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Ana Remígio
relatos de pesquisa
A TRAVESSIA DA BORBOLETA: O
TEXTO SIMBÓLICO EM LUCÍOLA
*
RESUMO
O presente artigo, um recorte da dissertação Lucíola
calidoscópica – os símbolos das imagens
alencarianas (UFC, 2005¹), mostra a construção da
imagem de metamorfose pela qual passa a
protagonista de Lucíola (1862), na busca pela
redenção. Tendo como símbolo-base a borboleta,
José de Alencar, por meio do narrador Paulo, mostra
a transformação da personagem nas transições
Maria da Glória-Lúcia-Maria da Glória. A esmerada
artesania textual do escritor cearense mostra-se na
construção das imagens que se utilizam de símbolos
de renovação e elevação espiritual. Jean Chevalier,
Alain Gheerbrant e Jack Tresidder com seus
esclarecimentos sobre símbolos, além de Gaston
Bachelard e Mircea Eliade foram fundamentais na
elucidação das imagens alencarianas.
* Mestre em Literatura Brasileira/
UFC.
Professora Assistente
I/UERN.E-mail:
[email protected]
Palavras-chave: Simbólico. José de Alencar. Transformação.
¹ Bolsista da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico - FUNCAP
1 INTRODUÇÃO
luxúria ao branco da pureza e o azul do
manto de Nossa Senhora da Glória), no
Uma leitura atenta do romance
entanto, o texto mostra uma construção
Lucíola (1862), de José de Alencar, revela
imagética através do simbólico que revela
uma
o
profusa
simbologia
apoiando
a
esmero
artesania
defesa feita por Paulo, que buscava
fugindo
mostrar a alma cristã preservada no
comprometeriam
corrupto corpo de Lúcia – a construção da
(BACHELARD, 2003, p. 124).
imagem de uma mártir.
das
da
imagens
o
alencariana,
explícitas,
caráter
que
atrativo
Este artigo é um pequeno recorte
Cores são os símbolos mais
de uma ampla investigação sobre as
óbvios e imediatos (do vermelho da
imagens construídas com apoio simbólico
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REMÍGIO, A.
em Lucíola, que resultou na dissertação
como completo evidencia uma mudança
Lucíola calidoscópica – os símbolos das
radical.
imagens alencarianas (UFC, 2005). O
mudança não se mostra apenas na
recorte
aparência externa, mas, principalmente,
em
questão
especificamente,
transformação
relaciona-se,
ao
processo
pelo
qual
de
passa
a
protagonista
Para
a
protagonista,
essa
no íntimo. A conduta de Lúcia, antes
libertina
(aparentemente
distante
de
Deus, uma pagã), direciona-se para uma
Uma
insistente
borboleta
elevação
perpassa pelo texto. Antes que esse
portanto,
inseto
esplendoroso
processo hemimetabólico (parcial), no
exemplar de graciosidade, leveza e cor, é
qual os adultos mantêm a forma jovem,
uma
que
chegue
repelente
a
um
larva,
devoradora
da
beleza dos jardins. Aos poucos, podemos
no
enredo
descuidadamente
por
aberta
uma
por
janela
Alencar.
Regina Lúcia Pontieri (1988, p. 114)
daqueles
acrescida
Diferencia-se,
insetos
de
que
mais
têm
alguns
elementos.
compreender que esse lepidóptero não
entrou
é
espiritual.
O símbolo encontrado, portanto,
fala
de
mudança,
um
e
processo
toma-lhe
de
completa
emprestada
a
passagem da vida:
observa que a imagem da metamorfose
Agora apenas metáfora de
frivolidade, a borboleta é antigo
símbolo de imortalidade, da qual
o ciclo de vida proporciona
analogia perfeita: a vida (a
rastejante lagarta), a morte (a
escura
crisálida)
e
o
renascimento (a alma a flutuar
em liberdade) (TRESIDDER,
2003, p. 53).
da borboleta é obsessiva nos textos do
escritor
cearense.
