direitos humanos - Sociology of Law

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ANAIS
CONGRESSO DO MESTRADO EM DIREITO E
SOCIEDADE DO UNILASALLE
GT – DIREITOS HUMANOS: SEGUNDA E TERCEIRA
GERAÇÕES
CANOAS, 2016.
1042
O DIREITO À NÃO DISCRIMINAÇÃO COMO RESGATE DO POTENCIAL
EMANCIPATÓRIO DOS DIREITOS HUMANOS.
Paulo Víctor Silva Schroeder
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Populações de territórios colonizados são sistematicamente submetidas a processos de
vulnerabilização, nos quais seus direitos mais básicos são violados das mais diversas formas. Esses
sujeitos precisam incessantemente esforçar-se para que sejam reconhecidos como plenamente
humanos. Nesse panorama, o Direito Internacional dos Direitos Humanos vem se instrumentalizando
no sentido de possibilitar uma proteção adequada àqueles que possuem seus direitos violados apenas
por possuírem determinadas características físicas, o que pode ser percebido através de um dos
desdobramentos do direito à igualdade, o direito à não discriminação.
Este trabalho foi desenvolvido no âmbito do Núcleo de Direitos Humanos/Unisinos e
vinculado à linha de pesquisa “Sociedade, Novos Direitos, e Transnacionalização” do “Programa de
Pós Graduação em Direito da Unisinos”, mais especificamente ao projeto “Direito das Minorias e
Grupos Vulneráveis: uma Análise do Discurso de Fundamentação nas Decisões do STF”.
Por meio da pesquisa exploratória, a problematização é feita utilizando-se o procedimento
técnico da pesquisa bibliográfica transdisciplinar, utilizando livros e artigos de natureza jusfilosófica,
histórica e antropológica para identificar de que forma o direito à não-discriminação responde à
demanda do direito internacional dos direitos humanos pela proteção dos direitos de sujeitos que
foram sistematicamente excluídos do campo semântico de “humano racional”, constituindo grupos em
situação de vulnerabilidade em decorrência da atuação da colonialidade na formulação da ideia de
sujeito racional moderno.
2 QUEM É O HUMANO NOS “DIREITOS HUMANOS”: A RAZÃO COMO FATOR DE
DEFINIÇÃO
O autor Boaventura Sousa Santos (1997) assevera que os pressupostos sobre os quais se
constroem os direitos humanos são bastante conhecidos e provém da tradição ocidental, quais sejam: a
existência de uma natureza humana com característica universal e que pode ser acessada através da
racionalidade; a distinção entre aquilo que é natureza humana e aquilo que é natureza e passível de
dominação; a concepção da dignidade como substrato básico presente em todo o ser humano, que deve
ser respeitada e defendida tanto na esfera particular quanto pública; e, também, a necessidade da
formação de uma sociedade através de indivíduos organizados de forma não hierárquica.
Na história da filosofia moderna, a tendência da utilização desses requisitos racionalistas para
a definição de o que é “ser humano” inicia-se com Descartes, através da divisão do universo em duas
categorias independentes entre si: a substância espiritual e a espacial (HORKHEIMER, 1990). Dessa
forma, o racionalismo pressupõe uma relação necessária entre o conceito e a realidade, que existe
independentemente da prática humana. Através dessa concepção, é possível elaborar uma visão de
mundo fixa, tendo em vista que o conhecimento não depende de “forças que se situam fora do
consciente ou diferem fundamentalmente dele” (HORKHEIMER, 1990, p. 95). No cartesianimo, a
razão, “como única responsável pela construção de verdades objetivas e científicas” aparece como um
pressuposto para o conhecimento (BRAGATO, 2009, p. 70). Conforme Max Horkheimer:
Na opinião dos cartesianos, em cada indivíduo também as verdades sobre os
processos da realidade são programadas a priori; a partir dos pareceres mais altos,
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que são dados inteligentemente a cada ser racional, é possível em princípio que se
desenvolvam, por dedução, também os conhecimentos individuais (1990, p. 96).
Em outra frente, o paradigma contratualista antropocêntrico inaugurou a concepção do sujeito
como fonte principal do direito, em um intuito de separar o indivíduo da ordem social – constituída
através de um acordo racional (BRAGATO, 2009). Thomas Hobbes é o precursor dessa concepção de
direito natural moderno com cunho racionalista, tendo em vista a formulação do conceito de estado de
natureza no qual o filósofo reduz a realidade a elementos simples, com a representação de um homem
isolado e, a partir disso, reconstrói a formulação de organização social entre os humanos (VILLY,
2007).
Ao contrário de Aristóteles que percebe um homem em conjuntura com a natureza e encerrado
em grupos sociais, Hobbes observará sujeitos isolados – indivíduos, cujas semelhanças resumem-se ao
fato de compartilharem uma “natureza comum”, em suas palavras: “a natureza fez os homens tão
iguais, quanto à faculdades do corpo e do espírito” (HOBBES, 1983, p. 74). Essa concepção fictícia
acerca de uma condição natural do ser humano, conforme Michel Villey (2007), ainda permanece no
subconsciente das sociedades contemporâneas, manifestando-se na própria Declaração dos Direitos
Humanos, que em seu artigo 1º dispõe que: “todos os seres humanos nascem livres e iguais em
dignidade e em direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em
espírito de fraternidade”.
A formulação do estado de natureza como pressuposto da existência humana resulta no
princípio de que todo indivíduo possui liberdade irrestrita, podendo utilizar como ele mesmo quer seu
próprio poder com vistas à preservação de sua própria natureza. Nessa concepção, a liberdade dos
sujeitos é, em essência, infinita, resultando em conflito constante entre os indivíduos que, ao
exercerem a sua autonomia, acabam frustrando o exercício do livre arbítrio dos demais. O estado de
natureza revela-se, dessa forma, como um estado de guerra perpétuo, onde medo, insegurança e
miséria surgem como o resultado direto do direito do homem à liberdade (VILLEY, 2007). Luiz
Eduardo Soares pontua que:
O homem, no estado de natureza, agirá em função da expectativa de agressão
preventiva alheia, a qual supostamente responderia, por antecipação, ao movimento
reativo do primeiro à hipótese plausível, mesmo que não provável, da iniciativa
defensiva e antecipatória do outro, que, por sua vez, se adiantaria defensivamente
ante a iminência do ataque preventivo (...). Essa cadeia labiríntica e barroca de
suposições funestas termina confirmando sua propriedade ao precipitar a ação hostil
(1995, p. 215).
Dessa concepção, emerge o direito natural no intuito de formular uma norma capaz de permitir
a manutenção da paz por meio da racionalidade humana. A razão aparece, nesse cenário, como o meio
pelo qual a humanidade é capaz de abdicar da liberdade ilimitada, impedindo os males resultantes de
seu exercício (Hobbes, 1998). Para Hobbes, a paz – requisito para o estabelecimento da ordem social –
está condicionada à comunicação humana, que depende da possibilidade de se atingir um consenso
entre os comunicantes. Assim, a viabilidade de se alcançar um entendimento entre os participantes de
um diálogo encontra-se na estabilização do campo semântico, que se realiza através do discurso
científico, expressão superior da racionalidade (SOARES, 1995). Conforme Luiz Eduardo Soares:
Por isso, a comunidade implicada pela idéia de interlocução racional como
reversibilidade das posições - sujeito, comunidade caracterizada pela atualização de
qualidades como autonomia e suspeita ou criticidade – mas também receptividade
dialógica à argumentação e à crítica, sem o que não se põem as bases mínimas do
consenso e, por consequência, da verdade -, constitui-se no modelo ideal de
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sociedade, sem cuja suposição não seria possível compreender a própria tese
fundamental do leviatã, o contrato. Tese fundamental para nossa tradição intelectual
e política, ainda hoje viva e fértil (1995, p. 278).
John Locke, partindo do mesmo marco teórico - a existência de um Estado de Natureza –
identifica direitos individuas que precedem a existência do pacto social, os quais encontram guarida no
próprio conceito de racionalidade (LOCKE, 2005). Segundo o filósofo, o estado de natureza é regido
por uma lei natural, a razão, da qual decorre a necessidade dos homens não atentarem contra a vida,
saúde, liberdade e propriedade dos outros. A propriedade, uma decorrência lógica do pensar racional,
simboliza o espaço pertencente ao individuo do qual os outros membros da sociedade estão excluídos.
Dos próprios desdobramentos da racionalidade surge, o ponto de ruptura de Locke em relação a
Hobbes: a limitação do poder do Estado em relação aos indivíduos. Nas palavras do filósofo:
[...] embora seja esse um estado de liberdade, não é um estado de licenciosidade;
embora o homem nesse estado tenha uma liberdade incontrolável para dispor de sua
pessoa ou posses, não tem liberdade para destruir-se ou a qualquer criatura em sua
posse, a menos que um uso mais nobre que a mera conservação deste o exija. O
estado de natureza tem para governá-lo uma lei da natureza, que a todos obriga; e a
razão, em que essa lei consiste, ensina a todos aqueles que a consultem que, sendo
todos iguais e independentes, ninguém deveria prejudicar a outrem em sua vida,
saúde, liberdade ou posses (LOCKE, 2005, p. 284).
Surge, assim, a teorização moderna de Estado como um resultado do acordo racional entre os
particulares (VILLEY, 2007), uma personificação na qual afloram as condições para os indivíduos
reivindicarem os seus direitos subjetivos que se tornam dependentes do reconhecimento estatal. O
exercício da razão, dessa forma, coloca limitações no direito natural do homem, que exercido sem um
intermediador (o estado) levaria a um suposto estado de guerra perene (VILLEY, 2007). De plano,
revela-se, a paradoxalidade dessa concepção: um estado que existe para os indivíduos, mas cuja
essência encontra-se na privação dos direitos destes próprios indivíduos (BRAGATO, 2009).
2.1 Razão e Desumanização
Conforme Richard Rorty (1993), a utilização da racionalidade como uma característica
compartilhada por todos os seres humanos remete a um caráter de irmandade entre os homens, que
supostamente dividem um nome em comum apesar de todo o distanciamento entre suas diferentes
culturas. Ocorre que os pressupostos sobre os quais a racionalidade humana fora construída jamais
foram respaldados por argumentos neutros.
Por exemplo: fora dos países ocidentais, a maior parte das pessoas seria incapaz de
compreender por que motivo a pertença à humanidade deve ser baseada no pertencimento a uma
comunidade moral. Isso faz com que um grupo muito específico controle um conceito universalmente
aceito para caracterizar todos os seres humanos. Nesse aspecto, parece natural que quando os direitos
humanos foram pela primeira vez oficialmente reconhecidos - tanto nas Declarações Americanas,
quanto na Declaração Francesa - o protótipo da natureza humana, não tenha sido exclusivamente
masculino, mas também branco e ocidental, tendo em vista que era exclusivamente estes seres
humanos que cabiam no conceito de ser “humano racional”. Conforme Fernanda Bragato:
Os outros – mulheres, estrangeiros, colonizados, negros – estavam excluídos da
humanidade, em função de seu padrão de racionalidade inferior em relação aos
portadores dos atributos capazes de incluir um ser na categoria de humanidade. O
problema da nascente concepção de direito individual é não ter levado em conta que
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a pessoa “real” é diferente e mais complexa que o sujeito ficcional ou legal que a
tradicional teoria dos direitos humanos tem considerado (2009, 95).
Richard Rorty (1993) identifica que a moralidade, fundada no pensar racional, desdobra-se em
“medidas” de racionalidade como um fator de distinção, através da diferenciação entre animal e
humano; da separação entre adultos e crianças; e da diferenciação de gênero. Dessa forma, sob a ótica
ocidental, negros, crianças e mulheres passam por um processo de desumanização, motivo pelo qual
devem receber uma educação apropriada para que possam (talvez) atingir o mesmo estágio de
racionalidade que as pessoas naturalmente educadas. Em suas palavras:
Tudo gira em torno de quem pode ser classificado como pertencente à categoria de
ser humanos semelhante, como um agente racional no único sentido pertinente – o
de que a atividade racional é sinônima de pertença a nossa comunidade moral. Faz
muito pouco tempo que a maioria dos brancos excluía a maioria dos negros dessa
categoria. Para a maioria dos Cristãos, até meados do século XVII, os pagãos não se
encontravam nessa categoria. Para os nazistas, os judeus estavam foram dessa
categoria. Para a maioria dos varões em países onde a renda media anual está abaixo
de quatro mil dólares, as mulheres não pertencem categoria. Todas as vezes que
rivalidades tribais ou nacionais atingem certa relevância, os membros das tribos ou
nações rivais não contarão como membros dessa categoria (RORTY, 1993, p. 124).
(Tradução nossa)1.
Através do conflito da Bósnia, o autor exemplifica um massacre sob o pretexto da
desumanização: sob o olhar dos sérvios, os muçulmanos não eram vistos como humanos, motivo pelo
qual foram considerados passíveis à prática das mais diversas atrocidades (RORTY, 1993). Assim, os
sérvios não se percebiam como violadores de qualquer direito humano; justamente pelo contrário: a
desumanização de seus adversários foi a razão que legitimou o genocídio de bósnios muçulmanos
(RORTY, 1993). Práticas que violam os direitos de determinadas pessoas e grupos, nesse aspecto, são
efetuadas sob a justificativa de preservar a “razão” em prejuízo de uma pseudo-humanidade, mais
voltada para a sensibilidade do que para a reflexão, em um sentido de que a humanidade evolua para
longe de seu lado animal (RORTY, 1993). Homem e humanidade mostram-se, nesses casos, como um
conceito utilizado meramente para designar “aqueles que são como eu” (RORTY, 1993, p. 113).
Conforme o autor:
Nós percebemos os Sérvios e os Nazistas como animais, pois vorazes predadores
são animais. Nós percebemos os Muçulmanos e os Judeus, arrebanhados em campos
de concentração, como animais, pois um rebanho é constituído de animais. Nenhum
tipo de animal é como nós, e parece não haver nenhum motivo para que seres
humanos se envolvam em brigas entre animais (RORTY, 1993). (Tradução nossa)2.
1 No original: “For everything turns on who counts as a fellow human being, as a rational agent in the only
relevant sense – the sense in which rational agency is synonymous with membership in our moral community.
For most white people, until very recently, most Black people did not so count. For most Christians, up until
the seventeenth century or so, most heathen did not so count. For the Nazis, Jews did not so count. For most
males in countries in which the average annual income is under four thousand dollars, most females still do not
count. Whenever tribal and national rivalries become important, members of rival tribes and nations will not so
count”.
2 No original: “We think of the Serbs and the Nazis as animals, because ravenous beasts of prey are animals. We
think of the Muslims or the Jews being herded into concentration camps as animals, because cattle are animals.
Neither sort of animal is very much like us, and there seems no point in human beings getting involved in
quarrels between animals”.
1046
Os reflexos da razão como fator de desumanização permanecem latentes nas sociedades
contemporâneas. O tratamento dispensado aos indígenas pelo ordenamento jurídico brasileiro, por
exemplo, expõe a utilização da racionalidade como fator de segregação entre seres humanos
(BRAGATO, 2014). Até a adoção do Código Civil de 2002, o zelo despendido aos indígenas seguia
uma tendência mundial de subjugação, tendo em vista que a legislação civil os concebia como
relativamente incapazes (BRAGATO, 2014). Nada mais ilustrativo da relação entre a razão e a
humanidade plena do que a classificação de indígenas como pertencentes a um estágio transitório na
trajetória da humanidade em direção a civilização, para que tornem-se aptos a desfrutar da “capacidade
absoluta”. Conforme Fernanda Bragato (2014, p. 92): “a proteção ao indígena e seu reconhecimento só
encontravam respaldo na necessidade de se impor um processo em direção ao não índio”.
3 A SUBVERSÃO DA RAZÃO E DO DIREITO NATURAL POR HISTÓRIAS SILENCIADAS
A narrativa histórica que retrata o sistema-mundo contemporâneo remete à trajetória de
expansão dos países que hoje dominam a organização capitalista global, em especial dos Estados
Unidos, Inglaterra, França e Alemanha (WALLERSTEIN, 2007, p. 15). Os países vencedores na
organização mundial atual (“cases” de sucesso no modo de organização de sociedade estabelecido
pelo ocidente) moldaram a história e a contaram sob a sua própria ótica apesar de, na maioria das
regiões do mundo, esta perspectiva ter deixado um lastro de conquista militar, exploração e injustiça
(WALLERSTEIN, 2007).
A formulação lógica utilizada para justificar o subdesenvolvimento da América Latina e da
África em prol de um bem maior – o desenvolvimento mundial - segue uma linha bastante definida
através da teologia e sua progressão para a filosofia secular (WALLERSTEIN, 2007), cuja formulação
e desenvolvimento se confundem com a própria história da razão (um conceito que acabou excluindo
do seu campo semântico a maior parte da humanidade). Durante a história, entretanto, uma luta
comum à grupos de pessoas subalternizados fora incorporada nas vozes de importantes autores
silenciados pelo modo de produção de conhecimento ocidental: o reconhecimento de sua humanidade.
Importantes aportes podem ser realizados a partir da luta para o reconhecimento de direitos de índios,
mulheres e negros.
3.1 Bartolomé de Las Casas e a Questão Indígena
Las casas foi um sarcedote espanhol cuja produção bibliográfica incorpora o “encontro do
velho com o novo mundo”, em um momento onde começava, no Ocidente, a transição entre uma
percepção bíblica de universo e a percepção antropocêntrica (MARTÍNEZ, 2011). Las casas veio para
o continente Americano em 1502 (Isla La Española – atualmente Santo Domindo) para participar do
sistema de encomienda. Em 1511, entretanto, ocorreu um fato que gerou o rompimento radical em
suas práticas: o contato com o discurso de Padre Montesinos, um dominicano, que questionou a
autoridade dos espanhóis em ocupar a América e subjulgar os índios (BRAGATO, 2009, p. 164).
Percebendo as atrocidades praticadas contra os povos indígenas, Las Casas renunciou à sua
participação no sistema de encomiendas e passou a dedicar a sua carreia à denúncia das práticas
injustas dispensadas aos índios (WALLERSTEIN, 2007).
Com o intuito de discutir a guerra justa contra os povos originários do continente americano,
bem como a sua catequização, o rei Carlos V convocou uma comissão jurídica especial do Conselho
da Índias, criando-se, assim, as Juntas de Valladoilid (BRAGATO, 2009). Pouco se sabe acerca do
decurso das juntas vallisoletenas, tendo em vista que as atas não foram conservadas. Por isso,
conforme Venancio Carro (1944), o debate ficara conhecido através das correspondências entre os
protagonistas da discurssão, Juan-Ginés Sepúlveda (historiador oficial do Rei) e Bartolomé de Las
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Casas. Apesar de nenhum dos dois ter sido admitido nas deliberações das Juntas, ambos informaram
sobre seus pontos de vista, cada um rebatendo o argumento contrário. As suas divergências podem ser
exemplificadas através do embate entre a aplicação das Leis Novas, que acolhiam diversas das
propostas de Las Casas, como o fim da concessão de novas “encomiendas” (WALLERSTEIN, 2007).
Sobre a questão de fundo, inexiste um parecer definitivo emitido pela comissão, mas os documentos
preparatórios para os debates preservam o legado do dominicano, cuja importância Rosillo Martinez
destaca:
A importância do dominicano denfesor dos índios para a tradição hipanoamericana
de Direitos Humanos se baseia nos 50 anos dedicados à gestação de uma nova
política transatlântica, como um sujeito que atuava na teoria e na prática
promovendo um humanismo baseado na liberdade, na igualdade e no direito à autodeterminação. Sua memória tem sido resgatada em diversas etapas da vida política
latinoamericana, como, por exemplo, no início do século XVIII, quando Frei
Servando Teresa de Mier observou que Las Casas é ‘o primeiro e o mais antigo
defensor da liberdade na América’, utilizando o discurso anti-colonialista de Las
Casas no contexto histórico e filosófico que justificava os movimentos de
independência (2011, p. 43). (Tradução nossa)3.
A questão principal da discussão envolvendo a submissão dos índios às práticas de dominação
colonial gira em torno de quem tem o direito de intervenção e quais são os seus limites e
possibilidades (WALLERSTEIN, 2007). Sepúlveda em defesa das agressões praticadas sob o
comando do governo espanhol, argumentou através de quatro ideias principais, quais sejam: os índios
são bárbaros e por isso possuem vícios cruéis, motivo pelo qual devem ser governados por outros; os
indíos devem submeter-se ao domínio espanhol como castigo por seus crimes contra o direito divino
(sacrifício humano, por exemplo); os espanhóis são obrigados a impedir os danos causados pelos
índios a uma seria de inocentes sacrificados;o domínio espanhol facilita e possibilita a evangelização
cristã (WALLERSTEIN, 2007).
Las Casas, a partir do ponto de vista do indígena dominado e explorado, argumenta quanto a
ineficácia da utilização de métodos cruéis para a própria catequização dos indígenas. Nas palavras do
dominicano:
Sepúlveda, ao ensinar em seus discursos ou livros publicados que as expedições
contra os índios são lícitas, que outra coisa faz senão encorajar os tiranos e dar
respaldo a tantos crimes e males mais graves e lamentáveis do que qualquer um
poderia acreditar? Assim, com toda a certeza, consegue a perda de inúmeras almas,
ao fazer com que um número incontável de pessoas sofram uma morte cruel,
perdendo-as para sempre à custa da força espanhola, antes mesmo de que tenham
tido a oportunidade de ouvir a palavra de Deus, de alimentarem-se com a doce
doutrina de Cristo e de haver se fortalecido com os sacramentos cristãos. O que se
pode imaginar mais atroz e injusto que isso? (LAS CASAS, 2000, p. 12). (Tradução
nossa)4.
