CONSTRUÇÕES PERIFRÁSTICAS FORMADAS POR TER, DAR E FAZER NO DICIONÁRIO KATE LÚCIA PORTELA DE ASSIS (UFRJ) Introdução Indubitavelmente, o número de significações atribuídas, nos dicionários, aos verbos ter, dar, e fazer costuma ser bastante expressivo. Uma pesquisa no Dicionário Aurélio Eletrônico – Século XXI revela que o verbo fazer pode assumir 58 acepções diversas, o verbo ter 60, enquanto o verbo dar encerra 101 acepções diferenciadas. Esses verbos costumam ser, inclusive, rotulados de verbos-ônibus, por se apresentarem, comumente, em lugar de outros. São verbos como estes que integram as chamadas construções perifrásticas (ter respeito, dar ajuda, fazer análise), estruturas formadas por um verbo de conteúdo léxico bastante esvaziado e um nome abstrato. As perífrases podem apresentar correspondência com um verbo pleno, derivado do nome abstrato que as compõe (respeitar, ajudar, analisar) ou representarem a única forma disponível na língua (ter condições, dar aula, fazer idéia). Bosque & Demonte (1999) defendem que o critério mais seguro para se definir uma construção perifrástica consiste em averiguar se a ela corresponde um verbo sinônimo e morfologicamente afim, como em dar beijo (beijar) e fazer menção (mencionar). De fato, as estruturas perifrásticas que não apresentam um verbo pleno correspondente são, em muitos casos, confundidas com expressões idiomáticas. O objetivo do presente estudo consiste em proceder a um levantamento de construções perifrásticas em dicionários, com o intuito de constatar (i) em que verbetes e em que parte deles elas podem ser encontradas, (ii) qual o tratamento que é atribuído a essas construções perifrásticas e (iii) se elas se encontram devidamente separadas das expressões idiomáticas. Pretende-se comparar os verbetes de ter, dar e fazer nos dicionários de Houaiss e Villar (2001), Fernandes (1969) e Michaelis (1998), com o intuito de investigar qual dos dicionaristas apresenta o tratamento mais coerente no que diz respeito às construções perifrásticas formadas pelos verbos leves ter, dar e fazer. Perífrases com dar, ter e fazer: uma pesquisa nos dicionários Nesta seção, pretende-se proceder a uma pesquisa, a fim de investigar o tratamento dispensado às construções perifrásticas formadas pelos verbos-suporte ter, dar e fazer. Elas podem ser encontradas, como constatou a presente pesquisa, nos verbetes de seus respectivos verbos. 2 1 – A perspectiva da Mirador Internacional Na Enciclopédia Mirador Internacional (1976), no verbete dar, são fornecidos alguns exemplos de estruturas (construções perifrásticas), ainda na primeira parte do verbete, em que são apresentadas as significações básicas dos verbos. Darei um prêmio para o aluno mais estudioso (fazer doação de) Dar auxílio (prestar) Deu-lhe uma bofetada (assentar, aplicar, pespegar) Deu punição ao desordeiro (infligir) Dou-lhe parabéns (expressar) Dar um assobio (emitir) Dar ordem (ditar, prescrever) O jornal não deu pormenores do desastre (fornecer) Não deu importância à notícia (atribuir, ligar) Note-se que essa atitude contrasta, de certo modo, com a idéia de esvaziamento semântico do verbo-suporte, que seria uma das características de tais estruturas. Pode-se deduzir, portanto, que o autor não considera os exemplos acima, por ele fornecidos, como sendo perífrases. É importante ressaltar, ainda, que no primeiro exemplo, darei um prêmio, o nome pode ser interpretado como concreto, e o complemento do verbo-suporte é, via de regra, abstrato. Os outros casos não compartilham desse detalhe, mas também não são considerados como construções perifrásticas, embora possam ser substituídos pe- 3 los seguintes verbos plenos, nesta ordem: auxiliar, esbofetear, punir, parabenizar, assobiar, ordenar, pormenorizar, importar-se. O mais interessante, contudo, é que o autor apresenta, mais adiante, nas subentradas, algumas construções perifrásticas misturadas a casos de expressões idiomáticas (do tipo “dar a alma ao diabo”), sem estabelecer qualquer distinção entre tais estruturas, que se assemelham às construções acima, com o verbo dar, e recebem, no entanto, tratamento diferenciado. São elas: “Dar à execução: executar; dar a preferência a: preferir; dar batalha: batalhar; dar crédito: acreditar; dar encanto: encantar; dar escândalo: escandalizar; dar fundo: fundear: fundear; dar guinada: guinar; dar honra: honrar; dar liberdade a: libertar; dar motivo a: motivar; dar salto: saltar; dar testemunho de: atestar, testemunhar; dar um passeio: Nopassear.” que tange ao verbo fazer, foi encontrado apenas um exemplo de uma perífrase não interpretada como tal: “fazer um discurso (recitar ou declamar)”. Seria em função da presença de um elemento interveniente? Afinal, a construção poderia eqüivaler a discursar. Não há como saber, já que são citadas construções com o verbo dar (dar a preferência a), como visto anteriormente, em que também há um elemento interveniente. É necessário ressaltar, no entanto, que, em relação ao verbo fazer, especificamente, se menciona um aspecto, em uma citação interessante: Seguido de certos substantivos, confunde-se com eles dando-lhes a significação do verbo cognato: fazer guerra: guerrear; fazer menção: mencionar; fazer progresso: progredir. 