No
caso
da
protagonista de Lucíola, observaremos
que é a passagem da “terra carnal” para a
vida “aérea” (BACHELARD, 2003, p. 139),
ou seja, para a espiritualidade.
Partindo
das
características
Antes de analisarmos o processo
biológicas, as borboletas são insetos
diurnos, que passam por processo de
metamorfose completa, compreendendo
quatro fases – ovo, larva, crisálida e
imago. O fato de o processo ser descrito
176
da personagem, notemos que o inseto
citado cinco vezes1 no texto foi uma
borboleta. Em momento algum, o autor se
1
(ALENCAR, 1965, p. 239, 244, 254 (2 vezes) e
327)
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A travessia da borboleta: o texto simbólico em Lucíola
refere
a
uma
mariposa,
usualmente
utilizada como símbolo para prostitutas.
2 OVO – Maria da Glória (antes dos 14
anos)
Se eu ainda lá estivesse [...]
(ALENCAR, 1965, p. 266)
As mariposas também são lepidópteros
que sofrem metamorfose completa, porém
noturnos
meretrizes).
borboletas
(daí
A
associação
às
Metaforicamente, o ovo pode ser
simbólica
das
compreendido como algo que se vai
consideravelmente,
cumprir, uma promessa de vida em
sua
carga
pende,
para um lado diverso:
formação,
distante
das
ameaças
do
mundo exterior. Uma alma preservada.
Simbolicamente, as borboletas são
solares, diurnas. [...] Um sinal da
primavera, do retorno da vida, da
vitória sobre a morte e da
ressurreição:
a
crisálida
metamorfoseada em borboleta. A
crisálida não é somente um
símbolo do túmulo. É como um
ovo. Ela contém a verdadeira
potencialidade do ser, muito além
das transformações somáticas.
(MIRANDA, 2003, p. 239)
Uma
inocência
preservada.
“O
ovo,
considerado como aquele que contém o
germe e a partir do qual se desenvolverá
a manifestação, é um símbolo universal e
explica-se por si mesmo” (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 1998, p. 672).
Na simbologia cristã, o ovo é a
ressurreição (TRESIDDER, 2003 p. 253-
O mistério da transformação exerce
4) – promessa e esperança, também
um grande fascínio há muito, despertando
associado ao branco da casca – pureza.
interesse pelas fases. Veremos que a
Para Piero della Francesca, no retábulo
protagonista as apresenta de maneira
Madona e o Menino (1450), por exemplo,
bem definida. Paulo a elas se refere como
é a própria Imaculada Conceição –
“gradações” (ALENCAR, 1965, p. 314),
pureza, virgindade, portanto.
enquanto busca a compreensão e o
A família educa Glória: ela era
perdão (post-mortem) para a amada,
uma das poucas pessoas deste país,
fundindo imagem e ideia, privilégio da
naquela época, que sabiam ler2; aprendeu
“imagem literária”, como assinala Gaston
francês, piano... e, nos serões, as leituras
Bachelard (2003, p. 135).
2
Informa Lília Moritz Schwarcz (2002, p. 118) que
o recenseamento de 1872 apontou apenas 16%
de alfabetizados no país – imaginemos, dentro
dessa parcela já diminuta, o índice total de
mulheres leitoras.
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REMÍGIO, A.
ou histórias do pai. Contudo, em uma
rente ao chão, por onde se arrastam as
adversidade (a febre amarela de 1850), a
larvas.
menina se vê sozinha, cuidando de todos
perdê-los. A mão que a ampara, a única,
na casa (seis pessoas), sustentando-se,
é a de Jesuína, mas há um preço... Em
por vezes, apenas com uma xícara de
quinze dias, a menina era prostituta – e
café
ainda dá seu corpo em troca do bem-estar
(ALENCAR,
1965,
p.
315).
