I NTRODUÇÃO 22 de abril de 1500 O almirante português Pedro Álvares Cabral chegou à costa americana por acaso. Ventos caprichosos do Atlântico o tinham impedido de seguir a rota planejada, a de seu antecessor, Vasco da Gama, que passava pelo Cabo da Boa Esperança para terminar na Índia. A viagem de Cabral havia sido dramática porque, na altura da África, uma das embarcações de sua frota desapareceu no mar, com 150 marinheiros a bordo, e nunca se encontrou seu rastro. O fato realmente inquietante sobre esse acidente foi que o navio afundou sem motivo aparente, nem sequer poderia se dizer que teria sido por causa de um temporal. Então, em busca de ventos propícios para dirigir-se ao Cabo da Boa Esperança, Cabral derivou para oeste. E algum tempo depois, seus marinheiros encontraram massas de longas e arrevesadas algas na superfície do mar e viram voar uns pássaros barrigudos. Nessa mesma tarde avistaram terra. Ancorados em uma esplêndida baía tropical, Cabral enviou um de seus oficiais para explorar a praia e o rio. Assim que pisaram na areia, o português e seus homens se encontraram com um grupo de índios tupi, que o olharam com assombro e certo medo. De longe, o oficial tentou falar com eles, mas o som das ondas silenciava sua voz. Então lhe veio uma ideia, jogar um gorro vermelho, e logo lhes atirou um gorro de linha que estava usando e depois um chapéu negro. Passaram-se alguns segundos eternos, antes de os índios reagirem. Alguns segundos de expectativa máxima antes do instante em que não só dois grupos de homens, senão dois povos, dois continentes, iriam se encontrar oito anos depois da chegada dos espanhóis na América. Em seguida, um dos indígenas lançou ao lugar onde estava o oficial um colar de penas de tucano, vermelhas e laranjas. Outro saiu da tremenda espessura vegetal oferecendo uma folhagem num galho coberta de avelórios, como um colar de contas que pareciam pérolas. O oficial ficou extasiado diante da aparência daqueles indígenas: estavam seminus, seus corpos estavam pintados com tintas de cor vermelha e preta, a cabeça levava enfeites feitos de penas multicoloridas e o cabelo fora cortado na mesma altura na franja, acima das 1 miolo1.indd 1 15/02/2012 15:28:19 Javier Moro orelhas. As mulheres o fascinavam, ainda que o violentasse o espetáculo aberto que ofereciam “suas partes genitais”. Ao anoitecer, Cabral recebeu dois indígenas no castelo de popa de seu barco. A luz de algumas tochas realçava seu colar dourado, a elegância de seu uniforme e sua distinção. Sentado em uma larga e imponente poltrona com um tapete aos seus pés, suportou uma decepção ao comprovar que os índios não lhe prestaram a mínima atenção. Obviamente não tinham chefe, nem sequer uma hierarquia. Os marinheiros lhes mostraram uma cabra, mas os índios permaneceram indiferentes. Logo lhes trouxeram uma galinha, a qual lhes deu tanto medo, que não quiseram pegá-la com as mãos. Foi oferecido a eles pão, peixe cozido, doces, mel, figos secos..., mas não provaram nem um pedaço sequer e quando o fizeram, cuspiram fora. Em última análise, a única coisa que impressionou os índios foram os objetos de ouro e prata que viram no barco. Na manhã seguinte, indicaram com o braço em direção à terra para dizer que ali também havia ouro e prata. Essa mensagem não caiu em ouvidos moucos. Imediatamente, Cabral decidiu deixar em terra dois presidiários que viajavam no barco e que haviam sido condenados à morte em Lisboa, para que aprendessem o idioma e os costumes dos nativos. Foi um momento trágico na história do descobrimento, porque nem os índios queriam esses intrusos, nem os presidiários desejavam ficar ali, à mercê do desconhecido. Cabral, sem sombra de dúvida, foi implacável. A frota em seu comando zarpou para a Índia e deixou aqueles dois infelizes chorando na praia. Assim, o almirante tomava posse dessa terra para Portugal e ficaria plantada a semente de um novo país-continente. Na realidade, o primeiro descobridor fora o espanhol Vicente Yáñez Pinzón, que um mês e meio antes da chegada de Cabral