Ana Remígio relatos de pesquisa A TRAVESSIA DA BORBOLETA: O TEXTO SIMBÓLICO EM LUCÍOLA * RESUMO O presente artigo, um recorte da dissertação Lucíola calidoscópica – os símbolos das imagens alencarianas (UFC, 2005¹), mostra a construção da imagem de metamorfose pela qual passa a protagonista de Lucíola (1862), na busca pela redenção. Tendo como símbolo-base a borboleta, José de Alencar, por meio do narrador Paulo, mostra a transformação da personagem nas transições Maria da Glória-Lúcia-Maria da Glória. A esmerada artesania textual do escritor cearense mostra-se na construção das imagens que se utilizam de símbolos de renovação e elevação espiritual. Jean Chevalier, Alain Gheerbrant e Jack Tresidder com seus esclarecimentos sobre símbolos, além de Gaston Bachelard e Mircea Eliade foram fundamentais na elucidação das imagens alencarianas. * Mestre em Literatura Brasileira/ UFC. Professora Assistente I/UERN.E-mail: [email protected] Palavras-chave: Simbólico. José de Alencar. Transformação. ¹ Bolsista da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico - FUNCAP 1 INTRODUÇÃO luxúria ao branco da pureza e o azul do manto de Nossa Senhora da Glória), no Uma leitura atenta do romance entanto, o texto mostra uma construção Lucíola (1862), de José de Alencar, revela imagética através do simbólico que revela uma o profusa simbologia apoiando a esmero artesania defesa feita por Paulo, que buscava fugindo mostrar a alma cristã preservada no comprometeriam corrupto corpo de Lúcia – a construção da (BACHELARD, 2003, p. 124). imagem de uma mártir. das da imagens o alencariana, explícitas, caráter que atrativo Este artigo é um pequeno recorte Cores são os símbolos mais de uma ampla investigação sobre as óbvios e imediatos (do vermelho da imagens construídas com apoio simbólico C&D-Revista Eletrônica da Fainor, Vitória da Conquista, v.5, n.1, p.175-187, jan./dez. 2012 175 REMÍGIO, A. em Lucíola, que resultou na dissertação como completo evidencia uma mudança Lucíola calidoscópica – os símbolos das radical. imagens alencarianas (UFC, 2005). O mudança não se mostra apenas na recorte aparência externa, mas, principalmente, em questão especificamente, transformação relaciona-se, ao processo pelo qual de passa a protagonista Para a protagonista, essa no íntimo. A conduta de Lúcia, antes libertina (aparentemente distante de Deus, uma pagã), direciona-se para uma Uma insistente borboleta elevação perpassa pelo texto. Antes que esse portanto, inseto esplendoroso processo hemimetabólico (parcial), no exemplar de graciosidade, leveza e cor, é qual os adultos mantêm a forma jovem, uma que chegue repelente a um larva, devoradora da beleza dos jardins. Aos poucos, podemos no enredo descuidadamente por aberta uma por janela Alencar. Regina Lúcia Pontieri (1988, p. 114) daqueles acrescida Diferencia-se, insetos de que mais têm alguns elementos. compreender que esse lepidóptero não entrou é espiritual. O símbolo encontrado, portanto, fala de mudança, um e processo toma-lhe de completa emprestada a passagem da vida: observa que a imagem da metamorfose Agora apenas metáfora de frivolidade, a borboleta é antigo símbolo de imortalidade, da qual o ciclo de vida proporciona analogia perfeita: a vida (a rastejante lagarta), a morte (a escura crisálida) e o renascimento (a alma a flutuar em liberdade) (TRESIDDER, 2003, p. 53). da borboleta é obsessiva nos textos do escritor cearense. No caso da protagonista de Lucíola, observaremos que é a passagem da “terra carnal” para a vida “aérea” (BACHELARD, 2003, p. 139), ou seja, para a espiritualidade. Partindo das características Antes de analisarmos o processo biológicas, as