O
desespero e a mendicância são os guias
Salvara
seus
familiares
para
da família.
para a “queda”. De sua miséria aproveita-
Em Caldas Aulete (1974, p. 2106),
se um vizinho, que compra a virgindade
o significado para larva é “o primeiro
da menina. Na imagem de rompimento –
estado dos insetos depois de saírem do
casca/hímen (véus, na metáfora do autor)
ovo”. E, para o sentido figurado de larval,
– surge a segunda fase da personagem:
“algo terrível, assustador”. Do Latim larva
“Desde
que
os
meus
véus
se
(fantasma, espectro), encontramos as
despedaçaram, cuidei que morria; não
derivações
senti mais nada, nada senão o contato frio
medonho, terrível) e larvatus (adj. =
das moedas de ouro que eu cerrava na
endemoniado).
minha mão crispada” (ALENCAR, 1965, p.
aproximam da visão de Sá (o amigo de
436, grifo meu).
Paulo) sobre as cortesãs, a quem chama
Com a morte da inocência e o
de
(adj.
larvalis
Esses
borboletas,
=
espectral,
adjetivos
mas,
em
se
verdade,
posterior abandono pelo pai (quando
concebe-se em outra fase: “O verdadeiro,
descobriu a origem do dinheiro), Glória
acredita-me, é deixá-las arrastarem-se
encontra uma vida de desgraça: sua nova
pelo
fase.
(ALENCAR,
chão
no
estado
1965,
p.
de
larvas”
239).
As
larvas/lagartas despertam asco, o pavor
3 LARVA – a cortesã Lúcia
pelo aspecto funesto. Além disso, causam
apreensão,
Morri pois para o mundo e para minha
família.
(ALENCAR, 1965, p. 317)
Expulsa de casa, Glória não tem
pois
são
obstinadas
devoradoras da vida: alimentam-se com
grande voracidade, causando irreparáveis
prejuízos.
para onde ir. Senta-se na calçada: está
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A travessia da borboleta: o texto simbólico em Lucíola
Essa visão nociva associada às
fortunas e recomeçar” (ADLER, 1991, p.
prostitutas ainda perduraria como, por
22, grifo meu). De flor em flor, arruinando
exemplo, neste fragmento de A cortesã,
os jardins burgueses.
de Rainer Maria Rilke (apud MEURER,
1995, p. 189), do início do século XX:
Mesmo aqui, Alencar conspira por
uma indulgência: Lúcia, tratada como
larva
devoradora
pela
sociedade
Quem algum dia me viu, meu
cão inveja,
Que nele seguido, em absortas
pausas,
A mão, jamais num braseiro
crestada,
(manifesta na pessoa de Sá), prostituiu-se
Invulnerável, toda jóias, se
aquieta –
E mancebos, porvir de nobres
casas,
Morrem-me
à
boca,
qual
envenenada.
restasse apenas Ana, a irmã caçula – seu
Entretanto, Lúcia (nascida nessa
Lúcia recusa a imagem de uma “sultana
por necessidade, um sacrifício: não por
sua vida, mas pela salvação de toda sua
família. Assim prosseguiu, até que lhe
último “motivo santo” (ALENCAR, 1965, p.
320).
Nesse seu (des)caminho/martírio,
fase, com a morte de uma amiga de
do ouro”
(ALENCAR, 1965, p. 233), a
infortúnio, com quem troca o nome) não
arruinar e devorar:
acompanha o modelo de cortesã voraz.
Esse
arquétipo
mulheres
traz
devoradoras,
a
imagem
que
não
de
se
importam em arruinar uma fortuna: “Os
burgueses capitalizam e investem, as
cortesãs são seu abismo” (ADLER, 1991,
p. 37). A elas importa apenas o ter, em
abundância, e o luxo: “Não basta pagar
para
poder
possuir.
Mas
é
preciso
primeiro pagar. Pagar o apartamento, os
cavalos de carruagem, os vestidos, as
noitadas.
Gastar,
devorar,
arruinar,
rejeitar, para em seguida encontrar outras
Não obstante, poucos minutos
depois subia as escadas de
Lúcia, e entrava numa bela
sala decorada e mobiliada com
mais elegância do que riqueza
(ALENCAR, 1965, p. 236, grifo
meu).
