Anotações sobre pacientes

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Anotações sobre pacientes
Alfredo José MansurI
Unidade Clínica de Ambulatório do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo
A atividade médica e os cuidados com a saúde de modo geral foram, durante muito tempo, documentados por escrito em
papel. Atualmente, a documentação tende a ser feita progressivamente em meio eletrônico.1 O registro eletrônico traz ganhos
para os vários aspectos da assistência a pacientes e benefícios
potenciais para outras dimensões da atividade clínica que ainda
não se descortinaram completamente.2
O uso mais difundido do meio eletrônico na prática pode
ser limitado por diferentes fatores,1 entre eles: a) escassez de
sistemas desenvolvidos de acordo com as necessidades práticas
de diferentes clientes, serviços e culturas organizacionais; b)
dificuldade de criar tais sistemas pelo conjunto de exigências
que demandam — competência técnica profissional, experiência, infraestrutura, horas de trabalho e recursos para investir em
desenvolvimento; c) econômicos, dimensão sempre finita, que
limita não só o desenvolvimento, mas também a sua implantação; d) dificuldade de implementação na prática; e) assessoria e
consultoria clínica (os “clientes”) para o processo de implantação; f ) dificuldade do controle de qualidade das repercussões da
sua aplicação, incluindo repercussões inesperadas2 etc. A lista
dos fatores mencionados não se pretende completa, a literatura
sobre o tema é vasta1 e especialistas podem expandi-la.
Como nova tecnologia, o registro eletrônico da atividade
clínica dialoga com o conteúdo de que trata, com as pessoas
que operam o sistema e de como as pessoas usam os recursos
do sistema para o fim a que se propõe. Nesse sentido, há uma
relação do sistema informatizado com o seu entorno humano.2
O processo mobiliza disposições e atitudes, as quais, como tal,
não são da máquina ou do sistema operacional eletrônico, mas
são do ser humano, seja ele o paciente, sentido último dessa
prática, ou o profissional a seu serviço.
Médicos e profissionais de saúde podem ter a oportunidade
de participar do processo da documentação da sua atividade em
meios eletrônicos e serem estimulados a refletir sobre o assunto.
Diferentes reflexões, mais ou menos convencionais, podem ser
estimuladas nesse processo.
Fascínio — a expressão “fascínio tecnológico” foi empregada, por um professor de Medicina,3 como uma das atitudes
que podem modular a incorporação tecnológica. A etimologia
do termo fascínio remete ao verbo latino fascināre, que tem o
significado de fascinar, encantar, enfeitiçar.4,5 Depois de alertado, exemplos cotidianos desse fascínio tornaram-se evidentes
no decorrer do tempo.
Tivemos a oportunidade de ver o fascínio dos primeiros
tempos do fax. Lembro-me de ter presenciado expressões de
encanto de recebedores de um texto escrito por fax (antes que
o fax se transformasse também em veículo de propagandas de
panelas etc.). O entusiasmo com o fenômeno e o equipamento
da transmissão por si só superava em muito a apreciação do
conteúdo de que tratava.
Mas era só o início — o fascínio também contemplava o
disquete cada vez menor, o CD, o pen-drive (progressivamente
de maior capacidade de armazenamento); o palm, o iPod, o celular, o iPhone, o tablet, o Kindle e outras ferramentas tendem
a se desenvolver no futuro. Para todos esses equipamentos, o
entusiasmo com o aparelho e com o seu potencial superava em
muito o eventual entusiasmo com os conteúdos que veiculavam, fato já apontado na literatura.6 Fora de questão que todas
essas tecnologias auxiliam a lidar com os conteúdos que veiculam, pois facilitam o acesso e a transmissão desses conteúdos.
