REFLEXÕES SOBRE PAISAGENS VITÍCOLAS NO

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INSTITUTO DE GEOGRAFIA – IG
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II ENCONTRO DE GRUPOS DE PESQUISA
REFLEXÕES SOBRE PAISAGENS VITÍCOLAS NO BRASIL1
Ivanira Falcade 2
Resumo
A paisagem tem sido objeto de representação e de estudos de diversas áreas do conhecimento
há muito tempo. Na Geografia, por vezes, foi tomada como o próprio objeto da ciência. Teve
grande importância por algumas décadas no século XX para, depois de um certo ostracismo,
retornar ao foco de estudos geográficos nos últimos anos. Este trabalho é parte das primeiras
reflexões sobre a paisagem, na sua especificidade vitícola, a ser desenvolvido no
doutoramento em Geografia, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Na revisão
teórica apresenta-se inclusive uma proposta de classificação da tipologia da paisagem vitícola
elaborada por Fabienne Joliet. A seguir, baseada na caracterização das regiões brasileiras de
produção de uvas para vinhos finos denominadas de Serra Gaúcha, Campanha, Serra do
Sudeste e Submédio Vale do Rio São Francsico, propõe-se uma classificação dessas regiões
segundo a tipologia de Joliet.
Palavras-Chaves - Paisagem, regiões vitivinícolas brasileiras, tipologia.
1. Introdução
Há muito tempo a paisagem tem sido objeto de representação e de estudos de diversas
áreas do conhecimento. Nas pinturas renascentistas começa a aparecer como ponto de fuga,
depois ela própria é o tema central da representação. Na Geografia, por vezes, foi tomada
como o próprio objeto da ciência. Embora no senso comum espaço e paisagem sejam tomados
como sinônimos, são conceitos diferentes.
Considera-se o espaço, como propõe Milton Santos, que o concebe como
[...] uma realidade relacional [...] a natureza e a sociedade, mediatizadas pelo
trabalho [...] O espaço, por conseguinte é isto: um conjunto de formas contendo cada
qual frações da sociedade em movimento [...] O conteúdo corporificado, o ser já
1
Trabalho elaborado no contexto do doutoramento em Geografia, no Programa de Pós-Graduação em Geografia
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul sob orientação da Profa. Dra.Rosa Maria Vieira Medeiros.
2
Universidade de Caxias do Sul – Rua Francisco G. Vargas, 1130 – CEP 95.560-090 – Caxias do Sul –
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transformado em existência, é a sociedade já embutida nas formas geográficas, a
sociedade transformada em espaço (1988, p.26-27).
Para entender o espaço e sua organização é necessário entender a evolução das
relações entre formas, estruturas e funções (SANTOS, 1997). Entre esses aspectos a forma
ganha relevância quando a sociedade lhe confere um valor. Este valor se relaciona à estrutura
socioeconômica, sendo a forma determinada pelas suas necessidades e, portanto, um resultado
e um fator social. Quando muda a estrutura, muda o valor da forma. Mas essas transformações
não se dão na mesma velocidade e intensidade em todos os lugares. As formas espaciais de
um tempo anterior que permanecem num tempo posterior são rugosidades “restos de uma
divisão de trabalho internacional, manifestada localmente por combinações particulares do
capital, das técnicas e do trabalho utilizados” (SANTOS, 1986, p.138).
As mudanças do/no espaço dependem da sociedade que o constrói e das relações entre
o que permanece e o que é novo - o que é intrínseco e interno e o que é extrínseco e externo a
esses espaços geograficamente diferenciados. Esta relação dialética é mediatizada pelo
mercado e pelo Estado, em todas as escalas e níveis (SANTOS, 1988).
