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Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIV, no 147, 5-11
A paciência no trabalho analítico
Ernani Chaves
N
os chamados “escritos técnicos” de Freud, publicados entre 1911 e 1915,
chama a atenção a questão, evocada algumas vezes e em situações
estratégicas importantes, da paciência. Dirigindo-se aos jovens iniciantes na
prática analítica, Freud procura mostrar o quanto a paciência do jovem analista
é colocada duramente à prova, em especial durante o processo da “(per)
laboração”. Ao mesmo tempo, num confronto que o próprio Freud define com o
uso constante de metáforas bélicas, é necessário desenvolver e exercitar a
paciência do paciente.
Palavras-chave: Paciência, prudência, (per)laboração, resistência
I
n Freud’s so-called “writings on technique”, published between 1911 and 1915,
the subject of patience requires special attention, for it is sometimes evoked in
important strategic situations. Addressing young psychoanalysts, Freud shows
how often the patience of young analysts is put to the test, especially during the
process of working-through. At the same time, in confrontation that Freud defines
with the frequent use of warlike metaphors, the patient’s own patience must be
developed and exercised.
Key words: Patience, prudence, working-through, resistance
á uma idéia e uma questão bastante instigantes, que aparecem com
certa freqüência nos escritos de Freud
sobre a técnica psicanalítica, objeto de
sua atenção entre os anos de 1911 e
1915. Trata-se da idéia e da questão da
“paciência” (Geduld). Ora da paciência
do analista, ora do aprendizado da paciência que o analista, de certo modo, precisa incentivar no analisante. Deixemos de
lado a conjuntura na qual esses textos
foram escritos, já suficientemente explicitada na bibliografia especializada, qual
seja, a das grandes disputas internas ao
movimento psicanalítico, em franca expansão na época, em especial a querela
e a dissidência com Jung, para nos aprofundarmos um pouco neste tema.
Comecemos pelas linhas finais de
“Lembrar, repetir, (per)laborar”, de 1914:
H
Essa (per) laboração das resistências pode
tornar-se, na prática, uma dolorosa tarefa
para os analisantes (Analysierten) e uma
prova de paciência (Geduldprobe) para o
médico. Mas é essa parte do trabalho que
tem os maiores efeitos modificadores nos
pacientes (Patienten) e isto diferencia o
tratamento analítico de qualquer influência da sugestão. Teoricamente, pode-se
compará-la à Ab-reação das cargas afetivas
enclausuradas através do recalque, sem a
qual o tratamento hipnótico permanecia
inoperante. (Freud, 1992: 95)
Vimos que no texto Freud diz, explicitamente, que a (per) laboração por parte
do paciente é uma “prova de paciência”
para o médico. O entendimento desta
prova de paciência começa quando lembramos que, no parágrafo imediatamente
anterior, Freud, usando não apenas a sua
autoridade de pai-fundador, mas também
sua larga experiência, dirige-se aos “iniciantes em análise”, ou seja, aos que iniciam seu trabalho como analistas, para
adverti-los, para “aconselhá-los”, diz ele,
no que tange à euforia inicial do médico
quando seu paciente consegue superar as
resistências. Isto não significa, de modo
algum, “cura”. Freqüentemente, diz
Freud, o jovem iniciante desanima quando, apesar de constatada a superação das
resistências, o paciente, volta e meia, não
apresenta nenhuma mudança. Freud
completa dizendo que o tratamento não
termina aí, que é necessário deixar que
o paciente “(per) labore”, conheça e se
aprofunde nas suas resistências, para
poder superá-las. Ou seja: num outro nível, com outra determinação, o trabalho
analítico continua. Freud afirma que o
paciente precisa de tempo para a árdua
tarefa da (per) laboração. Mas... de
quanto tempo? É aqui que a “prova de
paciência” do analista ganha seu sentido
pleno: uma vez que as resistências foram
superadas, resta o trabalho conjunto de
(per) laboração, cujo tempo cronológico
não pode, de antemão, ser delimitado.
Gostaria de chamar a atenção para o imbricamento entre paciência e tempo. Falamos muito de “paciência” no nosso
cotidiano. Mas, em geral, pela negativa:
“não tenho paciência!” Podemos dizer
ainda que nós, brasileiros, “sofremos” de
impaciência. Basta lembrarmos das filas
que temos de enfrentar no banco, no
supermercado, no cinema, nos guichês
das repartições públicas, das longas ho-
A paciência no trabalho analítico
ras de espera nos engarrafamentos, nos
aeroportos. Estamos sempre apressados,
embora repitamos, com insistência, que
“a pressa é inimiga da perfeição”. Somos impacientes porque não temos tempo, porque não podemos perder tempo,
porque nosso tempo é rigorosamente
cronometrado. Em outras palavras,
acompanhamos o tempo da máquina, o
tempo da produção, o tempo do trabalho.