Entretanto, não se pode dizer que tal facilitação do acesso e
da transmissão torne o pensamento mais rápido, particularmente
no que diz respeito a atividades complexas como são as atividades
médicas. O meio eletrônico contribui para o registro e a transmissão de conteúdos, mas, em si mesmo, é um meio, e não descreve por si só a realidade, não garante a qualidade da observação,
a análise e a capacidade decisória, que dependem da elaboração
do cérebro humano. Mesmo quando recursos de inteligência artificial são utilizados, eles dependem da programação que foi feita
pelo homem e têm limite na sua resolução.
Rigor — outro aspecto interessante dos sistemas eletrônicos
de registro é que eles incitam seus programadores a cuidados
ou normas que podem receber denominações de “segurança”,
“qualidade”, entre outras, mas que podem ter outras repercussões ou consequências semânticas. Um desses “cuidados” pode
ser evitar (ou limitar) o texto livre, apanágio da “liberdade” (tomada como assustadora e propensa ao caos). Assume-se que o
programador é que sabe o que deve ser registrado — ainda que
Livre-docente em Cardiologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Diretor da Unidade Clínica de Ambulatório do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo.
I
Diagn Tratamento. 2012;17(2):66-8.
Alfredo José Mansur
não conheça a realidade que vai ser descrita — e podem ser
criadas categorias pré-estabelecidas para a realidade (no foco de
interesse dessas reflexões, a realidade clínica cotidiana). Expõese ao risco potencial de dissipar fronteiras conceituais que são
claras entre o método do exame clínico, previsível, estruturado,
pois obedece a uma sequência lógica, e o registro do dado clínico de cada paciente, necessariamente individual e único, cuja
singularidade não pode ser afrontada.
Surgem: a) categorias artificiais, ou mal definidas, nada aristotélicas, que restringem a capacidade de observação ou descrição e seu registro, de tal modo que criam conflito latente
entre a estrutura do registro com a realidade que se apresenta;
b) cláusulas “obrigatórias”, impostas, sem as quais o sistema
não permite o progresso da ação de fazer o registro. Criou-se
nova possibilidade semântica — a ação travada (“o sistema não
permite”) ou o verbo truncado como paradoxal resultado do
progresso tecnológico.
Liberdade — uma das características da prática clínica é a
sua imprevisibilidade individual, que constitui a riqueza individual de cada paciente, tanto na saúde quanto na doença. Ainda
que a ciência e a arte médicas tenham se empenhado por longo
tempo em identificar características comuns a afecções humanas e construído admirável cabedal de experiência clínica e científica sobre a qual se assenta a prática clínica, ainda assim cada
paciente permanece como uma individualidade e deve ser reconhecido como tal — a arte médica permite acolher essas individualidades e trabalhá-las cientificamente em prol do paciente.
Os registros da atividade clínica devem respeitar essas características individuais, elaboradas por uniformidade metodológica. O paciente individual não é padronizável no exame
clínico. Essa realidade só alcança o texto livre e não formatos
pré-estabelecidos de registro que deixam de permitir o registro
da realidade com a qual se depara, e pode permitir o registro de
traduções da realidade.
A capacidade de enunciar ideias e usar a sintaxe em um texto foi uma conquista demorada da humanidade. Para muitos,
uma das condições de sobrevivência.7 A capacidade de transformar elementos finitos em elementos infinitos pertence a essa
dimensão da linguagem que registramos no cotidiano. O registro eletrônico não deve trazer no seu bojo uma ameaça a essa
realidade, detratando a linguagem do que se observa na prática
clínica do seu vínculo semântico com a realidade dos pacientes.
Obrigatoriedade — Característica interessante dos meios
eletrônicos é a possibilidade do uso de campos ou cláusulas
obrigatórias. Imagine-se que o peso corpóreo seja uma cláusula obrigatória do exame físico: há várias possibilidades que
podem dificultar a sua medida — a) a balança indisponível; b)
balança inadequada para um determinado paciente; c) paciente
atendido em cadeira de rodas ou maca, que não consegue ficar
em pé etc. Só em uma cláusula, sem muita dificuldade, identificamos condições cotidianas que impõem que a situação seja
contornada. Como é que se faz para contornar essa situação e
Diagn Tratamento. 2012;17(2):66-8.
não interromper o cuidado dado ao pacientes? Nessa situação
há forte estímulo para se descobrir a solução.