Vi Lúcia sentada na frente do
seu camarote, vestida com
certa galanteria, mas sem a
profusão de adornos e a
exuberância de luxo que
ostentam de ordinário as
cortesãs (ALENCAR, 1965, p.
244, grifo meu).
[...]
Vendia-me,
mas
francamente e de boa-fé:
aceitava a prodigalidade do
rico; nunca a ruína e a miséria
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REMÍGIO, A.
de uma família (ALENCAR,
1965, p. 317, grifo meu).
o sangue, mergulha o dedo na taça de
Sauterne de Paulo. O líquido claro vai
modelo
enrubescendo, tornando o aspecto tinto.
cortesã-verme na construção de Lúcia,
O rapaz não resiste: “[...] esgoteio-o até a
Alencar
última gôta num assomo de galanteio
Negando,
já
a
indesculpável
portanto,
retira
o
da
completa
perdição.
Ela
e
não
romântico” (ALENCAR, 1965, p. 252).
compactua com a histórica Cora Pearl,
notável cortesã que levou Alexandre
Eis o cálice do meu sangue...
derramado por vós.
Duval à ruína (GRIFFIN; SUSAN, 2003, p.
Enquanto prossegue o banquete, Sá
266-267), ou com as fictícias Manon
chama a atenção dos convidados para as
Lescaut (que arrasta o Cavaleiro de
telas eróticas que ornam o ambiente e
Grieux
Carmem
oferece uma surpresa: “É nada menos
(causadora da desgraça de D. José e que
que o original delas: não o original frio e
é referida no texto como serva de satã).
calmo,
à
degradação)
e
mas
um
verdadeiro
modêlo,
Em noitada organizada por Sá,
vivendo, palpitando, sorrindo, esculpindo
Lúcia revela-se a bacante, no auge de
em carne tôdas as paixões que deviam
sua persona pagã (distante, portanto, das
ferver no coração daquelas mulheres”
relações
(ALENCAR, 1965, p. 256) – Lúcia!
estabelecidas
com
o
cristianismo, que, nesse contexto, é o
ideal
de
sagrado).
Entretanto,
A cortesã se despe e salta sobre
a mesa.
acompanhando a dualidade que permeia
Eis
o
meu
entregue por vós
a parte inicial do livro, cortesã e menina
corpo
(Lúcia e Glória) estarão presentes na
Ela ainda arranca uma palma dos
bacanal: a primeira, em fogo luxuriante e
jarros, trança-a e coloca-a nos cabelos,
a segunda, em transtorno. O banquete de
coroando-se.
luxúria será também a cena de um
A lembrança do sacrifício de
sacrifício. Então, reunidos os convivas no
Cristo evoca o aspecto destoante da
espírito de Baco, algo destoa.
cena. A palma esclarece o aspecto
Lúcia corta-se ao quebrar uma
sacrifical imposto a Lúcia: “O cristianismo
taça em sua mão. A pretexto de estancar
adotou a palma para mártires que haviam
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A travessia da borboleta: o texto simbólico em Lucíola
triunfado sobre a morte” (CARR-GOMM,
imagem mais imposta ao estereótipo da
2004, p. 177). Jack Tresidder (2003, p.
prostituição do que efetivada por Lúcia.
258-9) ressalta que, desta forma, foi
Surge uma nova fase.
incorporada à iconografia de santos e
mártires cristãos.
Chevalier e Gheerbrant (1998, p.
4 CRISÁLIDA – o ocultamento provisório
680) esclarecem ainda que “As palmas de
ramos, que equivalem ao buxo europeu,
prefiguram a Ressurreição de Cristo, após
Após o amanhecer, no jardim de
Sá, os amantes se separam, esperando o
reencontro.
o drama do Calvário [e que] a palma dos
mártires tem a mesma significação”.
