A TRANSIÇÃO DO SISTEMA MUNDIAL E A INTERNACIONALIZAÇÃO DAS UNIVERSIDADES: UMA PERSPECTIVA BRASILEIRA Paulo Fagundes Visentini* O mundo encontra-se, na passagem do século, em plena transição, em meio à aceleração do tempo, da globalização e da Revolução Científico-Tecnológica (RCT). Nações que foram potências econômicas, militares e tecnológicas durante mais de um século, ainda que continuem mantendo sua posição de liderança, debatem-se em meio a dificuldades e se inquietam diante da formação de novos pólos de poder e de desafios de novo tipo. Ao mesmo tempo em que se conforma a sociedade do conhecimento, problemas como o desemprego, a violência e a instabilidade se agravam. Tendências progressistas, em construção, apresentam-se entrelaçadas com tendências regressivas, que tendem a declinar, embora se manifestem de forma espetacular. Neste cenário, a posição relativa dos diversos atores sociais e políticos se encontra em processo de redefinição, dificultando a elaboração de uma análise prospectiva e a formulação de estratégias eficazes. Enquanto os países industrializados da região do Atlântico Norte atingem sua maturidade e certa estagnação civilizacional e demográfica, os do Pacífico e leste asiático se encontram em plena ascensão. Já os da América Latina, da África, do Oriente Médio, da Ásia meridional e da ex-União Soviética vivem os impasses que caracterizam as fases iniciais do processo de modernização. A globalização, ainda que tenha aumentado todos os fluxos em escala planetária, fez crescer qualitativamente as relações entre países vizinhos. Desta forma a regionalização, isto é, a formação de blocos econômicos e, progressivamente, políticos em torno de países que se tornam lideranças regionais, é a tendência resultante de maior significado. Isto faz com que o sistema mundial tenda mais a uma estrutura multipolar e multilateral, muito possivelmente mediada por uma ONU reformada, do que a uma forma de nova hegemonia de uma única potência. O mundo tornou-se demasiado complexo para ser liderado por um único país, por mais forte que seja. Dificilmente a China seria sucessora dos EUA como líder mundial, pois a nova configuração do poder se baseia cada vez mais em blocos regionais, que tendem a formatar mega-Estados (ainda que não haja uma fusão completa entre os membros), e menos em Estados nacionais. Os Estados Unidos lideram o NAFTA, o condomínio franco-alemão a União Européia, o Japão os Tigres Asiáticos, a Rússia a CEI, a China a Ásia Oriental, a Índia a SAARC, a África do Sul a SADC e o Brasil o Mercosul/ CASA (Comunidade Sul-Americana de Nações). Apenas no Oriente Médio a situação ainda não está claramente definida, embora, por detrás da aparente desagregação, a modernização esteja em marcha. Entre estes pólos econômicos e políticos, a maioria dos quais se encontra na Eurásia, está se formando um sistema compartilhado de equilíbrio de poder, apesar da resistência da antiga potência hegemônica sobrevivente da Guerra Fria. A razão para a emergência de tal configuração reside na formação de economias de escala, no plano regional, devida à forte competição tecnológica e produtiva impulsionada pela globalização e pela RCT. É a liderança de um novo paradigma produtivo, tecnológico e organizacional que está em jogo. Quanto ao papel de organizações internacionais como a OMC (que busca classificar a educação superior como “serviço”), trata-se ainda de um espaço em disputa renhida. Em termos de tendência geopolítica de longo prazo, o que se observa é que os antigos impérios marítimos (particularmente os anglo-saxônicos) que lideraram a integração planetária nos últimos séculos estão perdendo espaço para os impérios continentais, como a China, que ressurgem. Cinco séculos de ocidentalização (quatro europeus e um norte-americano) estão se encerrando com a globalização, iniciando-se uma nova fase histórica. Por mais contraditório que possa parecer, o processo de mudanças iniciado na década de 1970 está abrindo espaço para o surgimento de pólos de poder no hemisfério Sul ou mundo “em desenvolvimento”. De fato, desde aquela década, a população entrou em estagnação, regressão e envelhecimento no Norte, invertendo-se os fluxos migratórios, que agora vão do sul para o norte (os EUA estão se latinizando e asiatizando e a UE está se africanizando e