OLHARES PLURAIS ‐ Resenhas 121 UMA “EXPERIÊNCIA” PERTURBADORA Anne Francialy da Costa Araújo1 Assistir ao filme A Experiência (“Das Experiment”, Diretor: Oliver Hirschbiegel, Alemanha, 2001) é necessariamente encontrar faces do humano que, muitas vezes, procuramos esconder e/ou esquecer. Na obra cinematográfica, temos a reprodução, bem aproximada, de um experimento, de fato realizado nos anos 70, na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos2. Esse experimento, desenvolvido por Philip Zimbardo e sua equipe, é considerado um marco dos estudos psicológicos sobre os conflitos e reações humanas ao aprisionamento. Na experiência real, 70 voluntários se apresentaram e 24 foram selecionados. A prisão foi efetivamente realizada pela polícia local, que colaborou com a pesquisa, buscando os selecionados em suas casas, algemados e em carros oficiais. Os “presos” foram fotografados e fichados, seguindo os procedimentos reais e depois encaminhados para a prisão fictícia, localizada na Faculdade de Psicologia de Stanford. Situações e reações, tais como depressão, submissão, humilhação, motim, ambiente rapidamente transformado em insalubre, sem condições de higiene, hostil, retratadas no filme, também foram observadas em Stanford. A diferença está no final, não tão trágico, posto que o estudo real durou seis dias, foi abortado antes do final, e não apresentou mortos, mas, evidentemente, como trataremos adiante, deixou marcas. Das muitas leituras que podemos fazer da “Experiência”, uma se refere às discussões em torno do uso de seres humanos em estudos científicos. As terríveis pesquisas realizadas nos campos de concentração nazistas já haviam mostrado que a ciência precisava de uma normalização que controlasse a pesquisa com humanos. Surgiram, então, o Código de Nüremberg (1946) e ulteriormente a Declaração de Helsinque (1964). Depois destas, muitas resoluções e normas internas foram desenvolvidas, no âmbito dos países signatários do Código e da Declaração. Gerando, também, Códigos de Ética, Conselhos de Bioética, Conselhos de Ética na Pesquisa, etc. O estudo de Stanford é posterior à Declaração de Helsinque, tendo passado por um crivo bioético. Talvez por isso a realidade não tenha acabado como na ficção com 1 Doutora e Mestra em Letras/Linguística pela Universidade Federal de Alagoas. Professora da SEUNE. Referimo-nos ao estudo conhecido como "Stanford Prison Experiment". Mais informações sobre ele podem ser obtidas no endereço: www.prisonexp.org/portugues. Essa experiência foi comparada e questionada, quanto aos problemas éticos, à realizada na Universidade de Yale, em 1963, sob o patrocínio da marinha americana, com o intuito de estudar os conflitos no sistema prisional da corporação. 2 OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 2, Ano 2010 ISSN 2176‐9249 OLHARES PLURAIS ‐ Resenhas 122 pesquisadores e presos mortos, o que não quer dizer que, como já indicamos, não tenha tido seus efeitos sobre a psique de todos os envolvidos. Vamos tratar disso pensando “A Experiência” sob dois ângulos: o da psicologia comportamental e o da psicologia social. Sob o prisma comportamental, “A Experiência” pode ser enxergada como um grande laboratório, tal qual os behavioristas radicais, que têm em Skinner seu mentor, entendiam. Recordemos que o behaviorista radical entende que as variadas explicações sobre o comportamento humano deveriam ser resolvidas com base em evidências refutáveis, e não em especulações. Daí a necessidade do rigor do experimento científico. O comportamento é, para os behavioristas, resultante da relação entre o indivíduo e seu ambiente físico, químico ou social. O objetivo behaviorista de “A Experiência” é mostrar como o ambiente é gerador de estímulos para que determinados estados mentais promovam a expressão de comportamentos. Nesse sentido, o filme pode ser um excelente meio para que visualizemos exemplos de conceitos behavioristas, desde o estímulo primeiro, o dinheiro, usado como elemento recrutador; o reforço, quando as personagens faziam referência ao que fariam com o dinheiro que receberiam ao término da experiência e isso animava os participantes a continuarem, numa resposta a esse estímulo reforçador; as diversas expressões de punição usadas para inibir um comportamento indesejado (a rebeldia dos presos, por