Mitologia Grega Prof. Marcus Reis O Espanto é o princípio da mitologia grega. Deixar-se dominar pelo Espanto é o primeiro passo para participarmos do mundo grego, cujos deuses e heróis, em suas aventuras e desventuras, constituem o cerne deste curso. Poucos são os momentos em que conseguimos vislumbrar o mundo cheio de deuses, raros os momentos em que andamos no mundo percebendo a extraordinária estranheza de tudo o que nos cerca: falta-nos o olhar limpo e penetrante da criança, que tem a coragem de contemplar e indagar pelo princípio de tudo ao seu redor. Em nossa pressa e objetividade, espremidos pelos intervalos angustiantes do ponteiro do relógio, em nossas certezas e opiniões, nunca nos permitimos o ócio sagrado para nos perguntar o sentido desta vida, e perdemos a magia e a poesia que constroem o nosso mundo: é então que os deuses gregos podem vir ao nosso auxílio, se tivermos a sorte de nos encontrar com o Espanto originário que lhes é peculiar. O homem sempre contou histórias sobre o mundo que o cerca. O mundo é repleto de personagens criados pela cultura, criados por histórias fundamentais que forjam nosso modo de ser e viver e, assim, compreender tais personagens é compreender um pouco sobre nós mesmos. Para os gregos, no entanto, tais personagens não são apenas traços básicos do ser humano, mas são manifestações da própria natureza, são modos de ser do mundo ao nosso redor, descritos e delimitados por grandes poetas que tiveram a sensibilidade de chegar ao âmago das coisas. “O mundo está cheio de deuses”, dizia Tales de Mileto, considerado o primeiro filósofo do ocidente, e a mitologia grega apenas corrobora o ditado do pensador. O mundo dos deuses gregos é uma descrição dos aspectos fundamentais da vida cultural que de alguma forma perdura até os dias de hoje e conhecer as suas histórias, suas lutas, suas perdas, conquistas e aventuras é também conhecer os valores e pilares do mundo em que vivemos. O ritual é o lugar em que estes personagens divinos se manifestam. O sentido rigoroso do mito se configura sempre por um ritual que encena aquele mito: é na 1 experiência religiosa que o sentido mais profundo do Deus ganha consistência, pois passa a existir na vida daqueles que compactuam o mesmo ritual. Não podemos entender rigorosamente os deuses gregos se não os colocamos sob o enfoque dos rituais em que eles eram celebrados. As festas religiosas gregas são o lugar da experiência do sagrado e a sua característica fundamental é a de serem uma psicagogia, uma condução da alma. Os espectadores de uma tragédia, exemplo de uma festa religiosa, ficavam de tal modo envolvidos pelo drama que suas almas eram conduzidas para o que ali se passava. A psicagogia é o que se espera da experiência religiosa de um ritual, pois tal condução plasma a alma no mundo em que ela vive, configura os elementos axiológicos fundamentais do nosso universo. Assim, a verdade de um mito não está no seu correlato factual, mas na profundidade da realidade cultural que ele descreve: o mito descreve uma realidade axiológica, importante para uma comunidade e sua existência concreta é apenas um detalhe que não lhe retira nem acrescenta grandeza. Cabe, ainda como apresentação, uma lista das divindades gregas, de modo a nos guiar no emaranhado de sua genealogia. O panteão grego é normalmente dividido em deuses ctônicos e deuses olímpicos. Os deuses ctônicos (da terra) expressam realidades instintivas, primárias, impulsivas, obscuras; são os deuses mais antigos, como Gáia (Terra), Ouranos (Céu) e Pontos (Mar), mas os Titãs são seu melhor exemplo. Os deuses olímpicos são relacionados com a luz e a justiça, e Apolo e Zeus são os mais representativos. Pode-se dizer que os deuses ctônicos, também chamados de telúricos, foram seres cultuados primitivamente na região da Grécia, suplantados por novas divindades, ou reestruturados por novos cultos, perdendo assim, a guerra para estas novas forças de luz. Assim, provavelmente vemos expresso na mitologia dos gregos a história das mudanças em sua própria religião. Estes deuses primordiais, derrotados pela eterna juventude dos olímpicos, são como forças primitivas da natureza, ligados ao nascimento e à morte, pouco antropomórficos, deuses mais violentos e brutos. Eles fazem uma clara contraposição aos aspectos de reflexão e elevação espiritual típicos dos deuses olímpicos, ligados à eternidade extática e ao céu puro e brilhante. Esta distinção apresenta uma imagem da guerra arquetípica entre Luz e Sombra, dois pólos que não podem ser pensados sem sua natural mútua implicação. Assim como a oposição entre Apolo e Dionísio (um outro nome para a oposição ctônico-olímpico), os deuses gregos em suas lutas não podem ser compreendidos como forças antagônicas que não se completam: ao contrário, a sua luta somente expressa a necessidade de sua 2 interconexão. Vale lembrar que Dionísio, o deus da embriagues e do êxtase, filho de Zeus e Sêmele, está entre os olímpicos e representa muito bem o elemento telúrico entre eles. Apesar de a religião grega não dispensar tal