminuiria o interesse do grande capital
internacional pelos ramos tradicionais da atividade industrial (voltado à produção de bens
de consumo leves e duráveis). A preferência pelas aquisições de empresas já existentes,
em detrimento dos novos investimentos, levou países da região a total desnacionalização
14. Carlos Lessa e Sulamis Dain. ―Capitalismo associado: algumas referências para o tema
Estado e desenvolvimento‖. In: Belluzzo e Coutinho (Orgs.). Desenvolvimento
capitalista no Brasil. 4.ed., Campinas: IE/ UNICAMP, 1998, v.1, p. 262.
15. Dito de outra forma, se sujeito houver na história do capitalismo contemporâneo, é este
―sujeito abstrato‖ denominado capital financeiro internacional.
15
da estrutura produtiva. Sob a pressão dos governos dos países centrais – mormente, EUA
– e as instituições que os representam - FMI, OMC, Banco Mundial-, as reformas liberais
avançaram nos anos 90. Conforme Décio Saes:
(...) a novíssima dependência torna unilaterais os efeitos da dominação
imperialista; na sua vigência, emergem apenas obstáculos ao avanço do
desenvolvimento capitalista e desaparecem algumas vantagens típicas
de fases anteriores da dependência. No novo quadro histórico, as
potencias imperialistas querem apenas se apoderar do que já existe, das
fontes de matéria-prima e de energia, sem nada agregar de novo às
economias periféricas. A novíssima dependência representa, portanto, o
empobrecimento e a pilhagem das economias periféricas, variando
apenas de uma para outra a intensidade do empobrecimento e da
pilhagem, em função do grau de resistência local. A novíssima
dependência instaura um processo de ―periferização de segundo grau‖,
que consiste num afastamento dessas economias com relação às
funções clássicas desempenhadas pela periferia no sistema mundial16.
Neste contexto, as ditas economias de enclave, dependendo do produto exportador em
pauta, podem alcançar mais crescimento com a ―globalização‖ que economias (semi)
industrializadas e, dependendo dos rumos da luta política interna, maior autonomia
política e possibilidades de desenvolvimento. O problema é que um ―enclave‖ como o
Petróleo, que é o produto que pode abrir mais oportunidades à autonomia política e ao
desenvolvimento, facilmente torna-se um entrave à diversificação produtiva necessária à
redução das relações de dependência para com os centros dominantes. Nestes casos, tem
sido mais comum a conformação de Estados rentistas pouco propensos às políticas de
redistribuição de renda, expansão do mercado interno e à diversificação produtiva.
Mesmo num país como a Venezuela de Hugo Chávez, as políticas sociais têm assumido
muito mais um caráter assistencialista que desenvolvimentista e a economia permanece,
basicamente, em função do petróleo. E seria preciso uma enorme vontade política,
combinada a uma correlação de forças bastante favorável, para concentrar esforços em
desenvolvimento científico/tecnológico a fim de alcançar uma diversificação da estrutura
produtiva que fosse além dos ramos tradicionais da produção industrial, ainda mais que
os avanços científico/tecnológicos de ponta (informática/telecomunicações, indústria
espacial e produção bélica) encontram-se monopolizados pelo centro capitalista. Sem
16. Décio Azevedo Marques de Saes. ―Modelos políticos latino-americanos na nova fase da
dependência‖. In: Nogueira e Rizzotto (orgs.). Políticas sociais e desenvolvimento. São
Paulo: Xamã, 2007.
16
falar que os riscos de estatização da economia (a consolidação de alguma espécie de
―capitalismo de Estado‖), de forma a se avançar neste sentido, podem redundar em
autocracia populista sem avanços significativos no plano desejado e/ou divulgado pelas
autoridades governamentais. Com isso, não queremos defender que políticas de
diversificação produtiva (mesmo que restrita aos ramos tradicionais), redistribuição de
renda e expansão do mercado externo não devam ser praticadas, apenas apontamos os
limites e riscos implicados.