Já Corrêa (2000) entende o espaço como espaço de vida, portanto, marcado por sinais
não só da produção, mas também da cultura, da afetividade da sociedade. Segundo Corrêa a
sociedade age seletivamente ao decidir o que faz em determinado espaço e estas ações estão
relacionadas às possibilidades que o espaço apresenta. Na dimensão política, age de modo a
exercer o controle sobre o espaço, dividindo-o “em unidades territoriais controladas por
[...organizações/estado...] que se identificam por dada especificidade e numa dada porção do
espaço” (p.37).
A forma material que determinado espaço assume em determinado momento
denomina-se paisagem, diferente, portanto, do espaço propriamente dito, que, além desta
materialidade, contém o movimento, a dinâmica da sociedade. Estes conceitos se relacionam
dialeticamente, isto é, se complementam e, ao mesmo tempo, são opostos – a paisagem é a
fixação do espaço em determinado tempo e o espaço é a concretude da ação social
materializada na paisagem em mutação constante (SANTOS, 1988).
Para Augustin Berque
[...] a paisagem é uma marca, pois expressa uma civilização, mas é também uma
matriz porque participa dos esquemas de percepção, de concepção e de ação – ou
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seja que canalizam, em um certo sentido, a relação de uma sociedade com o espaço e
com a natureza e, portanto, a paisagem do seu ecúmeno (1998, p.84-85).
Considerando a etimologia italiana da palavra paisagem – pitore – isto é, o que é digno
de ser pintado, a paisagem como objeto das artes, pintura e da literatura, apresenta um
entendimento estético, qualitativo, para quem a paisagem está no olhar, portanto subjetiva,
sujeita a interpretações sócio-culturais.
Mas é possível um entendimento cartesiano, isto é, entender a paisagem segundo
diferentes esferas da cognição, neste sentido um conhecimento complexo. Pode ser um objeto
apreendido individualmente, pela intimidade, cujas condições estão sujeitas à consciência do
próprio olhar, ocorrendo uma produção mental, relacionada a suas referências. Pode ser um
objeto sócio-cultural, apreendido por grupos de acordo com uma ordem social, cultural ou
profissional. Neste sentido, para A. Berque a evolução do entendimento passou por cinco
condições/etapas: primeiro que a palavra paisagem existe; segundo a paisagem é um tema de
discursos literários; terceiro a paisagem é representada em pinturas; quarto a paisagem é
reconstituída sob a forma de jardins; quinto são produzidos tratados sobre paisagens. R. Pitte
acrescentou uma sexta etapa, o desenvolvimento de modalidades de visita a paisagens.
A paisagem enquanto objeto científico deve passar pelo crivo da racionalidade. O
estudo das paisagens deve compreender os processos de formação das paisagens (gênese), os
princípios de funcionamento das paisagens (organização, regulação, equilíbrio), os potenciais
evolutivos e finais dos sistemas paisagísticos (trajetórias e finalidades). Isso exige uma visão
interdisciplinar de compreensão racional do real.
A paisagem pode ser vista como o visível de um recorte do espaço, tudo aquilo que o
olhar abarca desde um certo ponto até o horizonte. Essa apreensão, essa percepção está
impregnada da experiência cultural do indivíduo e da coletividade a que pertence. Essa
observação está impregnada de subjetividade, mas pode ser objetivada, considerando critérios
determinados. Os elementos que compõem uma paisagem podem ser identificados e
explicados sócio-historicamente. Se considerados desta forma, estão continuamente em
transformação. A maneira como cada sociedade, em cada tempo e no cotidiano, se relaciona
com a natureza reflete o imaginário social e seus padrões culturais e estéticos. Essas
condições influenciarão as transformações de formas antigas e a construção de novas formas.
Jaques Maby (2003) entende a paisagem vitícola como imagem portadora de sentido.
Segundo o autor a paisagem vitícola permite uma interpretação, onde o sentido é produzido
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pelo espectador. Ele distingue três níveis de estudos das paisagens vitícolas:
1. o organizacional e funcional, objetivando a gestão.
2. o genético e dinâmico que ajuda na criação, ordenamento ou proteção.