Dessa forma, Lúcia tem que “pagar a
conta da ceia”, ou seja, de sua vida (onde
o corpo é pasto dos homens), mas não
será
abandonada,
já
que
sua
espiritualidade está preservada, como
podemos aferir ao longo do livro.
plateia e perturbaram Paulo, que se
retirou para o jardim, onde Lúcia vai
encontrá-lo depois. Na manhã seguinte,
após o entendimento entre ambos, Lúcia
é a menina vista por ele, quando chegou
ao Rio: “[...] tímida menina, amante casta
ingênua,
bebendo
num
e
Lúcia
iniciam
um
relacionamento. Ela desiste dos amantes
e Paulo reconhece uma transformação na
conduta da amada: “A cortesã que se
despira friamente aos olhos de um
desconhecido, em plena luz do dia ou na
brilhante claridade de um salão, não se
entregava mais senão coberta de seus
Os quadros vivos extasiaram a
e
Paulo
olhar
a
felicidade que dera, e suplicando o perdão
da felicidade que recebera” (ALENCAR,
1965, p. 262).
A cortesã vai se distanciando de
ligeiros véus: não havia súplicas, nem
rogos que os fizessem cair” (ALENCAR,
1965,
p.
274).
Desses
“ligeiros”,
poderíamos compreender algo que não se
demora, transitório; em “véus”, algo que
se oculta – um ocultamento provisório,
uma
antecâmara
para
uma
última
transformação: o final da metamorfose.
Crisalida-se e o pudor tece seu
casulo. Enclausura-se: não vê mais prazer
em compras ou nas idas ao teatro.
Recolhe-se. Lúcia e Paulo leem, jantam,
sua vida “larval” que, na verdade, era uma
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181
REMÍGIO, A.
conversam, se amam, longe do mundo
pela cortesã. Ao compreender o que se
exterior.
passa, Lúcia se desespera – aquele que a
No Dicionário de Símbolos vemos
que a crisálida é o
retirara de uma vida de depravação,
empurrava-a
de
volta.
Em
atitude
masoquista, ela busca o pior, aquele que
símbolo
do
lugar
das
metamorfoses [e que] mais ainda
do que um envelope protetor, ela
representa
um
estado
eminentemente transitório entre
suas etapas do devenir, a duração
de uma maturação. Implica a
renúncia a um certo passado e a
aceitação de um novo estado,
condição
de
realização
(CHEVALIER;
GHEERBRANT,
1998, p. 302).
foi o causador de sua ruína moral – o
velho
Couto
que,
dessa
forma,
simbolicamente, é a queda (aquele que
tira a virgindade e que, pela segunda vez,
macularia sua felicidade, levando a uma
situação superposta de degradação): “[...]
por ser mesmo o ente mais vil e ignóbil
que eu conheço: pois era preciso que o
Assim, tendo uma vida antes
impensada,
Lúcia
afasta
de
si
a
indesejada cortesã. O amor por/de Paulo
expande
a
porção
mais
íntima
cristãos, vive ainda em pecado, pois não
há legitimidade (oficialização) naquele
par: vivem em fornicação, afastados de
uma conduta cristã. O processo, portanto,
seguir
seu
curso
matar-me logo, e sem lenta agonia!”
(ALENCAR, 1965, p. 289).
(e
resguardada) dela. Contudo, aos olhos
deve
suplício fôsse bastante violento para
natural,
Com ciúmes, Paulo combina, às
vistas de Lúcia, um encontro com outra
cortesã.
Pela
madrugada,
ambos,
desesperados e fiéis, se buscam, sem
sucesso. Na manhã seguinte encontramse. Ele quer beijá-la, mas recua ante a
possibilidade da traição. Ela compreende:
interrompendo o interlúdio pacífico dos
amantes. A moral burguesa e o orgulho
de Paulo desencadeiam o movimento
final. O momento em que Lúcia sai da
crisálida.
Paulo teme os comentários que
circulam: ele estaria sendo sustentado
182
- Aquêle homem não tocou no
meu corpo, porque a mão que
roçou na sua, estava calçada com
esta luva, que eu já despedacei,
disse estendendo a ponta do pé.
Mas tem razão, bastava o seu
hálito para manchar. Olhe para
mim. Quando eu despir esta
roupa, despirei trapos que para
nada servem! (ALENCAR, 1965, p.
