Contribuições para uma reflexão Epistemológica e

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Contribuições para uma reflexão Epistemológica e Axiológica sobre
Sociologia e o Direito
Márcio José Pella1
RESUMO: O artigo faz uma reflexão sobre as influências do Positivismo Filosófico no
surgimento da Sociologia e no seu desdobramento como ciência. Procura observar o Direito e
sua relação com a sociedade, bem como o trabalho da Sociologia Jurídica no estudo dessa
relação. Elege o Direito e a sociedade como objetos de estudo e tem uma preocupação
epistemológica ao analisar os rumos que a Sociologia Jurídica vem tomando no estudo dessa
temática. O artigo aponta para a necessidade de uma participação mais crítica do cientista
social e o alheamento do mito da neutralidade científica, como condição fundamental para o
desenvolvimento de uma ciência transformadora.
PALAVRAS-CHAVES: Sociologia Jurídica. Positivismo. Direito. Sociedade.
ABSTRACT: The article reflects on the influence of philosophical Positivism in the
emergence of sociology and its unfolding as science. Tries to observe the law and its
relationship with society and the work of the Legal Sociology in the study of this relationship.
Elects the law and society as objects of study and has an epistemological concern to analyze
the direction that the Legal Sociology has taken the study of this subject. The article points to
the need for a more critical participation of the social scientist and the myth of the aloofness
of scientific neutrality as a fundamental condition for the development of a transformative
science.
KEY-WORDS: Legal sociology. Positivism. Law. Society.
1. Introdução
Desde o aparecimento da Sociologia em meados do século XIX essa ciência vem contribuindo
decisivamente para reflexão em várias áreas do conhecimento humano e buscando respostas,
para um número significativo de problemas, que envolvem o homem na sua relação com
outros homens, nesse palco fundamental da existência humana que é a sociedade.
Em cada momento histórico surgem novas demandas, proporcionando a necessidade de
construções e, muitas vezes, desconstruções, algumas essencialmente importantes, onde a
1
Filósofo, jornalista e mestre em Planejamento Urbano. Professor da FADILESTE na disciplina Antropologia,
Sociologia e Sociologia Jurídica.
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sociologia se debruça para pesquisar e apontar possíveis saídas, admissíveis soluções e
desenvolver análises que possam subsidiar a própria sociedade na busca de alternativas.
Por outro lado, a Sociologia luta para se descolar das artimanhas engendradas dentro de um
caldeirão de críticas. Inicialmente é atingida frontalmente pelo debate ideológico. Acusam-na
de agir ao sabor dos interesses do sistema majoritário criando na sociedade uma maneira de
compreender o mundo, que apenas reafirma os interesses daqueles que já detém o poder. Fica
a impressão que sua tarefa nem sempre é cumprida a contento, já que em muitos momentos
ela serve como reflexo das ideologias dominantes e atua como guardiã das doutrinas
claramente atreladas aos interesses daqueles que dominam economicamente.
Ainda como parte desse processo, a Sociologia passou a enfrentar uma problemática de ordem
epistemológica. Sua ênfase ainda recai demasiadamente em um empirismo exacerbado e num
atrelamento cego ao método científico. Cada vez mais prevalece à tese de que o único
conhecimento autêntico, e válido, é o conhecimento científico, e que esse conhecimento só é
possível com a afirmação positiva através do método proposto por essa ciência.
Em meio a muitos dilemas e também grandes contribuições a sociologia foi se constituindo no
decorrer dos tempos. Teve sua gênese na interessante metade do século XIX, período de
grandes transformações econômicas e sociais. O ápice da Revolução Industrial foi o momento
fundamental para solidificação do capitalismo como organização econômica, política e social.
As transformações que levaram ao fim o ciclo medieval não ocorreram de forma abrupta, elas
se deram lentamente e tiveram seu start desencadeador nos elementos de ordem moral,
religioso, social, econômico e jurídico; se transformando em um terreno fértil para o
nascimento de uma ciência que pudesse analisar essas mudanças, bem como participar de
forma dinâmica na compreensão desse importante período.