4 Os critérios utilizados pelo autor na distribuição das estruturas no interior do verbete mostram-se novamente confusos, o que se confirma pelo fato de terem sido encontradas construções perifrásticas com fazer do tipo, fazer penitência/penitenciar-se, mais uma vez misturadas a casos de expressões idiomáticas. Como tratar tais estruturas do mesmo modo que expressões como fazer gato e sapato ou fazer-se de desentendido? Por último, citam-se os casos envolvendo o verbo ter. Do mesmo modo, são apresentados alguns sentidos para tal verbo e os exemplos são de construções perifrásticas, não reconhecidas como tal. Ter confiança: revelar Ter coragem, ter desgosto, ter medo: experimentar, receber, sentir, sofrer Por que nos casos acima não se considera, igualmente, que o verbo se confunde com certos substantivos dando a eles a significação do verbo derivado do nome? Trata-se de uma grande incoerência do autor. 2 – A perspectiva de Houaiss e Villar A abordagem empreendida por Houaiss e Villar (Op. cit.) é bastante diferente, haja vista o fato de serem os únicos autores a mencionar os conceitos de verbo-suporte e verbo pleno, que se aplicam aos três verbos pesquisados (ter, dar, fazer) e a outros como, por 5 exemplo, ficar e pôr. A citação abaixo é concernente ao verbo dar. No entanto, as mesmas palavras são usadas, neste dicionário, com relação a outros verbos, mudando-se apenas os exemplos: Gram. 1) a- em algumas acepções, dar funciona como verbo pleno, com seu próprio significado (p. ex., dar um documento a um funcionário = passá-lo às suas mãos); enquanto em inúmeras outras, faz de verbo-suporte, constituindo, com o substantivo, (que na gramática tradicional é o seu objeto direto) um todo semântico (p. ex., dar um abraço = abraçar) a. 1) neste último caso, a função do verbo pendula entre a de um elemento de semântica quase vazia e aquela de um verbo não exatamente pleno, mas ainda portador de certo valor semântico maior ou menor, conforme o caso; o estabelecimento de seu sentido depende do dos substantivos que com ele ocorrem na posição de objeto, tornando o número de acepções enorme, a. 2) quando dar funciona como verbo-suporte, o chamado objeto direto não faz de argumento, tendo na verdade a natureza de um predicado, orientando o evento e classificando ou identificando o referente. Para a mesma citação de fazer e ter, os exemplos fornecidos são, respectivamente, os seguintes: fazer críticas = criticar, fazer um discurso = discursar, fazer rugas = enrugar, fazer ameaças = ameaçar, fazer seus estudos = estudar; ter importância = importar. Nesses casos, ainda segundo o autor, os verbos fazer e ter estão atuando como verbos-suporte. No caso de atuarem como verbos plenos, o exemplo para fazer é “fazer um armário = fabricá-lo como carpinteiro”; enquanto para ter o exemplo é “ter uma casa = ser seu proprietário ou possuidor”. Como se vê, a descrição, mais atual, é também mais coerente, uma vez que se procede a uma separação entre as construções nas 6 quais ter, dar e fazer funcionam como verbo pleno, como verbosuporte e, também, como parte integrante de uma expressão idiomática. Note-se que o exemplo fazer um discurso, já mencionado na Mirador (Op. cit.), recebe um tratamento diferente, já que o verbo é considerado apenas um suporte das categorias gramaticais de um verbo. A sua contribuição semântica não é considerada tão expressiva. Ressalte-se, por fim, que não são arrolados exemplos de tais fenômenos em subentradas. 