formou-se o primeiro europeu a chegar à costa de Pernambuco e explorar a desembocadura do Amazonas. Entretanto, em virtude do tratado de Tordesilhas de 1494, que dividia aquele território entre Espanha e Portugal, Pinzón não podia reclamar aquela descoberta para a coroa espanhola. O nome Brasil chegaria mais tarde, no século XVI, quando os primeiros colonos começaram a exportar a árvore que os índios usavam para extrair suas tintas e se pintarem daquela maneira que tanto fascinou o oficial português e que chamavam de pau-brasil, por desprender uma coloração avermelhada quando fervida em água, o que sugeria as chamas de um fogo ou as brasas do carvão incandescente. De Terra do pau-brasil, acabaria posteriormente abreviando-se para Brasil. 2 miolo1.indd 2 15/02/2012 15:28:19 1 Rio de Janeiro, 1816 P edro de Bragança e Bourbon acabara de completar 18 anos e estava apaixonado. Era um garoto magro e musculoso, com grandes e brilhantes olhos negros e um olhar lânguido. Cachos de cabelo castanho emolduravam seu rosto de pele bronzeada pela vida ao ar livre, iluminado por um sorriso sempre alegre. Era um adolescente impulsivo, muito ativo e com disposição para as atividades físicas. Sem ser muito corpulento, dava a impressão de ser mais alto do que em realidade era. Naquela corte cerimoniosa e antiquada de Portugal, o con­ sideravam um príncipe excêntrico: banhava-se nu na praia, tinha amizade com os carpinteiros da oficina do palácio e gostava de trabalhar com as mãos, apesar de os trabalhos manuais serem considerados coisas de escravos. Sabia laçar cavalos com a ajuda dos peões e ferrar esses animais melhor do que um profissional. Gostava de sair para caçar com seu irmão Miguel, quatro anos mais novo que ele, a disparar contra os jacarés que se arriscavam a fazer sua sesta no braço de um rio, ou a perseguir onças-pintadas e cervos até a selva virgem que se estendia, densa e opaca, pelos arredores do Rio de Janeiro. Miguel era mais baixo e robusto e seus olhos eram um pouco saltados. À primeira vista, ninguém diria que eram irmãos. Os cortesãos, que sempre foram o alvo preferido de suas brincadeiras, não poupavam adjetivos para descrevê-los: preguiçosos, vigaristas, pilantras, astutos, malandros etc. Em certa ocasião, o almirante de uma esquadra britânica lhes presenteou com dois canhões de bronze fundido em miniatura, montados em suas rodas. Os garotos esperavam horas em seu quarto e disparavam nas pernas dos que passavam pelo corredor do palácio. Mais de um cortesão terminou com as panturrilhas queimadas. Nem os criados nem os próprios pais conseguiram descobrir onde eles encontravam pólvora. A diferença era que Pedro dava a cara a bater, Miguel era fugidio e mentiroso. Sempre que podia, se escudava em seu irmão mais velho, por quem sentia uma mistura de admiração e inveja. Além de ser o mais velho, tudo para ele dava certo. Sem esperança de um dia subir ao trono por ter uma posição muito inferior à de Pedro na linha de sucessão, nada continha seus maliciosos impulsos: 3 miolo1.indd 3 15/02/2012 15:28:19 Javier Moro Miguel adestrava cães para que atacassem os visitantes e era rancoroso, arrogante e tirânico com os serviçais. Os irmãos gostavam de jogos violentos, lhes excitava sentir o estímulo do perigo e isso continuou por toda a vida. Quando eram adolescentes, as corridas de carruagem que disputavam nas novas calçadas do reino eram o terror da vizinhança. Corriam enlouquecidamente, com o risco de perder o equilíbrio e serem arremessados; e inclusive, chegavam a tocar suas rodas para que um descarrilhasse o outro, atiçando os cavalos sem se importar se iriam atropelar alguém ou não, tampouco ligavam para os pontos de venda de frutas que destruíam, muito menos para as pessoas que sujavam com o barro que salpicava e menos ainda com a exaustão de seus cavalos cobertos de suor. Saíram milagrosamente ilesos de vários acidentes. Uma vez passado o susto, recomeçavam tudo do mesmo jeito, porque necessitavam da emoção daquele risco, assim como precisavam do ar para