Do século XVIII para o XIX quem primeiro sentiu o peso dessas mudanças foi a organização
estamental baseada nos modos de produção e existência rural. Aos poucos, as pessoas foram
abandonando o modo de produção artesanal e caminhando em direção às cidades num ciclo
rápido de urbanização, gerando grandes centros industriais e uma massa de trabalhadores mal
alimentados, malvestidos e mal remunerados, como informam Quintaneiro e outros: “[...]
Entre 1800-1850, o crescimento populacional da Europa foi de 43%. Alguns países
ultrapassaram os 50%. Na França, no início do século XIX, a expectativa média de vida subiu
a 38 anos, e 7% da população já chegavam ao 60 anos, embora 44% não passassem de 20”
(QUINTANEIRO et al, 2010, p. 11).
Sem dúvida que a baixa expectativa de vida esteve muito relacionada com as péssimas
condições de vida e de trabalho da população, que labutava por horas e ganhava salários
muito aquém das necessidades de sobrevivência. O novo mundo, baseado na ciência, na
técnica e na produção industrial vai tomando os seus contornos e a Sociologia nasce como
observadora dessa nova realidade. Sua incumbência inicial não é intervir nessas
transformações, mas, sob o manto do imobilismo e da falta de engajamento acaba sendo uma
observadora contida, pouco participativa com o compromisso renovador do processo
científico que se instala no cerne social.
“Mas, a Sociologia como ciência nasce nos anseios e ardores do século XVIII e, portanto,
como toda ciência, não pode desamarrar-se inicialmente das ideias Iluministas que dominam
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o cenário filosófico da época. Assim, mais do que a preocupação em intervir
revolucionariamente, em provocar profundas mudanças no ambiente social, a Sociologia
nasce mecanicista, determinista, preocupada com o objeto em si mesmo – o comportamento
humano em grupo e suas manifestações, os fenômenos sociais -, mais do que com a
possibilidade de mudança; nasce querendo entender as causas num purismo que morre ali
mesmo na compreensão desse objeto” (ROCHA, 2009, p. 27).
Sob os domínios dessa lógica e profundamente conectado com o momento histórico, o
Positivismo2 atua de forma consistente para manutenção desses valores e princípios,
inspirados na defesa da ciência, da técnica e do processo de industrialização, tendo como base
a ótica capitalista. Seus defensores ratificavam por todos os cantos a máxima: “Amor por
princípio, ordem por base, o progresso por fim”. Essa trilogia carregada de um espírito
conservador visa exclusivamente buscar uma reconstrução da ordem social submergida no
caos que se encontrava a Europa no meado do século XIX3.
O Brasil foi um dos países onde a “pregação” Positivista teve mais adeptos e sua presença
pode ser percebida com muita clareza na Proclamação da República e na figura de seus
principais líderes, como Benjamin Constant e Miguel Lemos, entre outros. A atuação do
Positivismo no Brasil foi uma reação filosófica contra os ensinamentos religiosos difundidos
pela Igreja Católica, até então, a única reflexão doutrinal existente no país.
“A verdade, meu amor, mora num poço, / É Pilatos, lá na Bíblia quem nos diz, / E também
faleceu por ter pescoço, / O (infeliz) autor da guilhotina de Paris. / Vai, orgulhosa, querida, /
Mas aceita esta lição: / No câmbio incerto da vida, / A libra sempre é o coração, / O amor
vem por princípio, a ordem por base, / O progresso é que deve vir por fim, / Desprezaste esta
lei de Augusto Comte, / E foste ser feliz longe de mim” (ROSA e BARBOSA, 1933, p. SN.).