II. Capitalismo dependente-associado ou dependente-subordinado
Abordaremos agora os modelos de reformas econômicas praticados pelos governos
argentino, espanhol e brasileiro nos anos 80/90, discorrendo brevemente sobre os dois
primeiros a fim de estabelecer comparações com o caso brasileiro. Partindo do
pressuposto de que o padrão de acumulação consolidado no Brasil durante os governos
militares estreitava a margem de manobra para decisões políticas mais autônomas;
entendemos também que a ―herança desenvolvimentista‖ abria espaço para ações mais
ousadas, tanto que limitou a radicalização à maneira argentina. O estreitamento diz
respeito, sobretudo, às dificuldades para se alterar o padrão ―financeirizado‖ assumido
pelo processo de acumulação desde meados dos anos 70; contudo havia espaço para a
radicalização desse padrão (à maneira espanhola), se as reformas econômicas dos 90
tivessem incentivado a fusão do grande capital bancário com o capital produtivo
nacionais, impondo ao mesmo tempo restrições à participação do capital estrangeiro nos
grupos a serem gerados.
Isto é, se as reformas tivessem se orientado para a consolidação de um capital financeiro
nacional, no qual o capital financeiro internacional seria sócio não-majoritário,
―associação‖ fundamental visando-se um processo de internacionalização econômica. No
contexto da América Latina, o Brasil era o único país que poderia ter tentado este
caminho; porém a conformação de um capital financeiro nacional parece tão ou mais
difícil que praticar políticas de redistribuição de renda visando a ampliação do mercado
interno. Não obstante, a herança desenvolvimentista completada nos dois últimos
governos militares - construção um parque industrial relativamente integrado,
diversificação comercial e dinamismo exportador sem paralelo latino-americano dificultou os ajustes neoliberais radicais, do tipo argentino.
17
1) Argentina
O processo de industrialização argentino não avançou o suficiente (comparativamente à
experiência brasileira), no sentido de legar à Argentina uma burguesia local e/ou uma
burocracia tecnocrática capaz de opor resistências às reformas neoliberais dos anos 90. A
classe média (média/alta), relativamente forte na Argentina, sempre foi mais afinada com
os interesses ―cosmopolitas‖ que com interesses ―nacionalistas‖ e o liberalismo visto com
simpatia, pois associado ao auge da economia agro-exportadora no início do século XX.
Com as reformas dos anos 90, o circuito financeiro como espaço de lucros e
expansão/conservação patrimonial favoreceu ainda mais o apoio ao modelo neoliberal
pelas classes privilegiadas. As camadas populares (classe média baixa e trabalhadores
manuais) ―aceitaram‖ as reformas neoliberais dos anos 90, acreditando que trariam
crescimento econômico e empregos, sobretudo porque era um político peronista que o
prometia.
Carlos Menem, do Partido Justicialista, foi eleito presidente em meio a uma crise
inflacionária e social acompanhada de manifestações populares que obrigariam o
presidente Raúl Alfonsín (da UCR) a entregar o mandato antes do previsto. No poder,
Menem pôs em prática uma política de privatizações e desnacionalização da economia
argentina, totalmente afinada com os interesses do capital financeiro internacional.
Caracterizada pela adoção radical do paradigma neoliberal, a política econômica dos
governos Menem pode ser assim resumida: ampla privatização das empresas públicas e
abertura comercial (desindustrialização); liberalização financeira (desnacionalização do
sistema bancário); reformas trabalhistas de cunho neoliberal, ataque aos direitos sociais
(à previdência); e um programa de estabilização, baseado numa taxa de câmbio assentado
na paridade com o dólar - sistema denominado Currency Board17.
A Lei da Conversibilidade, de início bem sucedida no combate à inflação, com a entrada
maciça de investimentos estrangeiros (atraídos pela política de liberalização
comercial/financeira e privatizações), passou a ser apontada como modelo aos países
periféricos. Foi sob o impacto da crise econômica ao final de 1994, no México, que
surgiram os primeiros sinais de vulnerabilidade, agravados na segunda metade dos anos
17
Sobre o modelo argentino ver Décio A. M. de Saes, op. Cit. Também Javier Vadell. A política
internacional, a conjuntura econômica e a Argentina de Néstor Kirchner. Revista Brasileira de
Política Internacional, v. 49, n 1. Brasília, jan/jun de 2006.