respirar. Invariavelmente Pedro ganhava, o que provocava a raiva de Miguel. — É normal que eu ganhe — dizia ele para consolá-lo. — Você é menor. Espere um pouco e verá como um dia vai me vencer. Contudo, Miguel odiava que fosse lembrado daquilo. Ganhar de Pedro era o seu mais ardente desejo, que na idade adulta se transformaria em uma obsessão. Ainda crianças, assim que podiam escapar da vigilância dos preceptores e criados, ambos se perdiam no imenso parque que rodeava o palácio de São Cristóvão, sede da monarquia portuguesa transferida para o Brasil, localizado a cinco quilômetros do centro do Rio de Janeiro. Brincavam de esconde-esconde, subiam as palmeiras e colhiam cocos frescos que logo abriam com uma pedrada para beber a água. Às vezes eles cruzavam com algum caçador que trazia uma onça viva ou macacos com pelagens surpreendentes e olhos saltando da órbita e iam admirá-los através das grades de uma jaula. Mas o que mais os divertia era brincar de guerra, sem suspeitar que um dia teriam que lidar com uma de verdade. Na selva circundante, cada um dirigia seu próprio exército de meninos escravos. Enfrentavam-se em sangrentas batalhas e se atacavam com facas, paus, pedras, atiradeiras, estilingues e armações com folhagens. A fúria que empregavam nos combates era apavorante para a idade dos combatentes e o número de feridos, altíssimo. Depois de um corpo a corpo feroz, muitos garotos acabavam com a cabeça ferida, jorrando sangue brilhante sobre a pele negra, e outros acabavam com os braços fraturados ou cortes no abdômen. Alguns perdiam a consciência pelas contusões na cabeça, enquanto Pedro e Miguel, tomando-se por generais, dividiam ordens, distribuíam as tropas, discursavam para seus soldadinhos e os estimulavam quando os viam acovardar-se. 4 miolo1.indd 4 15/02/2012 15:28:19 O império é você E como sempre, o exército de Pedro ganhava, para o grande desalento do pequeno Miguel, que não hesitava em castigar com crueldade seus soldados-escravos, a quem sempre atribuía a causa da derrota. Aquele jogo cruel acabou no dia em que Miguel, usando um mosquete, deixou gravemente ferido um de seus soldadinhos-escravos. Então, os preceptores reais interviram e deram ordem para acabar com aquelas hostes infantis. Ambos os irmãos haviam crescido ao sabor da boa vontade de Deus, já que vinham de um ambiente familiar onde quase ninguém dava importância ao conhecimento e à cultura, num meio onde se considerava a coisa mais natural do mundo que o filho de um europeu ou de alguém de origem europeia tivesse sua própria escrava para desfrute sexual, onde se valorizava era que os jovens andassem com mulheres, que fossem conquistadores, defloradores das jovens e que se utilizassem de gestos e palavras obscenas para que não fossem tachados de afeminados. Isso era válido para todo o espectro social, da plebe à corte. Antes de chegar ao Brasil, quando ainda viviam no palácio onde nasceram, lá em Queluz, próximo de Lisboa, as criadas brasileiras, com sua pele cor de canela e sua desenvoltura, tinham contribuído de maneira eficaz para o despertar de seus sentidos. Da sexualidade precoce de Pedro haviam sido vítimas as donzelas que desde criança lavavam sua roupa, o vestiam e o arrumavam com esmero nos dias de gala. Rosa, a anã brasileira que se convertera em mascote de sua avó, a rainha Maria, se deixava apalpar entre as coxas quando não havia ninguém por perto. Ainda que desde pequenos fizessem tudo que fosse possível para fugir das restrições que a condição de príncipes lhes impunha, Pedro e seu irmão Miguel não tinham outra saída exceto comparecer às cerimônias oficiais. Ambos ficavam entediados, mas Pedro suportava melhor. De menino já fazia como seu pai, estendia a mão para receber os beijos reverenciais dos adultos, no entanto, pobre do garoto que se aproximava, porque ele bruscamente se levantava e lhe dava um forte soco no queixo. E continha a gargalhada enquanto os pais levavam dali aquele estupefato rebento, para evitar um escândalo. Todos o chamavam de Dom Pedro desde que iniciou o