tensão de forças opostas, os olímpicos são os deuses principais da Grécia antiga, deles são as principais festas religiosas, eles são os protagonistas dos mitos basilares da cultura grega. Entre os oito Deuses masculinos a serem estudados, três são filhos dos antigos Titãs, Crono e Réia: Zeus, o senhor do Olimpo, deus do trovão, executivo, hábil conquistador; Posídon, o rei dos oceanos, instável emocionalmente, deus do tridente, e das tempestades do mar; Hades, também chamado de Plutão, o rico, rei do mundo dos mortos, deus do elmo de invisibilidade, que rapta Perséfone como esposa. Os cinco deuses restantes são filhos de Zeus, mas nem todos gozam de simpatia por parte do senhor do Olimpo. Apolo, o deus do sol, da música e da adivinhação, é um dos mais importantes na Grécia, símbolo do equilíbrio, harmonia e da reflexão, porém violento e implacável quando ultrajado. Hermes, deus mensageiro e traiçoeiro, protetor dos comerciantes, condutor do caduceu e inventor da lira, junto com Apolo e Dionísio são os deuses mais amados e respeitados pelo pai Zeus. Ares, terrível deus da guerra, sedento por sangue e sem refinamento é chamado pelo próprio Zeus como o mais odioso entre os deuses. Hefesto, deus coxo, ganha este defeito físico por ter sido arremessado do Olimpo pelo próprio Zeus ao defender Hera, sua mãe em uma disputa com o deus do trovão. Hefsto é o deus ferreiro e senhor do fogo e os maiores artefatos, incluindo o famoso escudo de Aquiles, foram por ele forjados. Dioniso, deus do êxtase, do vinho, nascido duas vezes, deus da agricultura e da fertilização é um amante entusiasta, libertário e dinâmico. Deus da loucura, da orgia e da dança, é um dos mais importantes para a arte dramática grega. No livro As deusas e a mulher, é descrita uma interessante distinção entre as sete deusas olímpicas: primeiro, existem as deusas invioláveis, virgens, que não se deixam dominar; depois, as violáveis, dominadas por seus maridos; por fim, teríamos Afrodite, deusa alquímica, que contém elementos das duas primeiras categorias. Atena, a deusa mais importante do panteão grego, é a preferida do pai Zeus, deusa guerreira e estrategista, a deusa de olhos glaucos, a deusa das artes e da própria filosofia. Ártemis, a virgem caçadora, é a deusa dos animais e da floresta, irmã gêmea de Apolo, a quem ama muito, e personifica a independência do espírito feminino: é a protetora das jovens 3 virgens. Aparece muitas vezes carregando o arco e a aljava e é seguida por seus animais. Héstia é a deusa do foyer, do fogo religioso e, cosmologicamente, do fogo central que aquece a terra, o nosso grande lar. É também uma deusa virgem, invulnerável, que vive solitária, silenciosa e extática no Olimpo. É uma deusa fundamental para a vida do dia-a-dia dos gregos. Hera é a mulher-esposa, guardiã das relações lícitas e está sempre amargurada com as traições de Zeus, o fecundador. Apesar de ciumenta e vingativa, pode ser uma companheira leal e fiel quando correspondida em seu amor. Ela é a grande inimiga de Hércules (que por ironia tem, em grego, o nome de “Glória de Hera”, Heracles), e também de inúmeros outros filhos extraconjugais do senhor do Olimpo. Deméter, que em verdade faz um par indissociável com Perséfone, é a deusa da fertilidade e por causa dela toda a terra frutifica. Recolhe-se por seis meses ao ano, quando sua filha é forçada a ficar com seu raptor, Hades. Deméter é indiscutivelmente o arquétipo do materno, sempre em busca de sua filha, que após comer sementes de romã junto a Hades, não pode mais deixá-lo por definitivo: assim como a natureza floresce periodicamente, Demeter também tem o prazer de periodicamente estar junto de sua filha, mas têm também o desprazer de estar longe dela, simbolizando a perda da fertilidade do solo. Por fim, Afrodite, a deusa do amor e da beleza, amante insaciável por natureza é tanto vulnerável, por se deixar penetrar pelos seus amores, quanto indomável, por nunca se assujeitar a nenhum deus. Casada com Hesfesto, o deus coxo, é famosa por suas relações extraconjugais, especialmente com Ares. Tais traços gerais servem apenas como indicações básicas para navegarmos no mar revolto e grandioso dos deuses gregos. Em verdade, conhecê-los melhor é conhecer os pilares de nossa cultura ocidental, e para isto uma investigação muito mais séria e comprometida, muito mais espantosa, é necessário. Vamos a ela. 4 Bibliografia Geral BOLEN, Jean Shinoda. As deusas e a mulher: nova psicologia das mulheres. 4. ed. São Paulo: Paulus, 1990. __________. Gods in everyman. São Francisco: Harper & Row, 1989. BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego. Tragédia e Comédia. Petrópolis: Vozes, 1984. __________. Mitologia Grega. Vols I – III, Petrópolis: Vozes, 1996. CAMPBELL, J. As máscaras de Deus. São Paulo: Palas Athena, 1992. __________. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 1995. ÉSQUILO. Orestéia. São Paulo: Iluminuras, 2004. EURÍPIDES. Medeia. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1977. 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