A música acima intitulada Positivismo é de autoria de dois dos maiores compositores da
Música Popular Brasileira, Noel Rosa e Orestes Barbosa. É interessante perceber como a
temática fazia parte do debate na sociedade, já que os autores trabalhavam com composições
versadas sobre temas de interesse da parte mais popular da sociedade, o que mostra o grau de
conhecimento do tema presente na vida social.
Independente da penetração social do tema, o positivismo versa sobre ação de interesses
múltiplos, reestruturar a ordem social amparado nos moldes de um capitalismo que ainda
caminha lentamente, bem como criar as condições para um entendimento da sociedade à luz
2
Desenvolvido por Augusto Comte, o Positivismo é uma maneira de pensar baseada na suposição de que é
possível observar a vida social e reunir conhecimentos confiáveis, válidos, sobre como ela funciona. Esses
conhecimentos poderiam ser usados para afetar o curso da mudança e melhorar a condição humana.
Comte acreditava que a vida social era governada por leis e princípios básicos que podiam ser descobertos
através do uso dos métodos mais comumente associados às ciências físicas. Da forma como evoluiu desde os
dias de Comte, o Positivismo afirma também que a Sociologia deveria interessar-se apenas pelo que pode ser
observado com os sentidos e que as teorias de vida social deveriam ser formuladas de forma rígida, linear e
metódica, sobre uma base de fatos verificáveis (JOHNSON, 1997, 179).
3
Com o fim do feudalismo e a migração para os grandes centros urbanos houve uma relativa melhoria das
condições de vida da população europeia assinalando um aumento da população, já que com a urbanização, as
condições de saneamento e higiene, bem como a melhoria da medicina contribuíram para diminuição da
mortalidade. Mas, por outro lado, as condições de trabalho e remuneração eram bastante precárias, o que gerava
revoltas populares e crises sociais.
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da ciência. Essa pregação encontra respaldo em todas as camadas sociais, iniciando-se pela
burguesia, que vê, obviamente, com bons olhos essa ode ao crescimento econômico, ancorado
no capitalismo, sem sofrer ameaças ao exercício do seu papel dominador na vida social.
2. A construção do pensamento positivista
Protagonista deste momento, o Positivismo institui uma lógica centrada na ciência 4 e acaba
determinando dois tipos básicos de ação, que será objeto central de análise desse artigo. No
primeiro, o conhecimento científico, pelo qual o sistema Positivista declina todo o seu fervor,
contribui com a técnica para ampliação do progresso capitalista, respaldando diretamente os
interesses da classe burguesa. Por outro lado, ao trabalhar a ideia de uma ciência pura,
objetiva e neutra; os positivistas constroem a retórica de que a ciência existe apenas movida
pelo interesse da verdade, descartando qualquer elemento de natureza axiológica5.
As contradições passam a ser visíveis a partir do momento que percebemos a apropriação dos
destinos da ciência pela classe burguesa, a utilização da técnica como elemento de poder, bem
como um incentivado “ilusionismo” de que exista uma ciência, que não tivesse o
comprometimento explícito e declarado com grupos da sociedade atrelados aos mantenedores
do poder e do capital.
Essas contribuições elencadas inicialmente antecipam o estudo desenvolvido pelas correntes
clássicas da Sociologia presentes nas obras dos quatro grandes pensadores que contribuíram
decisivamente para o surgimento/desenvolvimento dessa ciência: Augusto Comte, Émile
Durkheim, Karl Marx e Max Weber. A relação entre sociedade e produção material e a forma
como se produz o conhecimento foram objeto de estudo desses pensadores. Cada um a seu
jeito e com uma forma de análise peculiar procurou analisar as questões de forma quase
sempre diferenciadas e por muitas vezes complementares.
4
A ideia inicial do pensamento positivista parte da Lei dos Três Estado: Teológico, Metafísico e Positivista.
Para Augusto Comte os dois Estados iniciais são apenas etapas para se alcançar o ápice da evolução que vai
ocorrer quando o homem abraçar a ciência. Nesse sentido podemos fazer uma leitura evolucionista do
positivismo e afirmar que para essa doutrina a evolução verdadeira só vai ocorrer quando construirmos uma
sociedade científica e industrial.