borboletas são insetos diurnos, que passam por processo de metamorfose completa, compreendendo quatro fases – ovo, larva, crisálida e imago. O fato de o processo ser descrito 176 da personagem, notemos que o inseto citado cinco vezes1 no texto foi uma borboleta. Em momento algum, o autor se 1 (ALENCAR, 1965, p. 239, 244, 254 (2 vezes) e 327) C&D-Revista Eletrônica da Fainor, Vitória da Conquista, v.5, n.1, p.175-187, jan./dez. 2012 A travessia da borboleta: o texto simbólico em Lucíola refere a uma mariposa, usualmente utilizada como símbolo para prostitutas. 2 OVO – Maria da Glória (antes dos 14 anos) Se eu ainda lá estivesse [...] (ALENCAR, 1965, p. 266) As mariposas também são lepidópteros que sofrem metamorfose completa, porém noturnos meretrizes). borboletas (daí A associação às Metaforicamente, o ovo pode ser simbólica das compreendido como algo que se vai consideravelmente, cumprir, uma promessa de vida em sua carga pende, para um lado diverso: formação, distante das ameaças do mundo exterior. Uma alma preservada. Simbolicamente, as borboletas são solares, diurnas. [...] Um sinal da primavera, do retorno da vida, da vitória sobre a morte e da ressurreição: a crisálida metamorfoseada em borboleta. A crisálida não é somente um símbolo do túmulo. É como um ovo. Ela contém a verdadeira potencialidade do ser, muito além das transformações somáticas. (MIRANDA, 2003, p. 239) Uma inocência preservada. “O ovo, considerado como aquele que contém o germe e a partir do qual se desenvolverá a manifestação, é um símbolo universal e explica-se por si mesmo” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1998, p. 672). Na simbologia cristã, o ovo é a ressurreição (TRESIDDER, 2003 p. 253- O mistério da transformação exerce 4) – promessa e esperança, também um grande fascínio há muito, despertando associado ao branco da casca – pureza. interesse pelas fases. Veremos que a Para Piero della Francesca, no retábulo protagonista as apresenta de maneira Madona e o Menino (1450), por exemplo, bem definida. Paulo a elas se refere como é a própria Imaculada Conceição – “gradações” (ALENCAR, 1965, p. 314), pureza, virgindade, portanto. enquanto busca a compreensão e o A família educa Glória: ela era perdão (post-mortem) para a amada, uma das poucas pessoas deste país, fundindo imagem e ideia, privilégio da naquela época, que sabiam ler2; aprendeu “imagem literária”, como assinala Gaston francês, piano... e, nos serões, as leituras Bachelard (2003, p. 135). 2 Informa Lília Moritz Schwarcz (2002, p. 118) que o recenseamento de 1872 apontou apenas 16% de alfabetizados no país – imaginemos, dentro dessa parcela já diminuta, o índice total de mulheres leitoras. C&D-Revista Eletrônica da Fainor, Vitória da Conquista, v.5, n.1, p.175-187, jan./dez. 2012 177 REMÍGIO, A. ou histórias do pai. Contudo, em uma rente ao chão, por onde se arrastam as adversidade (a febre amarela de 1850), a larvas. menina se vê sozinha, cuidando de todos perdê-los. A mão que a ampara, a única, na casa (seis pessoas), sustentando-se, é a de Jesuína, mas há um preço... Em por vezes, apenas com uma xícara de quinze dias, a menina era prostituta – e café ainda dá seu corpo em troca do bem-estar (ALENCAR, 1965, p. 315). O desespero e a mendicância são os guias Salvara seus familiares para da família. para a “queda”. De sua miséria aproveita- Em Caldas Aulete (1974, p. 2106), se um vizinho, que compra a virgindade o significado para larva é “o primeiro da menina. Na imagem de rompimento – estado dos insetos depois de saírem do casca/hímen (véus, na metáfora do autor) ovo”. E, para o sentido figurado de larval, – surge a segunda fase da personagem: “algo terrível, assustador”. Do Latim larva “Desde que os meus véus se (fantasma, espectro), encontramos as despedaçaram, cuidei que morria; não derivações senti mais nada, nada senão o contato frio medonho, terrível) e larvatus (adj. = das moedas de ouro que eu cerrava na endemoniado). minha mão crispada” (ALENCAR, 1965, p. aproximam da visão de Sá (o amigo de 436, grifo meu). Paulo) sobre as cortesãs, a quem chama Com a morte da inocência e o de (adj. larvalis Esses borboletas, = espectral, adjetivos mas, em se verdade, posterior abandono pelo pai (quando concebe-se em outra fase: “O verdadeiro, descobriu a origem do dinheiro), Glória acredita-me, é deixá-las arrastarem-se encontra uma vida de desgraça: sua nova pelo fase. (ALENCAR, chão no estado 1965, p. de larvas” 239). As larvas/lagartas despertam asco, o pavor 3 LARVA – a cortesã Lúcia pelo aspecto funesto. Além disso, causam apreensão, Morri pois para o mundo e para minha família. (ALENCAR, 1965, p. 317) Expulsa de casa, Glória não tem pois são obstinadas devoradoras da vida: alimentam-se com grande voracidade, causando irreparáveis prejuízos. para onde ir. Senta-se na calçada: está 178 C&D-Revista Eletrônica da Fainor, Vitória da Conquista, v.5, n.1, p.175-187, jan./dez. 2012 A travessia da borboleta: o texto simbólico em Lucíola Essa visão nociva associada às fortunas e recomeçar” (ADLER, 1991, p. prostitutas ainda perduraria como, por 22, grifo meu). De flor em flor, arruinando exemplo, neste fragmento de A cortesã, os jardins burgueses. de Rainer Maria Rilke (apud MEURER, 1995, p. 189), do início do século XX: Mesmo aqui, Alencar conspira por uma indulgência: Lúcia, tratada como larva devoradora pela sociedade Quem algum dia me viu, meu cão inveja, Que nele seguido, em absortas pausas, A mão, jamais num braseiro crestada, (manifesta na pessoa de Sá), prostituiu-se Invulnerável, toda jóias, se aquieta – E mancebos, porvir de nobres casas, Morrem-me à boca, qual envenenada. restasse apenas Ana, a irmã caçula – seu Entretanto, Lúcia (nascida nessa Lúcia recusa a imagem de uma “sultana por necessidade, um sacrifício: não por sua vida, mas pela salvação de toda sua família. Assim prosseguiu, até que lhe último “motivo santo” (ALENCAR, 1965, p. 320). Nesse seu (des)caminho/martírio, fase, com a morte de uma amiga de do ouro” (ALENCAR, 1965, p. 233), a infortúnio, com quem troca o nome) não arruinar e devorar: acompanha o modelo de cortesã voraz. Esse arquétipo mulheres traz devoradoras, a imagem que não de se importam em arruinar uma fortuna: “Os burgueses capitalizam e investem, as cortesãs são seu abismo” (ADLER, 1991, p. 37). A elas importa apenas o ter, em abundância, e o luxo: “Não basta pagar para poder possuir. Mas é preciso primeiro pagar. Pagar o apartamento, os cavalos de carruagem, os vestidos, as noitadas. Gastar, devorar, arruinar, rejeitar, para em seguida encontrar outras Não obstante, poucos minutos depois subia as escadas de Lúcia, e entrava numa bela sala decorada e mobiliada com mais elegância do que riqueza (ALENCAR, 1965, p. 236, grifo meu). Vi Lúcia sentada na frente do seu camarote, vestida com certa galanteria, mas sem a profusão de adornos e a exuberância de luxo que ostentam de ordinário as cortesãs (ALENCAR, 1965, p. 244, grifo meu). [...] Vendia-me, mas francamente e de boa-fé: aceitava a prodigalidade do rico; nunca a ruína e a miséria C&D-Revista Eletrônica da Fainor, Vitória da Conquista, v.5, n.1, p.175-187, jan./dez. 2012 179 REMÍGIO, A. de uma família (ALENCAR, 1965, p. 317, grifo meu). o sangue, mergulha o dedo na taça de Sauterne de Paulo. O líquido claro vai modelo enrubescendo, tornando o