18
90 por novas adversidades no front externo - crise asiática (1997-98); crise da Rússia
(1998); desvalorização da moeda brasileira (1999). Os efeitos negativos sobre as
exportações argentinas, o peso crescente das taxas de juros sobre as finanças públicas,
conjugados à manutenção da Lei da Conversibilidade pelo governo Menem e seu
sucessor, Fernando De La Rua, levariam à espiral de declínio - déficits crescentes,
aumento da desconfiança e fuga de capitais. A moratória viria em dezembro de 2001,
encerrando a década iniciada com a eleição de Menem em 1991.
Ao modelo adotado pela Argentina, acima resumido, denominaremos modelo
dependente-subordinado,
marcado
pela
aposta
na
re-especialização
produtiva,
desindustrialização e desnacionalização da economia. E a despeito de alguns analistas
defenderem que o governo de Nestor Kirchner desviou-se do modelo descrito,
entendemos que o crescimento econômico recente tem mais a ver com retomada (―do
zero‖) que com desenvolvimento.
2) Espanha
O segredo do ―sucesso‖ espanhol, indubitavelmente deve ser buscado na integração à
Comunidade Européia, mas passa pelas ―opções‖ internas que, dentro do rol de
possibilidades abertas pelo sistema capitalista mundial, foram decisivas à consolidação
de um capital financeiro espanhol, sem o qual, dentro do modelo liberal seguido, a
Espanha não estaria hoje entre as dez maiores economias do mundo.
Interessa-nos destacar que políticas econômicas empreendidas nos anos 80/90 levaram à
consolidação do ―núcleo duro‖ da economia espanhola; sob a liderança do qual a
Espanha (re) descobriu a América Latina, alcançando nos anos 90 a posição de maior
investidor externo na região. Fundamentalmente, chamamos atenção para o fato das
inversões estrangeiras em empresa nacionais - com a abertura econômica, reorganização
do mercado financeiro/acionário e privatizações-, menos que à compra/controle acionário
destinarem-se à sociedade/associação com o capital local, favorecendo, política e
economicamente, o poder internacional de grupos espanhóis18.
Além disso, nos governos González, as reformas ―neoliberais‖ esbarraram na resistência
dos movimentos sindicais (base social do PSOE), limitando o avanço do thatcherianismo
18
Victor Pérez-Diaz. España puesta a prueba 1976-1996. Madrid: Alianza Editorial, 1996. Ver
também Angelita Matos Souza. As transformações recentes da economia espanhola e sua
expansão internacional. Revista Eletrônica Espaço Acadêmico, ago de 2007.
19
sob os governos socialistas. No tour de force com o movimento sindical, os socialistas
não arriscariam o ―modelo Thatcher‖ e, voluntariamente ou não, essa foi uma das
maiores contribuições dos governos Gonzaléz à recém consolidada democracia espanhola
– com a expansão do Welfare State espanhol. Já sob os governos Aznar, a radicalização
do receituário liberal implicaria em ataques aos direitos sociais e consolidação do
―núcleo duro‖ da economia espanhola, com a venda das últimas participações estatais em
grandes empresas espanholas e maior abertura/desregulamentação do mercado de
capitais.
Foi a conclusão das privatizações no setor infra-estrutural (Endesa, Repsol, Telefônica,
Iberdrola) que levaram à consolidação do ―núcleo duro‖ da economia espanhola,
reunindo bancos e setores infra-estruturais. Este se encontra organizado em torno de dois
grandes grupos financeiros privados - o BSCH (fruto da fusão entre Banco Santader e
Banco Central Hispano, em 1999) e o BBVA (Banco Bilbao Viscaya e Argentaria,
privatizado em 1998) – e caixas de poupança de capitais públicos, com destaque para a
La Caixa da Catalunha e a Caixa Madrid. O controle destes grupos sobre os setores infraestruturais (nomeadamente eletricidade, gás natural, petróleo e telecomunicações) após as
últimas privatizações levou essas empresas, tanto financeiras como produtivas, a liderar a
internacionalização da economia espanhola. E para além deste núcleo duro,
predominantemente basco-catalão, existem ainda grandes empresas espanholas, com
bases setoriais diferenciadas conforme a região, que são fortemente internacionalizadas.