290, grifo meu).
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A travessia da borboleta: o texto simbólico em Lucíola
Após ser desfeito o mal-estar entre
Ao contar a história de sua
Paulo e Lúcia, ela, agora com uma
infância para Paulo, a protagonista revela:
“auréola luminosa” e com um raio de luz
“A mulher de quem duvidou já não existe,
que sai de sua alma (ALENCAR, 1965, p.
morreu!”
290),
banho
Vemos então a finalização do processo: a
(purificação3). Troca a roupa esfarrapada
prostituta Lúcia foi expungida. Após se
(por ela mesma rasgada), surgindo um
desfazer de suas rasgadas vestes de
novo ser. É o verme (a larva), enfim
baile e se purificar na água, ela pode
metamorfoseado,
retomar Maria da Glória, a menina alegre
retira-se
para
que
um
se
liberta,
rompendo a crisálida/roupa,
deixando
(ALENCAR,
1965,
p.
314).
e inocente de São Domingos.
Ao
surgir a borboleta. Os trapos do vestido de
retornar
banho,
Lúcia
brancas
e
baile de Lúcia nada mais são do que a
trajava
metáfora de toda sua rota vida de cortesã
resplandecentes. A “natureza primitiva” de
que, então, ela renega – a mortalha de
Lúcia traz
um
simbologia universal: tecidos leves, sem
ser
que
deixa
Acompanhamos,
dessa
pensamento
J.
de
existir.
roupas
do
em
si
a perspicácia da
o
luxo; a cor branca, símbolo reconhecido
(apud
como a cor da pureza. Era um gesto
ELIADE, 1991, p. 155) quanto ao retorno
antigo do batismo, despir-se para ter
à inocência primitiva, no abandono da
contato com a água e, logo em seguida,
“velha roupa da corrupção e do pecado
receber novas vestes, brancas:
de
forma,
Daniélou
que o batismo despe por causa de Cristo.
A mesma que Adão havia vestido
após o pecado”.
5 IMAGO – o retorno a Maria da Glória
- Paulo, disse-me com brandura, chama-me Maria.
(ALENCAR, 1965, p. 318)
3
A simbologia da água, nesse mesmo trecho,
também foi estudada, recebendo um tópico
específico na dissertação.
Simbolicamente, tirar as roupas,
despojar-se
de
adornos,
ornamentos e jóias, significa
voltar ao estado de nudez do dia
em que nasceu; despir a veste
da
vergonha
pós-queda,
abandonar a vida passada, em
que se era como o primeiro
homem, o velho homem, Adão e
Eva. É assemelhar-se a Cristo
na Cruz no momento de sua
morte,
também
ele
nu,
desnudado
pela
crueldade
humana [...] é, por assim dizer,
reconciliar-se com a inocência
original, não uma inocência
angélica, mas uma aceitação
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183
REMÍGIO, A.
natural da própria pobreza, dos
próprios limites. Após o mergulho
nas águas do renascimento, o
batizado volta à tona e põe a
veste de festa, da dignidade e da
liberdade
reencontradas.
(SCOUARNEC, 2001, p. 38-39)
(metamorfose),
curiosamente
a
protagonista volta ao modelo de vida
idealizado na infância para si mesma,
desfazendo-se da imagem de cortesã.
Afinal, Maria da Glória fora educada para
Atentamos ainda para o termo
seguir os preceitos de uma família cristã:
“resplandecente”: Chevalier e Gheerbrant
a menina não trazia pensamentos de luxo
(1998, p. 948-9) associam o aspecto
ou riqueza. A impensável transformação
luminoso, brilhante, das vestes brancas
da rubra lagarta em borboleta de alvas
ao celestial (anjos, as vestes de Jesus na
possibilidades, desencadeada quando os
transfiguração) e lembram as palavras
amantes
das Odes de Salomão (21, 3) - “Despojei-
também observado por Maria Cecília
me da escuridão e vesti luz”.