uso da razão. A princípio, seu destino não era ser o primeiro da linha de sucessão, porque não era o primogênito. Isso era algo que dizia respeito a seu irmão mais velho, que se chamava Antônio. Até que um dia, ainda muito criança, Pedro percebeu um grande alvoroço ao seu redor; viu sua mãe chorar e seu pai invocar, com o punho alçado para o céu, a maldição dos Bragança, uma lenda nascida séculos antes depois que um rei de Portugal agrediu a pontapés um monge franciscano que lhe 5 miolo1.indd 5 15/02/2012 15:28:19 Javier Moro pedia esmola. O frade, em represália, jurou que jamais um primogênito varão dos Bragança viveria o bastante para chegar ao trono. E aquela maldição se repetia, geração após geração, com uma precisão arrepiante. Através de um vitrô do palácio de Queluz, o pequeno Pedro viu distanciar-se um cortejo de pessoas vestidas de preto caminhando por uma alameda bordeada de ciprestes, encabeçado por um grupo de cortesãos que levavam aos ombros um pequeno caixão branco. Disseram a ele que, nesse caixão, seu irmão mais velho ia direto para o céu. Tinha morrido de febre aos seis anos de idade. No palácio só se ouvia o desesperado grito de sua avó, a rainha Maria, que já se encontrava senil. Mais tarde, quando os integrantes do cortejo regressaram e o ambiente já havia se acalmado, uns potentes braços o levantaram do solo. Era sua ama de leite, que mantinha a cabeça coberta com um manto preto e tinha seus olhos avermelhados; olhou fixamente no rosto, tão parecido com o de seu irmão recentemente morto, e lhe disse: “Pedro, agora é com você, um dia será rei”. Então sua vida mudou. Até esse momento, seu pai não havia se preocupado em proporcionar a seu filho mais informação do que aquela que já havia recebido como segundo na linha de sucessão. Isso quer dizer, bem pouca. Para que instilar noções de história, geografia ou sobre a arte de governar a um menino que a princípio não estava destinado a reinar? Esse era o tipo de raciocínio da época. Trinta anos antes, tampouco Dom João havia recebido uma educação esmerada, porque quem estava destinado a reinar era seu irmão mais velho, José, um jovem bonito, inteligente, de caráter decidido e independente, mas que não pôde escapar da maldição e morreu aos 26 anos de idade. E logo Dom João e sua mulher Carlota Joaquina se viram catapultados a um lugar de proeminência, o de príncipes e futuros herdeiros do trono. Ela estava feliz, porque era ambiciosa, mas ele se sentia um amaldiçoado. Mais tarde, Dom João, ou João o Clemente, como os vassalos o chamavam, assumiu a regência quando a rainha Maria foi declarada incapaz de governar devido à sua alienação mental, mas ele o fez a contragosto. Sentia pânico ao ter que enfrentar as responsabilidades para as quais nunca havia se sentido preparado e que nunca desejara. Era um homem indeciso, tímido, indolente, medroso, preso aos padrões antigos. Nunca demonstrara interesse especial nem pelas letras, nem pelas ciências e nem pela arte de governar. De fato, sempre redigiu mal, com erros de ortografia e sintaxe. Toda a sua vida havia vivido em companhia dos frades e, no fundo, ele se sentia um pouco monge. Aficionado por música sacra, seu maior vício era a glutonaria e se, quando jovem, ele gostava de caçar, era só porque isso lhe permitia fartar-se da carne de cervo. 6 miolo1.indd 6 15/02/2012 15:28:19 O império é você Ao morrer seu filho primogênito, Dom João quis recuperar o tempo perdido com Pedro e lhe designou um tutor que teve muitas dificuldades para manter a atenção do menino, nada acostumado a estudar. Uma vez já instalados no Brasil, continuou cuidando para que seu filho tivesse bons professores, homens como Frei Antônio de Arrábida, confessor e preceptor de religião, um homem culto e piedoso, que soube inculcar em Pedro certo respeito pelo conhecimento humanista. Ou João Rademaker, um diplomata de origem holandesa que falava quase todos os idiomas europeus e lhe ensinou os princípios da matemática, lógica, história, geografia e economia política. No entanto, nenhum dos