A cláusula obrigatória, quando não passível de ser satisfeita,
torna o sistema rígido e autoritário, não dialoga com o operador para permitir ajustes necessários, seja ele médico ou outro
profissional de saúde.
Categorização — Outra possibilidade dos meios eletrônicos é a categorização a priori de condições clínicas que não são
conhecidas ou que são apresentadas pelos pacientes de modo
original. O método científico aspira à padronização, mas o
exame clínico usando o método científico é necessariamente
individual. É a ciência médica e sua estrutura teórica colocada a
serviço da necessidade individual dos pacientes.
Nesse sentido, o registro previamente codificado não é o registro da observação clínica, mas o registro da interpretação da
observação. São realidades diferentes. Na eventualidade de o
paciente ser atendido em outra ocasião, o médico terá dificuldade de apreender o que transcorreu na consulta anterior (particularmente se não for o mesmo profissional), e terá que levantar todo o caso clínico novamente, pois o caso em si não está
registrado, mas está registrada a interpretação do caso clínico.
Assim, os conceitos de rigor a serviço da qualidade ou segurança da informação registrada podem se dissipar.
Poder — na medida em que o sistema é capaz de exigir cláusulas para operar e passar para a próxima página, o sistema em si
adquire poder. Pode ser que este poder estimule a entender-se que
esta seja uma dimensão pedagógica, atrelada à pretensa segurança
ou qualidade ou ao simples fato de fazer exigência. Há sistemas
de treinamento que usam essas prerrogativas para treinamento
específico.
Entretanto, o fazer bem feito não é necessariamente uma decorrência de exigência de sistemas informatizados, pertencem
ao âmbito do método, da boa formação profissional e da cultura na qual a prática se dá.
Jovens — admite-se que os mais jovens de modo geral estejam
mais habituados a interagir com os meios eletrônicos. Às vezes,
mesmo para sistemas que estão longe da perfeição, o argumento
de que os jovens lidam bem com ele pode servir para atenuar
a necessidade de melhoria do próprio sistema ou dos processos
envolvidos nesse registro. Certa feita, dialogando com um engenheiro muito experiente, ele me chamou a atenção para o fato
de que algumas situações de tentativa e erro são enfrentadas com
maior desembaraço particularmente na cultura de tempos mais
recentes, que denominou “cultura de tentativa e erro”.
Linguagem — tem sido objeto de comentário em diferentes
círculos leigos ou de especialistas que a linguagem escrita sofreu
modificações nos meios eletrônicos. Curiosamente, há hipótese de
que a modificação da linguagem possa ser de tal monta que, muitas vezes, se torna pouco compreensível. É desejável que isso não
venha a acontecer com o registro da prática clínica, que tem na sua
etapa primeira a descrição da realidade clínica que se apresenta, a
partir da qual se faz o diagnóstico e se prescreve o tratamento.
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Se entendermos a linguagem como uma expressão do pensamento (e não uma atividade burocrática desprovida de significados) as modificações da linguagem nos meios eletrônicos
demandam certa atenção. Há pesquisadores que apontam nesse
sentido — as ferramentas que utilizamos para pensar mudam o
modo como pensamos.8
Capacidade — Certa feita, ao examinar um sistema de registro eletrônico, verificamos que havia espaço para textos livres.
Como todo meio eletrônico, e dependendo da finalidade para
a qual foi construído, a capacidade de registro nesses campos é
determinada pelo número de caracteres estabelecido por quem
o construiu. Surpreendentemente, ainda que o texto fosse virtual e a capacidade do espaço muito grande, a ferramenta foi
disponibilizada com limite de caracteres, a nosso ver, aquém do
necessário para a finalidade que se destinava (principalmente
em casos clínicos mais complexos). Mais surpreendente ainda
foi a descoberta de que o limite baixo de caracteres foi percebido por exíguo número de usuários do sistema, indicando
que os textos eletrônicos podem estar associados também com
registros reduzidos — não devemos confundir com sintéticos.