3. o dos significados e associações simbólicas, que apóiam a valorização do território e os
produtos vitícolas através dos meios de comunicação social.
Segundo Maby (2003) o sentido a interpretar na paisagem remete a quatro princípios:
1. princípio da indeterminação afetiva da paisagem - paisagem é polissêmica;
2. princípio da diversidade humana da paisagem - aquele que olha os espaços rurais reconecta,
na paisagem, o outro, os outros, ele mesmo, particularmente na paisagem vitícola;
3. princípio ético da paisagem - para além da apreciação estética, existe uma possibilidade de
interpretação moral das formas. Em tais condições, a ética permite graduar a estética e valida
a expressão emprestada à Sócrates "nada é bonita em si, mas relativamente à sua utilidade";
4. princípio simbólico da paisagem - parafraseando André Malraux se poderia dizer que a
paisagem é o mais curto caminho entre os homens, assim como para Régis Debray não é a
imagem que cria a relação, mas a relação humana que cria a imagem a fim de simbolizar esta
união. Assim a paisagem não deve ser considerada uma coisa, mas antes uma função, função
simbólica que permite transmitir valores comuns.
Tratando da questão da identidade da paisagem vitícola, René RENOU, presidente do
Institut National d’Appellation d’Origine Contrôlée (AOC, França) no colóquio sobre
Paisagens de Vinhedos e Vinhos, realizado em Angers, em 2003, afirmou que “a paisagem é
a alma dos AOC”. Para Jaques Maby, a noção de alma remete à “anima” latina, ou seja, “a
respiração da vida, a existência do ser e a sua identidade” (2003, p.276)3. E Jaques Maby se
pergunta o que é um vinho e onde reside sua identidade? Ele responde
[...} a verdadeira permanência de um vinho, a que permite reconectá-lo a sua
unicidade, é o seu território, ou seja, o que constitui a sua inscrição espacial ... que
por sua vez autentica-o, singulariza-o. [...] O espaço constitui indubitavelmente a
essência da identidade de qualquer produto de a terra. Se o espaço identifica o vinho
e a paisagem identifica o espaço, por conseguinte, esta pode servir de referência
identitária (2003, p.277).
Como os caracteres da paisagem interferem com aqueles do produto, ao ponto
construir-lhe uma identidade? A resposta de Maby é que a sociedade contemporânea está
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Tradução livre da autora.
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fortemente baseada nas imagens: “Deixamos gradualmente uma cultura dominante baseada
no discurso para uma cultura dominante baseada na imagem”. E a paisagem, segundo o
autor, responde magnificamente à dupla preocupação de identidade e de visibilidade.
Embora os estudos de paisagem sejam tradicionais na Geografia, no Brasil, aqueles
relacionados a sua espeficidade vitícola são poucos. Estas são reflexões iniciais a cerca do
tema que serão aprofundadas na tese de doutoramento.
2. Tipologia de Paisagens Vitícolas
Fabienne Joliet (ITV, 2002), criou uma tipologia para classificação das paisagens
vitícolas francesas em que considera como critérios principais a densidade dos vinhedos e o
relevo, entre outras características secundárias, que influenciam na visibilidade desses
vinhedos. Considerando os critérios densidade e relevo, a viticultura pode ser classificada em:
monocultura em encosta e em planos e policultura em encostas e em planos, resultando em 5
tipos diferentes. Essa tipologia de paisagens vitícolas é apresentada a seguir, juntamente com
os desenhos ilustrativos.
A. Monocultura em encosta
1. Terraços de vinhedos: com ou sem murros, obras de engenharia humana que marcam
acentuadamente a paisagem, caracteriza-se por vinhedos em linhas horizontais ou curvas,
acompanhando as curvas de nível.
2. Marchetaria de vinhedos: caracteriza-se por apresentar os vinhedos em diversos planos
seguindo as linhas de orientação da declividade, resultando em uma paisagem variada na
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forma, porém homogênea na cultura.