3 – A perspectiva de Fernandes Fernandes (1969) apresenta, em seu “Dicionário de verbos e de regimes”, além das significações possíveis para os verbos ter, dar e fazer, algumas construções perifrásticas, cujo sentido é associado a um verbo pleno correspondente, cognato do nome que entra na perífrase. É importante frisar que cada uma dessas estruturas encontra-se na subentrada do verbete. Assim, foram encontradas seis construções com o verbo dar: Dar combate – combater Dar liberdade a – libertar Dar motivo a – motivar Dar na fraqueza – enfraquecer Dar testemunho de – testemunhar Dar pressa – apressar 7 Observe-se que as construções dar na fraqueza e dar pressa não são tão usuais. No que se refere ao verbo fazer, encontraram-se três casos: Fazer guerra – guerrear Fazer menção de alguma coisa – fazer referência a ela, mencioná-la Fazer-se forte – fortificar-se Note-se que a última ocorrência, fazer-se forte como fortificarse, pode ser considerada um tanto quanto questionável, como demonstra o exemplo abaixo: (11) É preciso que você se faça forte neste momento (11a) É preciso que você se fortifique neste momento. O mesmo número de ocorrências para fazer foi encontrada para ter: Ter dúvida – duvidar Ter muito medo e pouca vergonha – temer o castigo, mas não fazer propósito de se emendar. Ter remédio – poder remediar-se Chama a atenção o primeiro par (ter dúvida - duvidar) pelo fato de que apenas em alguns contextos essa comutação será possível, com preservação de sentido, como se pode constatar em (12): (12) Eu tenho dúvida de sua capacidade. (12a) Eu duvido de sua capacidade. O mesmo, porém, não ocorre nos exemplos abaixo: 8 (13) Alguém tem dúvida da matéria? (13a) Alguém duvida da matéria? 4 – A perspectiva de Michaelis Michaelis (Op. cit.), no “Moderno dicionário da língua portuguesa”, não reserva uma entrada diferenciada para as construções perifrásticas, mencionando-as após elencar as significações básicas dos verbos. É importante frisar que o autor também apresenta as perífrases misturadas a expressões idiomáticas (dar a mão à palmatória, fazer das tripas coração, ter cabelinho nas ventas), sem considerar, portanto, a diferença entre essas estruturas. Serão arrolados abaixo os casos em que se apresenta uma construção com verbo-suporte + nome com equivalência a um verbo pleno derivado do nome que compõe a locução, com os verbos dar, fazer e ter, nessa ordem. Dar à execução: executar Dar a bênção: abençoar Dar preferência a: preferir Dar batalha: batalhar Dar caça a: caçar Dar combate: combater Dar crédito: acreditar em Dar cumprimento a: cumprir Dar encanto: encantar Dar escândalo: escandalizar Dar fundo: ancorar, fundear, lançar ferro Dar honra: honrar Dar liberdade a: libertar (...) Dar motivo a: motivar 9 Dar pancadas: castigar corporalmente, espancar Dar salto: saltar Dar testemunho: atestar, testemunhar, confirmar Dar um passeio: passear Observe-se a presença de elementos intervenientes entre o verbo e o nome que compõem a perífrase, nos dois primeiros casos. Além disso, é importante ressaltar que o dicionário não apresenta, para nenhum dos três verbos, exemplos de frases com as perífrases, que se restringe a mostrar apenas a equivalência semântica entre as estruturas, a partir de uma abordagem totalmente descontextualizada. Alguns exemplos, no entanto, permitem que se deduza que a troca de uma forma composta por uma simples acarretará alterações sintáticas. (14) Você vai dar crédito a ela? (14a) Você vai acreditar nela? No dicionário não se menciona, inclusive, os casos em que a sinonímia é duvidosa, caso se leve em conta o contexto, como se pode comprovar em (15) e (15a), perífrase extraída dos exemplos acima: (15) Ele costuma dar pancadas no filho. (15a) Ele costuma espancar o filho. Ainda que o substantivo seja apresentado no plural (pancadas), e esse é um fato curioso, pois parece haver uma diferença de intensidade da ação, posto que em (15a) o verbo pleno transmite uma idéia 10 de maior agressividade, de uma ação mais drástica. Há pais que dão pancadas nos filhos, mas nem todos os espancam. Talvez por isso o autor apresente como primeiro sentido o “castigar corporalmente”. A fim de tentar estabelecer a sinonímia entre as construções, seria necessária a presença de um elemento interveniente: (16) Ele costuma dar muitas pancadas no filho. Ainda no que concerne ao verbo fazer, saliente-se que são apresentados os seguintes exemplos: Fazer bordos: bordejar ou caminhar em zigue-zague quando o vento é contrário Fazer ciente: cientificar, dar pleno conhecimento de algum fato Fazer em pedaços: despedaçar, partir em pedaços Fazer parelhas: emparelhar, ser igual” Por fim, no verbete ter são arrolados apenas dois casos em que se nota uma equivalência entre construções: Ter em preço: apreciar, estimar Ter fim: acabar, findar, terminar O caso de ter fim e findar pode gerar uma discussão em torno do uso de uma ou outra construção a depender do registro (falado ou escrito, formal ou informal), e demonstrar que a sinonímia em si não pode responder