5
“Axiológico é tudo aquilo que se refere a um conceito de valor ou que constitui uma axiologia, isto é, os
valores predominantes em uma determinada sociedade.
O aspecto axiológico ou a dimensão axiológica de determinado assunto implica a noção de escolha do ser
humano pelos valores morais, éticos, estéticos e espirituais.
A axiologia é a teoria filosófica responsável por investigar esses valores, concentrando-se particularmente nos
valores morais. Etimologicamente, a palavra "axiologia" significa "teoria do valor", sendo formada a partir dos
termos gregos "axios" (valor) + "logos" (estudo, teoria).
Neste contexto, o valor, ou aquilo que é valorizado pelas pessoas, é uma escolha individual, subjetiva e produto
da cultura onde o indivíduo está inserido.
De acordo com o filósofo alemão Max Scheler, os valores morais obedecem a uma hierarquia, surgindo em
primeiro plano os valores positivos relacionados com o que é bom, depois ao que é nobre, depois ao que é belo, e
assim por diante.
A ética e a estética estão vinculadas de forma intrínseca aos valores desenvolvidos pelo ser humano. A ética é
um ramo da filosofia que investiga os princípios morais (bom/mau, certo/errado etc.) na conduta individual e
social. A estética estuda os conceitos relacionados à beleza e harmonia das coisas”.
http://www.significados.com.br/axiologico/. Acesso em 09/05/2016.
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A Filosofia Positivista de Augusto Comte ganha contornos interessantes para a época (século
XIX) ao apoiar a tese central de que deveria surgir uma ciência que trabalhasse pela
restauração da ordem social perdida, sem, contudo, questionar o modelo de sociedade
capitalista que vigorava e que aos poucos tomava corpo na sociedade europeia. Nesses
moldes, sua teoria torna-se simpática a sociedade industrial, ao propor a observação dos fatos
sem uma conotação política. Tendo a Sociologia a função atenuadora dos conflitos sociais tão
presentes naquele momento. Seu objetivo era descrever os fatos, sem, no entanto, avaliar e
estabelecer uma ação consciente pela sua transformação. Neste momento podemos afirmar
que Comte desconsidera a influência dos determinantes históricos sobre os fatos sociais, o
que gera uma teoria profundamente voltada para uma aceitação do modelo social de forma
acrítica e passiva.
A nítida influência das ideias naturais-evolucionistas no pensamento Positivista tributou para
solidificar a ideia de que a sociedade deveria percorrer um caminho natural de evolução para
um modelo industrial-capitalista, nos mesmos moldes que ocorre na natureza, onde plantas e
animais também passaram por um processo histórico e milenar de evolução. Essa visão
evolucionista acabou ecoando de forma muito mais potencializadora que se pudesse imaginar,
influenciando várias áreas da ação humana, se espalhando da Europa até a América passando
pela África6 e assumindo conotações de ordem política, social e moral.
Sob a égide da manutenção do modelo capitalista que garantiria a libertação do homem da
miséria material e até da miséria moral, os instrumentos jurídicos foram arrastados para a
órbita desse sistema, com o compromisso de atuar como elemento garantidor da produção de
um clima de ordem social, exigindo o respeito às leis e buscando a valorização de um Estado
centralizador, que fosse visto como necessário e fundamental, sem o qual, se colocaria em
risco o bem e a sobrevivência do modelo e, concomitantemente, o bem estar de todos.
A crença nesse processo tomou cada vez mais corpo e chegou a tal ponto, que alguns
defensores se colocaram frontalmente contrários, a qualquer tipo de manifestação que pudesse
criar algum transtorno à ordem social ou colocar em risco o processo produtivo, como pode
ser observado na citação abaixo que reproduz a fala do filósofo social Le Bon retirada da sua
obra A multidão escrita em 1895, “pelo mero fato de formar parte de uma multidão
organizada, um homem desce vários degraus na escala da civilização. Isolado, ele poderá ser
um indivíduo cultivado; na multidão, é um bárbaro – ou seja, uma criatura que age por
instinto” (LE BOM apud COHN, 1973, p. 20).