3 No original: “La importancia del dominico defensor de los indios para la THDH se basa en que “[p]asó más de
cincuenta años gestionando una nueva política trasatlántica como sujeto de acción y palabra que promovía un
humanismo basado en la libertad, la igualdad y el derecho a la autodeterminación”.86 De hecho, su memoria
ha sido rescatada en diversas etapas de la vida política de Latinoamérica, como por ejemplo, a inicios del siglo
XVIII, Fray Servando Teresa de Mier, en su introducción a la Brevísima…, señalaba que Las Casas es el
“primero y más antiguo defensor de la libertad de América”. Entonces pensadores independentistas de América
Latina usaban el discurso anticolonialista de Las Casas, ya que ofrecía el contexto histórico y filosófico que
justificaba los movimientos de independencia.”
4 No original: “Sepúlveda, al enseñar de viva voz o en libros publicados que las expediciones contra los indios
son lícitas, qué otra cosa hace sino animar a los tiranos y dar asidero a tantos crímenes y males lamentables
cuantos éstos cometen por encima de lo que cualquiera puede creer? Entretanto, consigue la perdida de su alma
1048
Dessa forma, Las Casas refuta aos argumentos apresentando o conceito de jurisdição,
baseando a possibilidade de punição de pessoas hereges no conhecimento prévio sobre a violação
praticada, pois a igreja não poderia exercer jurisdição sobre aqueles que sequer ouviram falar de sua
doutrina (MARTÍNEZ, 2011). De maneira mais severa, Las Casa também questiona as práticas
espanholas com base na necessidade de se liberar pessoas inocentes, através da noção de dano
mínimo, segundo a qual, ainda que se reconheça a necessidade de a igreja intervir para evitar a injusta
morte de pessoas inocentes, é necessário que se atue com moderação, para que não se crie um
impeditivo maior para o próprio objetivo da evangelização – a salvação das pessoas. Conforme Rosillo
Martinez:
Na disputa entre Las Casas e Sepúlveda, verificamos que aquele partia do princípio
da solidariedade com os índios, ainda que este se preocupasse com a expansão da
matriz reguladora colonial da modernidade nascente. O colonialismo é a concepção
que percebe ao outro como um objeto (e não como sujeito) o que constitui como
uma premissa para o conhecimento. Em contrapartida, se o conhecimento é
concebido desde o princípio da solidariedade, então se reconhece ao outro como
sujeito, ou seja: eleva-se o outro do status de mero objeto para o status de sujeito.
Isto foi o que fez Las Casas ao colocar-se na perspectiva da vítima (2011, p. 51).
(Tradução nossa)5.
O cerne do argumento de Bartolomé de Las Casas, dessa forma, encontra-se em partir do
pressuposto de que todos os seres humanos possuem direitos naturais e liberdades, inclusive os povos
indígenas, que devem possuir capacidades como sujeitos; e não como coisas controláveis e moldáveis
- argumentos extremamente inovadores para a epoca - do que Alejandro Rosillo Martínez (2011)
observa que Las Casas fora um crítico da modernidade que estava surgindo. Desse modo,
incorporando a perspectiva da vítima, o dominicano utiliza categorias de pensamento dos povos
indígenas se valendo da filosofia européia (MARTÍNEZ, 2011), buscando encontrar, no próprio bojo
dos direitos naturais e da fé cristã o espaço necessário para o reconhecimento dos direitos destes
povos.
3.2 Mary Wollstonecraft e a Reinvidicação dos Direitos da Mulher
Mary Wollstonecraft, figura central na luta por reformas radicais no plano social e político na
sociedade inglesa, foi uma das maiores expoentes na reivindicação pelos direitos das mulheres e
fundadora feminismo filosófico (HAYDEN, 2001). No seu texto intitulado A Vindication of Rights of
Woman, de 1792, a autora apresenta as seguintes questões: Em que consiste a preponderância do
homem sobre o animal? Que dotes exaltam a um ser sobre o outro? Quais os propósitos das paixões?
con toda seguridad, al hacer que un número incontable de personas sufran una muerte cruel, se pierden para
siempre, expirarando a causa de la enorme fierza de los españoles antes de haber podido oír la palabra de Dios,
de haberse apacentado com la dulcísima doctrina de Cristo y de haberse fortalecido con los sacramentos
cristianos. Qué puede imaginarse más atroz e injusto que esto?”
5 No original: “En la disputa entre Las Casas y Sepúlveda, podemos encontrar que aquel partía del principio de
solidaridad con los indios, mientras que a éste le preocupaba expandir la matriz reguladora y colonial de la
Modernidad temprana. El colonialismo es la concepción que ve al otro como objeto, no como sujeto, y se
constituye en una premisa del conocimiento. En cambio, si se realiza un conocimiento desde el principio de
solidaridad, entonces se ha de reconocer al otro como sujeto, es decir, se debe entrar en un proceso de elevar al
otro del estatus de mero objeto al estatus de sujeto. Esto fue lo que hizo Las Casas al colocarse en la
perspectiva de la víctima”
1049
A autora, através da abstração natural do aparato filosófico moderno, encontra respostas que lhe
parecem tão inequivocadas quanto os dogmas sob os quais a razão fora teorizada. Em suas palavras:
A perfeição de nossa natureza e a capacidade de felicidade devem estimar-se pela
graduação de razão, virtude e conhecimento, que distinguem o indivíduo e dirigem
as leis que obrigam à sociedade. Assim, resulta inegável que, do exercício da razão
emana naturalmente o conhecimento e a virtude, considerando-se o gênero humano
em seu conjunto. (WOLSTONECRAFT, 2000, p. 115). (Tradução nossa)6.
Dessa forma, o estágio de evolução do ser humano entre o estado de natureza e o progresso
pode ser medido através do mero exercício da razão, que se desdobra na virtude e no conhecimento –
atributos responsáveis pela naturalização dos direitos e deveres do homem. Entretanto, uma serie de
grupos estão menos abrangidos ou totalmente excluídos da proteção proporcionada pelo aparato
jurídico moderno, pois os interesses e preconceitos de determinados sujeitos, mascarados sob a forma
de princípios básicos, dialogam continuamente com a construção da racionalidade moderna até que,
conforme a autora, a verdade se perde em um emaranhado de palavras (WOLLTONECRAFT, 2000).
Assim, Mary Wollstonecraft percebe (na sociedade inglesa do século XVIII) uma espécie de
senso comum acerca da evidencia de que o corpo social estava formado e fora constituído do modo
mais sábio possível a partir da abstração da ideia de um estado de natureza, supostamente estático e
inquestionável (WOLLSTONECRAFT, 2000). Consequentemente, a razão moderna, plano de fundo
para a expressão das paixões dos seres humanos, faz com que a ideia de aquisição de uma serie de
conquistas emancipatórias não passem de escravidão disfarçada. Em suas palavras:
Muitas são as causas que, no atual estado de corrupção da sociedade, contribuem
para escravizar as mulheres dificultando a sua compreensão e aguçando os seus
sentidos. Talvez a forma que silenciosamente faça mais mal que todas as outras seja
o desrespeito sofrido pela ordem (WOLLSTONECRAFT, 2000, p. 115). (Tradução
nossa)7.
Conforme a autora, nada é mais hábil para ilustrar os efeitos da construção abstrata do estado
de natureza na realidade do que os múltiplos crimes cometidos pelos homens contra a humanidade em
prol de uma dignidade suprema, utilizados como um pretexto para a obtenção de distinção e
eminência. Portanto, a razão estratifica-se por trás de diversos pressupostos da filosofia moderna que
impedem a enunciação de conhecimento por grupos excluídos, do que autora se pergunta:
Por que a fonte indulgente da vida nos daria as paixões e o poder de reflexão apenas
para amargar o nossos dias e inspirar dignidades equivocadas? Por que devemos nos
conduzir desde o amor próprio às sublimes emoções que inspiram o conhecimento e
sua sabedoria e bondade se estes sentimentos não forem postos em prática para
melhorar a nossa natureza [...] e fazerem-nos capazes de desfrutar uma quantidade
maior de felicidade? (WOLLSTONECRAFT, 2000, p. 119-120). (Tradução nossa)8.
6 No original: En consecuencia, la perfección de nuestra naturaleza y la capacidad de felicidad deben estimarse
por el grado de razón, virtud y conocimiento que distinguen al individuo y dirigen las leyes que obligan a la
sociedad. Y resulta igualmente innegable que del ejercicio de la razón mana naturalmente el conocimiento y la
virtud, si se considera al género humano en su conjunto
7 No original: Muchas son las causas que, en el actual estad corrupto de la sociedad, contribuyen a esclavizar las
mujeres, estorbando el entendimento y agudizando sus sentidos. Quizá una que de forma sileciosa hace mayor
mal que todas las restantes es su indiferencia hacia el orden.
8 No original: “¿por qué la fuente indulgente de la vida iba a darnos las pasiones y el poder de reflexionar sólo
para amargar nuestros días e inspirarnos nociones erróneas de dignidad? ¿Por qué debe conducirnos del amor a
nosotros mismos a las sublimes emociones que excita el descubrimiento de su sabiduría y bondad, si estos
1050
Por meio de um diálogo crítico com o iluminismo, Wollstonecraft, identificou que o discurso
moderno excluiu as mulheres da sua proposta de liberdade, igualdade e fraternidade. Conforme Marta
Lois (2000, p. 14), os momentos históricos denominados de “progresso”, em verdade têm significado,
em grande parte, “uma assimetria entre as conquistas e o status entre os sexos” (tradução nossa)9.
Assim, remete-se a existência de uma suposta “natureza humana” que persistentemente mantém as
mulheres sob o controle e a regulação masculina, de modo que Wollstonecraft apropria-se dos slongas
utilizados pelos iluministas com o intuito de reelaborá-los sob o ponto de vista da diferença entre os
sexos, assumindo um papel ativo (ao contrário dos varões liberais) no sentido de reivindicar, para
ambos os sexos, a realização dos princípios revolucionários iluministas, ou seja “a construção de um
novo mundo que possa beneficiar igualmente as mulheres” (2000, p. 15) (tradução nossa)10.
3.3 Frantz Fanon: a Razão e o Negro
Frantz Fanon foi um revolucionário (nascido na Martinica - colônia francesa) que lutou junto
às forças de resistência na África e na Europa durante a Segunda Guerra Mundial e, posteriormente,
completou seus estudos em psiquiatria e filosofia na França, tornando-se membro da Frente de
Libertação Nacional da Argélia, motivo pelo qual entrara na lista dos cidadãos procurados pela polícia
em território Francês. Dedicou sua vida à importância da luta para transformar as vidas dos
condenados pelas instituições coloniais racistas da modernidade (GORDON, 2008).
Conforme Fanon (2008), racismo e colonialismo são produções sociais de formas de ver o
mundo e de viver nele, o que significa, conforme Lewis Gordon (2008, p. 15), que “os negros são
construídos como negros”. Assim, a linguagem é o campo onde o racismo se constitui, pois é nela que
os significados do mundo se constroem e são percebidos (GORDON, 2008). Dominar a linguagem
seria, dessa forma, assumir a identidade de determinada cultura; entretanto povos racializados, mesmo
quando instrumentalizados através do domínio do idioma, resultam ilegitimados à enunciação de
conhecimento, do que Fanon concui que a opressão racial não está presa ao campo das relações
sociais, perpetuando-se através da história da razão e do conhecimento ou seja: quando o negro
aproxima-se da razão, a razão escapa para longe do negro (GORDON, 2008). Conforme Frantz Fanon:
A vitória brincava de gato e rato; ela zombava de mim. Como diz o outro, quando
estou lá, ela não está, quando ela está, não estou mais. No plano das idéias,
estávamos de acordo: o negro é um ser humano. Isto é, acrescentavam os menos
convencidos, ele tem como nós o coração à esquerda. Mas o branco, em
determinadas questões, continuava irredutível. Por nenhum preço ele queria
intimidade entre as raças, pois é sabido que “os cruzamentos de raças diferentes
rebaixam o nível psíquico e mental... Até que nós tenhamos um conhecimento mais
bem fundamentado sobre os efeitos do cruzamento de raças, seria melhor evitá-lo
entre raças muito distantes”. 6 De minha parte eu sabia bem como reagir. Se tivesse
de me definir, diria que espero; interrogo as cercanias, interpreto a partir de minhas
descobertas, tornei-me um sensitivo (2008, p. 111).
Lewis Gordon (1995) percebe a situação paradoxal do negro, para o qual reivindicar a razão
seria exibir a não razão, o que se desvela em um argumento irracional: ao buscar argumentar com a
razão, o negro sofre uma perda antes mesmo de começar a lutar por sua própria existência. Dessa
sentimientos no se pusieran en movimiento para mejorar nuestra naturaleza [...] y hacernos capaces de disfrutar
de una mayor cantidad de felicidad?”
9 No original: uma asimetría em los logros y el status entre los sexos.
10 No original: la construcción de um nuevo mundo que debía beneficiar igualmente a las mujeres
1051
forma, a razão e a compreensão estão infectadas com o racismo de forma que a irracionalidade está
intrinsecamente relacionada com a existência de sujeitos racializados, fazendo com que aqueles
“negros que raciocinam” encontram-se em situação paradoxal com a sua própria existência sob o
ponto de vista da razão Ocidental (FANON, 1995, p. 8). Disso, pontua-se a percepção de Frantz Fanon
acerca da exploração da experiência de vida do negro:
Eu havia lido corretamente. Era a raiva; eu era odiado, detestado, desprezado, não
pelo vizinho da frente ou pelo primo materno, mas por toda uma raça. Estava
exposto a algo irracional. Os psicanalistas dizem que não há nada de mais
traumatizante para a criança do que o contacto com o racional. Pessoalmente eu diria
que, para um homem que só tem como arma a razão, não há nada de mais
neurotizante do que o contato com o irracional (2008, p. 110).
Fanon evidencia a verticalização do poder sobre os povos colonizados, no lado inferiorizado
do panorama de divisão de privilégios das sociedades modernas. No plano prático, a colonialidade
naturaliza modos de vida perpassados pela lógica da colonização, justificando a guerra e a dominação
contra os povos colonizados, sustentado a reprodução de um estado permanente de violação contra
sujeitos específicos (MALDONADO-TORRES, 2007). A morte e a violação corporal presentes na
guerra são reproduzidos diariamente no mundo moderno e atuam diretamente sobre os corpos que
reúnem determinadas características utilizadas pelos colonizadores como fatores de distinção: as
mesmas características carregadas contemporaneamente por povos vulnerabilizados.
4 A CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS
DE DISCRIMINAÇÃO RACIAL COMO UM APORTE À LÓGICA DE DESUMANIZAÇÃO
MODERNA.
Conforme Jack Donelly (2001), até o início do século passado, não brancos eram percebidos
por grande parte das pessoas como “irreparavelmente deficientes em sua racionalidade e capacidades
morais” (tradução nossa). Ocorre que diversos movimentos sociais que lutam pelo reconhecimento de
direitos a minorias desempoderadas vêm utilizando contra-argumentos com aspectos teóricos e
empíricos para acabar com essas distinções (DONELLY, 2001). Nesses casos, pelo menos em um
campo formal, a garantia plena e igualitária do reconhecimento de direitos humanos foi conquistada
através da proteção contra a discriminação. Em um campo prático, por outro lado, foram criados
instrumentos que, por intermédio de medidas positivas, possuem o condão de transformar a realidade
possibilitando uma efetivação prática da igualdade. Nas palavras de Jack Donelly:
Signos de diferença em relação ao padrão cultural dominante que antes eram vistos
como marcas de uma inferioridade moral, servido de plano de fundo para uma
subordinação justificável, tem sido excluídos da esfera de discriminações legitimas
no cenário jurídico e político (2001, p. 552-552). (Tradução nossa).11
Esse panorama é personificado pela preocupação internacional com a promulgação de um
documento capaz de um efetivo combate à discriminação racial. Em 1960, a integração de dezessete
países africanos nas Nações Unidas, bem como a apreensão gerada pela realização da Primeira
Conferência da Cúpula dos Países Não Aliados, no ano de 1961, em Belgrado (indicando o surgimento
intra-europeu de um movimento fascista e antissemita), influenciaram o cenário internacional de
11No original: Signs of difference from the dominant mainstream that previously were seen as marks of moral
inferiority and grounds for justifiable subordination have been excluded from the realm of legally and
politically legitimate discriminations.
1052
combate ao racismo, que resultou na adoção da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de
Discriminação Racial, em 21 de dezembro de 196512, que conta atualmente com a ratificação de 177
Estados.
Os Estados que ratificam a Convenção automaticamente assumem, frente à comunidade
internacional, a obrigação de assegurar a efetiva igualdade com a eliminação da discriminação racial.
Por isso, logo em seu preâmbulo, a Convenção assevera que “doutrina de superioridade baseada em
diferenças raciais é moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa, inexistindo justificativa
para a discriminação racial, em teoria ou prática, em lugar algum”.
Conforme Flavia Piovesan (2011), a discriminação sempre significa a expressão de
desigualdades, impedindo o exercício pleno dos direitos humanos e de liberdades fundamentais.
Ocorre que, enquanto a igualdade remete a um plano de inclusão social; a discriminação, por outro
lado, resulta em violência, expressada por meio da intolerância à diferença e à diversidade
(PIOVESAN, 2011). Por isso, a mera proibição da exclusão não resulta automaticamente em inclusão
(PIOVESAN, 2011), motivo pelo a convenção prevê a possibilidade de se implementar ações
afirmativas através de medidas especiais de proteção a indivíduos ou grupos vulnerabilizados, no
intuito possibilitar a sua emancipação social até um nível igualitário com os demais componentes do
corpo social. Nas palavras da autora:
As ações afirmativas constituem medidas especiais e temporárias que, buscando
remediar um passado discriminatório, objetivam acelerar o processo de igualdade,
com o alcance da igualdade substantiva por parte de grupos socialmente vulneráveis,
como as minorias étnicas e raciais, dentre outros grupos. Enquanto políticas
compensatórias adotadas para aliviar e remediar as condições resultantes de um
passado discriminatório, as ações afirmativas objetivam transformar a igualdade
formal em igualdade material e substantiva, assegurando a diversidade e a pluridade
social (PIOVESAN, 2011, p. 253).
Assim, a Convenção consagra o direito à igualdade, com o reconhecimento de diversas
garantias, como: o tratamento equânime frente aos Tribunais e órgãos administradores da justiça, a
proibição de propaganda e organização racista e o acesso igualitário a lugares ou serviços de natureza
pública (PIOVESAN, 2011). O documento constitui-se, ainda, como o primeiro instrumento jurídico
internacional com mecanismos próprios de supervisão, na medida em que inclui em seu texto o
Comitê sobre a Eliminacão da Discriminação Racial, que, de maneira semelhante ao Comitê de
Direitos Humanos, examina petições individuas, comunicações interestatais e relatórios encaminhados
pelos Estados Partes.
O comitê representa a consolidação de dois objetivos importantes: a persuasão dos estados
partes ao cumprimento da obrigação de elaborar e enviar relatórios periódicos, e o apontamento de
falhas na implementação das obrigações dos Estados Partes em seu território (GOES; SILVA, 2008).
Nas palavras de Fernanda Goes e Tatiana Silva (2013), a comissão pode ser considerada “como o mais
amplo instrumento de combate à discriminação racial, tanto por ser específica para o combate à
discriminação por motivo racial como porque extrapola campos delimitados, como o do trabalho e da
educação”.
Uma das mais complexas e extensas atuações do comitê consolidou-se quando da pressão ao
regime aparteísta sul-africano (GOES; SILVA, 2008), que culminou, em 1993, na realização da II
Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos. Duas décadas de tensão entre a ONU e o governo
12A Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial das Nações
Unidas
está
disponível
em:
Diponível
em:
<
http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=94836> . Acesso em: 01 nov.2015.
1053
sul-africano segregacionista foram sintetizadas na conferência, cujo diferencial fora “a presença da
sociedade civil organizada por meio de ONGs em reuniões junto aos peritos do comitê da CERD”
(GOES; SILVA, 2008, p. 20). No ano seguinte, em 1994, a ascensão de Nelson Mandela e o fim do
apartheid representaram um amplo e extenso combate ao regime aparteísta pela ONU por meio do
comitê especializado.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma compreensão apurada sobre a complexidade histórica dos Direitos Humanos exige uma
percepção profunda sobre as diversas nuances históricas que construíram as disparidades de
distribuição de poder nas sociedades modernas. O gozo pleno dos direitos humanos, ainda hoje, está
estritamente vinculado a características subjetivas como sexo, raça, cor e condição física ou mental.
Nesse ponto, cabe ao jurista reconhecer as dimensões sociais de dominação para que possa
desmantelar concepções humanistas estritamente vinculadas com a dimensão formal do direito à
igualdade, que acaba por reforçar a opressão de indivíduos historicamente subjulgados.
A face antissubordinação do direito à não discriminação surge como alternativa no combate a
um panorama social intolerante, que incorpora a concepção individualista de “humano” provinda da
modernidade colonial. Por isso, a efetivação jurídica da igualdade entre os seres humanos passa,
necessariamente, pelas diferenciações de tratamento frente à percepção crítica dos fatores que
segregam os indivíduos entre grupos de privilégio ou opressão.