Três movimentos – redemocratização, integração à Comunidade Européia e
internacionalização econômica – estão estreitamente articulados. A integração à
Comunidade Européia, além de obrigar à ordem democrática, injetou recursos externos
na economia espanhola e, a despeito de efeitos sociais negativos, as reformas neoliberais
fortaleceriam o sistema financeiro local e sua fusão com o setor produtivo privado ou
estatal/privatizado, consolidando os grandes grupos espanhóis, associados ao capital
financeiro internacional, cuja capacidade de internacionalização surpreenderia o mundo.
No entanto, apesar do êxito expansionista, do ponto de vista científico-tecnológico, a
Espanha ocupa uma posição frágil, com pouco investimento em pesquisa e domínio do
processo de inovação científico tecnológico – dependente das transferências de
conhecimento/tecnologia dos países mais desenvolvidos. Por sua vez, sua posição face o
Euro e à União Européia é muito mais de dependência que de interdependência e, se a
20
integração garantiu-lhe uma moeda forte, também encareceu o custo de vida para os
espanhóis e impõe restrições às exportações para fora do continente europeu. Ademais, a
economia espanhola organiza-se basicamente em torno do setor de serviços, contando
com uma estrutura industrial modesta, especialmente no setor de duráveis, sem falar nos
setores de ponta (informática, telecomunicações), bastante dependente das ―revoluções‖
alcançadas nos países centrais.
Mas o fato é que o país ibérico alcançou o que o Brasil não logrou alcançar: uma inserção
no sistema capitalista internacional mais favorável, constituindo-se numa periferia de
primeira classe, cuja posição político-econômica internacional é mais vantajosa,
respaldada pela associação com o grande capital financeiro internacional. Por isso,
recorreríamos à noção de ―capitalismo dependente-associado‖ na abordagem
do
processo de internacionalização da economia espanhola desde os anos 60, mas sobretudo
a partir do final dos anos 80. As inversões estrangeiras em empresas nacionais, menos
que à compra/controle, destinaram-se à sociedade/associação com o capital local,
favorecendo, política e economicamente, o poder internacional dos grupos espanhóis.
3) Brasil
O processo de desenvolvimento capitalista no Brasil contou com a forte presença do
Estado, assumindo posições proeminentes no setor financeiro e produtivo, sem as quais
seria difícil a consecução de uma revolução industrial retardatária acelerada. Ao longo
desse processo, houve concentração/centralização do capital tanto no setor produtivo
como no bancário, mas independentemente um do outro. E a abertura econômica e
privatizações dos anos 90 não levariam aos tão sonhados conglomerados financeiroprodutivos, como ocorreu no caso espanhol.
Também muito se girou em torno da idéia de capitalismo dependente-associado, mas os
agentes do capital produtivo nacional e os do capital estrangeiro nunca foram
propriamente sócios, fizeram negócios, dividiram mercados, estabeleceram alianças
políticas, porém raras foram as fusões/associações entre as empresas de capital forâneo e
as nacionais19. Mais correto seria falar em divisão do mercado: no setor de duráveis
19. Idéia defendida por Maria da Conceição Tavares, segundo a autora, não houve
associações significativas entre o capital produtivo nacional e o estrangeiro ao longo do
processo de industrialização brasileiro e, sim, divisão do mercado (alguns ramos nas
mãos do capital nacional; outros na do capital estrangeiro e a indústria de base com o
21
predominou o capital estrangeiro; o capital privado nacional ficou com a indústria de
bens de consumo leve, no setor da construção civil, indústria cultural/empresas de lazer e
turismo e no setor bancário; o setor de infra-estrutura ficou com o Estado, sendo a
indústria de bens de capital vinculada às encomendas do setor público dividida entre o
capital nacional e o estrangeiro, mas com predomínio do primeiro. Por sua vez, o
processo de abertura e liberalização dos anos 90 levaria mais à desnacionalização da
economia brasileira que à associação/fusão entre capital nacional e estrangeiro.
A questão que se impõe diz respeito às razões pelas quais o Brasil, apesar de ter
construído o parque industrial mais integrado e potente da América Latina, não logrou a
consolidação de um núcleo financeiro-produtivo, capaz de liderar um processo de
internacionalização da economia, semelhante ao caso espanhol. Durante o regime militar
(1964-84), a despeito do processo intenso de conglomeração no setor financeiro, o capital
bancário não se voltou para as atividades produtivas, buscando o controle acionário
destas. O mercado de ações permaneceu pouco desenvolvido e os financiamentos de
longo prazo às atividades produtivas continuaram vinculados às agências estatais
(basicamente aos bancos de desenvolvimento), permanecendo incompleto o processo de
monopolização da economia, segundo o modelo das economias centrais, caracterizado
pela conformação de um capital financeiro20.