3. Ondas de vinhedos: os vinhedos seguem linhas verticais no sentido da declividade, criando
uma perspectiva para o olhar.
B. Monocultura em planos
4. Mar de vinhedos: independente da altitude, o relevo plano leva o olhar à linha do horizonte,
pois se caracteriza por vinhedos a perder de vista, criando sentimentos variados, do êxtase à
monotonia.
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C. Policultura em encosta ou planos
5. Mosaico de vinhedos: a viticultura encontra-se misturada a outros usos, o que cria texturas
e cores diferentes, provocando a ilusão de um jogo de abertura ou fechamento da paisagem,
especialmente pela presença de bosques residuais.
3. Paisagens Vitícolas Brasileiras
A vitivinicultura brasileira inicia com a colonização portuguesa no século XVI, mas é
com a imigração italiana, a partir da segunda metade do século XIX, que se configuram
muitas das tradicionais regiões vitivinícolas atuais como na Encosta Superior do Nordeste do
Rio Grande do Sul, a denominada Região Vitivinícola da Serra Gaúcha; no Alto Vale do Rio
do Peixe, em Caldas/Andradas, entre outras. Nas últimas três décadas, a vitivinicultura para
vinhos finos expande-se para outras áreas, em novas condições, formando paisagens
diferentes, como na Campanha e na Serra do Sudeste, do Rio Grande do Sul, e no Vale do
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Submédio Rio São Francisco, em Pernambuco/Bahia.
Há diversas outras áreas onde ocorre o cultivo da videira, nas regiões Nordeste,
Centro-Oeste, Sudeste e Sul, antigas ou recentes, com maior ou menor extensão, destinadas a
produção de vinhos finos ou de mesa, e/ou para o cunsumo in natura, comercializados ou para
consumo próprio, mas que não serão consideradas neste trabalho.
A viticultura na tradicional Região da Serra Gaúcha encontra-se, em geral, em
pequenas propriedades de trabalho familiar e é desenvolvida em terrenos de topografia
acidentada, sendo a videira conduzida sobretudo na forma de latada e cultivada nas encostas
sendo usado, em muitos vinhedos, o plátano como seu sustentáculo periférico, configurando
paisagens de inspiração etrusca ou como as bocages francesas. Os vinhedos, tanto de
variedades destinadas a elaboração de vinhos finos (Vitis vinifera) como a vinhos de mesa
(Vitis labrusca, Vitis burquina ou híbridos), são de pequena extensão aparecendo na paisagem
em conjunto com a mata, nas áreas de maior declividade, e outros usos, como a horta, o
potreiro ou uma pequena roça de milho para consumo próprio. Nesta região ocorrem também
áreas onde a viticultura é desenvolvida com outras frutas destinadas à comercialização, como
em Pinto Bandeira (Bento Gonçalves), cuja produção de pêssego é de, aproximadamente, 7%
da área cultivada e 12 % da produção do Rio Grande do Sul, além de maçãs e de ameixas, que
geram significativa renda agrícola.
Relacionado ao processo de colonização as estradas são como fitas em movimento
pelas encostas. Construídas nas cabeceiras dos lotes servem, ao mesmo tempo, para as duas
linhas. Ao longo dessas vias mais ou menos a cada 200 m encontra-se a residência, que
passou por diferentes formas arquitetônicas e materiais em pouco mais de um século.
Nas últimas décadas, a viticultura tradicional tem sido modificada, incorporando
tecnologia para a qualificação da produção, como na forma de condução para latada aberta ou
de espaldeira, e a construção de terraços nas áreas de maior declividade, transformando a
paisagem vitiícola. Além disso, na Região Vitivinícola da Serra Gaúcha, as transformações na
paisagem vitícola também estão relacionadas diretamente a instalação de cantinas comerciais
no meio rural, à pavimentação das principais estradas vicinais, ao surgimento de novas
atividades econômicas, como o desenvolvimento do enoturismo, inclusive com a instalação de
meios de hospedagem, como hotéis e pousadas.