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1055
TUTELA JURÍDICA DAS MINORIAS LINGUÍSTICAS: A EXPERIÊNCIA DOS POVOS
INDÍGENAS NO PROCESSO JUDICIAL BRASILEIRO
Cristiny Mroczkoski Rocha1
RESUMO: No presente trabalho propomos a análise dos direitos específicos estabelecidos pelo
ordenamento jurídico, nacional e em âmbito internacional, relativos ao cidadão indígena, como ser
integrante de um povo com direitos específicos e necessidades especiais. Propomos a análise não só
desses direito específicos, mas a necessidade de compatibilizar esses interesses diferenciados, dentro
de um sistema único que precisa ser capaz de compreender a diversidade, principalmente no que cabe
as minorias linguística, e ajustar-se a ela, sobretudo em espaços que são tradicionalmente de tolerância
e respeito, como é o caso do Poder Judiciário Brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: Direitos Indígenas. Interesses Diferenciados. Minorias Linguísticas.
Ordenamento Jurídico. Poder Judiciário Brasileiro.
1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
A população indígena no Brasil é pequena, tanto em números como em representatividade.
Segundo dados da CEPAL2 remontam a 900.000 o número de índios, o que presenta 0,5% da nossa
população.
Contudo, no âmbito da América Latina, o Brasil encontra-se no primeiro posto entre os
países com maior quantidade de povos indígenas (305), sendo seguido pela Colômbia (102), Peru
(85), México (78) e Bolívia (39). Os dados da CEPAL também dão conta de que o Brasil desponta
entre os países onde há o maior número de povos indígenas que se encontram em perigo de
desaparecimento físico ou cultural3, o que demonstra a permanência dos sucessivos processos de
exclusão.
Certo é que, desde a descoberta do Brasil pelos portugueses, que não pouparam o assassinato
massivo dos nativos, tanto de modo direto como pelo fomento de conflitos intertribais já existentes, a
ideia de colonialidade4 ainda se faz existente.
Após diversas opiniões e discussões dos conquistadores, teólogos e juristas, chegou-se à
conclusão de que os habitantes do continente americano não eram nem animais, nem algo
intermediário entre feras e homens. Daí, surgiram os primeiros defensores dos índios, se
desenvolvendo os primeiros experimentos sociológicos na América – isso começou no âmbito da
colonização espanhola (HANKE, 1988, p.133). A manifestação oficial disso, apareceu inicialmente no
item 16 da Lei de Burgos, pelo qual “se ordena que os índios que tenham deficiente discrição e
capacidade de contrair matrimônio e governar suas casas se unam de acordo com as leis da Igreja”.
O item 4, da Declaração das Ordenanças sobre os índios de 1513, também aduz que alguns índios
eram capazes de viver por si sós (HANKE, 1988, p.134).
1 Advogada e Professora (UNIFIN/RS). Especialista em Direito do Estado (UFRGS) e Direito Processual Civil
(Verbo Jurídico). Mestranda em Direito Público pela Unisinos/RS – Linha 1 - bolsista CAPES/PROEX. E-mail:
[email protected]
2 CEPAL. Los Pueblos indígenas en América Latina. Disponível em: http://www.cepal.org/es/infografias/lospueblos-indigenas-en-america-latina .Acesso em 20/04/2016.
3 O Brasil aparece com 70 números de povos indígenas que se encontram em perigo de desaparecimento físico
ou culturas. Em sequencia aparece a Colômbia, com 35 povos, e por último a Bolívia, com 13 povos.
4 Colonial é o poder que usa a ideia de raça, para manter uma escala de identidades sociais com o branco
masculino no topo e os índios e negros em patamares inferiores.
1056
A influência do direito canônico na legislação das Índias também se deveu essencialmente à
participação de teólogos e moralistas, juntamente com juristas e homens de governo na sua elaboração
(COLAÇO, 2005, p.95). Elaborada no ano de 1537 pelo Papa Paulo III, a Bula Sublimis Deus,
considerada a primeira encíclica social dirigida aos povos americanos, condenava os escravizadores
de índios:
...fazendo uso da autoridade apostólica, determinamos e declaramos pelas presentes
palavras que ditos índios, assim como todas as gentes que no futuro venham a
chegar ao conhecimento dos cristãos, ainda que vivam fora da fé cristã, podem usar,
possuir e gozar livremente e licitamente de sua liberdade e do domínio de suas
propriedades, que não devem ser reduzidos à servidão e que tudo que seja feito de
outro modo é nulo e sem valor; igualmente declaramos que ditos índios e demais
povos devem ser convidados a abraçar a fé de Cristo por meio da pregação da
palavra de Deus e com o exemplo de vida boa...
Em que pese a religiosidade dos portugueses, o conteúdo da norma não foi aplicado no nosso
país. A população indígena foi escravizada, a fim de promover mão-de-obra ao colonizador.
Notando a natureza ardilosa dos recém-chegados, que frequentemente descumpriam seus
compromissos, os índios voltaram-se, cada vez mais, contra os colonizadores, o que gerou um
considerável numero de embates (ALMEIDA, 2010, p.45 e ss.).
Os povos indígenas que chegaram ao século XX no Brasil poderiam ser enquadrados, de
modo simplificado, nos seguintes grupos: a) aqueles que se localizam em áreas muito pouco
povoadas, conseguindo manter suas raízes culturais, desde que a área por eles ocupada não fosse de
interesse dos povos envolventes (por exemplo os povos de áreas remotas da Amazônia); b) aqueles
que ocupavam áreas de interesse econômico rural foram expulsos ou tiveram seus territórios muito
reduzidos. Contudo, vários desse grupo permaneceram no ambiente rural, preservando “parcialmente”
suas tradições; c) os que ocupavam áreas de interesse urbano foram dizimados, física, e sobretudo,
culturalmente, em um processo denominado aculturação(VITORELLI, 2015, p.503).
O conceito de povo indígena ainda não possui uma determinação mundial. Mesmo a
Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas de 2007 não contém um conceito definido
em relação ao termo “povos indígenas”, havendo uma ideia predominante de que essa definição
universal é desnecessária, sendo que, o entendimento comumente utilizado é o previsto por Martinez
Cobo5:
As comunidades, os povos e as nações indígenas são aqueles que, tendo uma
continuidade histórica com as sociedades anteriores à invasão e precoloniais que se
desenvolveram em seus territórios, consideram-se distintos de outros setores da
sociedade que agora prevalecem nesses territórios ou em parte deles. Constituem
setores não dominantes da sociedade e têm a determinação de preservar, desenvolver
e transmitir a futuras gerações seus territórios ancestrais e sua identidade étnica com
base de sua existência continuada como povo, de acordo com seus próprios padrões
culturais, institucionais sociais e sistemas legal.” Ademais, Cobo assinala sobre a
pessoa indígena: “Aquele que pertence a essas populações indígenas através da
autoidentificação como indígena (consciência de grupo) e é reconhecido e aceito por
essas populações como um dos seus membros (aceitação de grupo). (BRAGATO,
2014, p.88)
5 UNITED NATIONS. The concept of indigenous peoples (workshop on data collection and disaggregation for
indigenous peoples). Department of Economic and Social Affairs: New York, 2004. Ademais, importante
elucidar que o autor foi Relator Especial da Subscomissão para a prevenção da Discriminação e Proteção das
minorias na ONU.
1057
O objetivo desse artigo é explorar o tratamento deferido aos considerados índios6, analisando
o desenrolar da legislação brasileira nessa matéria e sobretudo o tratamento desses indivíduos no
contexto do processo judicial brasileiro. Assim, passaremos pela questão do problema linguístico e da
insuficiência do discurso dominante dos direitos humanos para a legitimação das demandas, que
contribuem para a manutenção das desigualdades e somam-se a persistência da discriminação e
desconsideração de convenções internacionais.
2 PANORAMA DOS POVOS INDÍGENAS E DO DIREITO INDIGENISTA NO SÉCULO XX
Passados séculos, ainda existe a figura estereotipada do índio: embriagados, ociosos,
explorados por um cacique, que arrenda suas terras para os brancos agricultores.
Há resistência no reconhecimento da condição humana do indígena e grande parte das terras
reivindicadas encontram-se nas mãos de produtores rurais. Esse ponto tem especial relevância, vez
que um dos aspectos considerados fundamentais para a expressão sociocultural dos povos indígenas é
o seu território.
Por terra indígena, nas palavras de João Pacheco de Oliveira (2012), entendemos a unidade
territorial definida juridicamente e criada por meio de procedimentos administrativos7 com vistas a
garantir a determinado grupo um espaço geográfico para uso e reprodução social. Esse conceito deve
contrastar com o que compreendemos por propriedade privada, que, nas palavras de Deborah Duprat
(2012), corresponde a um espaço excludente e marcado pela nota da individualidade, enquanto o
território indígena é um espaço de acolhimento em que o individuo encontra-se referido aos que o
cercam.
Inúmeras são as demandas judiciais envolvendo a reinvindicação de terras indígenas no
8
Brasil . Esse diagnóstico é, no mínimo curioso, porque desde 1934, as Constituições brasileiras9
garantem aos índios a propriedade de suas terras, conforme constava já no art. 129 (CF/1934): “Será
respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendolhes, no entanto, vedado aliená-las”.
Em 1973 foi editado o ainda vigente Estatuto do Índio, Lei nº 6.001/73, que é a principal
norma que regulamenta a questão das terras indígenas. Porém, o referido diploma parte da ideia de
que os povos indígenas deveriam ser “integrados à comunhão nacional”, ou seja, os “direitos”
6 Falamos em “considerados índios” pois há inúmeras decisões judiciais dos tribunais superiores brasileiros no
sentido de ser dispensável a realização de perícia antropológica, podendo o juiz avaliar pelas provas constantes
nos autos o grau de compreensão da conduta pelo índio. Nesse sentido, são exemplos, do Superior Tribunal de
Justiça, a decisão no HC 30113, DJ 16.11.04; e do Supremo Tribunal Federal, a decisão do HC 85198, J.
17.11.05, na qual, embora se tenha dispensado a emissão do laudo antropológico, se garantiu ao índio o
cumprimento da pena no regime de semiliberdade.
7 Esses procedimentos administrativos encontram-se previstos no Decreto nº 1.775, de 08/01/1996 e envolvem a
identificação, delimitação, demarcação e registro das terras tradicionalmente ocupadas por índios (art. 231 da
CFRB).
8 A quantidade de demandas judiciais muitas vezes é colocada como motivo de escusa pelo governo brasileiro
no atraso na solução dos conflitos indígenas, conforme se depreende da afirmação no Ministro da Justiça, José
Eduardo Cardozo (2015), que afirmou que “o conflito judicial acaba sendo inevitável. Ele se projeta em várias
etapas do processo de demarcação, seja contra ou a favor do processo”. Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITO-E-JUSTICA/495749-EXCESSO-DEPROCESSOS-JUDICIAIS-ATRASA-SOLUCAO-DE-CONFLITOS-INDIGENAS,-DIZ-MINISTRO.html
.
Acesso em: 21/04/2016.
9 Ressalta EDILSON VITORELLI que “o Brasil teve desde a sua independência 7 Constituições que alternam
momentos de democracia, geralmente tímidos, com momentos de ditadura, usualmente sanguinária e
coronelista” (2015.p.503).
1058
detinham caráter de transitoriedade10. Não se reconheceu, portanto, os índios como indivíduos que já
fazem parte da comunhão nacional, estimulando-se, mesmo que de modo velado, a extinção
progressiva dos traços culturais diferenciados desse povo.
Nesse mesmo sentido, no plano internacional, a Organização Internacional do Trabalho
mantinha vigente a Convenção 107/507, que disciplinava a matéria “Concernente à proteção e
integração das populações indígenas e outras populações tribais e semitribais de países
independentes”. Essa convenção propugnava a integração progressiva dos povos indígenas na vida
dos respectivos países, mesmo que vedasse medidas de “assimilação artificial dessas populações”.
Seus vetores para a denominada integração eram: i) desenvolvimento da dignidade, ii) da utilidade
social e iii) da iniciativa do indivíduo, o que demonstrava, já em um primeiro momento, a importância
do trabalho como elemento de integração dos índios – poderiam passar da inutilidade à “utilidade
social”.
Por essa razão, não podemos dizer que o legislador brasileiro de 1973 estava atrás de seu
tempo, mas sem dúvida não estava à frente.
Apenas na década de 80, a OIT passa a discutir um novo paradigma para o reconhecimento
dessa identidade diferenciada dos indígenas, que veio a aparecer através do Convênio 169 da OIT posteriormente, também em âmbito internacional, em 2007, podemos falar na Declaração das Nações
Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
Concomitantemente à discussão da Convenção 169 da OIT, foram inaugurados os trabalhos da
Assembleia Nacional Constituinte de 1988– reunida em 1º de fevereiro de 1987, que, sob a
perspectiva de representação por gênero, possuía as mulheres absolutamente sub-representadas,
contando com apenas 26 congressistas (4,6% do total); 11 membros afrodescendentes – pretos ou
mulatos (2%), e nenhum indígena11.
Em que pese isso, a Constituição editada trouxe significativos avanços nos direitos dos índios,
que passaram a ser tratados como sujeitos dignos de reconhecimento diferenciado: o direito de serem
índios e de permanecerem como tais.
O texto também inovou ao prever a natureza originária do direito à suas terras, isto é, anterior
ao próprio Estado brasileiro, independentemente de reconhecimento oficial.
Em 1990, também integrou ao nosso ordenamento a Convenção sobre os Direitos da Criança adotada pela Assembleia Geral da ONU em 20 de novembro de 1989 e entrou em vigor internacional
em 2 de setembro de 1990. Essa Convenção foi assinada pelo Brasil em 26 de janeiro de 1990;
aprovada pelo Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo n.º 28, de 14 de setembro de
1990; ratificada em 24 de setembro de 1990. Entrou em vigor para o Brasil em 23 de outubro de 1990
e foi promulgada por meio do Decreto n.º 99.710, em 21 de novembro de 1990. Nota-se a grande
celeridade de sua incorporação ao Direito brasileiro.
No art. 17, a Convenção declara que os Estados Partes reconhecem a importância da função
desempenhada pelos meios de comunicação. Conforme bem assinala André de Carvalho Ramos
(2014, p.181), dever-se-ia zelar para que a criança tivesse acesso a informações e materiais
procedentes de diversas fontes nacionais e internacionais, especialmente informações e materiais que
visem a promover seu bem-estar social, espiritual e moral e sua saúde física e mental. Para tanto, os
10 Sobre o tema, FERNANDA FRIZZO BRAGATO, bem elucida que, até a adoção do Código Civil brasileiro
de 2002, os índios eram classificados como relativamente incapazes – ideia essa que seguia a mesma tendência
no resto do mundo. “A condição indígena era reconhecida como uma situação transitória, um estágio na
caminhada civilizatória, que poderia ir desde o estado de “isolados” até o estado de “integrados”. Nesse
momento, os efeitos da tutela protetiva do Estado cessariam, ainda que persistissem alguns costumes e valores
da tradição tribal. (…) a proteção ao indígena e seu reconhecimento só encontravam respaldo na necessidade
de se impor um processo em direção ao “não índio”(…) (In: Constituição, Sistemas Sociais e
Hermenêutica…, op. cit., 2014.p. 91)
11 Cf. SOUZA, 2001. p. 541.
1059
Estados Partes deveriam incentivar os meios de comunicação a difundir informações e materiais de
interesse social e cultural para a criança, bem como a produção e difusão de livros para crianças;
promover a cooperação internacional na produção, no intercâmbio e na divulgação dessas
informações e desses materiais procedentes de diversas fontes culturais, nacionais e internacionais;
incentivar os meios de comunicação no sentido de, particularmente, considerar as necessidades
linguísticas da criança que pertença a um grupo minoritário ou que seja indígena; e, finalmente,
promover a elaboração de diretrizes apropriadas a fim de proteger a criança contra toda informação e
material prejudiciais ao seu bem-estar.
Aqui, podemos dizer que há expressamente, e sem margem à dúvidas, a preocupação em
considerar as minorias linguísticas, principalmente a da criança indígena.
Em 2004, tivemos a internalização da Convenção 169 da OIT através do Decreto nº 5.051, que
reforçou no âmbito interno a responsabilidade dos governos à proteção dos direitos e o respeito à
integridade das comunidades (art. 2º), e que cabe a elas próprias definirem suas prioridades de
desenvolvimento, inclusive a possibilidade de permanecer no estado em que se encontram, recusando
politicas públicas que possam lhe atingir, mesmo de modo favorável – consoante art. 7º12.
A problemática reside na inutilização dessa convenção pelos tribunais brasileiros, situação
difícil de precisar, pois não há recusa explícita na sua aplicação, nem apontamento de vícios. Certo é
que, em pesquisa a todos tribunais federais brasileiros13, que tratam de questões relativas aos povos
indígenas, é possível encontrar apenas 1636 resultados que fazem referencia à palavra “índio”, e
apenas 29 que contêm as palavras “Convenção 169 da OIT” – sendo que nem todas tratam de questões
indígenas. Dessas 29 decisões, apenas 2 são originárias do Supremo Tribunal Federal14 e 4 do Superior
Tribunal de Justiça15.
Se essa é a situação da Convenção 169 da OIT – norma internalizada, melhor não é o
tratamento quanto à Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas16. Esse
documento, em vários aspectos considerado mais avançado do que a Convenção, foi considerado
como “soft law”17 pelo STF no julgamento do caso “Raposa Serra do Sol”, não criando nenhum tipo
de obrigação vinculante para o Estado brasileiro.
O regramento que vigora, realmente nos tribunais brasileiros, em relação aos índios, é o
Estatuto de 1973. São comuns decisões que negam liminarmente a condição indígena de pessoas pelas
12 Art. 7º da Convenção 169 da OIT: “Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas, próprias
prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas,
crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de
controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso,
esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de
desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente”.
13 Disponível em https://www2.jf.jus.br/juris/unificada/
14 Processo nºs: Inq-ED 3862, Dje 18.11.2014; Pet-ED 3388, Dje 23.10.2013.
15 Processos nºs: AGRRCL 201400624840, Dje 03/09/2014; RESP 200901199888, Dje 10/03/2014; RESP
200901199888, Dje 28/08/2013; e AGRSLS 201301078790, Dje 26/06/2013.
16 ONU. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas de 2007. Art. 26: 1. Os povos
indígenas têm direito às terras, territórios e recursos que possuem e ocupam tradicionalmente ou que tenham de
outra forma utilizado ou adquirido. 2. Os povos indígenas têm o direito de possuir, utilizar, desenvolver e
controlar as terras, territórios e recursos que possuem em razão da propriedade tradicional ou de outra forma
tradicional de ocupação ou de utilização, assim como aqueles que de outra forma tenham adquirido. 3. Os
Estados assegurarão reconhecimento e proteção jurídicos a essas terras, territórios e recursos. Tal
reconhecimento respeitará adequadamente os costumes, as tradições e os regimes de posse da terra dos povos
indígenas a que se refiram.
17 Daniel Sarmento ressalta sobre soft law: “O Direito pós-moderno pretende-se também mais flexível e
adaptável às contingências do que o Direito da Modernidade. No novo modelo, ao invés de impor ou proibir
condutas, o Estado prefere negociar, induzir, incitar comportamentos, o que torna o seu Direito mais “suave”
(soft law)”. (2012. p.202).
1060
razoes mais discutíveis, como o fato de serem alfabetizadas, falarem português, votarem, ou menos
saber pilotar uma bicicleta (VITORELLI, 2015.p.505).
Esses entendimento aparecem sobretudo em matéria criminal, em que pelos menos dois
direitos são garantidos pelo Estatuto: a) art. 56 - atenuação da pena em razão do maior ou menos grau
de compreensão da ilicitude da conduta; e b) art. 56, §ú – cumprimento das penas privativas de
reclusão e detenção em um regime de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de
assistência aos índio mais próximo da habitação do condenado.
Entretanto, são inúmeras as decisões judiciais que dispensam a realização de perícia
antropológica, podendo a avaliação partir do próprio juiz, à respeito do grau de compreensão da
conduta pelo índio18 - quando ampla, pode tratá-lo como se índio não fosse, pelo simples
reconhecimento de que se trata de um índio “integrado à sociedade”.
3 LEGITIMIDADE PROCESSUAL DOS ÍNDIOS E REPRESENTATIVIDADE
Conforme disposto no art. 232 da CF/88, os índios, suas comunidades e organizações são
partes legitimas para ingressar em juízo na defesa dos seus direitos.
Contudo, problemas práticos para que esse direito venha a ser exercido devem ser resolvidos à
luz do Código de Processo específico, mas, sobretudo, refletido pelas disposições da Carta Política.
Nesse sentido, a título exemplificativo, o recente teori do art. 1º do Novo CPC, ao prever que “O
processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas
fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as
disposições deste Código”.
Com efeito, questões como a forma de autorização da Comunidade, a legitimidade das
lideranças indígenas, etc., não poder ser resolvidas sem atenção aos ditames de que são reconhecidos
aos índios “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”(art. 231, caput, CF).
Significaria dizer, nas palavras de Helder Girão Barreto, que a “instrumentalidade” do processo não
deverá ser empeço à realização do comando constitucional (BARRETO, 2005, p.101).
Outrossim, em homenagem ao decido processo legal (art. 5º, LV, CF/88), as questões que
versem sobre ilegitimidade e irregularidade de representação processual deverão ser sempre
submetidas ao contraditório, e, se necessário, a feitura de um laudo antropológico19, por exemplo,
sendo decididas por “decisão” judicial recorrível. Ademais, nesse caso, haverá intervenção
obrigatória do Ministério Público (MP) em todos os atos do processo, na forma de custos legis
(fiscal da lei), consoante preceitua a última parte do referido art. 231.
18 Conforme se depreende do julgamento do HC 25003, rel. Min. Paulo Medina, DJ 01/12/03, além dos
julgados citados na nota de rodapé nº 9.