A defesa do isolamento social, bem nítido no texto acima, reflete o interesse pela manutenção
da ordem e é a chave para entendermos como a Filosofia Positiva gerou um Direito Positivo
que inibiu as possibilidades de uma relação mais próxima com a sociedade. Resultante dessa
realidade talvez seja a série de problemas que enfrentamos a partir do distanciamento da
6
Os Positivistas veem a sociedade pela ótica do evolucionismo e, neste caso, as sociedades mais atrasadas
deveriam evoluir num crescente, sendo a sociedade pré-capitalista o início desta escala de evolução rumo a uma
sociedade industrial, tecnológica, capitalista tida como o ápice deste processo evolutivo. Dessa forma, todos os
países que os europeus tiveram contato no final do século XIX “foram convidados” a se enquadrar nesse
princípio. Os europeus dominaram politicamente a África e influenciaram o movimento republicando aqui no
Brasil. Por traz dessa lógica, se escondia a necessidade dos europeus criarem uma sociedade de consumo
mundial, que pudesse absorver a grande produção industrial europeia que se encontrava estagnada.
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sociedade em relação ao Direito. Essa relação enfraquecida no decorrer do século XX fez com
que o Direito no Brasil e na sua face mais visível, que é o sistema judiciário, se tornasse uma
instituição de baixa credibilidade social, associável à ideia de morosidade, de distanciamento
social e de falta de transparência.
Essa relação conturbada com a sociedade tem uma de suas faces mais nítidas na construção
jurídica, pois ela atua de forma destacada (não solitariamente) na cristalização das diferenças,
facilitada por uma modus operandi distante do domínio da maioria das pessoas.
“[...] O Direito moderno protege os interesses dos mais fortes através da proteção da
propriedade privada. Este Direito significa que, mesmo se qualquer pessoa pode aceder a
qualquer recurso social, os já “possuintes” gozam da garantia jurídica da sua posição. Para
dar um exemplo, a garantia da propriedade privada de um grande industrial significa que ele
está em situação socialmente privilegiada, podendo estabelecer salários que lhe permitam um
lucro bem superior á renda dos seus empregados. Assim sendo, a proteção jurídica da
propriedade privada garante a perpetuação da desigualdade social” (SABADELL, 2002,
p.184).
A afirmação de Sabadell procura desmistificar a crença de que a relação da Sociologia
Jurídica com o Direito é intrínseca na medida em que a primeira surge para estudar a relação
do homem na sociedade e a segunda para regulamentar essa relação de forma positiva,
garantindo a ordem social. Essas máximas ainda são decisivas para que a sociedade acredite
que a ordem é o ponto que liga estes dois ramos científicos, que buscam fazer com que a
sociedade não entre num caos social. Sabadell colabora decisivamente para afastar de vez
uma pseudoneutralidade axiológica que não existe na prática. Ao reiterar a importância do
lucro e da posição social como elementos decisivos de privilegiamento jurídico afastam os
subterfúgios, que até então foram importantes, para esconder ou escamotear as reais
motivações de classes invisíveis aos olhos por intermédio da construção ideológica.
“O mito da “unidade orgânica” dominou o discurso ideológico desde que a relação social
teve de se ajustar aos imperativos materiais de assegurar continuidade da produção no
interior do quadro potencialmente explosivo da divisão social hierárquica do trabalho, que,
repetidas vezes, mudou as suas formas ao longo da história, mas não a sua substância
espoliadora” (MÉSZÁROS, 2010, p. 12).
O controle do caos fica nas mãos de uma minoria que visa atender seus interesses, criando
assim um sistema judiciário, que ineficaz aos olhos da maioria, permanece numa posição de
inércia estratégica7 ou quando atua, trabalha incessantemente pela manutenção dessa
desigualdade de classes.