Entre as outras regiões tradicionais, a Região do Alto Vale do Rio do Peixe, no centrooeste catarinense, resultado da migração de descendentes de italianos e alemães, tem uma
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paisagem fisica e culturalmente semelhante a da Serra Gaúcha, embora sua produção esteja
concentrada em vinhos de mesa, oriundos de uvas americanas e híbridas.
A partir da década de 1970 ocorre a implantação e, nos últimos anos, um crescimento
importante da viticultura na Região da Campanha, principalmente nos municípios de Santana
do Livramento, Bagé, Candiota e Hulha Negra, e na Região da Serra do Sudeste,
principalmente nos municípios de Pinheiro Machado e Encruzilhada do Sul. Esses vinhedos
situam-se, geralmente, em áreas definidas por critérios técnicos, como solos, clima e
condições de mecanização.
A expansão atual da viticultura na Campanha e na Serra do Sudeste está relacionada,
entre outros fatores, a ações de políticas públicas para estímulo ao desenvolvimento da
metade sul do estado do Rio Grande do Sul e ao crescimento acentuado do custo da terra na
região da Serra Gaúcha, de modo geral, desenvolvida por empresários nacionais, mas também
estrangeiros, não necessariamente ligados ao setor vitivinícola tradicional. Esta viticultura
instala-se em propriedades de maior extensão, desenvolvida com mão-de-obra assalariada,
administrada pelo proprietário/empresário à distância.
O relevo plano e suave ondulado da região da Campanha e da Serra do Sudeste
imprime à paisagem vitícola formas diferentes das regiões tradicionais. Os vinhedos são mais
extensos e a videira conduzida na forma de espaldeira em áreas de pouca declividade, onde é
possível a mecanização.
Na paisagem plana de campos limpos de produção pecuária tradicional da Campanha,
onde morros de um relevo residual destacam-se no horizonte homogêneo, os grandes
vinhedos formam uma ruptura escultural. Já na paisagem de colinas suave-arredondadas, com
mares de matacões que cobrem a superfície cristalina da Serra do Sudeste, os vinhedos estão
sendo instalados nas áreas mais planas.
Embora os relatos de vitivinicultura no litoral e no sertão nordestino remontem ao
século XVI, a implantação e expansão da viticultura irrigada na Região do Submédio Vale do
Rio São Francisco está relacionada aos projetos governamentais para a região do semi-árido, a
partir da década de 1960. A viticultura para vinhos implementada teve um período de
crescimento em meados dos anos 80, mas sua expansão significativa tem ocorrido nos últimos
anos. A maior parte da viticultura dessa região é para consumo in natura, desnvolvida em
propriedades de tamanhos variados desde as pequenas, exploradas pelo trabalho familiar, até
as grandes empresas rurais, onde o trabalho é assalariado. Já a viticultura para vinhos
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comerciais ocorre em poucas grandes propriedades, a maior parte nos municípios de
Petrolina, Santa Maria da Boa Vista, Lagoa Grande e Casa Nova. Nesta vitivinicultura há
empresários que são de outras regiões, inclusive da Serra Gaúcha, e a mão-de-obra
assalariada.
Na paisagem da planície sedimentar, formada pela depressão do vale do Rio São
Francisco, o solo cinza-esbranquiçado e o verde da vegetação xerofítica do semi-árido se
transformam drasticamente com a implantação de extensos vinhedos irrigados com a água do
Rio São Francisco, onde sempre há parcelas em produção, resultando em 2,5 safras anuais,
devido às condições climáticas. Na paisagem, o vinhedo forma um paralelo com a planura do
solo, vez ou outra rompido por um inselberg que o olhar abarca no horizonte, assim como por
alguma vila de trabalhadores das grandes fazendas. Outras culturas como manga, mamão,
abacaxi, entre outras, também fazem parte da paisagem.