19 O laudo antropológico é o documento resultante de uma perícia antropológica. Uma perícia antropológica se
torna exigência quando os fatos sociais, por sua complexidade, para serem compreendidos requererem um
conhecimento especializado do saber antropológico, em estudo que evidencie um fazer antropológico, relatado
os achados de um modo que resulte a demonstração da reconstrução do mundo social do grupo pesquisado, na
perspectiva do grupo, com registros de sua cosmovisão, suas crenças, seus costumes, seus hábitos, suas
praticas, seus valores, sua interação com o meio ambiente, suas interações sociais reciprocas, suas ordens
internas, a organização grupal, fatores que geram concepção de pertencimento, entre outros. A perícia
antropológica se impõe quando há a necessidade de se documentar a realidade e a verdade de fatos em torno,
e.g., dos índios, quilombolas, ciganos, populações tradicionais, suas comunidades e organizações; quando os
fatos sociais em torno desses grupos e comunidades necessitam ser interpretados na sua significação individual
e na sua dinâmica social e coletiva; para interpretar e aplicar o Direito a essas comunidades e seus membros.
(In: MAIA, Luciano Mariz. Do papel da perícia antropológica na afirmação dos direitos dos índios. Disponível
em:
http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/documentos-epublicacoes/artigos/docs_artigos/do_papel_da
_pericia_antropologica_na_afirmacao_dos_direitos_dos_indios.pdf . Acesso em 23/04/2016)
1061
Ao Ministério Público cabe “defender judicialmente os direitos e interesses das
populações indígenas” (art. 129, V, CF/88). Porém, temos que estar atentos para a seguinte
diferença: quando o MP atua na defesa judicial dos direitos indígenas (art. 129, V, CF), o faz na
condição de “parte (autor e réu) ou de terceiro interessado (litisconsorte, assistente ou opoente);
quando intervém em todos os atos do processo, o faz na condição de custos legis (art. 231, última
parte, CF/88).
A distinção tem importância na medida das faculdades e ônus processuais.
Quanto à competência, certo é que: as ações que envolvem disputa sobre direito indígenas
devem ser propostas pelo Ministério Público Federal; aquelas que envolvem indígenas, mas não
necessariamente direitos indígenas, são propostas pelos Ministérios Públicos dos Estados, e, em
qualquer uma das situações, perante o Juízo competente. Essa parece ser a conclusão sugerida por
José Afonso da Silva ao asseverar que “se a competência é da Justiça Federal, o Ministério
Público legitimado é o Ministério Público Federal. A contrario sensu...”(SILVA, 2002, p.835).
Sem prejuízo de todo exposto, não podemos desprezar que, consoante disposto no art. 232
da Constituição, os índios, suas comunidades e organizações dispõem de legitimação processual
para pleitearem em Juízo, sem intermediação, na defesa de seus direitos e interesses individuais
ou coletivos.
Com efeito, quanto aos direitos coletivos, conforme ressalta Luiz Alberto David Araujo e
Vidal Serrano Nunes Júnior, a representação deve ser atribuída ao líder da coletividade, embora
ressaltem se tratar de “presunção de representação que pode ser desfeita, em caso de não
conformidade com a realidade”(ARAÚJO, 2001, p.430). Entendem, também que, no caso de
dúvida, deve-se recorrer à pericia antropológica.
4 A EXCLUSÃO LINGUÍSTICA DOS POVOS INDÍGENAS NO PROCESSO JUDICIAL
BRASILEIRO
Alessandro Pizzorusso (2000) com clareza aborda acerca dos “direitos linguísticos”:
[…] pueden clasificarse en cuatro grupos, de acuerdo con las siguientes
consideraciones: a) La regulación de la lengua entendida como un aspecto de la
forma de los actos jurídicamente relevantes; b) La regulación de la lengua entendida
como un signo capaz de expresar la voluntad del sujeto que la usa para afirmar la
propia pertenencia a una cultura o a una nación, y, por eso, como una manifestación
de una opinión que apunta a valorar tal cultura o tal nación; c) La regulación de la
lengua entendida como factor de reconocimiento de la pertenencia del individuo que
la usa a un grupo social dotado de un estatuto particular en el ámbito del
ordenamiento estatal, y d) La regulación de la lengua entendida como un bien
cultural, susceptible de protección según modalidades semejantes a las comúnmente
empleadas en relación con otros bienes culturales.
Ainda que não saibamos com exatidão o número de línguas faladas pelos índios na época da
colonização, estudiosos apontam que seriam em torno de 1200 línguas diferentes20. Em termos
históricos, certo é que os catequizadores jesuítas inicialmente tentaram aprender as línguas indígenas,
a fim de transmitir-lhes o evangelho em suas próprias línguas. Porém, a necessidade de fortalecimento
do processo de colonização acabou por tornar a variedade linguística um óbice ao fortalecimento da
identidade do território colonial.
20 Cf. RODRIGUES, 1986.
1062
Em 1757 foi publicado o documento denominado “Diretório dos Índios21”, primeiro
documento do Estado português que buscava “civilizar” os índios. Especialmente quanto à língua,
estabelecia no seu item 6:
Sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas as Nações, que
conquistaram novos Domínios, introduzir logo nos povos conquistados o seu
próprio idioma, por ser indisputável, que este é um dos meios mais eficazes para
desterrar dos Povos rústicos a barbaridade dos seus antigos costumes; e ter
mostrado a experiência, que ao mesmo passo, que se introduz neles o uso da Língua
do Príncipe, que os conquistou, se lhes radica também o afeto, a veneração, e a
obediência ao mesmo Príncipe. Observando pois todas as Nações polidas do Mundo,
este prudente, e sólido sistema, nesta Conquista se praticou tanto pelo contrário, que
só cuidaram os primeiros Conquistadores estabelecer nela o uso da Língua, que
chamaram geral; invenção verdadeiramente abominável, e diabólica, para que
privados os Índios de todos aqueles meios, que os podiam civilizar, permanecessem
na rústica, e bárbara sujeição, em que até agora se conservavam. Para desterrar esse
perniciosíssimo abuso, será um dos principais cuidados dos Diretores, estabelecer
nas suas respectivas Povoações o uso da Língua Portuguesa, não consentindo por
modo algum, que os Meninos, e as Meninas, que pertencerem às Escolas, e todos
aqueles Índios, que forem capazes de instrução nesta matéria, usem da língua
própria das suas Nações, ou da chamada geral; mas unicamente da Portuguesa, na
forma, que Sua Majestade tem recomendado em repetidas ordens, que até agora se
não observaram com total ruína Espiritual, e Temporal do Estado.
Ou seja, falava na existência de uma língua Príncipe, que seria a língua portuguesa, não se
permitindo, de modo algum, a língua própria de suas nações, no intuito de tirar os povos da barbárie.
Esse processo de “integração” serviu para a dilapidação do patrimônio linguístico nacional,
dirigido ao fomento do monolinguismo22. E, entendendo o direito ao patrimônio cultural linguístico23
um desdobramento dos direitos culturais, já́ que sua concepção pressupõe a diversidade linguística e
sua fruição, e tem por base a liberdade e a educação, sem dúvida a nossa perda foi lastimável.
Atualmente, teríamos apenas 274 línguas e dialetos indígenas no território nacional, consoante
censo do IBGE de 201024, sendo que, desse número, somente 25 das línguas tem mais de cinco mil
falantes.
O nosso sistema jurídico vem contribuindo pouco para a reversão desse quadro, pois, em que
pese a CF ter garantido a preservação das tradições indígenas (art. 231), o texto que refere-se à
educação é ambíguo, ao prever que “o ensino fundamental regular será ministrado em língua
portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e
processos próprios de aprendizagem” (art. 210, §2º).
A previsão do “também” nos leva a crer que seria obrigatório o ensino do português aos
índios. Conforme bem ressalta Edilson Vitorelli (2015, p.508), a lei 9.394/96, lei de diretrizes e bases
21 O Diretório dos Índios foi elaborado em 1755, mas só se tornou público em 1757. É um documento que
expressa importantes aspectos da política indígena do período da história de Portugal e do Brasil denominado
pombalino. Disponível em: http://nacaomestica.org/diretorio_dos_indios.htm . Acesso em: 22/04/2016.
22 Para maiores informações, ver: SOARES, Inês Virgínia Prado. Cidadania e direito à diversidade linguística: a
concepção constitucional das línguas e falares do Brasil como bem cultural. Disponível em:
http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/anexos/33292-42442-1-PB.pdf. Acesso em 02/04/2016.
23 O direito fundamental ao patrimônio cultural linguístico pode, também, ser analisado em duas dimensões: a)
em uma vertente subjetiva, como direito do homem (ou do grupo que pertence) que pode ser invocado para
limitar a atuação estatal; e b) em uma vertente objetiva, como direito à manutenção da língua e dos falares
portadores de valor de referência cultural.
24 IBGE. Características Gerais dos indígenas: resultado do Universo. Disponível em:
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/caracteristicas_gerais_indigenas/default_caracte
risticas_gerais_indigenas.shtm . Acesso em 18/04/2016.
1063
da educação, reflete essa ambiguidade constitucional, repetindo o teor do art. 210 em seu art. 32, §3º.
Posteriormente, o art. 78 estabelece a educação escolar bilíngue, mas o art. 79 prevê o fortalecimento
das praticas socioculturais e da língua materna de cada comunidade indígena, sem tomar posição
especifica sobre o ensino obrigatório do português.
A Constituição teria sido, no mínimo, “tímida” nesse respeito, tendo em vista que em outras
constituições, como a mexicana, há previsão do direito aos índios de preservar e enriquecer suas
própria línguas sem determinar o ensino do castelhano (art. 2º25).
Felizmente, em 199826, o Ministério da Educação elaborou um referencial curricular nacional
para as escolas indígenas, onde se previa:
Uma outra causa que explica o desaparecimento de línguas indígenas é o
deslocamento sociolinguístico. Isso acontece quando, em situações de bilinguismo, a
língua dominante vai, pouco a pouco, ocupando o território comunicativo da língua
dominada.[...] O problema, no entanto, é que devido à pressão social contra o uso
das línguas indígenas, seus falantes passam a usar a língua portuguesa em
ambientes que tradicionalmente não lhe pertencem. [...] Essas invasões linguísticas,
depois de algum tempo, podem fazer com que uma língua indígena acabe
desaparecendo.
Assim, o Ministério da Educação elegeu como fundamento básico a autodeterminação,
afirmando que as comunidades indígenas “têm o direito de decidirem seu destino, fazendo suas
escolhas, elaborando e administrando autonomamente seus projetos de futuro”. Além disso, previa
que “no caso das escolas indígenas, para que seja garantida uma educação diferenciada, não é
suficiente que os conteúdos sejam ensinados através do uso de línguas maternas: é necessário incluir
conteúdos curriculares propriamente indígenas a acolher modos próprios de transmissão do saber
Indígena”.
Mesmo em comunidades bilíngues, o referencial determina que, sempre que possível, a língua
indígena seja ensinada como primeira língua de instrução oral e escrita. O português, nessas situações,
deve ser ensinado como segunda língua, nos moldes de uma língua estrangeira.
4.1 O problema linguístico e a exclusão identitárias no Poder Judiciário: panorama no direito
comparado irlandês
O Poder Judiciário brasileiro vem consolidando entendimentos conservadores e prejudiciais
aos índios, o que é lastimável, considerando que cabe à ele o papel de guardião da Constituição. As
modalidades de exclusão judiciária, com relação à linguística, se dá de duas formas: a) pela exclusão
da identidade indígena e b) pela proibição de manifestarem-se na sua própria língua.
No que se refere à primeira forma, em que pese a Convenção 169 da OIT prever o princípio
do autorreconhecimento, esse não é o critério adotado pelo Poder Judiciário. Os tribunais tem
entendido que se pode atribuir ou negar a alguém a condição de índio pela analise de elementos
constantes no processo, estando dentre esses, o domínio da língua portuguesa. Seguem os exemplos
dos Tribunais Superiores:
25 Artículo 2º. La Nación Mexicana es única e indivisible. (…)A. Esta Constitución reconoce y garantiza el
derecho de los pueblos y las comunidades indígenas a la libre determinación y, en consecuencia, a la
autonomía para: I. Decidir sus formas internas de convivencia y organización social, económica, política y
cultural.(…) IV. Preservar y enriquecer sus lenguas, conocimientos y todos los elementos que constituyan su
cultura e identidad. Disponível em: http://www.diputados.gob.mx/LeyesBiblio/htm/1.htm . Acesso em:
05/04/2016.
26 O referencial curricular nacional para as escolas indígenas, elaborado pelo Ministério da Educação em 1998,
encontra-se disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me002078.pdf.
1064
Sujeição do índio às normas do art. 26 e parágrafo único, do CP, que regulam a
responsabilidade penal, em geral, inexistindo razão para exames psicológico ou
antropológico, se presentes, nos autos, elementos suficientes para afastar qualquer
dúvida sobre sua imputabilidade, a qual, de resto, nem chegou a ser alegada pela
defesa no curso do processo. Tratando-se, por outro lado, de "índio alfabetizado,
eleitor e integrado à civilização, falando fluentemente a língua portuguesa", como
verificado pelo Juiz, não se fazia mister a presença de intérprete no processo. (STF,
HC 79530, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Primeira Turma, julgado em
16/12/1999, DJ 25-02-2000 PP-00053 EMENT VOL-01980-03 PP-00568 RTJ
VOL-00172-02 PP-00582)
Índio condenado pelos crimes de tráfico de entorpecentes, associação para o tráfico e
porte ilegal de arma de fogo. É dispensável o exame antropológico destinado a aferir
o grau de integração do paciente na sociedade se o Juiz afirma sua imputabilidade
plena com fundamento na avaliação do grau de escolaridade, da fluência na língua
portuguesa e do nível de liderança exercida na quadrilha, entre outros elementos de
convicção. Precedente. (...)( STF, HC 85198, Relator(a): Min. EROS GRAU,
Primeira Turma, julgado em 17/11/2005, DJ 09-12-2005)
Esta Corte firmou o entendimento de que o indígena integrado à sociedade, nos
termos do art. 4.°, III, do Estatuto do Índio, não se enquadra ao disposto no art. 56,
parágrafo único, do aludido Estatuto (cumprimento de pena em regime especial
semiaberto), sendo, de rigor, a sua sujeição às leis penais impostas aos cidadãos
comuns. Na espécie, o Tribunal a quo afirmou que o paciente possui título de eleitor
e domínio da língua portuguesa, evidenciando que está integrado à sociedade, fato
que respalda a aplicação do art. 33, § 2.°, a, do Código Penal, uma vez que a pena
foi fixada em 12 (doze) anos de reclusão. (STJ, HC 243.794/MS, Rel. Ministra
MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em
11/03/2014, DJe 24/03/2014)
Não é indispensável a realização de perícia antropológica, se evidenciado que o
paciente, não obstante ser índio, está integrado à sociedade e aos costumes da
civilização. III. Se os elementos dos autos são suficientes para afastar quaisquer
dúvidas a respeito da inimputabilidade do paciente, tais como a fluência na língua
portuguesa, certo grau de escolaridade, habilidade para conduzir motocicleta e
desenvoltura para a prática criminosa, como a participação em reuniões de
traficantes, não há que se falar em cerceamento de defesa decorrente da falta de
laudo antropológico. IV. Precedentes do STJ e do STF.
V. Para a aplicação do art. 56, parágrafo único, da Lei n.º 6.001/76, o qual se destina
à proteção dos silvícolas, é necessária a verificação do grau de integração do índio à
comunhão nacional.
VI. Evidenciado, no caso dos autos, que paciente encontra-se integrado à sociedade,
não há que se falar na concessão do regime especial de semiliberdade previsto no
Estatuto do Índio, o qual é inaplicável, inclusive, aos condenados pela prática de
crime hediondo ou equiparado, como ocorrido in casu. Precedentes.
VII. Ordem denegada. (STJ, HC 30.113/MA, Rel. Ministro GILSON DIPP,
QUINTA TURMA, julgado em 05/10/2004, DJ 16/11/2004, p. 305)
Há uma evidente análise do julgador na “medição” da degradação dos costumes indígenas e
da “integração” desses indivíduos à sociedade. Sociedade essa que foi responsável pela destruição da
cultura desses povos e usa dessa destruição para negar aos índios os direitos que lhe são garantidos
por lei.
É preciso reconhecer que, ao contrário dos entendimentos dominantes nos tribunais, os
magistrados (em sentido amplo) não possuem condições de definir, sem o auxilio antropológico, que é
e quem não é índio, quem compreende ou não o seu papel no cometimento de um ilícito, por exemplo.
Levar em consideração o fato de ter fluência na língua portuguesa, certo grau de escolaridade,
1065
habilidade para conduzir uma motocicleta não deveriam ter valor máximo nessa análise.
Ademais, não podemos olvidar que o uso da língua materna indígena é vedada na pratica de
atos processuais. Inclusive, em muitos casos, há a negação de tradutor27 em razão da compreensão da
língua portuguesa e ao argumento da teoria tradicional das invalidades processuais, que determina que
a decretação da nulidade depende de prova do prejuízo.
Entretanto, o que se está a negar é a própria identidade indígena da parte. As decisões
judiciais transportam a ideia de que para o indígena fazer jus aos direitos previstos em lei, ele precisa
ser um índio isolado, que corresponda à imagem pré-colombiana de índio.
Esse preconceito, vem ainda mais fortemente expressado no caso Veron28, onde os
representantes do MPF requereram que os índios que fossem ouvidos como testemunha pudessem se
expressar na língua guarani, o que foi negado, à extensão da tese do STF: se alguém fala português,
não há razão para nomear tradutor.
Ocorre que, dessa decisão, não cabe recurso (seara penal), o que, no caso em apreço, levou ao
Procurado da República a abandonar o plenário do júri, medida que foi repudiada pela AJUFE, que
em nota afirmou que “a diversidade linguística pode até ter sido protegida, mas certamente não o foi a
sociedade”29.
Porém, é concebido pelo senso comum que, mesmo que uma pessoa saiba se comunicar em
um idioma diferente do seu, poderá não ter condições de fazê-lo com a mesma desenvoltura e riqueza
de detalhes que faria na sua língua mãe, o que demonstra a barreira de comunicação perpetrada a
mantida pelo nosso judiciário.
Nesse sentido, deveríamos mudar o padrão até então adotado. Deveríamos considerar
exemplos do direito alienígena, como, em especial, o direito irlandês, embora não no contexto
indígena.
Na Irlanda, todos habitantes falam inglês, mas um pequeno numero de cidadão tem o irlandês
como língua nativa. Ainda assim, o idioma é reconhecido pela Constituição de 1937(art. 8) como a
primeira língua oficial do país, e, com base nisso, se editou o “Official Languages Act”30, que garante
a qualquer pessoa o direito de ser ouvido perante qualquer tribunal, em irlandês, com o uso, se
necessário, de tradutor (item 8). Ademais, em relação ao testemunho, o documento prevê que “sem
prejuízo das demais normas desta seção, uma pessoa não pode ser obrigada a prover evidências em
uma língua oficial específica, em qualquer procedimento” (item 4. a).
Não se pode conceber a diversidade linguística como um patrimônio supérfluo, que deve
ceder às exigências pragmáticas da situação, mas um patrimônio que deve ser respeitado e cultivado
pelo Estado, especialmente em espaços como o Judiciário.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
É certo que a defesa do “direito à diferença” não escapa à crítica, principalmente quando essa
diferença sendo grupal, subordinam os direitos do individuo ao grupo. Porém, para nos a diferença
não implica homogeneidade, muito pelo contrario, individualidade. No caso indígena, sobretudo, a
diferença é condição mesma da própria identidade.
27 Um exemplo é o julgamento do HC 79530, ILMAR GALVÃO, STF, j. 16.12.99).
28 No julgamento do MS 2010.03.00.027550-8/MS, pelo Tribunal Regional Federal da 3º Região, consta a
transcrição da ata do plenário do júri, onde se fornecem todos relatos dos atos processuais havidos.
29 Disponível em: http://www.conjur.com.br/2010-mai-12/ajufe-sai-defesa-juiza-procurador-abandonou-juri
30 Disponível em: http://www.irishstatutebook.ie/eli/2003/act/32/section/8/enacted/en/html
1066
O reconhecimento ao direito à diferença dos indivíduos e das comunidades etnicamente
diferenciadas inserem-se dentro de um contexto que envolve tanto espaços públicos como privados,
cujos instrumentos visarão ao alcance da almejada identidade própria.
Quando a CF/88 reconheceu ao índios “sua organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições, e os diretos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” e impôs à União o
dever-poder de os proteger e fazer respeitar, restou abandonado o paradigma da integração (rumo ao
não índio), e adotou-se um novo paradigma: o da interação. Essa concepção é de suma importância,
na medida que as relações com essa coletividade abandonou o plano da verticalidade, passando (ou
devendo) passar a se dar no plano da horizontalidade.
Dar o devido reconhecimento a pessoas e grupos, assim como às suas identidades culturais
não pode ser confundido com mera cortesia, pois trata-se de uma necessidade humana vital, que
precisa ser ainda mais fomentada e respeitada pelo Judiciário, guardião da Constituição.
Um individuo ou grupo com especificidades não reconhecidas, tende a não reconhecer sua
própria identidade, a se considerar e ser considerado à margem da sociedade (marginalizado), de tal
forma que passe ou continue a não ser reconhecido.
A diversidade cultural se refere à multiplicidade de formas em que se expressam as culturas
dos no Estado Democrático Brasileiro, estando inseridos nesse contexto os direitos culturais
linguísticos. Tanto o indivíduo, como a comunidade residente no país tem direito a preservar e ver
preservados os elementos mais significativos de sua cultura e da cultura nacional, para fruição
presente e transmissão às próximas gerações. Sendo assim, o combate à discriminação mostra-se
necessário, mas insuficiente enquanto medida isolada.