Pinto, em seu estudo sobre Alencar
A imagem elaborada por Alencar,
(1999,
reatam.
p.
107):
Esse
“É
processo
indício
é
de
nesse momento, é perfeita em seu
transformação, à maneira de um retorno
aspecto simbólico (purificar e renovar),
às origens. A ‘boa’ prostituta recupera,
determinando
como pode, seu passado de pureza e
o
estágio
final
da
transformação: o imago.
ostenta a ‘bondade’ que a profissão
No dicionário Aurélio Eletrônico,
encontramos as seguintes definições para
imago:
obrigava a ocultar”.
Nesse período, (re)vemos uma
menina dedicada à oração e à irmã
caçula. Além disso, o amor que devota a
1. Zool. A forma definitiva do
inseto,
após
as
suas
metamorfoses [...].
2. Psic. Lembrança, fantasia ou
idealização de uma pessoa
querida, formada na infância e
que
se
conserva
sem
modificação na vida adulta.
Assim,
na
forma
definitiva,
chegando ao final de seu processo
184
Paulo, é casto. Ele, Maria e Ana, quando
juntos, vão à missa, brincam, passeiam.
Nessa vida tranquila, Paulo reconhece:
“Parecia realmente que sua alma cândida,
muito tempo adormecida na crisálida,
acordara por fim, e continuara a mocidade
interrompida por um longo e profundo
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A travessia da borboleta: o texto simbólico em Lucíola
letargo” (ALENCAR, 1965, p. 321, grifo
fartas e sofisticadas. Alencar revela-se um
meu).
grande artesão textual, construindo uma
A metamorfose está completa e
trama que se apoia em símbolos, fugindo
Lúcia morre. A borboleta é também um
ao explícito. Esse artigo aponta apenas
símbolo da alma, não só para os cristãos4,
um fio do elaborado tecido alencariano.
mas também em culturas distintas como
no Zaire, na Ásia Central, no México, na
Nova Zelândia, na Irlanda e, ainda, para
os astecas (TRESIDDER, 2003, p. 53;
CHEVALIER; GHEERBRANT, 1998, p.
138-9). Quando a carne pecadora é
entregue à decomposição (o retorno ao
pó), a alma, liberta desse fardo, seguirá.
Sobre esse aspecto, fala-nos Bachelard
(2003, p. 139 – grifos do autor): “[...] um
ser encerrado, um ser protegido, um ser
restituído à profundidade de seu mistério.
Este ser sairá, este ser renascerá. Há aí
um destino da imagem que exige essa
ressurreição”.
Dessa forma, José de Alencar,
utilizando-se da imagem de borboleta,
constrói uma mártir digna de perdão,
como reconhece a interlocutora de Paulo,
a senhora GM – uma “musa cristã” que
soube preservar a espiritualidade.
Em verdade, as imagens construídas a
partir do simbólico, no livro Lucíola, são
4
Em algumas obras da iconografia referente a
Jesus, este aparece com uma borboleta, referindose à alma.
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REMÍGIO, A.
THE CROSSING OF THE BUTTERFLY: THE SYMBOLIC TEXT AT LUCÍOLA
ABSTRACT
This article, an excerpt from the dissertation Lucíola calidoscópica – os
símbolos das imagens alencarianas (UFC, 2005), shows the construction
of the image of metamorphosis through which passes the protagonist of
the novel Lucíola (1862), in her longing for redemption. Taking as main
symbol the butterfly, José de Alencar, through the narrator Paulo, shows
the main character transformations at the transitions Maria da GlóriaLúcia-Maria da Glória. The painstaking textual craftsmanship of the writer
from Ceará is shown up in the construction of images that use symbols of
renewal and spiritual elevation. Scholars like Jean Chevalier, Alain
Gheerbrant and Jack Tresidder with their explanations on symbols,
besides Gaston Bachelard and Mircea Eliade were fundamental in the
elucidation of Alencar’s textual images.
Keywords:
Symbolic. José de Alencar. Transformation.
Artigo recebido em 28/08/2012 e aceito para publicação em 24/09/2012
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