aspecto tinto. cortesã-verme na construção de Lúcia, O rapaz não resiste: “[...] esgoteio-o até a Alencar última gôta num assomo de galanteio Negando, já a indesculpável portanto, retira o da completa perdição. Ela e não romântico” (ALENCAR, 1965, p. 252). compactua com a histórica Cora Pearl, notável cortesã que levou Alexandre Eis o cálice do meu sangue... derramado por vós. Duval à ruína (GRIFFIN; SUSAN, 2003, p. Enquanto prossegue o banquete, Sá 266-267), ou com as fictícias Manon chama a atenção dos convidados para as Lescaut (que arrasta o Cavaleiro de telas eróticas que ornam o ambiente e Grieux Carmem oferece uma surpresa: “É nada menos (causadora da desgraça de D. José e que que o original delas: não o original frio e é referida no texto como serva de satã). calmo, à degradação) e mas um verdadeiro modêlo, Em noitada organizada por Sá, vivendo, palpitando, sorrindo, esculpindo Lúcia revela-se a bacante, no auge de em carne tôdas as paixões que deviam sua persona pagã (distante, portanto, das ferver no coração daquelas mulheres” relações (ALENCAR, 1965, p. 256) – Lúcia! estabelecidas com o cristianismo, que, nesse contexto, é o ideal de sagrado). Entretanto, A cortesã se despe e salta sobre a mesa. acompanhando a dualidade que permeia Eis o meu entregue por vós a parte inicial do livro, cortesã e menina corpo (Lúcia e Glória) estarão presentes na Ela ainda arranca uma palma dos bacanal: a primeira, em fogo luxuriante e jarros, trança-a e coloca-a nos cabelos, a segunda, em transtorno. O banquete de coroando-se. luxúria será também a cena de um A lembrança do sacrifício de sacrifício. Então, reunidos os convivas no Cristo evoca o aspecto destoante da espírito de Baco, algo destoa. cena. A palma esclarece o aspecto Lúcia corta-se ao quebrar uma sacrifical imposto a Lúcia: “O cristianismo taça em sua mão. A pretexto de estancar adotou a palma para mártires que haviam 180 C&D-Revista Eletrônica da Fainor, Vitória da Conquista, v.5, n.1, p.175-187, jan./dez. 2012 A travessia da borboleta: o texto simbólico em Lucíola triunfado sobre a morte” (CARR-GOMM, imagem mais imposta ao estereótipo da 2004, p. 177). Jack Tresidder (2003, p. prostituição do que efetivada por Lúcia. 258-9) ressalta que, desta forma, foi Surge uma nova fase. incorporada à iconografia de santos e mártires cristãos. Chevalier e Gheerbrant (1998, p. 4 CRISÁLIDA – o ocultamento provisório 680) esclarecem ainda que “As palmas de ramos, que equivalem ao buxo europeu, prefiguram a Ressurreição de Cristo, após Após o amanhecer, no jardim de Sá, os amantes se separam, esperando o reencontro. o drama do Calvário [e que] a palma dos mártires tem a mesma significação”. Dessa forma, Lúcia tem que “pagar a conta da ceia”, ou seja, de sua vida (onde o corpo é pasto dos homens), mas não será abandonada, já que sua espiritualidade está preservada, como podemos aferir ao longo do livro. plateia e perturbaram Paulo, que se retirou para o jardim, onde Lúcia vai encontrá-lo depois. Na manhã seguinte, após o entendimento entre ambos, Lúcia é a menina vista por ele, quando chegou ao Rio: “[...] tímida menina, amante casta ingênua, bebendo num e Lúcia iniciam um relacionamento. Ela desiste dos amantes e Paulo reconhece uma transformação na conduta da amada: “A cortesã que se despira friamente aos olhos de um desconhecido, em plena luz do dia ou na brilhante claridade de um salão, não se entregava mais senão coberta de seus Os quadros vivos extasiaram a e Paulo olhar a felicidade que dera, e suplicando o perdão da felicidade que recebera” (ALENCAR, 1965, p. 262). A cortesã vai se distanciando de ligeiros véus: não havia súplicas, nem rogos que