exemplo) e impor o comportamento desejado (a submissão, por exemplo), como quando os guardas retiram as camas das celas, a fim de conter um motim e deixam todos dormindo no chão frio e sem vestes. Do ponto de vista da Psicologia Social, “A Experiência” pode servir como motor para excelentes discussões na interdisciplinaridade com Sociologia. A Psicologia Social estuda a interação social e tem entre seus principais conceitos a percepção social, as atitudes e as mudanças de atitudes, os grupos sociais e os papéis sociais. A percepção social é resultado dos estímulos que recebemos dos nossos órgãos sensoriais, mas também, e principalmente, da atribuição de significados que fazemos em relação a isso que sentimos. É essa percepção que fez muitos atribuirem significados particulares ao que visualizaram no filme. Reações de êxtase, agressividade e horror foram expressadas pelos que ao filme assitiram e isso demonstra a percepção social que cada um tem da prisão, dos conflitos humanos, das reações humanas. Essa percepção, aliás, é o que faz, segundo leitura da Psicologia Social, as personagens do filme assumirem, tão rapidamente, os papéis sociais que lhes são atribuídos e a partir da percepção social que cada um tinha do que é o preso, a prisão, os guardas da prisão, o líder de um experimento, a mulher, etc. OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 2, Ano 2010 ISSN 2176‐9249 OLHARES PLURAIS ‐ Resenhas 123 Nessa mesma linha de raciocínio, podemos pensar com a Psicologia Social que as atitudes assumidas, tanto das personagens, como nossas durante a exibição do filme, têm uma relação direta com a forma pela qual construímos essas atitudes socialmente (a partir de nossas crenças, valores e opiniões internalizadas). Explicando-nos: se em nosso cotidiano achamos natural que uma pessoa seja humilhada na rua porque é negro ou porque tem uma opção sexual diferente da maioria; até colaboramos com isso, fazendo piadinhas, por exemplo, internalizamos essa atitude e, numa situação concreta como a retratada no filme, podemos expor atitutes semelhantes, as quais foram construídas por nós em nossas interações sociais. Por isso se dizer que as atitudes são bons preditores do comportamento. No Direito, por exemplo, é comum se fazer um levantamento de atitudes anteriores a um ilícito, visando observar se a predição do comportamento ilícito já poderia ter sido feito, são os famosos antecedentes. Evidentemente, nossas atitudes podem ser mudadas. No filme, há exemplos disso quando um guarda muda de lado e tenta ajudar um dos prisioneiros (o de n.77). Há também o caso do guarda que, num primeiro momento, assume a postura de liderança e, depois, passa a se submeter ao líder Berus. Por fim, ainda pontuando aspectos da Psicologia Social, devemos destacar os conceitos de grupo social e de papéis sociais. Recordando o primeiro dia da Experiência, lembraremos que ele é relativamente tranquilo e por quê? Porque os grupos ainda não estavam bem definidos. Os papéis sociais de guarda do presídio e de preso, já internalizados em cada um e expressos nas atitudes e nas comunicações que eles fizeram nos vídeos-testes, ainda não haviam se mostrado. A institucionalização que, conforme Berger e Luckmann (A construção social da realidade, Petrópolis: Vozes, 2005), começa com o estabelecimento de regularidades comportamentais vai se dar no momento em que os guardas começam a impor sua autoridade, fazendo valer as regras da prisão e, principalmente, fazendo uso da submissão via humilhação. Surge, a partir daí, uma outra fonte de discussão: o efeito do poder atribuído e imposto ao/sobre o homem. E, talvez, para encerrar essa reflexão, “A Experiência” seja um filme tão perturbador para alguns, pois ele nos põe frente-a-frente com verdades humanas: a) somos agressivos e precisamos de controle; b) o poder tem efeitos aterrorizadores nos humanos; c) conflitos de interesses, arrogância, o desejo de poder e supremacia de uns sobre ou outros, impulsos primitivos de uma espécie dita racional, surgem facilmente e podem gerar atos de selvageria típicos da humanidade. Por tudo isso, “A Experiência” é um filme que deve ser visto e discutido por todos os que se interessam pelo ser humano e suas muitas faces. OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 2, Ano 2010 ISSN 2176‐9249