Tempo marcado pelo relógio, que corre
fuido, sempre para a frente, indiferente
ao que ficou para trás. Dificilmente a
paciência pode encontrar um lugar nessa temporalidade do relógio. Por que?
Porque a paciência, ao contrário da impaciência, não sucumbe à temporalidade
cronológica, a esse escoar em direção
ao infinito. Ao contrário, ela introduz no
tempo cronológico uma outra temporalidade. Que não é mais “homogênea e
vazia”, linear e contínua, mas que intercepta, impõe uma cesura, que exige uma
interrupção. O tempo da paciência estabelece em relação às formas gerais do
tempo – o passado, o presente e o futuro
– uma relação na qual esses três elementos continuamente se entrecruzam.
Pode-se dizer, então, que a idéia de paciência conforma-se à idéia de temporalidade vigente em Freud. Uma idéia que,
ao escapar das determinações da cronologia, contradiz a idéia de uma temporalidade progressiva a qualquer preço, que
sacrifica o passado no altar santificado
do que está por vir.
As relações entre passado e presente,
como se sabe, indicam a importância dos
7
acontecimentos infantis na vida adulta,
das formas “primitivas” de vida nas formas “civilizadas”, acontecimentos estes
que, travestidos, “retornam” das mais
variadas formas, interferindo de modo
decisivo no presente. Por outro lado, o
presente está sempre reportado a este
passado que não morreu, a esse passado que queremos enterrar sem compreender, mas que, como um morto-vivo,
ressurge das profundezas para desestabilizar nossas mais aferradas convicções. Se pensarmos que a “(per)
laboração” é o momento em que o futuro está sendo gestado, entendemos seu
caráter doloroso para o paciente e a extrema paciência de que o analista precisa. Doloroso, porque o passado não está
morto, como se supunha com ingênua
confiança, mas é sua ressignificação que
está sendo exigida. Doloroso porque, ainda uma vez, corrói a fantasia da ajuda,
que alimenta todo aquele que pisa pela
primeira vez em um consultório. Sim,
agora o paciente já “sabe” muitas coisas.
Mas isso não é suficiente. É preciso “trabalhar através” (significado literal de
Durcharbeiten) disso que é dado como
“sabido” à luz dessa outra gramática,
dessa outra lógica que se abre na medida em que os escolhos da resistência foram superados.
A paciência do analista encontra, neste
ponto, sua mais dura prova. Isto porque, segundo Freud, o analista nada
pode fazer a não ser esperar. Não pode
impedir que resistências apareçam novamente, nem pode apressar o processo de
(per) laboração. É na raiz desta paciência infinita que se pode reencontrar uma
antiga figura da ética ocidental, uma das
virtudes mais exaltadas pelos gregos: a
prudência (phronesis). Paciência e prudência caminham juntas: a paciência de
esperar e a prudência em não querer
precipitar as coisas evitarão os constrangimentos e a decepção, nos quais, freqüentemente, os iniciantes naufragam.
Nos textos deste período, ligados à questão da técnica, duas outras imagens usadas por Freud para caracterizar a
psicanálise, estão ligadas ao exercício da
paciência. A primeira se encontra em “A
dinâmica da transferência” (1912) e a
segunda em “Introdução ao tratamento”
(1913). A primeira imagem – que, talvez
não por acaso, retorna no final do texto
– é a da “luta” (Kampf) que, no interior
do fenômeno da transferência, se estabelece entre “médico e paciente, intelecto e vida pulsional, conhecer e querer
agir (Freud, 1992a: 47). Esta imagem
guerreira se desdobra, ainda no mesmo
texto, em mais duas: a de “campo de
batalha” (Feld) e a de “vitória” (Sieg). A
inimiga nesta guerra é a neurose e sua
prodigiosa força. Vencê-la é o compromisso e o dever do analista, apesar das
“grandes dificuldades” que ele deve enfrentar. Ora, nesta guerra, o analista torna-se também um “estrategista” e, nesta
estratégia, a paciência ocupa um lugar
central. No campo da transferência, considerado um campo de batalha, paciência e prudência precisam ser, a todo
momento, exercitadas e mobilizadas pelo
analista, na sua luta.
A segunda imagem é a do “jogo de
xadrez”, situada exatamente no começo
do “Introdução ao tratamento”, e que é
utilizada para definir a psicanálise”.