dois teve uma real ascendência sobre seu espírito indomável, nenhum lhe deixou sua marca. Como seria possível, se nunca lhe exigiram mais de duas horas de estudo formal por dia? O esforço para concentrar-se deixava Pedro mentalmente esgotado. Quando se entediava com uma lição, simplesmente deixava o professor ali plantado e ia embora. Saía e dirigia-se para às quadras reais, para domar seus potros e fazia estalar seu grosso chicote de carroçaria enquanto distribuía ordens entre os escravos. O fato de tratar com as pessoas mais comuns lhe permitiu rapidamente superar a consciência de ser alguém excepcional. Comunicativo, curioso, alerta, nervoso, gostava das piadas sujas que lhe contavam nas esquinas dos quarteirões, ruas e praças, apreciava ir para as tabernas frequentadas somente por europeus e fazia isso disfarçado com uma capa e um chapéu de aba longa, se fazendo passar por um paulista para beber, jogar, cantar, tanger o berimbau ou tocar marimba. Nos botecos, Pedro se divertia dançando o lundu angolano, precursor impudico do samba que a Igreja havia proibido, porque começava com um “convite ao baile” em que o homem e a mulher esfregavam as barrigas. Ou corria para mergulhar despido na praia. Um dia, quando descoberto por um grupo de senhoras da corte, soltou uma gargalhada, mas não correu para cobrir-se, e sim plantou-se diante delas, provocador, mostrando suas partes com insolência e orgulho. Seu pai pouco o repreendia, e como consequência não havia como disciplinar seu filho. Não fez isso somente por ser brando, ou porque sempre estivesse por demais concentrado nos assuntos do Estado, não tendo como ocupar-se de sua família, senão porque sabia que Pedro, apesar de parecer bagunceiro e muito saudável, era vítima de um mal que tinha herdado da linhagem de sua mãe, do lado espanhol. Só havia se manifestado uma vez e de forma sutil, depois que seu pai o repreendera por portar-se mal à mesa. O menino ficou por alguns segundos preso em convulsões, com os olhos brancos e um fio de saliva escorrendo dos lábios. Dom João não precisou falar com nenhum médico para adivinhar a natureza daquele mal. A 7 miolo1.indd 7 15/02/2012 15:28:19 Javier Moro epilepsia era uma velha conhecida da família. O ataque havia sido muito leve, mas todos sabiam que aquela enfermidade não tinha cura e voltaria a se manifestar, cedo ou tarde. Dom João achava que não convinha contradizer o garoto, enfrentá-lo ou mesmo deixá-lo nervoso. Haviam contado a ele que as pessoas evitavam castigar Napoleão ainda quando menino, depois do episódio em que o colocaram para comer de joelhos, porque isso pareceu ser o que lhe provocou um ataque epilético. Os conselheiros de Dom Pedro sabiam que aquilo não era grave e que se poderia conviver com a enfermidade. Não diziam que Sócrates também era epilético? Que Napoleão padecia das crises em dias de grande tensão? A questão é que, por esse motivo, Pedro desfrutou de uma liberdade inusitada. De seu pai, Pedro tinha herdado uma inteligência sutil, uma bondade natural, certo senso de sobrevivência, a cobiça e a avareza pelo dinheiro e a inclinação pela música. Tocava clarinete, flauta, clavicórdio e um pouco de violino. De sua mãe, a espanhola Carlota Joaquina, filha de Carlos IV, herdou a paixão pelos cavalos, um forte espírito de independência, o sangue quente e um insaciável apetite pelos devaneios amorosos: desde criadas negras até filhas de altos funcionários da corte, todas estavam expostas às suas audácias quando regressava de suas caçadas e se intrometia nos quartos das serviçais. Ainda que ultimamente ele as deixasse em paz, pois se dedicava mais a ir à cidade para ver a jovem que lhe tirava o sono. Nunca imaginou que seu coração daria tamanha virada quando viu pela primeira vez aquela bailarina francesa executar sua dança com tanta graça no Teatro Real do Rio de Janeiro. Apesar de sua tenra idade, Pedro acreditava já estar bem “temperado” em questão de mulheres, no entanto até então nunca tinha sofrido a mordida do amor. 8 miolo1.indd 8 15/02/2012 15:28:19