Os grandes grupos bancários do país não se sentiam motivados ao investimento em
atividades produtivas, tendo em vista as altas taxas de juros e as vantajosas possibilidades
de negócios com o capital estrangeiro. Daí os grandes grupos financeiros preferiram
sempre as operações de curto prazo, de intermediação financeira, atividades de repasse
de fundos públicos ou de recursos captados no exterior, aos projetos industriais de longo
prazo de maturação. As poucas experiências de diversificação dos negócios pelo setor
bancário foram para o setor de serviços21.
Estado); negócios em comum, porém associações/fusões praticamente não ocorreram.
Veja, por exemplo: ―Brasil: estratégias de conglomeração. In: José Luís Fiori (Org.).
Estados e moedas no desenvolvimento das nações. Petrópolis: Vozes, 1999.
20. Tema abordado em minha tese de doutorado, deus e o diabo na terra do sol. Op. cit.
21. De fato, não existia uma forte demanda por créditos do mercado financeiro local para
investimentos de longo prazo da parte do grande capital privado, a demanda era mais por
capital de giro. A indústria de bens de consumo duráveis, em mãos do capital estrangeiro,
prescindia do mercado financeiro doméstico. O grande capital nacional (industrial,
comercial ou agrário) contava com as benesses do Estado, direta (empréstimos
subsidiados e incentivos de toda ordem) ou indiretamente, com a elevação dos gastos
22
Menos que a incursão dos grandes bancos às atividades produtivas, houve algum
interesse de grandes grupos industriais na criação de bancos próprios. A fim de
aproveitar as taxas de lucratividade que a atividade financeira proporcionava, bancos
foram criados para o fornecimento de crédito de curto e médio prazo às empresas do
grupo. Atividade financeira, nestes casos, subordinada aos interesses das atividades
industriais/comerciais, já que as altas taxas de lucratividade na fase do ―milagre
econômico‖ não estimulavam posturas mais agressivas dos grandes grupos rumo à
diversificação dos negócios no setor financeiro (e, de 03/1970 a 12/1976, as concessões
de autorizações para a instalação de novas agências estiveram suspensas pelo Banco
Central, reservando o mercado para os bancos já existentes).
Entre o final dos anos 70 e início dos 80, quando a desaceleração no ritmo de
crescimento da economia brasileira atingiria o setor produtivo, seus agentes vão
incrementar os lucros ―especulando‖ no mercado financeiro, a essa altura controlado
pelos grandes bancos e exigindo daqueles que desejassem se aventurar pelo setor
bancário um volume de recursos considerável, caso quisessem entrar em condições de
competir. E para além das disposições dos agentes econômicos, o fato é que qualquer
política de incentivo à conformação de conglomerados financeiro-industriais esbarrava
no padrão de acumulação consolidado, articulado ao mercado financeiro internacional e
no arcabouço institucional criado para viabilizá-lo.
Nos anos 80, com a crise da dívida e os programas de ajustamento orientados pelo FMI,
em meio à forte elevação das taxas de inflação, desorganização das finanças públicas e
redução nas taxas de investimento, o grande capital sobreviveu à crise, conservando (e
aumentando) suas margens de lucro graças, sobretudo, ao endividamento estatal. O
processo de ―estatização da dívida externa‖ foi decisivo, conduzido simultaneamente: a)
pelo fluxo de novos empréstimos ao setor público; b) pela transferência do estoque da
dívida do setor privado para o Estado (por meio dos DME e aplicações em títulos
públicos com cláusula de reajuste pela variação cambial). Além disso, o setor privado
contou com alterações dos valores de dívidas (sua redução) junto ao setor público,
possibilitadas pelo uso ou manipulação dos indexadores (por exemplo, com correção
públicos, mormente a expansão produtiva das empresas estatais que puxavam o
crescimento da economia como um todo.