arabizando) . Neste contexto, os países da OCDE (os “desenvolvidos” Europa, EUA, Canadá, Israel, Japão, Austrália e Nova Zelândia) procuram manter a dianteira em termos de capacidade financeira e tecnológica, cooperando em maior ou menor medida com os EUA, que se encarregam das tarefas militares. Num quadro de envelhecimento e, até, de redução da população, os países do Primeiro Mundo necessitam de jovens e de cérebros qualificados, que procuram atrair com bolsas de estudo, estágios e empregos em setores de ponta, na medida em que sua estrutura universitária ficou sobre-dimensionada. Assim, é importante que a cooperação acadêmica com esses países seja cuidadosa, exigindo reciprocidade e evitando um fluxo de alunos que se destinam apenas a pagar os fees (financiando a estrutura universitária do país receptor) ou que sejam absorvidos pelas empresas e instituições de ensino de outras nações, evitando uma perspectiva “colonizada” do intercâmbio. Já possuímos universidades qualificadas, de padrão internacional, capazes de receber alunos do hemisfério Norte e de estruturar projetos conjuntos de pesquisa em determinadas áreas, que sejam de benefício mútuo. Além disso, é necessário escolher bem as instituições parceiras, pois algumas possuem qualidade duvidosa (apesar do marketing) e sequer são avaliadas. Mesmo certas universidades de renome não são qualitativamente superiores a algumas brasileiras; elas simplesmente recebem os melhores alunos do mundo. Nossos estudantes, por seu turno, destacam-se pela criatividade e inovação, por serem de uma sociedade que se encontra em formação. Enfim, é preciso orientar um pouco a excessiva demanda rumo aos países do Norte, evitando estadas inferiores a um semestre e insistir na contagem de créditos (e dupla diplomação), e que busquem qualificar a formação na base da absorção das técnicas avançadas. Precisamos, igualmente, formar especialistas sobre a realidade destes países. Outra dimensão importante é o incremento das relações acadêmicas e do intercâmbio de professores e estudantes com os países do Mercosul e da Comunidade Andina, devido à importância dos mesmos para a política externa do Brasil e a integração sul-americana. Trata-se, além disso, de uma forma menos cara de intercâmbio. Iniciativas como o Programa Escala de intercâmbio de graduação da Associação de Universidades do Grupo Montevidéu são um exemplo a ser ampliado. Ao mesmo tempo, o conhecimento dos países vizinhos, que constituem o espaço privilegiado para a projeção da economia brasileira, no quadro de um desenvolvimento regional compartilhado, representa algo estratégico. E as relações inter-universitárias têm sido uma das mais bem sucedidas formas de integração. Da mesma forma, é necessário estimular uma cooperação mais intensa com os países africanos de língua portuguesa. Por fim, há que buscar parcerias acadêmicas com países-chave no desenvolvimento mundial. Potências emergentes como China, Índia, África do Sul, Rússia e Coréia do Sul, que possuem universidades de qualidade e uma importante base econômica e tecnológica, são aliados naturais. Este tipo de cooperação visa não apenas a realidade do presente, como no caso do Primeiro Mundo, mas uma projeção futura. Melhor do que absorver tecnologia é produzir ciência e criar tecnologia, em conjunto com países em relação aos quais o Brasil estabeleceu as chamadas Parcerias Estratégicas. Trata-se de chegar cedo às regiões que serão o centro da economia mundial, e que possuem características semelhantes às nossas. Assim, a internacionalização acadêmica, que vem dando um salto qualitativo há pouco mais de uma década, precisa ser orientada a partir do plano de qualificação da própria instituição, em consonância com o projeto nacional de desenvolvimento. Evitar uma cooperação passiva e responsiva à demanda de outros e redes universitárias sem um foco definido é fundamental para uma internacionalização séria e estrategicamente planejada. O mundo está mudando aceleradamente e deve se estabilizar econômica e demograficamente em meados do século. Os que não olharem para o futuro, a partir de uma perspectiva própria, ocuparão uma posição subalterna pelos próximos cem anos. * Coordenador do curso de Relações Institucionais e Internacionais da UFRGS, Professor Titular, PósDoutorado pela London School of Economics.