isoladamente pelo uso de uma ou outra construção. Aragão (1988) dirige uma crítica aos lexicógrafos, por não dispensarem um tratamento coerente às “expressões perifrásticas de 11 base verbal”. A autora preocupa-se em estabelecer critérios que promovam a distinção entre estruturas semi-lexicalizadas e estruturas lexicalizadas: Na língua portuguesa, o falante conta com determinadas expressões perifrásticas de base verbal que parecem fazer parte do discurso repetido e cujo uso vem aumentando progressivamente. Muitas delas apresentam correspondência perfeita com um lexema isolado existente na língua (ex.: "dar início" = iniciar), outras representam a única forma disponível para se expressar determinada realidade (ex.: "dar bandeira").” Por fim, é importante ressaltar que este estudo se harmoniza com a perspectiva de análise empreendida por Houaiss e Villar (Op. cit.), já que tais autores estabeleceram em seu dicionário, com bastante propriedade, a diferença entre o emprego dos verbos ter, dar, e fazer como verbo plenos e como verbos-suporte. Conclusão A pesquisa realizada nos dicionários revelou que, no que concerne ao tratamento dispensado às construções perifrásticas, não há um consenso entre os dicionaristas, que procedem de três formas distintas: (1) elencam tais construções no conjunto de significações básicas dos verbos, (2) rotulam-nas de construções formadas com verbos-suporte e (3) incluem-nas juntamente com expressões idiomáticas, sem estabelecer diferenciações. 12 No primeiro caso, deduz-se que os autores não consideram os verbos ter, dar e fazer como verbos-suporte, em função de não considerarem o esvaziamento semântico dos mesmos. No segundo caso, os autores já levam em conta a existência dos verbos-suporte, que se contrapõem aos verbos plenos. Já no terceiro caso, não são estabelecidos os critérios de diferenciação entre as perífrases e as expressões idiomáticas. Cruse (1986) afirma que a expressão idiomática é “uma expressão cujo significado não é o resultado do significado de suas partes quando estas não pertencem a uma expressão idiomática”. Segundo essa proposta, a expressão idiomática deve ter duas características: ser lexicalmente complexa – isto é, deve compreender mais de um constituinte lexical – e ser um constituinte semântico único, ou em outras palavras, um constituinte que não pode ser segmentado em constituintes semânticos elementares. Qualquer expressão que é divisível em constituintes semânticos é chamada de não idiomática ou semanticamente transparente. Nas construções perifrásticas, os verbos-suporte contribuem para o significado do todo, já que o seu esvaziamento semântico não é total. Por essa razão, tais estruturas não deveriam ser confundidas com as expressões idiomáticas, em que o significado do todo não é depreendido pela soma do significado de seus componentes. Moura Neves (1999) trata da delimitação das unidades lexicais: 13 - Unidade lexical + Unidade lexical ____________________________________________________ Construções Construções Expressões Livres com verbo-suporte lexicalizadas Na extrema esquerda, temos combinações com verbos plenos e sintagmas nominais complementos, que são completamente livres, onde os dois elementos exercem papéis independentes na estrutura argumental; na extrema direita, temos expressões que constituem um significado unitário em que “nem mesmo parece ser possível postular um SN em posição de objeto” (Neves, 1999, p. 99); e, entre esses dois graus extremos de construção, há aquelas construções intermediárias, constituídas dos chamados verbos-suporte que, por sua vez, recebem certo grau de esvaziamento do sentido lexical, porém, semanticamente contribuem para o significado total da construção. Esses são os fatores que os dicionaristas Houaiss e Villar (Op. cit.) levaram em consideração na sua abordagem e, em razão disso, apresentaram uma abordagem mais coerente e consistente que os demais lexicógrafos pesquisados. 14 Referências Bibliográficas BOSQUE, I & DEMONTE, V. Gramatica Descriptiva de la Lengua Espanola. Espana: Ed. Espasa, 1999. CRUSE, D. A. Lexical Semantics. Cambridge, Inglaterra: Cambridge University Press.1986. FERNANDES, F. Dicionário de verbos e regimes. 4. ed. São Paulo: Globo, 1969. HOUAISS A. e VILLAR M. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. MICHAELIS. Moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1998. NEVES, M. H. M. A delimitação das unidades lexicais: o caso das construções com verbo-suporte. In Basilio, M (Org.) Palavra n. 5. Rio de Janeiro: Departamento de Letras da PUC. 1999. p. 98-114. 15