Quem quer aprender pelos livros o nobre
jogo de xadrez, cedo saberá que é permitida
uma exposição completa e sistemática do
início e do fim do jogo, enquanto que da
sua imensa complexidade, após o início do
jogo, é recusada toda exposição. Apenas o
estudo zeloso das partidas, nas quais os
mestres lutaram entre si, podem preencher
as lacunas de sua instrução. Semelhantes
determinações sujeitam totalmente as
regras que se pode dar para o exercício do
tratamento psicanalítico. (Freud, 1992b: 63)
Ora, que jogo é mais desafiador da nossa
paciência do que o de xadrez? É a sua
especificidade, qual seja, a de que suas
regras não são expostas para o iniciante
na sua totalidade, que exige o “zeloso
estudo”, o exercício da paciência a partir do estudo das partidas “nas quais os
mestres lutaram entre si”. A imagem da
“luta”, como vimos, reaparece em um
outro contexto. Certamente que Freud
evoca para si o título de Mestre. Os escritos técnicos, no seu conjunto, trazem
a marca inconfundível que Freud quer
imprimir neles: a marca do Mestre. Mas,
em que consiste ser Mestre? Eu diria,
mais uma vez retomando antigas figuras
do pensamento ocidental, que o Mestre
não é nem o “sábio”, nem o “sofista”.
Nem sábio, pois isto suporia que ele já
sabe tudo e que nada precisa mais aprender; nem sofista, pois não se utiliza dos
A paciência no trabalho analítico
ardis da oratória e da retórica para convencer quem quer que seja. Como também não é nem o “adivinho”, pois nada
prediz; nem o “poeta”, pois não transmite o passado primordial pela “inspiração”
das musas (Vernant, 1990: 359 sg.) .
Assim, como Mestre, está próximo da
imagem do “filósofo” construída por
Platão, da qual Sócrates é o modelo e
para onde convergem um conjunto de
temas e atitudes encontrados não apenas
na Grécia arcaica dos “mestres da verdade”, mas também entre os povos do
Oriente, com quem os gregos estiveram
em contato.
Próximo do “filósofo” (proximidade que
o próprio Freud sempre recusou), na
medida em que, ao revés de uma concepção de ciência em vários pontos ainda enraizada no solo cientificista do século XIX, Freud provoca tantos abalos
no seu próprio pensamento, tantas retomadas, tantas modificações, que podemos dizer que ele é movido por esse “desejo de saber”, que implica não apenas o
questionamento do saber aparente que se
acredita possuir, mas também o questionar a si mesmo e aos valores que dirigem a sua própria vida (Hadot, 1999:
55 sg.) . Mas Mestre também – e aqui
com a marca própria à psicanálise – porque se tornou Mestre por ter exercitado,
como o aprendiz de xadrez, a paciência.
A paciência da escuta.
Em pelo menos um texto desta época,
em “Conselhos para o médico durante o
tratamento psicanalítico”, de 1912,
Freud refere-se à paciência do analisan-
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te, no interior de uma problemática bem
interessante: a que envolve a “atividade
intelectual” do analisante, ou melhor, a
sua “cooperação intelectual” (Freud,
1992c: 59) . Freud diz que não há uma
resposta geral para isso e que o analista
deve ser “prudente”. Como já dissemos,
paciência e prudência se recobrem. A figura da prudência pode, então, ser melhor explicitada. Ela possui, de fato, um
duplo significado: é tanto evitar “dirigir”
o paciente para isso ou para aquilo, nesta
ou naquela direção, seja dizendo que ele
precisa reunir suas lembranças, seja pedindo que se lembre de um determinado
período de sua vida ou, então, de assinalar a todo momento, que o que resolve o
enigma da neurose não é nem o esforço
de compreensão intelectual, nem o esforço cansativo de concentrar sua atenção neste ou naquele ponto. Ao invés
disso, trata-se de mostrar que o enigma
só se desfaz “através da paciente observância da regra psicanalítica, que ordena eliminar a crítica diante do
inconsciente e seus derivados”. É preciso evitar que o paciente se refugie no
“intelectual”, que comente longa e seguidamente o seu estado e, com isso, desvie-se do esforço de curar-se. “É por
esta razão” – continua Freud – “que desaconselho aos meus pacientes a leitura
de obras psicanalíticas, exijo que se instruam por sua experiência pessoal e certifico-lhes que podem, dessa maneira,
aprender mais e melhor do que toda a
literatura psicanalítica poderia lhes ensinar”.
Diríamos então que, deste ponto de vista, se o analista ensina alguma coisa ao
paciente, uma dessas coisas é a paciência. O exemplo de Freud é, entretanto,
aos nossos olhos de hoje, muito restrito.