Entre as regiões tradicionais e as novas há fluxos de pessoas e de mercadorias como,
por exemplo, vitivinicultores das regiões tradicionais cultivam nas regiões novas e
empresários das regiões novas buscam a experiência das regiões tradicionais, e a maior parte
da produção das regiões da Campanha e da Serra do Sudeste que são vinificadas na reigão da
Serra Gaúcha. Nos dois casos, a vitivinicultura é expressão da identidade da sociedade que a
produz: a tradicional, ligada aos valores culturais da imigração italiana, enquanto a viticultura
nova é bem expressão da sociedade técnico-científica-informacional dos dias atuais.
4. Considerações Finais
A caracterização dessas regiões, embora breve, permite classificar as paisagens
vitícolas brasileiras, segundo a tipologia de Fabianne Joliet, da seguinte forma:
I. Terraços de vinhedos
No plantio dos vinhedos recentes, nas encostas mais abruptas, estão sendo construidos
terraços, que modifica a condução dos vinhedos da forma denominada latada para terraços
com uma fileira de vinhas, como em Pinto Bandeira, Bento Gonçalves (Foto 1).
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Foto 1
II. Marchetaria de vinhedos
É possível identificar paisagens de marchetaria de vinhedos nas regiões da Serra
Gaúcha e Alto Vale do Rio do Peixe, especialmente visíveis nas áreas de maior
concentração/extensão, como nas encostas do Vale Aurora, em Bento Gonçalves (Foto 2). É o
tipo mais comum, seguindo a orientação e a declividade do terreno.
Foto 2
III. Onda de vinhedos
Mesmo sendo de pouca extensão, em muitos vinhedos da região de Caldas/Andradas,
a forma de condução predominante é no sentido da declividade, formando uma onda de
vinhedos. Os espaços entre as fileiras podem ser utilizados também para o plantio de milho.
Em pequenas áreas na Serra Gaúcha tem sido registrada essa forma de condução dos vinhedos
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como, por exemplo, em Farroupilha (Foto 3).
Foto 3
IV. Mar de vinhedos
Embora as regiões da Campanha, da Serra do Sudeste e do Vale do Rio São Francisco
apresentem um contexto diferente, guardadas as proporções, identificam-se nessas 3 regiões
paisagens de mar de vinhedos, como em Encruzilhada do Sul (Foto 4) e em Petrolina (Foto 5).
Nos nos topos dos patamares da Serra Gaúcha, como na região da Indicação de Procedência
Vale dos Vinhedos (Foto 6), podem ser identificadas paisagens dessa tipologia.
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Foto 4
Foto 5
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Foto 6
V. Mosaico de vinhedos
A cultua mais marcante e de maior tradição no espaço rural da região da Serra Gaúcha
é a viticultura, mas a paisagem mostra um uso e cobertura do solo com pequenas áreas com
outras frutíferas, assim como com milho, hortaliças, potreiro ou mesmo remanescentes de
floresta, que formam um mosaico com os vinhedos, como na região da Indicação de
Procedência Vale dos Vinhedos, em Bento Gonçalves (Foto 7).
Foto 7
As paisagens vitícolas brasileiras têm o espaço como condição de existência e mas são
resultado do trabalho, são testemunho da cultura, são expressão da identidade daqueles que as
construiram. Embora não sejam imutáveis, estão fixas no espaço. A vitivinicultura brasileira é
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recente, mas contém as rugosidades do seu tempo. Há elementos nessas paisagens vitícolas
que as tornam lugares com identidade e que imprimem aos produtos singularidade. O vinho
contém, assim, o espaço e a paisagem do lugar onde foi produzido e, apreciá-lo, como
observar uma paisagem vitícola, pode ser a expressão conjugada do prazer dos sentidos!
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