23
monetária prefixada ou fixação de um percentual da correção monetária como indexador
das dívidas). Outro expediente foi a política tarifária de barateamento de serviços
públicos, que favorecia o rebaixamento dos custos da produção em favor do setor privado
e contra o setor público.
Todos estes mecanismos teriam sido, todavia, insuficientes para garantir a sobrevivência
e reestruturação da grande empresa privada em meio à crise da dívida e ajuste recessivo
não fosse o recurso à aquisição de títulos públicos (a ―preferência pela liquidez‖). O
endividamento público interno definitivamente assegurou os lucros do grande capital,
permitindo que este assumisse um comportamento eminentemente defensivo, durante a
fase de ―ajustamento‖. O crescente endividamento público permitiu a formação de
posições líquidas credoras em favor do setor empresarial, do contrário impossíveis nas
condições recessivas do início dos anos 80. Foi o que garantiu o sucesso das decisões
tomadas no âmbito das grandes empresas para defender o lucro líquido - de cortar gastos,
contrair despesas e postergar ou cancelar novas inversões - e passar da condição de
demandante de crédito para aplicadora privilegiada de recursos junto ao mercado
financeiro.
Ou seja, a despeito do ajustamento recessivo, as grandes empresas puderam preservar (e
expandir) suas margens de lucros (inclusive aumentando seus preços num contexto
recessivo), desendividarem-se (e/ou não se endividarem) e se reestruturarem (cortando
gastos e investimentos), preservando e/ou ampliando o seu potencial de acumulação para
a fase pós-ajustamento. Os lucros bancários, em especial, evoluíram de forma espetacular
durante todos os anos 80 (antes e depois do ajuste recessivo). Além das aplicações em
títulos da dívida pública, das operações financeiras diversas, também cresceram, durante
o período do ajuste, os empréstimos dos bancos (sobretudo estrangeiros) a órgãos e
empresas públicas.
Os responsáveis pela condução da política econômica julgavam que, preservada a grande
empresa privada e restaurado o equilíbrio das contas externas, estariam repostas as
condições para que a economia voltasse a crescer. Dessa forma, abrir-se-ia espaço para
reações ativas por parte da grande empresa privada, no sentido da ampliação da
capacidade produtiva, por meio da sua diversificação rumo a novos investimentos,
tecnologias e mercados, promovendo um novo ciclo de crescimento da economia.
24
Entretanto, como demonstram Belluzzo e Almeida22, cuja análise foi resumida acima,
passada a fase do ajuste, a postura defensiva do grande capital privado não cederia lugar
às posturas mais ativas quanto aos investimentos e capacidade de inovação. Na medida
em que os fatores de risco e incertezas não foram removidos com o fim do ―ajuste‖, mas
agravados pela crise monetária (decorrente da incapacidade de gestão da moeda pelo
Estado brasileiro) e sucessivas tentativas de estabilização (com o Plano Cruzado, Plano
Bresser e Plano Verão), a estratégia empresarial persistiu tão (ou mais) defensiva. Foram
mantidos e mesmo ampliados os poderes da grande empresa em seus setores e mercados
particulares, sem que ocorresse um processo de concentração/centralização do capital e
diversificação empresarial, cujo desdobramento fosse a formação de núcleos econômicos
nacionais capazes de patrocinar e capitanear um novo ciclo expansivo, assumindo os
riscos dos investimentos produtivos e retomando a acumulação de forma relativamente
autônoma. O que teria conseqüências graves, condicionando as opções políticas dos anos
90 no sentido da liberalização e desnacionalização da economia brasileira.
Por certo que os representantes do grande capital jogaram um papel decisivo nas opções
de política econômica feitas. Neste sentido, a ―justificativa racionalizada‖ para se quebrar
o Estado em prol da preservação do grande capital privado tem causas muitos mais
políticas que econômicas. Em todo caso, o patrimônio da grande empresa privada
nacional foi preservado e ampliado; em princípio, estavam garantidas as condições para
uma posição mais ativa dos seus representantes no processo de privatizações das
empresas públicas dos anos 90. Processo que levaria a maior conglomeração tanto no
setor bancário como no produtivo, mas não à conformação de um capital financeiro
nacional, confirmando-se o modelo de acumulação herdado do regime militar. Agora,
sem a liderança das empresas estatais, numa economia altamente ―financeirizada‖ e
dependente (vulnerável às condições externas), cujos prejuízos à política (às opções
políticas mais autônomas) seriam enormes.