Trata-se do paciente intelectual, letrado,
que quer fazer intervir suas leituras ou
seu conhecimento da teoria psicanalítica,
durante o tratamento. Entretanto, por
outro lado, a figura do intelectual é bastante emblemática no contexto do tema
tratado aqui. Sua descrição pode ser
aproximada daquela do impaciente, daquele que parte da presunção de que o
entendimento “intelectual” pode lhe bastar ou ser invocado para explicar isso ou
aquilo. Assim, em vez de submeter-se à
regra da “associação livre”, ele quer argumentar ou, em outras palavras, mostrar que é “sabido”. A paciência do
analista para escutar se desdobra e se
prolonga no aprendizado do paciente em,
com paciência, submeter-se às regras do
tratamento. Neste momento, a figura do
Mestre ganha pleno significado, pois trata-se, como sempre, de um confronto,
de uma luta, e manejar a impaciência do
paciente é, para o analista, não apenas
um exercício de paciência, mas também, de um certo modo, um ensino da
paciência. Como no jogo de xadrez. Em
um texto tardio, “Análise terminável e
interminável” (1937), não por acaso incluído na edição alemã que utilizo, entre
os “escritos técnicos”, todos estes te-
mas reaparecem, mesmo quando não
explicitamente mencionados. Fiz, até
aqui, referência aos escritos chamados
“técnicos”. Entretanto, para finalizar,
peço licença para recuar até um texto
anterior, um dos textos fundadores da
psicanálise, “O caso Dora”. Por que a
história de Dora? Porque nele, Freud, no
início do relato, refere-se à idéia da paciência, recorrendo a uma citação do
“Fausto”, de Goethe, a quem muito admirava:
Não somente ciência e arte,
A paciência da obra quer fazer parte1
O que é, no mínimo, curioso nesta citação de Goethe? Sabemos que Dora
abandonou o tratamento. Sabemos também que Freud torna esse fracasso um
fracasso exemplar, isto é, que ele tirou do
abandono de Dora lições importantíssimas para a continuidade da psicanálise,
ao enfatizar, pela primeira vez positivamente, a questão da transferência que, de
resistência e obstáculo, torna-se auxílio
imprescindível ao tratamento. Sabemos,
além disso, que mesmo Dora tendo sido
paciente de Freud até dezembro de
1900 e Freud tenha redigido sua história clínica imediatamente após o abandono, só veio a publicá-lo em 1905.
Supõe-se, com razão, que entre a redação inicial e a versão final, a que foi publicada, o manuscrito passou por uma
per(laboração). O que o torna, então,
“curioso”, “engraçado”, com todos os
1. “Nicht Kunst und Wissenschaft allein,/ Geduld will bei dem Werk sein”.
A paciência no trabalho analítico
efeitos desestabilizadores do “chiste”? É
que Freud fala de paciência, justamente
em uma situação onde não a teve, onde
a pressa revelou-se inimiga da perfeição.
Se é verdade que a Dora, a psicanálise
deve, em grande parte, sua constituição,
também é verdade que a ela, a psicanálise deve a lição da paciência. Se os escritos técnicos têm, muitas vezes, o tom
de uma preleção, de uma aula, nos moldes da cátedra, se Freud não hesita em
se colocar no papel de Mestre, é porque
ele próprio já havia experimentado, com
agudeza sem igual, a impaciência e a imp. 95.
prudência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
F REUD , S. Erinnern, Wiederholung
und
Durcharbeiten.
In
Behandlungstechnische Schriften.
Frankfurt: Fischer, 1992.
____ . Zur Dinamik der Übertragung.
Op. cit., 1992a.
____ . Zur Einleitung der Behandlung.
Op. cit., 1992b.
____ . Ratschläge für den Artz bei der
psichoanalytischen Behandlung. Op.
cit., 1992c.
HADOT, P. O que é a filosofia antiga?
São Paulo: Loyola, 1999.
VERNANT, J-P. Mito e pensamento entre
os gregos. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1990.
Artigo recebido em abril/2001
Revisão final recebida em junho/2001
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Os 10 mais vendidos
em maio/2001
1o
Hysteria
Christopher Bollas
2o
A conversa infinita – 1
Maurice Blanchot
3o
A invenção do psicológico
Luís Claudio Figueiredo
4o
Culpa
Urania T. Peres (org.)
5o
A morte de Sócrates
Zeferino Rocha
6o
Estados-da-alma da psicanálise
Jacques Derrida
7o
Avatares da transmissão
psíquica geracional
Olga B. Ruiz Correa (org.)
8o
Ética e técnica em psicanálise
Luís Claudio Figueiredo e
Nelson Coelhor Junior
9o
As árvores de conhecimentos
Pierre Levy e Michel Authier
10o
O olhar do engano
Lia Ribeiro Fernandes
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