O Positivismo Jurídico moderno lançado por Hans Kelsen através de sua Teoria Pura do
Direito é a cereja do bolo para fechar com chave de ouro esse processo, ele visa expurgar
todos os fatores externos como sociológico, psicológico, senso de justiça, origens históricas,
referencias religiosas, os debates de ordem axiológicos, ou seja, visa retirar do Direito, algo
7
Essa inercia do judiciário pode ser vista claramente na obra de SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma Revolução Democrática da
Justiça. 3.ed. São Paulo: Cortez, 2011, em que o autor procura demonstrar, como vários exemplos do cotidiano do judiciário brasileiro, como
ele ainda anda a passos bastante lentos na busca por uma verdadeira democracia e que muito precisa ser feito para que tenhamos um
judiciário mais acessível aos interesses da sociedade, como uma estrutura menos excludente e mais igualitária.
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que lhe é inerente, como o estudo da sociedade e suas formas evolutivas, tendo em vista, que
foi à partir da sociedade, que o Direito não só existe, mas tem a sua razão de ser e tem nela o
seus locus de existência e ação.
Para Kelsen (2000) o sistema jurídico é unitário, orgânico, fechado, completo e
autossuficiente. O renomado filósofo foi e é de extrema importância para o estudo filosóficojurídico, mas, o fato de ter retirado fatores externos do estudo nesta área fez com que
separasse duas ciências autônomas, porém intimamente ligadas. Como assevera Bittar e
Almeida,
“[...] procurou delinear uma ciência do Direito desprovida de qualquer outra influência que
lhe fosse externa. Assim, alhear fenômeno jurídico de contaminações exteriores a sua
ontologia seria conferir-lhe cientificidade. Nesse sentido, o isolamento do método jurídico
seria a chave para autonomia do Direito como Ciência” (BITTAR e ALMEIDA, 2002, p.337).
Ainda sob a forma de um positivismo jurídico podemos notar que na essência desse processo
se apresenta uma visão constituidora desse mundo novo que surge no século XX. Nele, a
sociedade passa a viver e pensar a reboque dos interesses do capital, que vem aos poucos,
transformando as paisagens, modificando hábitos, reestruturando os modos de vida e de
organização social. O Direito é um elemento importante nesse processo, pois é ele que
estabelece as regras do jogo, que dá legitimidade as relações econômicas e sociais. Ele
assume a áurea da razão, ele passa a traduzir para a esfera das normas e das leis, a mesma
lógica que domina a sociedade.
Foi nesse campo de rigidez positiva em que só a norma é suficiente para organizar o meio
social, se esquivando assim de valores sociais e morais é que surgiu o grandioso filósofojurista Miguel Reale, com sua Teoria Tridimensional do Direito; de fato, valor e norma,
antagonizando assim com a Teoria Pura do Direito. Para Reale, não basta só existir uma
norma autônoma, mas que ela seja baseada nos anseios sociais, que ela possua uma relevância
social e jurídica buscando beneficiar a sociedade e atuando de forma garantidora do bem-estar
de todos, baseada nos relevantes valores morais-sociais. Ou seja, a norma só deve surgir se
ocorrer um relevante fato social que necessite de uma tutela jurisdicional, que é a norma tendo
assim um valor social, já que normas que não se adequam a realidade sociedade ficam
inutilizadas e assumem um caráter de ineficácia e ineficiência.
O Positivismo Jurídico marca a passagem de uma sociedade vivida no conflito, para uma
sociedade baseada em normas morais e jurídicas ditadas então por uma minoria. Nesse
momento faz sentido o questionamento: a positivação das normas garantiu a ordem social
tanto almejada pela sociedade? A norma criada à luz dos princípios jurídicos e a ação jurídica
desvinculada de elementos exteriores ao jurídico contribuiu para um Direito mais efetivo e
próximo da sociedade?