A síntese é uma aspiração de todos que trabalham com a linguagem, não se coaduna com o copy-paste; quando a linguagem é
usada para tratar de circunstâncias complexas, atingir a síntese é
um trabalho de elaboração muitas vezes numa etapa subsequente
ou até tardia em relação ao registro inicial descritivo do dado.
Telas — o uso dos meios eletrônicos requer que os dados,
principalmente aqueles em forma de texto, sejam apresentados
em telas ou janelas. As telas têm um espaço delimitado de exibição e, por vezes, espaços vazios ocupam grande área na tela,
contribuindo para que muitas telas sejam necessárias para a apresentação dos dados. As telas impõem fragmentação na leitura e
talvez fragmentação da escrita dos registros. Esse aspecto irreversível das necessidades atuais pode fragmentar artificialmente
a leitura e o pensamento a partir dela elaborado. Criar-se-iam
registros que obedecem a esse limite, que poderiam incidir na
descrição incompleta ou parcial da realidade de que tratam.
Hierarquia – tivemos oportunidade de ouvir de profissionais experientes que afirmam que, em geral, o desenvolvimento
de sistemas eletrônicos contempla, em hierarquia mais elevada,
o próprio sistema, e seus clientes a ele devem se submeter. A
cultura que pretendem registrar, o momento da cultura na qual
o sistema se implanta, as pessoas que operam o sistema, e o
diálogo entre as pessoas e o sistema, e depois o monitoramento
da qualidade das informações não ocupam os mesmos valores
nessa hierarquia. Esse predomínio do meio sobre o conteúdo e
sobre as pessoas pode contribuir para o fato de que alguns sistemas se tornam menos operacionais ou mais limitados.
Finalizando essas observações, lembramos que elas podem
ser ampliadas com a literatura1 e enriquecidas com experiências
de outros colegas.
REFERÊNCIAS
1. Pêgo-Fernandes PM, Werebe E. Electronic medical files for patients: some
steps towards the future. Sao Paulo Med J. 2010;128(6):317-9.
2. Menachemi N, Collum TH. Benefits and drawbacks of electronic health
record systems. Risk Manag Healthc Policy. 2011;4:47-55.
3. Décourt LV. O doente e a técnica na medicina atual. Revista do InCor.
1995;2:3-4.
4. Houaiss A, Villar MS. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Objetiva; 2001.
5. Faria E. Dicionário Escolar Latino-Português. 5a ed. Rio de Janeiro: Fundação
Nacional de Material Escolar; 1975.
6. Turkle S. A passion for objects. How science is fueled by an attachment to
things. The Chronicle Review 2008;50:B26. Disponível em: http://web.mit.
edu/sturkle/www/pdfsforstwebpage/ST_Passion%20for%20Objects.pdf.
Acessado em 2012 (10 abr).
7. Nowak MA, Plotkin JB, Jansen VA. The evolution of syntactic communication.
Nature. 2000;404(6777):495-8.
8. Turkle S. How computers change the way we think. The Chronicle
Review 2004;50:B26. Disponível em: http://web.mit.edu/sturkle/www/
pdfsforstwebpage/Turkle_how_computers_change_way_we_think.pdf.
Acessado em 2012 (10 abr).
INFORMAÇÕES
Endereço para correspondência:
Unidade Clínica de Ambulatório do Instituto do Coração do Hospital das
Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44
São Paulo (SP)
CEP 05403-000
Tel. InCor (11) 2661-5237
Consultório: (11) 3289-7020/3289-6889
E-mail: [email protected]
Fontes de fomento: nenhuma declarada
Conflito de interesse: nenhum declarado
Data de entrada: 12 de março de 2012
Data da última modificação: 9 de abril de 2012
Data de aceitação: 19 de abril de 2012
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