Os pactos e convenções que integram o sistema internacional de proteção dos Direitos
Humanos apontam para a necessidade de combinar estas medidas com as previsões legais nacionais, a
fim de acelerar aa construção da igualdade, estimulando a inclusão de grupos socialmente vulneráveis,
estando dentre esses os índios. O desenvolvimento de práticas e ações afirmativas constituem medidas
especiais para remediar um passado discriminatório.
Desse modo, deve-se pautar a atuação do Poder Judiciário brasileiro, visando a proteção e
promoção das línguas e falares do país, por se tratar de valor simbólico, representativo da identidade
cultural da sociedade brasileira e dos grupos minoritários, não desprezando a dimensão interativa
desse bem cultural, como vem acontecendo.
Embora a Constituição faça menção expressa às comunidades indígenas, o direito à
diversidade linguística abrange todas as línguas faladas por brasileiros e, por isso, o desenvolvimento
das políticas públicas deve atingir os diversos grupos falantes. Porém, o que se vê é uma postura
adotada pelo Judiciário com posições preconceituosas em relação aos índios, que, sem qualquer
embasamento teórico, decide questões relacionadas a esses povos desconsiderando sua história, sua
cultura e seus anseios, julgando com elementos “constantes nos autos”.
Conforme buscamos demonstrar, há uma série de decisões descaracterizando ou negando a
condição indígena a sujeitos processuais, com o objetivo de negar-lhes benefícios garantidos em lei.
Na situação em que aparecem como réus, muitas vezes as proposições inerentes à condição indígena
aparece caracterizada como manobra meramente protelatória.
Em suma, há dois problemas: o tratamento das questões indígenas e da condição de índio pelo
Poder Judiciário Brasileiro, e outro, nele contido, que é a proteção dessa minoria linguística em juízo.
Uma saída seria os juízes considerarem os antecedentes sistêmicos que possam, por exemplo, ter
levado um índio a delinquir. Devem ser considerados os fatores históricos de colonialismo e expulsão,
e como essa historia continua a se refletir em pobreza, baixos níveis educacionais, desemprego, etc.,
para então poder o juiz definir uma sanção aplicável em razão de sua condição indígena. Ou seja, não
se pode desprezar todo contexto real e histórico no tratamento dos direitos dos índios.
1067
É tempo do Estado brasileiro e dos poderes que o compõe começarem a perceber o prejuízo
inestimável que será provocado à nossa cultura pela manutenção da opressão ou mesmo supressão das
línguas indígenas - reflexo da cultura desse povo e da nossa própria cultura, devendo, por conseguinte,
buscar freios para diminuir e quiçá barrar a marginalização dessa minoria.
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1069
DIREITOS HUMANOS E A INCLUSÃO DO DETENTO:EDUCAÇÃO PARA A
RESSOCIALIZAÇÃO ATRAVÉS DO ENSINO DE LÍNGUA INGLESA
Meirilene Alves Fernandes1
Marina Camargo Mincato2
Antonio Felipe Maciel Szezecinski3
RESUMO: A educação no sistema prisional é tida como um caminho para a reintegração do detento
na sociedade através do desenvolvimento de habilidades profissionais via práticas pedagógicas.
Portanto, cabe ser repensada e refletida como um direito do cidadão brasileiro, respaldado na
Constituição Federal de 1988, em seu Artigo 205, “educação é direito de todos e dever do Estado
[...]”; e o fato da pessoa estar excluída do convívio social não lhes retira esse direito. Com este estudo,
busca-se compreender como a educação no presídio pode favorecer o processo de ressocialização do
detento, levando-se em conta o papel da Língua Estrangeira neste processo. Para tal, faz-se necessário
conhecer o contexto histórico das prisões e as principais funções das penas; analisar a Lei de execução
penal, para, então, verificar o papel da educação na reintegração social, visto que o propósito de
encarcerar uma pessoa que comete delitos graves é retirá-la do convívio social para proteger a
sociedade. Deste modo, esse estudo se justifica por ser um tema de relevância social que abarca o
direito de inclusão social. A metodologia utilizada na elaboração do artigo foi qualitativa de cunho
bibliográfico, por meio de análise de obras e artigos científicos que abordam a questão do detento
como indivíduo que necessita de apoio e educação para sua reintegração na sociedade, além de estudos
que analisam o papel da Língua Estrangeira na formação para a diversidade. Como resultados,
compreendeu-se que a educação na prisão favorece ao detento a oportunidade de desenvolver sua
potencialidade intelectual, fortalecer sua autoestima e assegurar seu direito como cidadão.
PALAVRAS-CHAVE: Educação. Língua Estrangeira. Sistema Prisional.
1 INTRODUÇÃO
O presente estudo busca compreender como a educação no presídio pode favorecer o processo
de ressocialização do detento, pensando o papel da Língua Estrangeira neste processo. Assim, o artigo
traz o contexto histórico das prisões e as principais funções das penas e como a Lei de execução penal
colabora para o papel da educação na reintegração social, uma vez que o propósito de encarcerar uma
pessoa que comete delitos graves é retirá-la do convívio social para proteger a sociedade. A revisão
bibliográfica analisa a importância dos processos educativos para a reintegração do indivíduo na
sociedade, além de estudos que analisam o papel da Língua Estrangeira na formação para a
diversidade.
2 CONTEXTO HISTÓRICO DAS PRISÕES
De acordo com a lei, restringir o direito constitucional à liberdade de locomoção de ir e vir de
uma pessoa é uma forma de puni-la.Contudo, “Ao longo da história podemos identificar diferentes
maneiras da sociedade lidar com aqueles que infligiram às normas socialmente aceitas”. (SANTIAGO,
2009, p. 300). Antes da Constituição Federal de 1988,a pessoa que cometia falta grave era retirada da
sociedade e lançada na prisão sem ordem judicial e sem está em flagrante delito. Atualmente, de
1 Mestranda em Educação do Centro Universitário La Salle–Unilasalle; E-mail: [email protected]
2 Mestranda em Educação do Centro Universitário La Salle – Unilasalle;
E-mail:
[email protected]
3
Mestrando
em
Educação
do
Centro
Universitário
La
Salle
–Unilasalle;
E-mail:
[email protected]
1070
acordo o artigo 5º da Constituição Federal de 1988, no inciso LXI: "ninguém será preso senão em
flagrante delito ou por ordem escrita e ‘fundamentada de autoridade judiciária competente [...]"
(BRASIL, CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988).
Goffman (2005) define prisão como “Um local de residência e trabalho onde um grande
número de indivíduos com situações semelhantes, separados da sociedade mais ampla por
considerável período de tempo, leva uma vida fechada e formalmente administrada (GOFFMAN,
2005, p. 11)”. No ambiente prisional, as pessoas que cometem infrações têm espaços isolados para
cumprirem as sentenças pelas quais foram designadas, sendo que inicialmente a função da reclusão era
para meditação e reflexão pelos atos cometidos.
Nos mosteiros da Idade Média, as pessoas eram colocadas em prisões "como punição imposta
aos monges ou clérigos faltosos, fazendo com que se recolhessem às suas celas para se dedicarem, em
silêncio, à meditação e se arrependerem da falta cometida, reconciliando-se com Deus". (MISCIASCI,
2010, p. 3)
A prisão, não só como medida processual, mas como também pena aplicável a
clérigos e leigos, foi muito adotada, visando esta última a propiciar a reflexão
expiatória e salvadora. Até o século XIII, cumpria-se em mosteiros ou conventos
(SANTIAGO, 2009, p.301).
É importante observar que a prisão vinculada à religião visava levar o prisioneiro a refletir
seus atos, considerando sua conduta errada e estabelecendo medidas que viessem a mudar sua maneira
de viver, ou seja, converter seus caminhos. Uma proposta diferente, pois se percebe a intenção de
promover a modificação na forma de pensar e agir, contrapondo ao modelo anterior, o qual visava,
simplesmente, um alojamento, sem fins de transformação.
As ideias de reclusão baseadas no direito canônico, nas quais “a reclusão tinha como objetivo
induzir o pecador a arrepender-se de suas faltas e emendar-se graças à compreensão da gravidade de
suas culpas” (BITENCOURT, 2005, p.25), inspiraram a construção da primeira prisão destinada ao
recolhimento de criminosos, a House of Correction, construída em Londres entre 1550 e 1552,
difundindo-se de modo marcante no Século XVIII (MISCIASCI, 2010, p.3).
No século XVI e XVII a Europa contava com uma grande população que perdera suas posses,
aumentando pobreza e a criminalidade aumentou em elevada proporção. Assim, não havia como
praticar a pena de morte trazida da antiguidade, pois, seria grande a chacina, por essa razão que foi
criada a prisão, com objetivo de corrigir os criminosos (BITENCOURT, 2005).
Sedrez (2008) afirma que no Brasil a primeira instituição prisional que se tem notícia foi à
Casa de Correção da Corte, inaugurada em 1850 em São Paulo. Neste estabelecimento os presos eram
obrigados a realizar trabalhos forçados durante o dia e reclusão as celas à noite.
Neste sentido, o perfil do sistema prisional configura um detento que, no isolamento, deve
rever suas atitudes a fim de estar apto a viver em sociedade após o término de sua pena. No entanto,
este processo de ressocialização deve ser calcado na educação, processo pelo qual o indivíduo terá a
chance de agir criticamente e, a partir da promoção da cidadania, ser reinserido na sociedade.
3 A ORIGEM DAS PENAS E DO DIREITO DE PUNIR DO ESTADO
Retomando a história das reclusões prisionais, verifica-se que a origem das penas se confunde
com a própria organização do Estado como hoje é conhecido. A forma como surgiu é muito discutida
e existem muitos conflitos quanto a isso: sua origem remonta à própria história da humanidade, aos
mais primitivos grupamentos humanos, sua origem perde-se no tempo. Para os povos primitivos a
pena nasceu de um sentimento de vingança e era aplicada inicialmente de forma privada, e
posteriormente foi alçada a categoria de direito. (MISCIASCI, 2010, p.5)
1071
Sendo a pena uma sanção imposta pelo Estado ao exercer seus legítimos direitos de punir
àqueles que colocam em risco bens juridicamente protegidos ou causando lesões aos mesmos, tem-se a
função de proteger a sociedade. Portanto, deve ser aplicada objetivando-se atingir o fim a que se
destina, isto é, deve ser eficaz e útil, do contrário não justifica sua imposição, servindo apenas como
meio de cumprir com um encargo, ou seja, com a obrigação de repassar à sociedade a impressão de
que se está cumprindo com o dever de garantir a segurança coletiva.
Um indivíduo, ao cometer um crime, não pode servir de padrão para a sociedade, como meio a
se alcançar a finalidade de prevenção geral. O Brasil possui um sistema de lei progressivo que impõe
as penas privativas de liberdade e permitindo ao preso a oportunidade de retornar a sociedade
(SEDREZ, 2008, p.12).
No ordenamento jurídico brasileiro classificam-se as penas em três espécies: I- privativas de
liberdade; II- restritivas de direito; III- multa (pecuniária), as quais devem ser aplicadas pelo
magistrado de modo a punir e evitar a ocorrência de novos crimes. As penas privativas de liberdade
preveem três espécies de pena são elas reclusão, detenção e prisão simples (para as contravenções
penais). Enquanto os dois primeiros tipos de pena decorrem da prática de crime, o último tipo decorre
de contravenções penais. (CAPEZ, 2015, p.380)
De acordo com o artigo 110 da Lei de Execução Penal, o juiz deverá estabelecer na sentença
o tipo de regime inicial de cumprimento da pena que são eles: regime fechado, semiaberto e aberto.
No regime fechado, cumpre a pena em estabelecimento penal de segurança máxima ou média. No
regime semiaberto, colocar o condenado em colônia penal agrícola, industrial ou em estabelecimento
similar. O regime aberto, o condenado trabalha ou frequenta cursos em liberdade, durante o dia, e
recolhe-se em Casa do Albergado ou estabelecimento similar à noite e nos dias de folga.
O art. 5º, XLVIII, da Constituição Federal estabelece que a pena seja cumprida em
estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado (BRASIL,
CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988), desse modo fica estabelecido o direito à privacidade de acordo
com o gênero. A pena privativa de liberdade é cumprida em regime progressivo. Na fase inicial, há um
controle maior do interno, limitando sua liberdade de forma completa. Já na fase final, o regime
costuma ser aberto. O método utilizado para essa progressão é o comportamento do recluso. Esse
sistema visa de certa forma, motivar o interno a participar de tarefas formadoras culturais e escolares.
Em razão de seu caráter retributivo, a pena deve ser proporcional ao crime cometido, além de não
poder passar da pessoa do condenado (SEDREZ, 2008, p.10).
Em 1984 foi aprovado no Brasil a Lei de Execução Penal, pelo projeto de lei do Ministro da
Justiça Ibrahim Abi Hackel iniciado em 1983. A referida lei em seu artigo 1º diz que, a execução penal
tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para
a harmônica integração social do condenado e do internado. É importante observar que a Lei de
Execução Penal foi estabelecida na tentativa de assegurar ao detento uma maneira humanitária e digna
de ressocialização. Certamente, adota um caráter de extrema relevância para a sociedade. A lei prevê
diretrizes e regulamentos para os diversos direitos e deveres do condenado durante sua permanência
nas instituições penais.
A Lei de Execução Penal, garante ao preso ou internado, assistência material, em se tratando
de higiene, instalações higiênicas e acesso a atendimento médico, farmacêutico e odontológico,
assistência jurídica, social, religiosa. O artigo 88 prevê que os prisioneiros sejam mantidos em celas
individuais de pelo menos seis metros quadrados.
A Lei 12.433 em seu artigo 126, garante aos presos assistência educacional e para aqueles que
estão estudando a redução de pena. A cada 12 horas de frequência escolar o preso tem um dia a menos
de pena a cumprir, incluindo ensino fundamental, médio, profissionalizante, superior ou ainda curso
de requalificação profissional.
1072
No artigo 31 da Lei de Execução Penal, diz que o Estado tem obrigação de oferecer trabalho
remunerado ao presidiário. O salário de um preso, segundo a Lei não pode ser inferior a três quarto do
salário mínimo. Os presos que trabalham não estão sujeitos ao regime da CLT (Consolidação das Leis
Trabalhistas) como décimo terceiro, férias, fundo de garantia, horas extras e aviso prévio e o dinheiro
recebido por eles deve ser colocado em poupança para ajudá-lo quando ele conseguir a liberdade.
Reconhece os direitos humanos dos presos (proibindo violência por parte de funcionários) e tem como
principal objetivo a ressocialização dos detentos.
As instituições restritivas da liberdade são muitas, contudo, o sentido é o mesmo: privar o
indivíduo de sua liberdade como forma de punição por atos que não são considerados corretos na
sociedade em geral. A educação assume, então, um caráter preventivo e corretivo. Preventivo, pois
oportuniza o indivíduo a entender seus direitos e deveres enquanto cidadão, e corretivo, pois passa a
ser um caminho para a mudança, permitindo o desenvolvimento de uma visão crítica perante suas
próprias atitudes e comportamentos no individual e no coletivo.
Santiago (2009) afirma que as limitações da liberdade são utilizadas como punição e questiona
as medidas que o sistema prisional tem para possibilitar ao detento vencer as barreiras que lhe são
impostas, indo além e questionando se unicamente por retirá-lo do convívio social o problema da
marginalidade será atenuado. É bastante comum ouvir nas mídias notícia de rebeliões e fugas de
presídios brasileiros. A situação é caótica em algumas instituições, existindo casos de condições
subumanas, locais infectados, local com higienização precária, alimentação inadequada. Camargo
(2008) complementa a esse respeito que, “sentenciados que são mortos por seus próprios
companheiros, funcionários e familiares de detentos transformados em reféns, resgates e fugas
audaciosas e espetaculares praticadas por criminosos”. (CAMARGO, 2008, p.1)
Boa parte dos estudiosos do Direito Penal, afirma que como sistema, a prisão é uma
instituição quase falida e que sua manutenção se justifica, ainda somente pela
impossibilidade de que alguns criminosos de alta periculosidade desfrutem do
convívio social (GONZAGA, 1994, apud SANTIAGO, 2009. p.305)
Entre o proposto pela Lei de Execução Penal, e o vivido o que se percebe é que realmente o
sistema carcerário no Brasil está em ampla decadência. Como diz Camargo (2008, p.2) às prisões “são
verdadeiros depósitos humanos”, onde a superlotação promove violência sexual entre os detentos,
doenças sexualmente transmissíveis proliferem, existem o consumo de drogas dentro dos presídios,
sem contar na violência onde o mais forte coage e subordina o mais fraco.
A Lei de Execução Penal prevê boas condições de higiene nas instalações presidiárias, mas a
realidade hoje não é bem assim. Muitos dos presos estão submetidos a péssimas condições higiênicas,
as celas com grande número de presos exalam odores quase insuportáveis.
Conhecer a realidade prisional, bem como aproximar da história de quem cumpre a
condenação, pode causar impacto, já que é algo rechaçado, temido e afastado da
sociedade. O homem condenado a pena privativa da liberdade passa anos de sua
vida nesse mundo, que tem regras e leis próprias. Sabe-se da carência do Estado, da
falta de políticas voltadas ao interesse do Sistema Prisional e de sua falência.
(PICKERING, 2006, p.16)
Assim, é importante perceber que a situação do preso em geral deve ser entendida como um
problema público, com questões que levam as autoridades a pensar em como preparar o preso e
preparar a sociedade para recebê-lo em seu convívio. Como visto, além da Constituição Federal, há
garantia do acesso dos detentos brasileiros à Lei de Execução Penal, a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (Lei nº 9394) e o Plano Nacional de Educação (Lei nº 13.005), as quais preveem a
educação no presídio como um direito do condenado justamente por serem o caminho de inclusão e
1073
ressocialização para a vida em sociedade, assegurando-lhes a oportunidade de um futuro melhor
quando alcançarem a liberdade. Assim, o aprisionamento deixa de ser essencialmente um castigo, uma
pena a ser cumprida e assume um papel socializador e reformador.
4 A EDUCAÇÃO NO PRESÍDIO: FERRAMENTA DE REINTEGRAÇÃO DO APENADO
Conforme abordado previamente, a Lei de Execução Penal, no que diz respeito à assistência
educacional, prevê a instrução escolar e a formação profissional do preso e do internado, sendo o
ensino profissional ministrado em nível de iniciação ou de aperfeiçoamento técnico. A educação para
o detento está prevista por lei justamente por ser considerado um dos caminhos para a reintegração
social, bem como a oportunidade aos reclusos de criarem subsídios para um futuro melhor ao fim de
sua pena. Essa perspectiva permite classificar o aprisionamento como uma alternativa de preparo ao
indivíduo e não como discutido anteriormente, na perspectiva de castigo, punição. A educação,
portanto, reforma, integra e socializa. Conforme Costa:
a educação é direito de todos e dever da família e do Estado, terá como bases os
princípios de liberdade e os ideais de solidariedade humana, e, como fim, a
formação integral da pessoal do educando, a sua preparação para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho. (COSTA, 2006, p.23).
Falar em educação e não citar Paulo Freire seria uma injustiça. Para ele, ensinar é muito mais
que uma profissão; é uma aceitação de desafios. Freire lutou exatamente por pessoas que são
marginalizadas, esquecidas da sociedade e acreditava que, o saber, torna a pessoa agente de suas
decisões, portanto, pela educação o ser humano se liberta da opressão, ainda que fisicamente esteja
oprimido. (FREIRE,1996).
Pensar na educaçãoe principalmente no ensino de Língua Inglesa, como forma de
ressocialização significa permitir ao preso uma forma, de resgatar sua autoestima, evitar a
ociosidade,voltar à sociedade, convivendo com as diferenças, e ao mesmo reconhecendo seu papel
nesta diversidade, fazendo com este saiba lidar com o diferente e o novo tornando, assim, um espaço
para a formação de cidadãos. Conforme Schlatter e Garcez:
A aula de Línguas Adicionais pode ser um espaço para que os seus participantes se
encontrem com uma nova forma de expressão humana, com visões do mundo
distintas das suas, com uma língua que pode fascinar ou assustar. E esse espaço deve
servir antes de tudo para reflexão e informação sobre as realidades locais e imediatas
dos educandos em tarefas de interlocução com o mundo que se faz nessa outra
língua. [...] Na aula de Línguas Adicionais, o educando pode ver, desde o começo e
cada vez mais, o seu mundo ampliado e assim decidir o que nesses novos horizontes
importa para a sua vida, no seu mundo imediato, capacitando-se para participar mais
afirmadamente do seu próprio mundo e do mundo maior que se apresenta na sua
vida como cidadão. (SCHLATTER; GARCEZ, 2012, p. 37-38).
A educação no contexto prisional passa a ter importância não apenas para os detentos, mas
para a sociedade de forma geral, uma vez que acolherá novamente os indivíduos que dela foram
excluídos por práticas inadequadas perante a lei. Cria-se, assim, uma oportunidade de reeducar estes
indivíduos, socializando-os a voltar para o coletivo, permitindo, portanto, uma reinserção social. Esta
proposta, segundo Onofre (2010), precisa relacionar o homem com o contexto no qual vive, situando-o
na sociedade e identificando seu perfil:
Para a construção dessa escola, há que se considerar se existe descompasso entre o
que ela deve e o que pode fazer no interior das prisões. A proposta educacional
1074
traçada para essas escolas, ao explicitar as concepções sobre o homem, sobre o
mundo e sobre a educação e a produção de conhecimento, enfatiza que a educação,
para ser válida, deve levar em conta tanto a vocação ontológica do homem (vocação
de ser sujeito), quanto as condições nas quais vive (contexto). Toda ação educativa
deve, portanto, promover o indivíduo, e este deve transformar o mundo em que está
inserido, não se tornando um instrumento de ajuste à sociedade (ONOFRE, 2010,
p.5).