os fizessem cair” (ALENCAR, 1965, p. 274). Desses “ligeiros”, poderíamos compreender algo que não se demora, transitório; em “véus”, algo que se oculta – um ocultamento provisório, uma antecâmara para uma última transformação: o final da metamorfose. Crisalida-se e o pudor tece seu casulo. Enclausura-se: não vê mais prazer em compras ou nas idas ao teatro. Recolhe-se. Lúcia e Paulo leem, jantam, sua vida “larval” que, na verdade, era uma C&D-Revista Eletrônica da Fainor, Vitória da Conquista, v.5, n.1, p.175-187, jan./dez. 2012 181 REMÍGIO, A. conversam, se amam, longe do mundo pela cortesã. Ao compreender o que se exterior. passa, Lúcia se desespera – aquele que a No Dicionário de Símbolos vemos que a crisálida é o retirara de uma vida de depravação, empurrava-a de volta. Em atitude masoquista, ela busca o pior, aquele que símbolo do lugar das metamorfoses [e que] mais ainda do que um envelope protetor, ela representa um estado eminentemente transitório entre suas etapas do devenir, a duração de uma maturação. Implica a renúncia a um certo passado e a aceitação de um novo estado, condição de realização (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1998, p. 302). foi o causador de sua ruína moral – o velho Couto que, dessa forma, simbolicamente, é a queda (aquele que tira a virgindade e que, pela segunda vez, macularia sua felicidade, levando a uma situação superposta de degradação): “[...] por ser mesmo o ente mais vil e ignóbil que eu conheço: pois era preciso que o Assim, tendo uma vida antes impensada, Lúcia afasta de si a indesejada cortesã. O amor por/de Paulo expande a porção mais íntima cristãos, vive ainda em pecado, pois não há legitimidade (oficialização) naquele par: vivem em fornicação, afastados de uma conduta cristã. O processo, portanto, seguir seu curso matar-me logo, e sem lenta agonia!” (ALENCAR, 1965, p. 289). (e resguardada) dela. Contudo, aos olhos deve suplício fôsse bastante violento para natural, Com ciúmes, Paulo combina, às vistas de Lúcia, um encontro com outra cortesã. Pela madrugada, ambos, desesperados e fiéis, se buscam, sem sucesso. Na manhã seguinte encontramse. Ele quer beijá-la, mas recua ante a possibilidade da traição. Ela compreende: interrompendo o interlúdio pacífico dos amantes. A moral burguesa e o orgulho de Paulo desencadeiam o movimento final. O momento em que Lúcia sai da crisálida. Paulo teme os comentários que circulam: ele estaria sendo sustentado 182 - Aquêle homem não tocou no meu corpo, porque a mão que roçou na sua, estava calçada com esta luva, que eu já despedacei, disse estendendo a ponta do pé. Mas tem razão, bastava o seu hálito para manchar. Olhe para mim. Quando eu despir esta roupa, despirei trapos que para nada servem! (ALENCAR, 1965, p. 290, grifo meu). C&D-Revista Eletrônica da Fainor, Vitória da Conquista, v.5, n.1, p.175-187, jan./dez. 2012 A travessia da borboleta: o texto simbólico em Lucíola Após ser desfeito o mal-estar entre Ao contar a história de sua Paulo e Lúcia, ela, agora com uma infância para Paulo, a protagonista revela: “auréola luminosa” e com um raio de luz “A mulher de quem duvidou já não existe, que sai de sua alma (ALENCAR, 1965, p. morreu!” 