À carência de condições políticas, mais que econômicas, pode ser debitado o não
aproveitamento da conjuntura internacional dos anos 90. Dificuldades políticas
relacionadas ao padrão de acumulação altamente financeirizado, assentado no
22
Luiz Gonzaga Belluzzo e Júlio G. Almeida. Depois da queda. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002.
25
endividamento público interno, com a conversão do mercado financeiro em espaço
privilegiado de acumulação e equalização de interesses econômicos divergentes. E,
supondo-se que fosse possível a redução drástica dos juros, deslocando-se as preferências
pelos títulos para o mercado de ações (sem grandes prejuízos à atração do capital
estrangeiro),
sem
dúvida,
isto
implicaria
em
dificuldades
para
o
refinanciamento/financiamento da dívida e gastos públicos, para o suprimento de capital
de giro e crédito ao consumidor e para o funcionamento do mercado imobiliário, entre
outras dificuldades. Um edifício muito difícil de ser erodido.
O que não significa que fosse impossível erguer andares sobre a poderosa construção, por
exemplo, limitando a participação do capital estrangeiro nas empresas privatizadas,
obrigando-o às associações com empresários nacionais. Em comparação com o caso
espanhol, além da integração à Comunidade Européia, é possível afirmar que os
governos do PSOE responderam à pressão de forças sociais capazes de impor limites à
execução do receituário neoliberal na Espanha. Já o PSDB sempre foi um partido de
quadros, descolado de qualquer base social de apoio popular, alçado ao poder em aliança
com o PFL, num contexto de hegemonia do pensamento neoliberal, baseado num
discurso ―antiestatista‖ que se afirmava nos meios empresariais, acadêmicos e de
comunicação de massa desde pelo menos o governo Geisel. As reformas econômicas dos
90 foram empreendidas por lideranças carentes de um ―projeto nacional‖, com a
manutenção até o limite de uma política cambial que, segundo Nassif, serviu ao
enriquecimento de membros da equipe econômica e àqueles próximos aos governos
FHC23.
Não obstante, a herança desenvolvimentista dificultou ajustes neoliberais radicais, ao
legar um parque industrial relativamente integrado, um setor bancário robusto, uma
diversificação comercial e um dinamismo exportador sem paralelo no continente. Uma
burguesia local no setor financeiro, agrário (agrobusiness) e industrial; jornalistas,
intelectuais, economistas de oposição, bem como representantes da alta burocracia,
conseguiram opor resistências à radicalização das reformas à maneira argentina. Foi entre
a classe média (média/alta) que a adesão ao modelo neoliberal se mostrou mais livres de
restrições. As camadas populares e sindicatos dos trabalhadores também reagiram às
23. Luís Nassif, Os cabeças de planilha – como o pensamento econômico da Era FHC
repetiu os equívocos de Rui Barbosa. Rio de janeiro: Ediouro, 2007.
26
reformas trabalhistas drásticas, porém, foram as forças mais prejudicadas e fragilizadas
pelas reformas implementadas.
Para concluir, seria o modelo brasileiro dependente-associado ou dependentesubordinado? Entendemos que o país encontra-se na segunda tipologia, embora em
condições mais favoráveis que a Argentina. Por certo que entre o Brasil e a Espanha
existem enormes diferenças, mas o exemplo espanhol é bastante pertinente em se
tratando de projetos expansionistas. Como o Brasil, o país ibérico também não lograra a
construção de um capital financeiro sob a ditadura e, nos anos 80, a economia espanhola
não se comparava à brasileira. Mas as reformas liberalizantes na Espanha foram
conduzidas no sentido da consolidação de grandes grupos econômicos nacionais, em
associação com o capital estrangeiro. Foi sob a liderança de um ―núcleo duro‖,
construído a partir de meados dos anos 80 e organizado em torno de dois grandes grupos
financeiros privados, que o país ibérico redescobriu a América Latina. E no continente
latino-americano, pela escala da sua economia, o Brasil era o único país em condições de
percorrer esse caminho, à época das grandes privatizações.
27
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