Se medo de errar podemos responder negativamente. Percebe-se claramente que o sistema
judiciário é feito pela e para a minoria, quando se fala desta, refere-se aos ocupantes da
tripartição dos poderes, aos que formam o sistema Legislativo, Executivo e Judiciário, e neles
que se concentram o poder de impulsionar a ordem social. Segundo Sabadell (2002) o acesso
à justiça, até então criado para organizar as relações sociais, sofre barreiras de acesso:
barreiras econômicas, sociais, jurídicas e pessoais.
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É importante salientar que um sistema judiciário ineficaz acaba provocando um “caos social”,
não igual ao que existia na Idade Moderna, mas, diferente na medida em que naquela época
não existia um aparato jurídico regulamentado pelo Estado, onde a população teria uma
diretriz de seu papel, do seu exercício de cidadania. Hoje, há sim um caos, em que a
desigualdade social é tão exacerbada que alcança de maneira significativa no sistema
judiciário, já que as leis são feitas por uma minoria entender, exercer e recorrer, já que não
convém aos grupos dominantes atuar politicamente para conscientizar a massa sobre a
importância do exercício de seus direitos.
O Positivismo Jurídico, por sua importância e pelo alto grau de influência no decorrer do
século XX se tornou um estudo indispensável e obrigatório para a melhor compreensão
lógico-sistemática do Direito (BITTAR e ALMEIDA). Alguns filósofos como Comte, Reale,
Kelsen foram significantes e imperiosos no decorrer de suas teorias, que continuam sendo
estudadas e analisadas sistematicamente como forma de obter uma maior solução para a
interação homem-sociedade. Mas, não é possível desconhecer a importância que a base
teórica do pensamento positivista assumiu diante do modelo de justiça construído no Brasil e
nem desconhecer a sua responsabilidade nos rumos que esse Direito tomou.
O que não pode ser deixado de lado é o fato da Sociologia e o Direito não surgiram como
ramos autônomos. Eles coexistem de maneiros dinâmica e profundamente inseridos no
contexto social e científico. E mais, não existem precipuamente para alienar a sociedade em
prol dos interesses de uma minoria. Essas duas áreas do conhecimento científico surgem hoje
com o compromisso social de solucionar os conflitos inerentes à sociedade e buscar formas
para que vivam em uma ordem democrática, que seja constituída de valores. Esses valores
devem ser amparados pelos fundamentos dessa relação participativa, para que sejam
normatizados, levando em consideração essa coexistência pacifica e constitutiva, tentando
assim não voltar à condição de que possa mudar e até extinguir valores fundamentais.
Essa participação politicamente ativa da Sociologia e sua relação de proximidade com a
justiça ficam muito bem ilustradas na visão de Florestan Fernandes,
“toda Essa indecisão é fruto de uma visão superada da Sociologia como ciência ética,
característica de ativistas que se envolvem com certa “ordem justa” das relações humanas.
Assim, percebendo que uma realidade é “miserável”, uma vez que determinada por uma
“ordem social iníqua”, eticamente “incompatível” com a ciência, o sociólogo sente-se na
obrigação de adotar um “pensamento crítico e negador”” (FERNANDES, 1980, p. 16).
Para tanto é importante não perder de vista o compromisso que o sociólogo tem com a
ciência, sem ela, qualquer observação se tornará apenas um reflexo do senso comum. Porém,
Florestan Fernandes ao exigir um “pensamento crítico e negador” mostra que só a ciência por
si não basta. É necessário participar como aquele que busca a verdade de forma intensa e
profunda. Essa postura poderá nos trazer dissabores e dúvidas, já que o caminho a ser trilhado
não é dos mais simples. Nele, surgem confrontos, dúvidas e o receio de expor aquilo que
somos integralmente.