290), banho Vemos então a finalização do processo: a (purificação3). Troca a roupa esfarrapada prostituta Lúcia foi expungida. Após se (por ela mesma rasgada), surgindo um desfazer de suas rasgadas vestes de novo ser. É o verme (a larva), enfim baile e se purificar na água, ela pode metamorfoseado, retomar Maria da Glória, a menina alegre retira-se para que um se liberta, rompendo a crisálida/roupa, deixando (ALENCAR, 1965, p. 314). e inocente de São Domingos. Ao surgir a borboleta. Os trapos do vestido de retornar banho, Lúcia brancas e baile de Lúcia nada mais são do que a trajava metáfora de toda sua rota vida de cortesã resplandecentes. A “natureza primitiva” de que, então, ela renega – a mortalha de Lúcia traz um simbologia universal: tecidos leves, sem ser que deixa Acompanhamos, dessa pensamento J. de existir. roupas do em si a perspicácia da o luxo; a cor branca, símbolo reconhecido (apud como a cor da pureza. Era um gesto ELIADE, 1991, p. 155) quanto ao retorno antigo do batismo, despir-se para ter à inocência primitiva, no abandono da contato com a água e, logo em seguida, “velha roupa da corrupção e do pecado receber novas vestes, brancas: de forma, Daniélou que o batismo despe por causa de Cristo. A mesma que Adão havia vestido após o pecado”. 5 IMAGO – o retorno a Maria da Glória - Paulo, disse-me com brandura, chama-me Maria. (ALENCAR, 1965, p. 318) 3 A simbologia da água, nesse mesmo trecho, também foi estudada, recebendo um tópico específico na dissertação. Simbolicamente, tirar as roupas, despojar-se de adornos, ornamentos e jóias, significa voltar ao estado de nudez do dia em que nasceu; despir a veste da vergonha pós-queda, abandonar a vida passada, em que se era como o primeiro homem, o velho homem, Adão e Eva. É assemelhar-se a Cristo na Cruz no momento de sua morte, também ele nu, desnudado pela crueldade humana [...] é, por assim dizer, reconciliar-se com a inocência original, não uma inocência angélica, mas uma aceitação C&D-Revista Eletrônica da Fainor, Vitória da Conquista, v.5, n.1, p.175-187, jan./dez. 2012 183 REMÍGIO, A. natural da própria pobreza, dos próprios limites. Após o mergulho nas águas do renascimento, o batizado volta à tona e põe a veste de festa, da dignidade e da liberdade reencontradas. (SCOUARNEC, 2001, p. 38-39) (metamorfose), curiosamente a protagonista volta ao modelo de vida idealizado na infância para si mesma, desfazendo-se da imagem de cortesã. Afinal, Maria da Glória fora educada para Atentamos ainda para o termo seguir os preceitos de uma família cristã: “resplandecente”: Chevalier e Gheerbrant a menina não trazia pensamentos de luxo (1998, p. 948-9) associam o aspecto ou riqueza. A impensável transformação luminoso, brilhante, das vestes brancas da rubra lagarta em borboleta de alvas ao celestial (anjos, as vestes de Jesus na possibilidades, desencadeada quando os transfiguração) e lembram as palavras amantes das Odes de Salomão (21, 3) - “Despojei- também observado por Maria Cecília me da escuridão e vesti luz”. Pinto, em seu estudo sobre Alencar A imagem elaborada por Alencar, (1999, reatam. p. 107): Esse “É processo indício é de nesse momento, é perfeita em seu transformação, à maneira de um retorno aspecto simbólico (purificar e renovar), às origens. A ‘boa’ prostituta recupera, determinando como pode, seu passado de pureza e o estágio final da transformação: o imago. ostenta a ‘bondade’ que a profissão No dicionário Aurélio Eletrônico, encontramos as seguintes definições para imago: obrigava a ocultar”. Nesse período, (re)vemos uma menina dedicada à oração e à irmã caçula. Além disso, o amor que devota a 1. Zool. A forma definitiva do inseto, após as suas metamorfoses [...]. 