Para que, de fato, a educação seja um processo que permita o desenvolvimento humano, esta
deve contemplar os direitos do detento e visar às perspectivas de cunho social, profissional e pessoal.
Desta forma, passa a reconhecer seu papel enquanto indivíduo na sociedade, ampliando sua visão de
mundo para, então, construir sua identidade e verificar seu papel no coletivo. Passa a ser um meio para
a reintegração do indivíduo ao meio social, fortalecendo, assim, os direitos humanos e necessidades
dos indivíduos, preparando-o para exercer a cidadania, bem como qualificar-se para o trabalho,
permitindo a vivência da diversidade.
A aula de Língua Estrangeira possibilita ao detento ter contato com o novo, saber da existência
deste diferente, oportuniza a interação em meio à diversidade. Estas funções têm impacto direto na
sociedade, uma vez que estamos inseridos num determinado contexto, convivendo com pessoas e com
elas socializando neste ambiente. Assim, aprendendo a interagir no âmbito da diversidade, estamos
educando e formando verdadeiros cidadãos ao invés de estarmos formando simplesmente alunos.
Ainda segundo os autores: “Ser cidadão significa participar e lidar com segurança com a
complexidade do mundo para intervir nele criticamente – para isso, é necessário compreender as
relações humanas como complexas, diversas, situadas e historicamente construídas”. (SCHLATTER;
GARCEZ, 2012, p. 14).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não há controvérsias sobre a importância da educação no sistema prisional para a reinserção
do detento na sociedade, numa perspectiva de propiciar uma visão de mundo mais abrangente. A partir
da educação, o apenado tem a oportunidade de se transformar, reconfigurando sua própria identidade
enquanto indivíduo. Há, ainda, o processo de humanização a partir da ressocialização do preso.
O próprio contexto histórico das prisões permite afirmar que estas se constituem como lugares
que retiram a pessoa da sociedade para que sejam reabilitados a viver no coletivo, mas, para que de
fato haja mudanças na vida deste preso, é necessário que exista um processo de ressocialização,
integrando-o novamente à sociedade da qual foi excluído. O indivíduo ao ser encarcerado desconstrói
sua identidade, moldando-se a novos padrões e, ao ter sua liberdade devolvida, reconstrói um novo
perfil.
A Constituição Federal enquanto conjunto de leis que regulamenta os direitos e deveres do
cidadão abrange, também, os indivíduos que ingressam no sistema prisional. Para esta parcela da
população, devem-se proporcionar condições para que haja inserção social dentro dos presídios,
visando à transformação da identidade destes apenados. A educação, quando fomentada de forma
eficaz e eficiente, oportuniza o recluso a se preparar para a vida que o espera quando alcançar sua
liberdade. A educação, enquanto elemento educativo tem a capacidade de reaproximar o preso da
sociedade e da sua família.
Educar o indivíduo é promover seu desenvolvimento enquanto ser humano, visando um
processo de humanização, preparando-o para viver no meio social. A Língua Estrangeira propicia este
processo na medida em que abre espaço para a diversidade, o contato com o diferente e as formas
como estas particularidades se fazem presentes na sociedade. Ao nos depararmos com o diferente,
repensamos nossa própria identidade e revemos nosso papel enquanto cidadãos.
1075
A educação é o caminho que permeia este processo de reconstrução, permitindo um novo
entendimento sobre a sociedade, convivendo com os diferentes padrões e seguindo as regras regidas
pela lei. Este encontro com a diversidade é promovido por espaços que ressaltam os princípios de
cidadania.A educação e o ensino de Inglês enquanto Língua Estrangeira no presídio é um desafio,
tendo em vista a história de vida de cada detento, sua origem, formação cultural, condição física e
psicológica, enfim, são muitos os entraves que contribuem para a não aprendizagem, fato que deve ser
trabalhado de maneira mais impositiva diante da importância da formação acadêmica para o indivíduo
na sociedade, defendendo assim, a formação, incentivo e permanência dos alunos nas escolas nos
presídios.
Como resultados da pesquisa bibliográfica realizada, compreendeu-se que a educação na
prisão favorece ao detento a oportunidade de desenvolver sua potencialidade intelectual, fortalecer sua
autoestima e assegurar seu direito como cidadão. Isso porque ocorre um processo de valorização da
pessoa sob o aspecto humanizador: a pessoa reclusa passa a verificar a existência de possibilidades
para um futuro melhor. A educação abre caminhos para a aquisição de novos conhecimentos e o
aprimoramento de ofícios para o mercado de trabalho.
Assim, a aula de Língua Estrangeira é um destes espaços, em que há o encontro com a
diversidade e que se constitui como um meio de oportunizar a socialização oferecendo ao detento a
construção de sua identidade para, assim, resgatar a autoestima perdida, reintegrando-o à sociedade.
Acredita-se assim, que através do respeito à diversidade, ao combate à exclusão social e a busca de
uma sociedade justa e igualitária será possível construir uma sociedade harmônica e transparente,
reconhecendo em cada cidadão seus limites e possibilidades.
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1077
EMBALAGENS SIMPLES DE CIGARRO: OS DESAFIOS IMPOSTOS AOS PAÍSES DA
OMC NA PROTEÇÃO DO DIREITO HUMANO À SAÚDE
Maria Cristina Gomes da Silva d’ Ornellas1
RESUMO: O tabagismo está entre as grandes preocupações mundiais. Em 2005, então, a ConvençãoQuadro para o Controle do Tabaco (CQCT) passou a vigorar e, atualmente, 180 países já a ratificaram.
Tal Convenção sugere aos seus países contratantes a adoção da padronização nas embalagens de
cigarros e dos demais derivados do tabaco. Assim, o objetivo do presente estudo é analisar o Painel
Australia – Plain Packaging Cigarettes, estabelecido no âmbito da Organização Mundial do Comércio
(OMC) para questionar a lei australiana que determinou que os cigarros deveriam ser vendidos em
embalagens simples – livres de cores, imagens, logotipos corporativos, em suma, de partes relevantes
da identidade visual de sua marca. A Ucrânia foi o primeiro país a questionar na OMC a legislação
antitabaco australiana, mas requereu a suspensão do Painel em maio de 2015. Entretanto, os pontos
sobre o direito marcário levantados pela Ucrânia permanecem questionados nos painéis também
estabelecidos contra a Austrália, por Honduras, República Dominicana, Cuba e Indonésia. Neste
sentido, o artigo também busca perquirir sobre a influência das decisões alcançadas na OMC nos
demais membros da Organização que, já adoram ou planejam adotar legislações semelhantes na busca
da proteção do direito humano à saúde. Conclui, então, que há a possibilidade da Austrália ter sucesso
na apresentação das decisões aos Painéis referidos no artigo, sendo justificada a eventual restrição ao
direito marcário em favor da proteção do direito humano à saúde. Para tanto, o artigo segue como
método de abordagem o dedutivo e de procedimento, o método monográfico. Dentre as técnicas
utilizadas está a análise de doutrina nacional e estrangeira, instrumentos legais internacionais –
sobretudo Acordo TRIPS e CQCT - e legislações e/ou regulamentações nacionais.
PALAVRAS-CHAVE: Direito humano à saúde. Embalagem simples de cigarros. Convenção-Quadro
para o Controle do Tabaco. Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual
Relacionados ao Comércio. Direito Marcário.
1 INTRODUÇÃO
A adoção de políticas públicas voltadas para o controle do uso do tabaco e seus derivados são,
especialmente importantes, na medida em que o tabagismo está identificado entre as maiores causas
mundiais de mortalidade prematura.( CRISTINA, ALVES E PERELMAN, 2016) Trata-se de uma
doença crônica não-transmissível (DCNT), presente na 10a versão do Código Internacional de
Doenças – CID(10) da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Foi diante desta realidade que atribui ao fumo doenças como as causadas ao sistema
respiratório, câncer ou problemas gastrointestinais, que houve a negociação e adoção da ConvençãoQuadro para o Controle do Tabaco (CQCT), no âmbito da OMS em 27 de fevereiro de 2005.
Atualmente, 180 países já ratificaram a CQCT (OMS, 2016), no intento de "proteger as gerações
presentes e futuras das devastadoras consequências sanitárias, sociais, ambientais e econômicas
geradas pelo consumo e pela exposição à fumaça do tabaco". (CQCT, 2005, art. 3o)
Entretanto, qualquer medida de política pública adotada para o controle do tabagismo encontra
pontos que a conecta a questões relativas a políticas econômicas, especialmente aquelas ligadas ao
comércio internacional. Exemplo disso é a legislação australiana – Tobacco Plain Packaging Act
2011, que determinou que até 1o de julho de 2012 todos os cigarros deveriam ser vendidos em
embalagens simples, livres de cores, imagens, logotipos corporativos, em suma, de partes relevantes
1 Doutora em Direito – UFRGS. Centro Universitário do Ritter dos Reis. Curso de Direito e Programa de PósGraduação em [email protected]
1078
da identidade visual de sua própria marca. Ademais, os nomes das marcas dos cigarros também
deveriam ser padronizados, através da utilização de uma mesma fonte, tamanho e cor, sem deixar de
referir a obrigatoriedade de avisos que contenham informações sobre os riscos que o consumo do
produto impõe à saúde das pessoas.
Assim, em 2012 foi estabelecido pela Ucrânia, no âmbito da Organização Mundial do
Comércio (OMC), o Painel intitulado Ukraine vs Australia – Certain Measures Concerning
Trademarks and Other Plain Packaging Requirements Applicable to Tobacco Products and
Packaging, para questionar as medidas da Austrália aplicáveis aos produtos do tabaco. Posteriormente,
outros países - Honduras, República Dominicana (2012), Cuba e Indonésia (2013), também
apresentaram as suas queixas à legislação antitabaco adotada pela Austrália. As reivindicações
envolveram várias obrigações decorrentes de diferentes acordos da OMC2. Entretanto, este estudo
estará restrito aos questionamentos relativos ao direito marcário previsto no Acordo sobre Aspectos
dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS).
Em maio de 2015, a Ucrânia requereu a sua suspensão do Painel Ukraine vs Australia –
Certain Measures Concerning Trademarks and Other Plain Packaging Requirements Applicable to
Tobacco Products and Packaging, tal como o previsto pelo artigo 12.12 do Entendimento sobre as
Regras e Procedimentos do Mecanismo de Solução de Controvérsias (DSU). A Austrália apoiou o
pedido da Ucrânia, sobretudo, porque a suspensão foi requerida " com vista a encontrar uma solução
mutuamente acordada". Entretanto, muitos dos pontos que foram levantados no referido Painel
permaneceram nos painéis estabelecidos por Honduras (DS435), República Dominicana (DS441),
Cuba (DS458) e Indonésia (DS467).
Se por um lado há os compromissos assumidos pela Austrália na esfera do SMC, por outro, há
as diretrizes estabelecidas pela CQCT. A implementação desta política pública de controle ao tabaco
está totalmente inserida entre as ações previstas pela Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco
(CQCT). Na verdade, a CQCT sugere aos seus países contratantes a adoção da padronização nas
embalagens de cigarros e dos demais derivados do tabaco. Entre os principais questionamentos
apresentados no âmbito do mecanismo de soluções de controvérsia da OMC, então, estão os que
analisam se a legislação australiana é excessivamente restritiva e/ou necessária para alcançar os
objetivos que trata de buscar - “desencorajar o uso de produtos do tabaco, e para propósitos
relacionados”. (AUSTRALIA, TPP Act, 2011)
É fato que as restrições, traduzidas através da impossibilidade da indústria tabagista continuar
a utilizar as suas marcas dos produtos de tabaco tal como foram originalmente registradas, tornaram
todas as embalagens de cigarros muito semelhantes. Isto diminuiu a capacidade distintiva destes
produtos entre concorrentes. Porém, o que neste momento deve ser posto é: tal restrição ao direito
marcário, ainda que questionado no âmbito do negociado pelo Acordo TRIPS, não encontraria a sua
justificativa na proteção do direito humano à saúde?
Assim, o objetivo do presente estudo é analisar o Painel Australia – Plain Packaging
Cigarettes, estabelecido no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) para questionar a lei
australiana que determinou que os cigarros deveriam ser vendidos em embalagens simples – livres de
cores, imagens, logotipos corporativos, em suma, de partes relevantes da identidade visual de sua
marca. Neste sentido, o artigo também busca perquirir sobre a influência das decisões alcançadas na
OMC nos demais membros da Organização que, já adoram ou planejam adotar legislações
semelhantes na busca da proteção do direito humano à saúde.
2 REFLEXÕES SOBRE A RELAÇÃO EXISTENTE ENTRE O CONSUMO DO TABACO E
SEUS DERIVADOS E A PUBLICIDADE PRESENTE NAS EMBALAGENS DE CIGARROS
1079
A indústria tabagista afirma que o interesse em manter o direito a ampla exploração de suas
marcas nos maços de cigarros não está associado ao desejo de atrair novos fumantes, mas de manter a
fidelidade daqueles que já são consumidores. (FREEMAN, CHAPMAN e RIMMER, 2008, p. 581)
Entretanto, representantes deste mesmo setor admitem que é muito difícil para uma pessoa distinguir
uma marca de cigarros da outra quando submetidos ao “teste cego”. (BAT, 1978) Neste mesmo
sentido, há estudos que apontam que 50% dos fumantes não conseguem perceber qualquer distinção
entre marcas quando expostos a este mesmo tipo de teste. (GERMAIN, 2010, p. 385)
No ano de 2015, valor estimado da marca Marlboro alcançou a cifra de US$ 21.9 bilhões
(FORBES, 2015), mesmo diante das medidas já adotadas por diferentes países voltadas para a
proibição da publicidade e promoção do tabaco. Assim, não é difícil perceber que a embalagem dos
maços de cigarros é um elemento imprescindível para atrair potencias consumidores e/ou manter os já
existentes. Ocorre que, diante de restrições que incluem a proibição de propagandas de cigarros na TV
e nos demais veículos de comunicação em massa – tais como, revistas, jornais, outdoors e rádios – e
do patrocínio de eventos culturais e esportivos, as embalagens dos maços de cigarros se tornaram o
principal veículo de promoção para a indústria do tabaco.
Assim, é claro que políticas públicas como a Plain Packaging Act 2011 - adotada pela
Austrália - preocupam a indústria tabagista. Esta exigiu a remoção de elementos relevantes da
identidade visual de marcas de cigarros exploradas pela indústria do setor, tais como cores, imagens e
logotipos. As únicas imagens agora permitidas nos maços de cigarros são as associadas aos riscos que
o consumo do produto impõe à saúde das pessoas, impressas em um fundo de uma única cor e com
nome da marca em uma fonte padronizada. Entretanto, a intenção que preconiza a implementação de
tais medidas é, justamente, inviabilizar aos fabricantes de cigarros a utilização de embalagens como
veículos de propaganda de seus produtos, buscando incentivar aos fumantes que deixem de fumar e
desencorajar os jovens que iniciem a fumar.
Entre as pesquisas que indicam evidências sobre o fato das embalagens simples de cigarros
reduzirem o apelo fumar, Moodie et al identificam aquelas que afirmam que cores e logotipos
distraem os consumidores e, assim, a falta destes faz com que os fumantes prestem mais atenção às
advertências de saúde presentes nos maços de cigarros. (2012, pp. 2-3) Nesta mesma linha, há as
constatações sobre as informações transmitidas através de embalagens que foram alcançadas com
observações, por exemplo, que indicam que as pessoas tendem a imaginar que os cigarros de
determinadas marcas, comercializados em embalagens claras e/ou com detalhes em dourado, são mais
suaves e/ou menos prejudiciais do que aqueles vendidos em pacotes vermelhos ou de cores mais
escuras, visto que estes últimos, normalmente, são utilizados por cigarros percebidos como fortes e/ou
mais nocivos à saúde. (MOODIE et al, 2012, pp. 58-70)
Esta preocupação sobre a influência da publicidade em embalagens de cigarros se agrava na
adolescência, visto que este é o período da vida em que as pessoas passam por uma fase de grandes
mudanças que, normalmente, incluem a suscetibilidade a comportamentos que buscam novas
experiências, ainda que estas envolvam a exposição a algum tipo de risco. Não por acaso, há estudos
que apontam “uma elevada prevalência de iniciação do consumo de tabaco em idades mais jovens”.
(CRISTINA, ALVES E PERELMAN, 2016, p. 74)
Assim, é inserido dentre deste contexto que busca a. o aumento da efetividade das
advertências à saúde; b. a redução da percepção de que há cigarros que que são menos lesivos do que
outros e; c. a redução do apelo publicitário das marcas, sobretudo entre jovens (HAMMOND et al,
2009), que a questão de legislações que tratam e implementar a obrigatoriedade na adoção de
embalagens simples para cigarros e demais derivados de tabaco se torna tão relevante e debatida.
Afinal, ainda que fosse possível aceitar colocações que assumem que o comportamento das
pessoas pode ser explicado por decisões tomadas racionalmente, a simples observação do relatado por
1080
muitos fumantes sobre a sua postura diante do hábito de fumar pode gerar uma série de reflexões. Na
verdade, o que parece certo é que a decisão de fumar e/ou se tornar um fumante pode ir muito além de
um gesto de vontade. Caso contrário, não haveria como explicar a razão para uma parcela tão
significativa da população mundial – já consciente dos malefícios do cigarro – escolher participar e se
manter num grupo que adota a prática do consumo de um produto que, invariavelmente, provoca
algum tipo de problema de saúde. Além disso, em discussões que envolvem medidas para o controle
do tabaco não se pode deixar de lado o fato do tabagismo também atingir os fumantes passivos e,
sobretudo, superonerar a sociedade através do custeio dos sistemas públicos de saúde.
3 ACORDO (TRIPS) E CONVENÇÃO-QUADRO PARA O CONTROLE DO TABACO
(CQCT): A OBSERVÂNCIA DE NORMAS QUE CORRELACIONAM COMÉRCIO E
SAÚDE
Com o surgimento da OMC, em 1995, o sistema multilateral de comércio (SMC) expandiu o
seu âmbito de regulamentação também para a área da propriedade intelectual. Houve, ainda, o
fortalecimento do seu mecanismo de solução de controvérsias, que tratou de possibilitar a aplicação de
sanções para os membros da organização que adotassem medidas entendidas como incompatíveis com
o negociado multilateralmente.
A legislação australiana tratou de impor uma série de limitações à apresentação de marcas
registradas, nos maços de cigarros comercializados em seu país. Contudo, a decisão da Austrália em
levar adiante as medidas adotadas através do Plain Packaging Act 2011 encontra respaldo nas
recomendações descritas pela CQCT. Na verdade, a legislação que impõe a adoção de embalagens
simples para cigarros está, sobretudo, baseada no previsto pelos artigos 11 e 13 do CQCT. Os
objetivos expostos para a adoção de tal legislação incluem: a. desencorajar o início da prática de fumar
e/ou da utilização de produtos derivados do tabaco, b. estimular os fumantes e/ou aqueles que já
utilizam outros produtos derivados do tabaco, abandonem tal práticas, c. prevenir as recaídas daquelas
pessoas que já pararam de fumar ou que deixaram de utilizar produtos derivados do tabaco e, de
reduzir a exposição das pessoas à fumaça do cigarro e demais produtos do tabaco. (AUSTRALIA,
TPP ACT, 2011) Nesse sentido, a adoção de medidas desenvolvidas para conter o apelo e as
estratégias publicitárias adotadas pela indústria tabagista, podem ter o condão de reduzir a atratividade
do cigarro (e do demais derivados do tabaco), sobretudo, para os consumidores jovens; aumentar a
clareza dos riscos que o consumo do cigarro traz para a saúde das pessoas e, assim, intensificar a
eficácia das advertências de saúde obrigatórias e; minimizar as chances as chances embalagens de
cigarros enganarem os consumidores sobre os efeitos nocivos do tabagismo ou o uso de produtos do
tabaco. (AUSTRALIA, TPP ACT, 2011)
De qualquer forma, para aqueles que são contra a adoção de tais medidas, antes do previsto
pela CQCT estão as provisões negociadas para o Acordo TRIPS, sobre a proteção do direito marcário.
Portanto, não surpreende que entre os principais pontos discutidos sobre o caso, no âmbito do
mecanismo de solução de controvérsias da OMC, estejam os que questionam se as medidas antitabaco
da Austrália são excessivamente restritivas e, se há, efetivamente, evidencias científicas que
comprovem que a adoção de embalagens simples para cigarros contribui para a redução do consumo
do tabaco.
O Acordo TRIPS em seu artigo 15.1 afirma que “[q]ualquer sinal, ou combinação de sinais,
capaz de distinguir bens e serviços de um empreendimento daqueles de outro empreendimento, poderá
constituir uma marca. Este mesmo artigo também refere que tanto palavras (nomes, combinações de
letras, etc.) quanto números, elementos figurativos ou, até mesmo, cores podem ser registradas como
marcas. Tal como previsto no próprio Acordo TRIPS, a Convenção União de Paris (CUP) também
deve ser considerada em questões relativas à proteção da propriedade industrial. (WTO, TRIPS, 1995,
1081
art. 2.2) Contudo, no que tange ao direito marcário esta não define marcas mas, somente, afirma que
são os seus países signatários os que deverão definir as condições que serão observadas em suas
legislações internas ou nacionais, para que sinais distintivos possam ser registrados como marcas.