“[...] tentar-se pensar se os males do nosso sistema judiciário, ineficiência da lei,
inaplicabilidade da mesma, lentidão do sistema, custos, erros e funcionamento caótico, não
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são, na verdade, puros reflexos de uma visão distorcida do Direito e da lei, cujo fundamento
é essa fusão do Direito Positivo com a Filosofia positivista, destarte algumas tentativas de
enxergar e praticar de forma mais sociológica e histórica. Por exemplo, a própria forma de
enxergar a lei como sendo exclusivamente formalizada, negando sua extrajudicialidade, já é
de alguma forma, uma distorção do Direito Positivo na sua luta contra o Direito Natural
[...]” (ROCHA, 2008, p. 55 e 56).
Cabe agora pensar numa reconstrução epistemológica de ambas as ciências nessa
encruzilhada marcada pelos primeiros anos do século XXI. Essa importância é assegurada
pela própria crise vivenciada por ambas. Um Direito e uma Sociologia marcada pelo
distanciamento das pessoas e crentes numa verdade preestabelecida, surge como pouco
significativas para a busca da resolução dos problemas do homem, gerando uma descrença
generalizada por um lado, e por outro, a necessidade de buscar alternativas apelativas, pouco
representativas e, às vezes, extremadas.
3. Considerações finais
Ao dizer que a Sociologia está interessada em estudar o Direito como elemento integrante da
vida social, mas sem perder de vista a possibilidade de construir uma visão crítica, que
demonstre como o Direito (sob a influência da filosofia Positivista) construiu um monumento
ao distanciamento social, ao ritualismo repetitivo e pouco produtivo, ao olhar superior do
púlpito, que trata o cidadão com a inferioridade e o lembra a todo o momento ser signatário de
um contrato social desigual e, consequentemente, desqualificado. A sociologia quer lembrar
que o Direito tem um compromisso com seu tempo, que suas raízes estão na sociedade como
um todo e não em apenas parte dela. Para tanto, é necessário acompanhar de perto as
necessidades sociais no momento em que elas acontecem, buscando uma sintonia entre as leis
e a dinâmica jurídica com os homens e mulheres que formam o tecido social. O Direito não
pode alegar desconhecer o mundo que atua, sob pena de se mostrar ainda mais despreparado e
sem fundamentação para decidir a vida de pessoas que não conhece ou não faz parte de seu
mundo.
Por outro lado, percebemos como as próprias pessoas vêm procurando negar esse modelo
antigo, dogmático e corroído pelo tempo, em busca da construção de um pluralismo jurídico8,
que represente uma aproximação maior dos cidadãos com novos instrumentos da organização
jurídica. Cresce na sociedade a pressão por uma ruptura com uma visão preconceituosa e
elitista, que se valorize uma compreensão transdisciplinar onde o Direito se abra para a
colaboração de outras áreas do conhecimento, sendo está certamente uma das últimas
barricadas a serem destruídas na batalha por uma democracia plena.
Todo esse debate de caráter epistemológico se junta a reflexão axiológico para demonstrar a
necessidade de uma revisão de paradigmas que apontem para novas direções. Nesse caso, a
garantia de uma ciência nova, que se sustente numa busca investigativa pela verdade, mas ao
mesmo tempo tenha um forte compromisso transformador; não esquecendo que a
8
"Multiplicidade de práticas existentes num mesmo espaço sócio-político, interagidas por conflitos ou
consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser nas necessidades existenciais, materiais e
culturais" (WOLKMER, 1997, p. 12).
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grandiosidade desse processo está juntamente num diálogo entre as partes, sendo o debate
axiológico fundamental para um constante assentar-se no real, com o compromisso de estar
constantemente com os pés no chão, sem perder-se no horizonte. Já que tudo isso pode fazer
com que o Direito e a Sociologia possam sofrer um forte processo de instrumentalização, para
agir em completo desalinho de seu objetivo principal, qual seja, atuar pela emancipação, pela
democratização do homem na vida social e para que tenha liberdade na construção de sua
própria história.
4. Referências
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