2. Psic. Lembrança, fantasia ou idealização de uma pessoa querida, formada na infância e que se conserva sem modificação na vida adulta. Assim, na forma definitiva, chegando ao final de seu processo 184 Paulo, é casto. Ele, Maria e Ana, quando juntos, vão à missa, brincam, passeiam. Nessa vida tranquila, Paulo reconhece: “Parecia realmente que sua alma cândida, muito tempo adormecida na crisálida, acordara por fim, e continuara a mocidade interrompida por um longo e profundo C&D-Revista Eletrônica da Fainor, Vitória da Conquista, v.5, n.1, p.175-187, jan./dez. 2012 A travessia da borboleta: o texto simbólico em Lucíola letargo” (ALENCAR, 1965, p. 321, grifo fartas e sofisticadas. Alencar revela-se um meu). grande artesão textual, construindo uma A metamorfose está completa e trama que se apoia em símbolos, fugindo Lúcia morre. A borboleta é também um ao explícito. Esse artigo aponta apenas símbolo da alma, não só para os cristãos4, um fio do elaborado tecido alencariano. mas também em culturas distintas como no Zaire, na Ásia Central, no México, na Nova Zelândia, na Irlanda e, ainda, para os astecas (TRESIDDER, 2003, p. 53; CHEVALIER; GHEERBRANT, 1998, p. 138-9). Quando a carne pecadora é entregue à decomposição (o retorno ao pó), a alma, liberta desse fardo, seguirá. Sobre esse aspecto, fala-nos Bachelard (2003, p. 139 – grifos do autor): “[...] um ser encerrado, um ser protegido, um ser restituído à profundidade de seu mistério. Este ser sairá, este ser renascerá. Há aí um destino da imagem que exige essa ressurreição”. Dessa forma, José de Alencar, utilizando-se da imagem de borboleta, constrói uma mártir digna de perdão, como reconhece a interlocutora de Paulo, a senhora GM – uma “musa cristã” que soube preservar a espiritualidade. Em verdade, as imagens construídas a partir do simbólico, no livro Lucíola, são 4 Em algumas obras da iconografia referente a Jesus, este aparece com uma borboleta, referindose à alma. C&D-Revista Eletrônica da Fainor, Vitória da Conquista, v.5, n.1, p.175-187, jan./dez. 2012 185 REMÍGIO, A. THE CROSSING OF THE BUTTERFLY: THE SYMBOLIC TEXT AT LUCÍOLA ABSTRACT This article, an excerpt from the dissertation Lucíola calidoscópica – os símbolos das imagens alencarianas (UFC, 2005), shows the construction of the image of metamorphosis through which passes the protagonist of the novel Lucíola (1862), in her longing for redemption. Taking as main symbol the butterfly, José de Alencar, through the narrator Paulo, shows the main character transformations at the transitions Maria da GlóriaLúcia-Maria da Glória. The painstaking textual craftsmanship of the writer from Ceará is shown up in the construction of images that use symbols of renewal and spiritual elevation. Scholars like Jean Chevalier, Alain Gheerbrant and Jack Tresidder with their explanations on symbols, besides Gaston Bachelard and Mircea Eliade were fundamental in the elucidation of Alencar’s textual images. Keywords: Symbolic. José de Alencar. Transformation. Artigo recebido em 28/08/2012 e aceito para publicação em 24/09/2012 REFERÊNCIAS CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. 12. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1998. ADLER, L. Os bordéis franceses (1830 – 1930). São Paulo: Companhia do ELIADE, M. Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. São Livro/Círculo do Livro, 1991. Paulo: M. Fontes, 1991. ALENCAR, J. Lucíola. In: ______. Ficção completa e outros escritos. Rio de GRIFFIN, S. O livro das cortesãs: um Janeiro: Aguilar, 1965. catálogo de suas virtudes. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. AULETE, C. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa. 3. ed. Rio de MEURER, F. Amor, paixão e ironia: Janeiro: Delta, 1974. antologia poética do Romantismo alemão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, BACHELARD, G. A terra e os devaneios 1995. do repouso. 2. ed. São Paulo: M. Fontes, 2003. MIRANDA, E. E. Animais interiores: a ecologia espiritual dos voadores. São CARR-GOMM, S. 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