(CUP, 1967, art. 6(b) )
Na doutrina, as marcas são, normalmente, classificadas quanto à sua apresentação em:
nominativas, figurativas, mistas e tridimensionais. Há, no entanto, a possibilidade de imaginar a
proteção de marcas que nem sempre são visualmente perceptíveis, por serem táteis, olfativas ou
sonoras, por exemplo. As marcas nominativas são aquelas formadas por letras latinas e/ou algarismos
arábicos ou romanos, cuja combinação pode formar uma ou mais palavras que já estejam ou não
incluídas no vernáculo. (BARBOSA, 2008, p. 23) As figurativas são as compostas por desenhos ou
combinações de figuras, símbolos gráficos, emblemas, ideogramas, etc. As marcas mistas apresentam
a combinação de elementos de marcas nominativas e figurativas, podendo também, serem a escrita
estilizada de uma determinada palavra ou palavras. (BARBOSA, 2008, p. 23) Por fim, as marcas
tridimensionais são aquelas caracterizadas pela forma de um produto (ou sua embalagem) se capaz de
distingui-lo de outros produtos semelhantes.
Entretanto, é importante compreender que nem todo sinal acima descrito deverá,
obrigatoriamente, ser registrado como marca. A Acordo TRIPS em seu artigo 15.2 permite que os
estados membros da OMC, por exemplo, não registrem como marcas expressões que entenderem
como ofensivas, contrárias à moral ou aos bons costumes.
Porém, o artigo 15.4 refere que “[a] natureza dos bens ou serviços para os quais se aplique
uma marca naõ constituirá, em nenhum caso, obstáculo a seu registro.”É, justamente este último artigo
referido que, tanto Honduras quanto República Dominicana, Cuba e Indonésia afirmam estar sendo
violado pela legislação antitabaco da Austrália. Conforme o que vem sendo afirmado por estes países,
o entendimento australiano de que o Plain Packaging Act 2011 não impossibilita o registro das marcas
e decorrência da natureza dos bens ou serviços, mas restringe o seu uso, está incorreto. (Cf.
DOMINICAN REPUBLIC, 2016, parag.8)
Além disso, há as reclamações apresentadas quanto à inobservância do previsto pelo artigo 16.
1 do TRIPS:
O titular de marca registrada gozará de direito exclusivo de impedir que terceiros,
sem seu consentimento, utilizem em operações comerciais. sinais idênticos. ou
similares para bens ou serviços que sejam idênticos ou similares àqueles para os
quais a marca está registrada, quando esse uso possa resultar em confusaõ . No caso
de utilizaçaõ de um sinal idêntico para bens e serviços idênticos presumir-se-á uma
possibilidade de confusaõ . Os direitos descritos acima não prejudicaraõ quaisquer
direitos prévios existentes, nem afetaraõ a possibilidade dos Membros reconhecerem
direitos baseados no uso.
Sobre este artigo, contudo, é possível traçar o seguinte comentário: “ o direito de marca não
oferece aos seus titulares um direito positivo de, realmente, permitir a utilização da expressão
protegida como marca, mas apenas a ius excludendi alios: i.e. o direito negativo de impedir que
terceiros utilizem a expressão protegida em questão.” (tradução livre) (ALEMANNO e BONADIO,
2011, P. 462)
O artigo 20 do TRIPS prevê que:
O uso comercial de uma marca naõ será injustificavelmente sobrecarregado com
exigências especiais, tais como o uso com outra marca, o uso em uma forma especial
ou o uso em detrimento de sua capacidade de distinguir os bens e serviços de uma
empresa daqueles de outra empresa. Esta disposiçaõ naõ impedirá uma exigência de
que uma marca que identifique a empresa produtora de bens e serviços seja usada
1082
juntamente, mas naõ vinculadamente, com a marca que distinga os bens e serviços
especı́ficos em questaõ daquela empresa.
Não surpreende que a interpretação da expressão “injustificavelmente sobrecarregado com
exigências especiais” seja complexa e controversa. Quando Honduras, República Dominicana, Cuba e
Indonésia alegam que o previsto no Plain Packaging Act 2011 desatende o compromisso firmado pela
Austrália diante do TRIPS, remete à constatação de que o objetivo deste artigo foi impedir que a
imposição de“exigências especiais” pelos membros da OMC tornassem excessivamente difícil o uso
de uma marca em seu curso comercial. (ALEMANNO e BONADIO, 2011, P. 463) No entanto, a
possibilidade de compreender as regras sobre as embalagens simples de cigarros adotadas pela
Austrália como “injustificavelmente sobrecarregado com exigências especiais”não é a única. Por um
lado, se admite que a substituição das embalagens convencionais de cigarros pelas embalagens simples
pode atacar a função da distintividade de uma marca. Embora o uso da marca em sua versão,
puramente, nominativa não seja atingida pela medida australiana, a capacidade distintiva do nome das
marcas de cigarros encontra uma relevante limitação quando confrontada com a proibição de ser
combinada com qualquer representação gráfica que não uma fonte específica, que também obedece a
um padrão de cor, tamanho e localização no maço de cigarros.
Entretanto, quanto estes tipos de argumentos são construídos para a interpretação do artigo 20
do TRIPS, parecem ignorar que este mesmo Acordo conta com flexibilidades para a implementação
daquilo que prevê em seus dispositivos. O artigo 8.1 do TRIPS dispõe, expressamente, que “[o]s
Membros, ao formular ou emendar suas leis e regulamentos, podem adotar medidas necessárias para
proteger a saúde e nutriçaõ públicas [...]”. Então, a legislação da Austrália poderá ser interpretada
como “justificável” se considerado que ela foi adotada para reduzir a prática do tabagismo e, assim,
proteger o direito humano à saúde de seus cidadãos. Ademais, tal como foi observado por Alemanno
e Bonadio, muitas outras medidas que implementam restrições à publicidade de cigarros e demais
derivados de tabaco foram adotadas por diferentes países – naturalmente, dentro de suas políticas
públicas voltadas para a proteção do direito à saúde – sem ensejar qualquer discussão sobre a sua
compatibilidade com o previsto pelo Acordo TRIPS. (2011, p. 465)
No caso do Brasil, por exemplo, há muitas limitações que já foram impostas à publicidade
associada ao tabaco através de legislações ou regulamentações nacionais. Neste sentido, a publicidade
de produtos derivados do tabaco está proibida no país em revistas, jornais, televisão, rádio e outdoors,
ainda que difundidas por meio eletrônico (inclusive Internet). Ademais, há a proibição das marcas de
produtos do Tabaco patrocinarem eventos desportivos – i.e. Lei n. 10.167 (27 de dezembro de 2000).
Ainda na esfera das negociações levadas adiante na OMC, a própria Declaração sobre o
Acordo TRIPS e Saúde Pública – Declaração de Doha (OMC, 2001), também deve ser considerada da
interpretação do previsto no artigo 20 do Acordo TRIPS. Ocorre que a Declaração prevê que os
estados membros da OMC reconhecem que ao aplicar as regras de interpretação costumeiras de direito
público internacional, cada provisão do Acordo TRIPS deve ser lida à luz do objetivo e propósito do
acordo como expressado, em particular, em seus objetivos e princípios contidos nos artigo 7 e 8.
(OMC, 2001, parág. 5.1)
Tal como ocorre com a legislação australiana aqui referida e questionada na OMC, a lei
brasileira e as demais semelhantes adotadas em outros países, também foram adotadas em
conformidade com o previsto pela CQCT. Na verdade, a implementação progressiva do previsto na
convenção de controle ao tabaco é o que deve ser esperado para a proteção da saúde. Atualmente, o
Brasil conta com um Projeto de Lei na Câmara do Deputados – PL n. 8303, 2014 e outro no Senado
Federal – PLS n. 769, 2015 que tratam de buscar estabelecer um padrão gráfico único das embalagens
de produtos do tabaco. É interessante perceber que o Brasil se encontra em uma posição peculiar,
diante de tantos interesses conflitantes que se apresentam sobre a implementação de legislações que
1083
impõem a adoção de embalagens simples para cigarros. Por um lado, o Brasil figura como terceiro
interessado, em todos os Painéis estabelecidos para questionar a postura adotada pela Austrália diante
dos compromissos que assumiu quando ratificou a CQCT. Neste mesmo sentido, não deixou de se
manifestar nos fóruns de discussão articulados no âmbito da OMC, favoravelmente, sobre a iniciativa
australiana. (DROPE e LENCUCHA, 2014, p. 616) Por outro lado, o Brasil figura como primeiro
exportador mundial de tabaco e terceiro produtor mundial de tabaco. (PORTAL DO TABACO, 2016)
É claro que a possibilidade de tensão entre comércio e saúde pública existe. Porém, diante um
número estimado de seis milhões de pessoas que morrem a cada ano em decorrência do cigarro e
demais derivados do tabaco (WHO, 2011), não é possível priorizar a proteção da saúde em detrimento
de questões comerciais? Aliás, o direito à saúde é parte de importantes documentos internacionais há
muito tempo e está previsto nos principais tratados internacionais de Direitos Humanos. Tanto a
Declaração Universal do Direitos Humanos (DUDH) – artigo 25 – quanto o Pacto Internacional sobre
o Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) – artigo 12 - exige dos Estados reconhecer o
direito de todos em dispor do mais alto padrão possível de saúde física e mental. Além disso, é
necessário ter presente que a adoção de uma norma internacional deve compreender expectativas de
um comportamento padrão de atores internacionais chave, que incluem mas não estão,
necessariamente, limitados aos Estados (FINNEMORE E SIKKINK ,1998 apud DROPE e
LENCUCHA, 2014, p. 596). Entretanto, mesmo com a adoção de políticas de controle ao tabaco
baseadas em preocupações que se firmam na proteção da saúde pública, muitos países continuam a
lutar com os custos impostos pelo consumo de produtos do tabaco tanto em termos financeiros quanto
humanos.
4 CONCLUSÃO
Independentemente da iniciativa ucraniana de requerer a suspensão do painel que estabeleceu
em 2012, a legislação antitabaco adotada pela Austrália será analisada no mecanismo de solução de
controvérsias da OMC. Afinal, os pontos sobre o direito marcário, inicialmente, questionados pela
Ucrânia permaneceram nos painéis estabelecidos por Honduras, República Dominicana, Cuba e
Indonésia. Nesse sentido, o desfecho do caso Australia -Plain Packaging Cigarettes é esperado para o
ano de 2016 e significará um divisor de águas na busca do alinhamento de posições, normalmente
dicotômicas, sobre a preservação de interesses comerciais e a proteção do direito à saúde.
Há a possibilidade da Austrália ter sucesso na apresentação das decisões aos Painéis referidos
no artigo, sendo justificada a eventual restrição ao direito marcário em favor da proteção do direito
humano à saúde - que poderá ter como base tanto a interpretação contextual do TRIPS à luz de seus
objetivos e propósitos quanto as diretrizes estabelecidas para o controle no tabaco previstas na CQCT.
Desta forma, países que assumiram compromissos em ambos âmbitos internacionais – comércio e
saúde pública – poderão implementar políticas públicas que priorizem a proteção da saúde de suas
populações em detrimento de interesses essencialmente comerciais, sem a preocupação de serem
questionado diante do mecanismo de solução de controvérsias da OMC.
Nesse sentido, a demora em uma decisão para os painéis estabelecidos na OMC pode trazer
vantagens. Esta poderia prover o tempo necessário para que maiores evidencias sobre os efeitos
positivos da implementação da legislação australiana fossem produzidas. Assim, interesses associados
ao comércio e à saúde poderiam ter os seus argumentos alinhados e, também as diretrizes da CQCT
contariam com efetiva legitimidade e justificariam a adoção pelos membros da OMC – partes
contratantes tanto do TRIPS quanto da CQCT – de legislações semelhantes à adotada pela Austrália e
que, por enquanto ainda são desafiadas, apesar de buscarem a proteção do Direito Humano à saúde.
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1084
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1086
A TEORIA DO FATO INDÍGENA E SUA REPERCUSSÃO NA TUTELA DOS DIREITO À
TERRA E À DIFERENÇA DAS POPULAÇÕES INDÍGENAS DO BRASIL
Brunna Grasiella Matias Silveira1
RESUMO: O Supremo Tribunal Federal, ao formular a teoria do fato indígena a fim de regulamentar
a demarcação das terras indígenas, estabeleceu, além do critério da ocupação tradicional, a presença
indígena na terra reivindicada na data de promulgação da Constituição Federal de 1988, qual seja, 05
de outubro de 1988, ressalvadas as situações de renitente esbulho devidamente comprovadas. A
pesquisa tem o propósito de analisar a repercussão da teoria do fato indígena na efetividade dos
direitos à terra e à diferença das populações indígenas do Brasil, com base nas decisões recentes do
STF. Inicialmente aborda-se a configuração dos direitos indígenas à luz da CF/1988. Em seguida,
expõe-se a teoria do fato indígena, desde a sua elaboração no caso Raposa Serra do Sol até os seus
contornos mais atuais. Em seguida, apresenta-se a aplicação dessa teoria e analisa-se a sua
repercussão. A pesquisa empreendida será de natureza qualitativa e do tipo bibliográfica e documental
– consulta a livros, artigos, teses, dissertações, periódicos, jurisprudências, entre outras obras da
literatura jurídica e não jurídica. Constatou-se que, na prática, o fato indígena tem obstaculizado a
efetividade do direito à terra e, por conseguinte, do direito à diferença, pois não há como preservar a
identidade sem garantir a terra. Por fim, conclui-se ser a teoria do fato indígena inconstitucional, visto
que ela não está prevista nem implícita nem expressamente na Constituição Federal de 1988.
PALAVRAS-CHAVE: Terra; Identidade; Fato Indígena; Brasil.
1 INTRODUÇÃO
O Supremo Tribunal Federal formulou a teoria do fato indígena a fim de regulamentar a
demarcação das terras indígenas, estabelecendo, além do critério da ocupação tradicional, a presença
indígena na terra reivindicada na data de promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/1988),
qual seja, 05 de outubro de 1988.
No presente trabalho busca-se analisar a repercussão da teoria do fato indígena na efetividade
dos direitos à terra e à diferença das populações indígenas do Brasil, com base nas decisões recentes
do STF.
Para tanto, inicialmente aborda-se a configuração dos direitos indígenas à luz da CF/1988. Em
seguida, expõe-se a teoria do fato indígena, desde a sua elaboração no caso Raposa Serra do Sol até os
seus contornos mais atuais.
Por fim, conclui-se buscando apontar a repercussão da teoria estudada na efetivação dos
direitos à terra e à diferença, bem como a conformidade da teoria do fato indígena com a CF/1988.
A pesquisa empreendida será de natureza qualitativa e do tipo bibliográfica e documental –
consulta a livros, artigos, teses, dissertações, periódicos, jurisprudências, entre outras obras da
literatura jurídica e não jurídica.
2 OS DIREITOS INDÍGENAS NA CONTEMPORANEIDADE: DESMISTIFICANDO (PRÉ-)
CONCEITOS E RECONHECENDO A DIFERENÇA
A legislação indigenista brasileira até o advento da CF/1988 dispensava ao índio tratamento
marcado pela inferiorização de sua identidade. A própria palavra “índio”, empregada desde o
1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará, área de concentração
Ordem Jurídica Constitucional; [email protected].
1087
“descobrimento” do nosso país para designar indistintamente os nativos das várias etnias que aqui
viviam, revelava a indiferença em relação a estes indivíduos.
De fato, desde os tempos da colonização, as normas pertinentes ao tema revezavam-se no
embasamento de políticas estatais integracionistas ou assimilacionistas, assim entendidas as diretrizes
oficiais cujo objetivo primordial consistia na dispersão de um universo cultural em outro considerado
superior, não existindo, portanto, interações entre ambos, mas a supervalorização de um em
detrimento do outro. Por conseguinte, à luz de tais políticas, o índio era visto como indivíduo em
caráter transitório, o qual, através da convivência com a civilização, abandonaria seus costumes
selvagens, bárbaros. E mais: mesmo em face da heterogeneidade cultural indígena, as políticas
indigenistas não eram dotadas de flexibilidade para lidar com as especificidades das diversas etnias.
Evidentemente, a postura adotada pelo Estado em relação aos povos indígenas não se resume à
questão cultural da predominância de uma visão etnocêntrica herdada do colonizador europeu, mas,
sobretudo, revela a necessidade sentida pelas autoridades governamentais, ao longo de nossa História,
de exercer um firme controle repressivo sobre esses grupos, os quais, dotados de características
peculiares destoantes do modelo de regulação da vida social imposto ao restante da população,
constituíam uma ameaça à exploração das terras, dos recursos e da própria mão-de-obra indígena.
A Carta Política de 1988 representa um marco importante na mudança da compreensão dos
direitos desses povos, tendo em vista a renúncia ao caráter integracionista observado nos preceitos
normativos de até então.
O início da década de 1970 foi o período a partir do qual ocorreu o fortalecimento do
Movimento Indígena no cenário mundial, impulsionado pela Igreja Católica e pela articulação dos
índios entre si, através de suas lideranças, formando organizações e associações próprias. Assim, a
ascensão do Movimento Indígena pode ser entendida a partir da congregação de dois fatores: a atuação
do Movimento Indigenista, notadamente – mas não exclusivamente - setores ligados à Igreja Católica
e a iniciativa crescente dos índios em discutir seus interesses.
No Brasil, os reclames por uma alternativa ao indigenismo tradicional desencadearam a
reformulação do Movimento Indigenista Nacional. Sílvio Coelho dos Santos destaca a reorganização
da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a qual, segundo o autor, permitiu o estabelecimento
de bases para a atividade dos profissionais interessados nos direitos das sociedades indígenas,
engajados na dita “Antropologia Comprometida” - postura adotada por profissionais da área
correspondente à produção de conhecimento comprometida com “o uso do espaço público para a
defesa das populações estudadas” (SILVA, 2003, p.9) - e a criação do Conselho Indigenista
Missionário (CIMI), em 1972, órgão vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(SANTOS, 1989, p.35).
Essa mudança de postura da Igreja Católica em relação à causa indígena, evidenciada com a
criação do CIMI, foi influenciada em grande parte pelas severas críticas recebidas em virtude dos
inúmeros exemplos de práticas anti-indígenas em que aquela instituição esteve envolvida, mormente
no que diz respeito à colonização do Brasil. O objetivo da Igreja com o CIMI foi promover a
articulação das diversas etnias, apoiando a realização de reuniões e assembleias. Atualmente o CIMI
constitui também importante centro de estudo na área, possuindo numerosa equipe de missionários e
assessores trabalhando junto às comunidades (CIMI, 2016).
Além do estímulo da Igreja e da sociedade civil, o surgimento de articulações indígenas
abrange o fato de os próprios índios perceberem o potencial da sua atuação conjunta, uma vez que
havia confluência entre as reivindicações das comunidades em todo o país, possibilitando a formação
de uma pauta em comum, de um projeto coletivo frente ao integracionismo desenfreado.
O Movimento Indígena organizado, assim entendido “o conjunto de estratégias e ações que as
comunidades e as organizações indígenas desenvolvem em defesa de seus direitos e interesses
1088
coletivos” (LUCIANO, 2006, p.58), compõe-se, na realidade, de “movimentos indígenas”, porquanto
cada comunidade ou etnia possui sua maneira peculiar de mobilização.
Uma das primeiras organizações formais pan - indígenas, criada em 1980, foi a União das
Nações Indígenas (LUCIANO, 2006, p.78). Hoje, existem inúmeras organizações indígenas em todo
o Brasil, como Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito
Santo (APOINME) e Coordenação das Organizações dos Povos Indígenas do Ceará (COPICE),
apenas para citar algumas.
O ápice da efervescente trajetória vivenciada pelos Movimentos Indigenista e Indígena nas
décadas de 70 e 80 veio com a derrocada do regime ditatorial e a mobilização em torno da Assembleia
Nacional Constituinte de 1987/1988. Ali se esboçava a oportunidade de inaugurar uma política
sensível e atenta às necessidades dos povos indígenas, substitutiva ao integracionismo. Ademais, era o
momento também de demonstrar que os índios estavam organizados e conscientes da função de
protagonistas de suas próprias lutas.
Nesse contexto, o Movimento Indígena, apoiado por seus parceiros, atuou através de várias
estratégias face aos interesses das classes dominantes da sociedade brasileira, bem como do capital
internacional contrários às suas aspirações - os quais se faziam representar junto aos congressistas como protestos, coleta de assinaturas para a apresentação de emenda popular propondo a criação de
um capítulo específico para as populações indígenas e a apresentação de uma proposta de artigos
referentes aos direitos dos índios à Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Deficientes e
Minorias (QUEIROZ, 2010, p.38-39).
Após intensas articulações e negociações entre Movimento e Congresso, o resultado foi a
inserção, na Carta Magna, de um capítulo exclusivo sobre direitos indígenas, o qual, apesar de conter
poucos dispositivos, informa preceitos importantes para a proteção da diversidade sociocultural
indígena, além de outras normas ao longo do texto e nas disposições transitórias.
3 DIREITOS INDÍGENAS NA CONSTITUIÇÃO CIDADÃ DE 1988: O PARADIGMA DA
INTERAÇÃO EM UMA SOCIEDADE PLURIÉTNICA E MULTICULTURAL
Anteriormente, apontou-se a CF/88 como um marco da compreensão dos direitos indígenas na
atualidade, salientando o fato de o novel texto constitucional não mais tratar a questão indígena sob
uma visão integracionista.
A CF/88 destaca-se por ser a primeira já promulgada em nosso país a destinar um capítulo
específico aos índios, o Capítulo VIII, do Título VIII, Da Ordem Social. Reza o art.231, caput, da
CF/88: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e
os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las,
proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
Da redação do referido dispositivo constitucional extrai-se o cerne dos direitos indígenas na
contemporaneidade: o reconhecimento da diferença enquanto fator a justificar a garantia de uma série
de direitos específicos aos índios e da terra enquanto espaço vital para o exercício e preservação dessa
diferença. Assim, a relevância atribuída à diferença na Constituição de 1988 inaugura o paradigma da
interação, concebendo a sociedade brasileira como pluriétnica e multicultural, na qual todos os grupos
devem ser respeitados (LEITÃO, 1993, p.228).
O direito à diferença corresponde a uma expressão do princípio constitucional da igualdade,
significando dizer que aos índios deve ser assegurado o direito de viver de acordo com as suas
especificidades socioculturais.
A questão da identidade indígena é tema complexo, havendo uma identidade política e uma
identidade étnica (LUCIANO, 2006, p.40). A primeira refere-se à articulação de todas as etnias em
prol da reivindicação de interesses comuns, que os anima, por exemplo, a formar o Movimento
1089
Indígena. Já a segunda diz respeito às especificidades de cada etnia. Para fins de tutela constitucional,
faz-se necessária a definição da identidade étnica, sendo atualmente mais aceito, do ponto de vista
antropológico, o conceito obtido a partir da auto-identificação, o qual possui duas dimensões, uma
individual e outra coletiva.
Pelo parâmetro da auto-identificação, considera-se índio quem se identifica como pertencente
a uma comunidade indígena (dimensão individual) e é pela mesma reconhecido como membro
(dimensão coletiva). Portanto, o índio e sua comunidade são indissociáveis, motivo pelo qual a
CF/1988 garante direitos individuais e coletivos, assegurando-lhes, no art. 231, sua organização social,
costumes, línguas, crenças, tradições e os direitos originários sobre as terras tradicionalmente
ocupadas.
Ademais, o art. 232 legitima índios, comunidades e organizações indígenas para a defesa
judicial de seus direitos e interesses - ou seja, mesmo o índio enquanto indivíduo pode postular direito
coletivo da comunidade a que pertence-, impondo ao Ministério Público o dever de intervenção em
todas as fases do processo.
No tocante à garantia da organização social, reconhece o legislador constituinte o direito à
autodeterminação, entendido como a prerrogativa que cada comunidade indígena tem de viver de
acordo com as normas derivadas do próprio grupo sobre as suas relações de família, propriedade,
casamento, condutas antissociais, entre outros aspectos.
Os direitos originários remontam aos índios como primeiros senhores das terras, ou seja, os
direitos dos índios sobre as terras são anteriores ao Direito oficial, o Estado apenas cuidou de
reconhecê-los. O indigenato é comumente apontado como a fonte primária desses direitos, ou seja, a
própria condição de ser índio e, por isso, os direitos originários seriam considerados direitos
congênitos (TOURINHO NETO, 1993, p.40).
A terra é na verdade uma extensão da diferença, uma vez que é nela onde a comunidade se
desenvolve, reproduz seus costumes, enfim, é o espaço vital para o exercício da identidade indígena,
primordial à sobrevivência física e cultural dos índios. Explica Gersem dos Santos Luciano:
Território é condição para a vida dos povos indígenas, não somente no sentido de
um bem material ou fator de produção, mas como o ambiente em que se
desenvolvem todas as formas de vida. Território, portanto, é o conjunto de seres,
espíritos, bens, valores, conhecimentos, tradições que garantem a possibilidade e o
sentido da vida individual e coletiva. A terra é também um fator fundamental de
resistência dos povos indígenas. É o tema que unifica, articula e mobiliza todos, as
aldeias, os povos e as organizações indígenas, em torno de uma bandeira de luta
comum que é a defesa de seus territórios (LUCIANO, 2006, p.101).
Do ponto de vista jurídico, a terra indígena configura uma categoria peculiar de bem público,
na qual a propriedade cabe à União (art.20, XI) e a posse permanente e o usufruto exclusivo das
riquezas do solo, dos rios e dos lagos nela existentes, à coletividade indígena (art.231, §2º). Em virtude
dessa natureza jurídica sui generis da terra indígena, o direito de posse indígena transfigura o domínio
da União para uma espécie de propriedade vinculada ou reservada e, por isso, são terras inalienáveis e
indisponíveis, e o direito sobre elas imprescritíveis (SILVA, 1993, p.46).
A posse fundada no direito originário explica os §§ 3º, §5º e 6º, os quais, em suma, vedam o
aproveitamento dos recursos das terras indígenas, a remoção dos índios de suas terras e a produção de
efeitos jurídicos de atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras
tradicionalmente ocupadas ou a exploração de seus recursos, ressalvados os casos previstos na
Constituição.
Por sua vez, as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, nelas compreendidas as
habitadas em caráter permanente – nesse contexto o termo permanente não significa imemorialidade,
1090
ocupação pretérita, mas “uma garantia para o futuro, no sentido de que essas terras inalienáveis e
indisponíveis são destinadas, para sempre, ao seu habitat” (SILVA,1993, p.50) - , as utilizadas para as
atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao bemestar da comunidade e as necessárias à reprodução física e cultural, são aquelas utilizadas de acordo
com seus usos, costumes e tradições. Explica José Afonso da Silva que:
Terras tradicionalmente ocupadas não revela aí uma relação temporal. Se
recorrermos ao Alvará de 1º de abril de 1680 que reconhecia aos índios as terras
onde estão tal qual as terras que ocupavam no sertão, veremos que a expressão
ocupadas tradicionalmente não significa ocupação imemorial. Não quer dizer, pois,
terras imemorialmente ocupadas, ou seja: terras que eles estariam ocupando desde
épocas remotas que já se perderam na memória e, assim, somente estas seriam as
terras deles. [...] O tradicionalmente refere-se não a uma circunstância temporal, mas
ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo
tradicional de produção, enfim, ao modo tradicional de como eles se relacionam com
a terra, já que há comunidades mais estáveis, outras menos estáveis, e as que têm
espaços mais amplos em que se deslocam etc. Daí dizer-se que tudo se realiza
segundo seus usos, costumes e tradições (SILVA, 1993, p.47-48).
Além de reconhecer os direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios, compete à União demarcá-las e fazer respeitar todos os seus bens. O processo administrativo
de demarcação, regulado pelo Decreto nº 1.775, de 8 de janeiro de 1996, é realizado por equipe técnica
especializada sob orientação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e tem por escopo delimitar a
área indígena e também proteger a posse indígena de terceiros. A demarcação é ato meramente
declaratório, pois, como visto, o que justifica a posse indígena é o direito originário.
4 A TEORIA DO FATO INDÍGENA FORMULADA PELO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL
Afirmou-se anteriormente que a terra representa para o índio o espaço vital para o exercício de
sua identidade. Assim, o direito à terra deve ser compreendido à luz do direito à diferença, pois é este
o núcleo dos direitos indígenas na Constituição Federal de 1988.
Abordou-se também que o procedimento demarcatório é o instrumento apto a delimitar a área
indígena, bem como a proteger a posse indígena de terceiros. A demarcação teve seus contornos
jurídicos delineados no julgamento da Petição 3388/RR, ação popular ajuizada no Supremo Tribunal
Federal (STF) com o fulcro de impugnar o modelo contínuo de demarcação da Terra Indígena Raposa
Serra do Sol, em Roraima. Em seu voto, o Ministro Menezes Direito sugeriu a teoria do fato indígena
para regulamentar a matéria, propondo, para a configuração do direito originário à terra, além da
ocupação tradicional, a presença indígena na terra reivindicada na data de promulgação da
Constituição Federal (05/10/1988).
A teoria do fato indígena, citada no voto-vista do Ministro Menezes Direito, integrou o
dispositivo da decisão proferida pelo relator do processo, Ministro Carlos Ayres Britto, sendo
sistematizada da seguinte forma na ementa do julgado:
[...] 11. O CONTEÚDO POSITIVO DO ATO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS
INDÍGENAS. 11.1. O marco temporal de ocupação. A Constituição Federal
trabalhou com data certa —— a data da promulgação dela própria (5 de outubro de
1988) —— como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um
determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o
reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam. 11.2. O marco da tradicionalidade da ocupação. É preciso
que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o
1091
caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade
etnográfica. A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao
tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por
efeito de renitente esbulho por parte de não-índios. Caso das “fazendas” situadas na
Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja ocupação não arrefeceu nos índios sua
capacidade de resistência e de afirmação da sua peculiar presença em todo o
complexo geográfico da “Raposa Serra do Sol”. 11.3. O marco da concreta
abrangência fundiária e da finalidade prática da ocupação tradicional. Áreas
indígenas são demarcadas para servir concretamente de habitação permanente dos
índios de uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas para suas atividades
produtivas, mais as “imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais
necessários a seu bem-estar” e ainda aquelas que se revelarem “necessárias à
reprodução física e cultural” de cada qual das comunidades étnico-indígenas,
“segundo seus usos, costumes e tradições” (usos, costumes e tradições deles,
indígenas, e não usos, costumes e tradições dos não-índios). Terra indígena, no
imaginário coletivo aborígine, não é um simples objeto de direito, mas ganha a
dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda
coetaneidade e toda posteridade de uma etnia. Donde a proibição constitucional de
se remover os índios das terras por eles tradicionalmente ocupadas, assim como o
reconhecimento do direito a uma posse permanente e usufruto exclusivo, de parelha
com a regra de que todas essas terras “são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos
sobre elas, imprescritíveis” (§ 4º do art. 231 da Constituição Federal). O que termina
por fazer desse tipo tradicional de posse um heterodoxo instituto de Direito
Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil. Donde a clara intelecção
de que OS ARTIGOS 231 E 232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL CONSTITUEM
UM COMPLETO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA. 11.4. O
marco do conceito fundiariamente extensivo do chamado “princípio da
proporcionalidade”. A Constituição de 1988 faz dos usos, costumes e tradições
indígenas o engate lógico para a compreensão, entre outras, das semânticas da posse,
da permanência, da habitação, da produção econômica e da reprodução física e
cultural das etnias nativas. O próprio conceito do chamado “princípio da
proporcionalidade”, quando aplicado ao tema da demarcação das terras indígenas,
ganha um conteúdo peculiarmente extensivo. [...] (Pet 3388, Rel.Min.Carlos Britto.
DJe-181, divulgado em 24 de set. 2009. Publicado em 25 de setembro de 2009)
A teoria do fato indígena abrange assim os dois primeiros “marcos” a serem comprovados no
âmbito dos processos de demarcação.
Quanto ao marco temporal, para o STF, apenas as comunidades indígenas que ocupavam as
terras reivindicadas à época da data da promulgação da Constituição, 05 de outubro de 1988, terão
assegurado o direito à terra e, por conseguinte, à demarcação dos respectivos territórios.
Questiona-se, contudo, o marco temporal. Primeiramente, frise-se que não há menção no texto
constitucional, especificamente no art.231, a qualquer data condicionante da ocupação indígena para
fins de demarcação. A tese do marco temporal advém exclusivamente do entendimento firmado em
sede jurisprudencial.
Importante notar que o constituinte originário, ainda no trato da temática da demarcação,
definiu, no art.67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o lapso de cinco anos a partir
da promulgação da Constituição para a conclusão da demarcação das terras indígenas, ou seja, quando
o constituinte originário dispôs sobre o fator tempo em matéria de demarcação o fez expressamente.
Por que não fazê-lo também quando da redação do art.231?
Poder-se-ia afirmar ainda que a interpretação conjunta dos arts.231 e 67 do ADCT reforçaria o
marco temporal. Igualmente discorda-se desse raciocínio, pois os respectivos comandos orientam na
verdade o Estado a identificar as terras indígenas que já existiam e a demarcá-las no prazo de cinco
anos para resolver as disputas territoriais que, até 1988, já eram bastante acirradas. Partir do
pressuposto de que o objetivo de tais dispositivos é represar o direito territorial no tempo, como se ele
não pudesse ser exercido pós-1988, mesmo onde há ocupação tradicional, é admitir o tratamento
1092
desigual de comunidades indígenas merecedoras da mesma proteção constitucional. Desta forma, "não
se realizou apenas uma interpretação esclarecedora do texto constitucional, encerrou-se, sim, qualquer
possibilidade de a norma constitucional se desenvolver junto com a sociedade múltipla e plural"
(NÓBREGA, 2011, p.274).
Opondo-se ao marco temporal, apresenta José Afonso da Silva dois argumentos. O primeiro
consiste na ausência de citação expressa do marco temporal no texto constitucional, como já
salientamos. O segundo consubstancia-se no fato de que, ainda que seja possível aferir um marco
temporal, ele seria 16 de julho de 1934, data da promulgação da Constituição de 1934, primeira
Constituição Brasileira a consagrar o direito originário às terras tradicionalmente ocupadas,
consagração replicada nas Constituições seguintes, até a de 1988 (SILVA, 2015 ou 2016, p.9-10).
Quanto ao segundo marco, o da tradicionalidade, este é complementar ao primeiro, de modo
que, apenas verificado o "fato indígena" da ocupação efetiva em 05 de outubro de 1988 é que se
empreende a verificação da tradicionalidade da ocupação, ou seja, da relação do índio com a terra
conforme seus usos, costumes e tradições.
A tradicionalidade da ocupação, para a Suprema Corte, envolve também o caráter de
perdurabilidade de presença geográfica com o intuito de continuidade da etnia. A exceção à exigência
da perdurabilidade seria apenas o renitente esbulho.
No tocante ao renitente esbulho, tal conceito foi elucidado com mais precisão no bojo do ARE
803462, recurso extraordinário com agravo no qual foi impugnada decisão do Tribunal Regional
Federal da 3ª Região que deixou de aplicar o marco temporal em função do renitente esbulho,
declarando a regularidade da demarcação da Terra Indígena Limão Verde do povo Terena, município
de Aquidauana, Mato Grosso do Sul, homologada desde 2003.
Com base nos estudos antropológicos da FUNAI, constatou o TRF 3 que os Terena perderam
a posse de seu território por terem sido expulsos progressivamente por não índios, muito embora
tenham permanecido nas imediações da Fazenda Santa Bárbara - como passou a ser denominada a
região - e preservado o seu modo tradicional de vida. Ademais, os Terena ofereceram três reclamações
a órgãos públicos denunciando a invasão de suas terras 1982, 1984 e 1989, como consta no inteiro teor
do acórdão.
Entendeu o Supremo, todavia, que as reclamações dos índios Terena não caracterizavam um
renitente esbulho, tendo a presença indígena da região cessado em meados de 1953, momento bem
anterior ao marco temporal. E, aplicando a Súmula 650, segundo a qual o conceito de terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios não abrange aquelas que eram ocupadas pelos nativos no
passado, julgou a demanda nos seguintes termos:
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. TERRA INDÍGENA “LIMÃO
VERDE”. ÁREA TRADICIONALMENTE OCUPADA PELOS ÍNDIOS (ART.
231, § 1º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL). MARCO TEMPORAL.
PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. NÃO CUMPRIMENTO.
RENITENTE ESBULHO PERPETRADO POR NÃO ÍNDIOS: NÃO
CONFIGURAÇÃO.
1. O Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Pet 3.388, Rel. Min.
CARLOS BRITTO, DJe de 1º/7/2010, estabeleceu como marco temporal de
ocupação da terra pelos índios, para efeito de reconhecimento como terra indígena, a
data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988.
2. Conforme entendimento consubstanciado na Súmula 650/STF, o conceito de
“terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” não abrange aquelas que eram
possuídas pelos nativos no passado remoto. Precedente: RMS 29.087, Rel. p/
acórdão Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJe de 14/10/2014.
3. Renitente esbulho não pode ser confundido com ocupação passada ou com
desocupação forçada, ocorrida no passado. Há de haver, para configuração de
esbulho, situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado,
ainda persista até o marco demarcatório temporal atual (vale dizer, a data da
1093
promulgação da Constituição de 1988), conflito que se materializa por
circunstâncias de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória
judicializada.
4. Agravo regimental a que se dá provimento.
(ARE 803462 AgR, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado
em 09/12/2014, DJe-029, divulgado em 11 fev 2015. Publicado em 12 fev 2015)
Assim, renitente esbulho é um conflito que, mesmo iniciado no passado, persiste até o marco
temporal (05/10/1988), seja de maneira fática ou judicializada.
Dissemos que, ao longo de nossa História, o Estado empreendeu um controle repressivo sobre
os povos indígenas, visando integrá-los à sociedade nacional. Desde a promulgação da CF/1988, o
projeto de integração cessou enquanto política oficial, muito embora ainda seja um desafio para os
povos indígenas a afirmação de suas identidades, individuais e, sobretudo, coletivas.
É importante destacar que a integração ocorreu de forma extremamente violenta, física (com o
sacrifício de milhões de vidas) e psicologicamente (via imposição de uma cultura alheia). No entanto,
sempre houve resistência indígena a esse inexorável processo, seja por meio de embates armados
contra o Estado e/ou contra os não índios - obviamente em desigualdade de condições -, seja, ainda
que cedendo a pressões para abandonar seus territórios, por meio da autoafirmação cultural.
Com efeito, nem todas as populações indígenas, enquanto coletividades organizadas,
conseguiram permanecer em suas terras. Existem as que foram dissolvidas, pulverizando-se no
território nacional; existem as que permaneceram renitentes à margem ou em espaços reduzidos de
suas antigas posses.
Também é fato que as populações indígenas foram direta ou indiretamente expulsas de seus
territórios. O relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), apresentado em 2014, denuncia as
graves violações dos direitos indígenas no período compreendido entre 1946 e 1988, seja por omissão
do Estado, proliferando-se condições propícias ao esbulho das terras indígenas em favor de interesses
privados, seja por ação direta, com as suas violentas políticas. Segundo a referida comissão:
Em síntese, pode-se dizer que os diversos tipos de violações dos direitos humanos
cometidos pelo Estado brasileiro contra os povos indígenas no período aqui descrito
se articularam em torno do objetivo central de forçar ou acelerar a “integração” dos
povos indígenas e colonizar seus territórios sempre que isso foi considerado
estratégico para a implementação do seu projeto político e econômico (CNV, 2014,
p.250).
A CNV destinou um ponto específico do relatório ao esbulho das terras indígenas e, a esse
respeito, fez as seguintes recomendações ao Estado Brasileiro:
- Regularização e desintrusão das terras indígenas como a mais fundamental forma de
reparação coletiva pelas graves violações sofridas pelos povos indígenas no período
investigado pela CNV, sobretudo considerando-se os casos de esbulho e subtração
territorial aqui relatados, assim como o determinado na Constituição de 1988.
- Recuperação ambiental das terras indígenas esbulhadas e degradadas como forma de
reparação coletiva pelas graves violações decorrentes da não observação dos direitos
indígenas na implementação de projetos de colonização e grandes empreendimentos
realizados entre 1946 e 1988. (CNV, 2014, p.254)
A constatação de que o esbulho das terras indígenas ocorreu, direta ou indiretamente (via
omissão) pelo Estado não é nova, mas o fato de ela ter sido veiculada no relatório da CNV é relevante
em um momento no qual a configuração do esbulho está sendo discutida em virtude das recentes
decisões da mais alta corte judiciária do país.
1094
Em virtude de todo o exposto, como exigir dos povos indígenas a sustentação de um conflito
até a data da promulgação da CF/1988, se foi justamente com a redemocratização do país e com a
ascensão de uma nova ordem constitucional que os índios foram inseridos em um contexto mais
favorável à sua sobrevivência e lograram uma proteção mais efetiva de seus direitos, podendo
inclusive ingressar em juízo para defendê-los?
Com efeito, esses questionamentos não são esclarecidos pela teoria do fato indígena, cuja
aplicação não favoreceu a pacificação das situações reais de conflitos entre índios e não índios,
gerando ainda mais insegurança jurídica para todos os envolvidos.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A fim de romper com a política integracionista violenta e opressora das populações indígenas,
o Estado consagrou, quando da promulgação da CF/1988, o paradigma da interação, conferindo aos
índios a proteção constitucional às suas identidades e aos seus territórios e, sobretudo, garantindo que
permaneçam enquanto grupos diferenciados na sociedade pluriétnica e multicultural brasileira.
A identidade é o núcleo dos direitos indígenas, sendo o fundamento de todos os direitos
específicos. Assim, a interpretação e a efetivação dos direitos indígenas deverão sempre estar pautadas
na garantia da identidade, no direito dos índios de serem índios e de permanecerem como tais.
Dentre os direitos indígenas, o direito à terra destaca-se na atualidade por dois principais
motivos: garantir às populações um espaço para sobrevivência física e cultural e envolver disputas por
territórios.
Na esfera administrativa, a efetivação do direito à terra indígena constitui desafio para o Poder
Estatal, tendo em vista que ocorre por meio de um processo administrativo complexo. Na esfera
judicial, essa dificuldade de efetivação é reproduzida. O Supremo Tribunal Federal firmou a teoria do
fato indígena, a qual, como estudado, estabelece um marco temporal para a ocupação indígena (05 de
outubro de 1988) como requisito para a demarcação da terra, requisito este flexibilizado apenas em
casos de renitente esbulho.
A teoria do fato indígena foi criticada neste trabalho pela falta de previsão expressa do marco
temporal na Constituição, implementando o STF uma interpretação excessivamente restritiva do
direito à terra, direito este originário e assegurado em Constituições anteriores. Igualmente carece de
previsão constitucional o renitente esbulho, o qual deve ser revisto à luz da História, que demonstra
terem sido as populações indígenas compulsoriamente retiradas de suas terras, de forma direta ou
indireta (via omissão) pelo Estado e por não índios.
Por todo o exposto, concluímos esse trabalho entendendo ser inconstitucional a teoria do fato
indígena, visto que ela não está prevista nem implícita nem expressamente na Constituição Federal de
1988. Na prática, o fato indígena tem obstaculizado a efetividade do direito à terra e, por conseguinte,
do direito à diferença, pois, como visto, não há como preservar a identidade sem garantir a terra.
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